Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
10443/08.6TDPRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EDUARDA LOBO
Descritores: ADVOGADO
QUEBRA DE SIGILO PROFISSIONAL
Nº do Documento: RP2010070710443/08.6TDPRT-A.P1
Data do Acordão: 07/07/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: INCIDENTE.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO.
Área Temática: .
Sumário: I- O segredo profissional proíbe a revelação de factos ou acontecimentos de que se teve conhecimento ou foram confiados em razão e no exercício de uma actividade profissional.
II- A relação constituída com o mandato forense apenas impõe dever de segredo sobre os factos inerentes ao exercício concreto do mandato.
III- Se o advogado foi testemunha de um crime estranho ao mandato constituído inexiste fundamento para a invocação do dever de segredo profissional.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso nº 10443/08.6TDPRT-A.P1
1ª secção
Relatora: Eduarda Lobo
Adjunta: Des. Lígia Figueiredo

Acordam em conferência na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO
A Exmª. Srª Juíza da 2ª secção do 1º Juízo Criminal do Porto veio, ao abrigo do disposto no art. 135º do C.P.P., suscitar o presente incidente de quebra de segredo profissional da advogada, Drª. B…….., com vista à prestação do seu depoimento como testemunha no âmbito da audiência de julgamento no Processo Comum Singular nº 10443/08.6TDPRT.
O Exmº Procurador-Geral Adjunto nesta Relação limitou-se a apor o seu visto.
Cumprido o disposto no artº 135º nº 4 do C.P.P., veio o Sr. Presidente do Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados emitir douto parecer, no sentido de que no caso em apreço não se verificam os requisitos de que depende o levantamento do segredo profissional, ou seja, a essencialidade, a imprescindibilidade e a exclusividade do meio de prova em causa e protegido pelo segredo, pelo que não existe fundamento para a dispensa ou quebra da obrigação de segredo profissional que impende sobre a Srª. Drª. B……….
Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência.
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II - FUNDAMENTAÇÃO
Revestem-se de relevo para a decisão do presente incidente os seguintes factos e ocorrências processuais:
- na 2ª secção do 1º Juízo do Tribunal Criminal do Porto corre termos o processo comum da competência do Tribunal Singular nº 10443/08.6TDPRT, no âmbito do qual o assistente C……… deduziu acusação particular contra a arguida D……… a quem imputa a prática de um crime de injúrias p. e p. no artº 181º do Cód. Penal.
- da referida acusação consta que as expressões imputadas à arguida terão sido por esta proferidas no decurso de uma reunião para uma tentativa de acordo, em que se encontravam presentes o assistente, a arguida e o seu mandatário, o Administrador do Condomínio do Edifício ……. e a mandatária deste Condomínio.
- na contestação oportunamente junta àqueles autos, a arguida arrolou como testemunha, além doutras, o Sr. Dr. E………, advogado que a acompanhava na reunião supra referida.
- em 08.09.2009, o assistente requereu o aditamento da testemunha B………, ao rol de testemunhas oportunamente apresentado;
- em 04.02.2010, a arguida juntou aos autos certidão emitida pelo Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados sobre o despacho proferido pelo Vogal daquele Conselho Distrital, do seguinte teor: “Considera-se que estão preenchidos os requisitos de essencialidade, actualidade, exclusividade e imprescindibilidade, para o depoimento do requerente como testemunha indicada pela arguida D………. no Proc. nº 10443/08.6TDPRT, a correr termos no Tribunal Criminal da Comarca do Porto, 1º Juízo, 2ª Secção, pelo que se autoriza o requerente Dr. E…….. a depor, exclusivamente, à matéria de facto constante dos artigos 4º e 5º da acusação particular e 17º da contestação apresentadas no referido processo judicial”.
- no dia 22.03.2010, declarada aberta a audiência de julgamento, a mandatária do assistente, Drª. F………, pediu a palavra e no seu uso requereu que fosse suscitado o incidente de dispensa de segredo profissional, alegando que a testemunha B………. requereu à Ordem dos Advogados o levantamento de sigilo profissional por ter estado presente na reunião em que terão ocorrido os factos, na qualidade de mandatária substabelecida da Administração do Condomínio, tendo aquele requerimento sido indeferido.
- mediante solicitação da Srª. Juíza do processo, o Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados remeteu aos autos a transcrição parcial da decisão final proferida em 26.02.2010, do seguinte teor: “Por não preencher os requisitos de que o artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados e os artigos 3º e 4º do Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional, fazem depender o levantamento de sigilo, indefere-se o pedido e não se autoriza a Srª. Drª. B…….. a depor como testemunha no processo nº 10443/08.6TDPRT que corre termos pela 2ª Secção do 1º Juízo Criminal do Porto”.
- Na sequência de tal informação, a Srª Juíza titular proferiu o seguinte despacho:
«O assistente C……… deduziu acusação particular contra D…….. imputando-lhe factos susceptíveis de integrarem a prática de um crime de injúrias p. e p. no artº 181º do C.Penal, como resulta de fls. 74 a 76, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
A arguida contestou nos termos de fls. 135 a 146, mais arrolou testemunhas, constando entre estas o Sr. Dr. E………, advogado.
A fls. 158, veio o assistente requerer o aditamento ao rol de testemunhas apresentado na acusação, oferecendo agora como testemunha a Srª. Drª. B……., o que foi admitido por despacho de fls. 59.
Na primeira data designada para audiência de julgamento, a ilustre mandatária da arguida requereu o seu adiamento por ainda não se mostrar decidido o requerimento apresentado pela sua testemunha o Sr. Dr. E……… junto da Ordem dos Advogados a solicitar o levantamento do sigilo profissional a fim de depor nos presentes autos, o que foi deferido.
A fls. 188-189 juntou a arguida aos autos decisão certificada pela Ordem dos Advogados da autorização concedida ao Sr. Dr. E…….. de depor como testemunha exclusivamente à matéria de facto constante dos arts 4º e 5º da acusação particular e 17º da contestação.
Na data designada para audiência de julgamento, a testemunha Srª. Drª. B……… enviou fax alegando não poder comparecer à audiência uma vez que não foi autorizada pela Ordem dos Advogados a prestar depoimento no âmbito destes autos, porquanto foi por aquele órgão indeferido o seu pedido de dispensa de sigilo profissional.
Do teor do requerido resulta que a Srª. Drª. B……… se escusa a prestar depoimento por força do sigilo profissional a que está obrigada.
Por sua vez a ilustre mandatária do assistente veio suscitar o incidente da escusa de segredo profissional nos termos constantes de fls. 202-203, por entender aquele depoimento essencial/imprescindível para o apuramento da verdade.
Foi solicitado à Ordem dos Advogados certidão do teor da decisão final que sobre o pedido de levantamento do sigilo profissional em causa recaiu e que veio a ser junta a fls. 207-208, confirmando-se não estar a Srª. Drª. B………. autorizada a depor como testemunha nestes autos.
Temos pois que não tendo a Srª. Drª. B…….. comparecido à audiência de julgamento marcada por se escusar a prestar depoimento por força do sigilo profissional a que está obrigada e cujo levantamento não foi autorizado pela Ordem dos Advogados, a sua ausência mostra-se justificada, tanto mais que o dever de sigilo profissional merece tutela penal conforme resulta do disposto no artº 195º do C.P.
De igual forma se nos afigura legítima a escusa em depor por parte da Srª. Drª. B………..
Por todo o exposto suscita-se ao abrigo do disposto no artº 135º do C.P.P., junto do Tribunal da Relação do Porto, o incidente de quebra de segredo profissional.
(…)»
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III – O DIREITO
O artº 135º do Cód. Proc. Penal dispõe, sob a epígrafe "Segredo Profissional": «1. Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo profissional podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos. 2. Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento. 3. O tribunal superior àquele onde o incidente se tiver suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência, do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento. 4. Nos casos previstos nos nºs 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável» (…).
Por sua vez, o artº 182º do C.P.P., sob a epígrafe "Segredo Profissional ou de funcionário e segredo de Estado", dispõe, na parte que aqui interessa, “1. As pessoas indicadas nos artºs 135º e 137º apresentam à autoridade judiciária, quando esta o ordenar, os documentos ou quaisquer objectos que tiverem na sua posse e devam ser apreendidos, salvo se invocarem, por escrito, segredo profissional ou segredo de Estado. 2. Se a recusa se fundar em segredo profissional ou de funcionário, é correspondentemente aplicável o disposto nos nºs 2 e 3 do artº 135º e no nº 2 do artº 136º”.
Em termos gerais e segundo Fernando Eloy[1] o segredo profissional deverá ser entendido como a reserva que todo o indivíduo deve guardar dos factos conhecidos no desempenho das suas funções ou como consequência do seu exercício.
Com efeito, o exercício de certas profissões exige, pela própria natureza das necessidades que visam satisfazer, que as pessoas que a elas tenham de recorrer revelem factos que interessam à sua esfera íntima (quer física, quer jurídica).
Sempre que estejam em causa profissões (como é o caso do exercício da advocacia) de fundamental importância colectiva[2], designadamente porque grande maioria das pessoas carece de as utilizar, a inviolabilidade dos segredos conhecidos através do seu exercício constitui condição indispensável de confiança nessas imprescindíveis actividades e, nessa medida, reveste-se de um elevado interesse público[3]. Nessa medida, a violação da obrigação a que ficam adstritos certos profissionais de não revelarem factos confidenciais conhecidos através da sua actividade é punível não só disciplinarmente mas também criminalmente.
Assim, compreende-se que o âmbito do sigilo profissional do advogado seja entendido em termos amplos.
Como refere António José de Lima[4]: “a profissão de advogado tem de inspirar uma confiança sem limites e assegurar uma discrição absoluta (…). Pode dizer-se que a profissão de advogado se assemelha, de certo modo, à do confessor e é assim uma espécie de sacerdócio que impõe, a quem o exerce, deveres indeclináveis e obrigações rigorosas”.
Os advogados exercem a respectiva actividade numa área de privacidade e bolem muitas vezes com o núcleo fundamental da dignidade dos respectivos clientes ou de terceiros – pessoas ou empresas – nos assuntos que lhes são cometidos.
A violação do segredo profissional assume interesse e ordem pública – impõe-se ao tribunal, não se limitando às relações advogado – cliente[5].
Contudo, o tribunal superior àquele em que se pretende inquirir um advogado deverá intervir em termos de ponderação de direitos. A doutrina criminal possui um largo discorrer sobre a matéria, designadamente no que toca ao interesse da boa administração da justiça versus a manutenção do sigilo[6].
Por outro lado, o advogado pode ficar desvinculado da obrigação do segredo profissional e divulgar os factos que ao abrigo desse dever lhe foram confiados, mas para que tal aconteça, com quebra do sigilo profissional, terá de ser expressamente autorizado a fazê-lo pelo Presidente do Conselho Distrital da Ordem dos Advogados, ou pelo seu Bastonário, em caso de recurso da decisão daquele[7].
É o que resulta do disposto no artº 87º nº4 EOA, onde se estabelece que a quebra ou cessação do dever de sigilo profissional do advogado, só existirá e será autorizada, quando se mostre absolutamente necessária para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do seu cliente ou dos seus representantes.
Assim, pese embora o interesse público do segredo profissional, este segredo ou dever de sigilo pode caracterizar-se como relativamente disponível, nas condições a que alude o disposto no artº 87º nº4 cit., mediante avaliação prévia da Ordem dos Advogados.
Quanto à legitimidade para o pedido de autorização para dispensa de segredo profissional, a jurisprudência da Ordem dos Advogados vem dando prevalência à legitimidade do advogado para efectuar o pedido de autorização de dispensa do segredo[8]; todavia, não se exime à pronúncia sobre dispensa do segredo, quando a solicitação judicial[9].
No caso dos autos, na sequência de requerimento apresentado pela testemunha B…….. (em conformidade com o disposto no nº 4 do artº 87º do E.O.A.), o Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados indeferiu a pretendida autorização para que a mesma depusesse como testemunha, justificando a decisão na inexistência de fundamento para a dispensa ou quebra da obrigação de segredo profissional, posição essa que mantém no parecer que emitiu ao abrigo do disposto no artº 135º nº 4 do C.P.P.
Porém, a questão que importa antes de mais dilucidar, é se estamos, de facto, perante uma situação de sujeição ao segredo ou sigilo profissional por parte da Srª. Advogada, Drª. B………, arrolada como testemunha nos autos.
Para além das citações já acima referidas, também o Parecer nº 56/94 do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República[10] refere que “o segredo profissional é a proibição de revelar factos ou acontecimentos de que se teve conhecimento ou foram confiados em razão e no exercício de uma actividade profissional”.
Assim, a existência de uma mera relação profissional não é suficiente para que se possa falar, desde logo, de dever de sigilo. Só os fatos nucleares da relação estabelecida entre o agente e o cliente estão sujeitos a sigilo e não já os factos paralelos. Com efeito, se um advogado for consultado por um cidadão, que no decurso da consulta lhe transmite factos pessoais necessários ao esclarecimento jurídico que pretende e se, no final, para pagamento do serviço em causa, esse cliente emite um cheque de terceiro falsificando para esse efeito a respectiva assinatura, o dever de segredo profissional que impende sobre o advogado, apenas abrange os factos que lhe foram transmitidos na consulta e não já os que consubstanciam a prática de eventual crime de falsificação ou burla cometidos pelo cliente ao emitir o cheque em causa.
“A relação constituída com o mandato forense apenas impõe dever de segredo sobre os factos inerentes ao exercício concreto do mandato, não criando um salvo-conduto para invocação de segredo por factos exteriores a essa relação, nomeadamente daqueles que integrem a prática de um crime. A relação profissional ou de proximidade que se constitui entre duas pessoas, e que justifica, em certos casos, a existência do dever de sigilo, tem um fim e um âmbito específicos, não podendo aquele dever ser alargado a factos nos quais se desempenhe um mero papel secundário, estranho àquela relação, como é o caso de se ser testemunha”[11].
Se, no exemplo do mandato forense e noutros idênticos, o sujeito que estaria obrigado ao segredo for testemunha de um crime totalmente estranho à relação constituída, não restarão dúvidas de que não fará sentido invocar tal segredo.
Com efeito, o segredo profissional é um direito e um dever do Advogado.
Só um segredo profissional com tais contornos é verdadeiramente o garante de um interesse público que, com ele, a lei visa prosseguir e que tem uma dupla vertente: por um lado, que as partes se façam, sem qualquer receio, aconselhar o Advogado e que este possa, sem constrangimento, ser informado de tudo o que entenda ser necessário ao exercício correcto do seu múnus; por outro, que o Advogado possa, em contacto com a parte contrária ou o Advogado desta, também sem constrangimento, correr o caminho da livre e responsável conciliação de interesses, como forma de reduzir a conflitualidade judicial.
Se isto é assim, como é, pode dizer-se que “só há segredo do que é segredo”, ou seja, do que só chegou ao conhecimento do Advogado por confidência do seu cliente ou por ordem deste, ou chegou ao seu conhecimento apenas porque se confiou numa condição profissional que o impedia de revelar o que assim conhecia, ou que só conheceu porque a contraparte, depositando confiança na obrigação de segredo, lhe admitiu adiantar como forma de caminhar para uma solução amigável de determinado litígio.
Tudo o mais, ou seja, tudo aquilo a que ele teve acesso por outra via, ou a que qualquer pessoa podia ter acesso, é algo que lhe não foi comunicado em segredo e a que, por isso, não deve segredo.
No caso em apreço, entendemos que o facto nuclear imputado à arguida na acusação particular não está a coberto do segredo profissional imposto à Srª. Drª. B……., arrolada como testemunha naqueles autos. Contudo, saber se a arguida proferiu a expressão injuriosa, constante da acusação, dirigida ao assistente, poderá contender com as explicações que a própria arguida apresenta na contestação e estas, sim, poderão já ser consideradas abrangidas pelo segredo profissional que impende sobre a ilustre causídica, Drª. B………..
Para além do mais, importa ter presente toda a disciplina processual penal sobre a matéria do segredo profissional.
Dispõe o artº 128º, nº 1do C.P.P.: “a testemunha é inquirida sobre factos de que possua conhecimento directo e que constituam objecto da prova”.
Estabelece, por outro lado, o artº 131º, nº 1: “Qualquer pessoa que se não encontrar interdita por anomalia psíquica tem capacidade para ser testemunha e só pode recusar-se nos casos previstos na lei”.
No artº 135º, nº 1, estabelece-se que … os advogados (…) e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo profissional podem escusar-se a depor sobre os factos abrangidos por aquele segredo.
No nº 3 deste normativo estabelece-se que o Tribunal imediatamente superior àquele onde o incidente se tiver suscitado (…) pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada face às normas e princípios aplicáveis da lei penal, nomeadamente face ao princípio da prevalência do interesse preponderante.”
Trata-se, naturalmente, do procedimento a seguir quando a pessoa (v.g., advogado) obrigada ao segredo profissional, se recuse a depor sobre factos abrangidos por aquele segredo.
Ou seja, a disposição legal em causa outorga a um círculo de profissionais um direito ao silêncio (um direito de recusa de depoimento), em nome de um dever de silêncio (de sigilo profissional).
Assim, o incidente a que alude o citado artº 135º do C.P.P. só terá lugar se a pessoa obrigada ao sigilo profissional se recusar a depor invocando dever de segredo sobre os factos abrangidos pelo depoimento. Caso a autoridade judiciária perante a qual o referido incidente tiver sido suscitado (após proceder às averiguações necessárias) concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena a prestação do depoimento.
Caso tenha fundadas dúvidas sobre a legitimidade da escusa ou se concluir que a matéria “sub judicio” integra a área sigilosa mas, não obstante, se mostra justificada a quebra de segredo, no confronto deste princípio com as normas e regras da lei penal, terá de intervir o tribunal superior para confirmar ou infirmar tal juízo. É este o âmbito do nº 3 do preceito.
Entendemos, contudo, que a competência do tribunal de 1ª instância para “proceder às averiguações necessárias” para aferir da legitimidade da escusa, não se bastam sobre a qualidade profissional de quem deve depor.
A averiguação sumária que a autoridade judiciária deve levar a cabo, deverá permitir-lhe habilitar-se a proferir despacho fundamentado sobre a legitimidade ou ilegitimidade, não só formal mas acima de tudo substancial, da escusa. Ou seja, se a testemunha pertencer a uma das classes profissionais a que alude o nº 1 do artº 135º e invocar o segredo profissional para se escusar a depor, o tribunal deverá averiguar, após “summaria cognitio”, se a matéria em causa está a coberto do segredo ou se, não obstante a natureza da sua profissão, os factos sobre os quais será questionado estão fora dos apertados limites da reserva.
Se concluir que a recusa é formal e substancialmente ilegítima, o tribunal ordena que o mesmo preste o seu depoimento.
Como defendem Simas Santos e Leal Henriques[12] “o nº 3 do preceito debruça-se sobre uma segunda fase do incidente de prestação de depoimento em casos de segredo profissional e que surge num momento posterior, ou seja, quando a autoridade judiciária, aceitando que a escusa de depor é legítima, pretende, contudo, que, dado o interesse da investigação, se quebre o segredo profissional obrigando-se o recusante a depor”.
No caso em apreço, a Srª Juíza titular do Proc. Comum em que aquela Srª. Advogada foi arrolada como testemunha, entendeu que a falta da mesma à audiência de julgamento e o envio de fax comunicando “não poder comparecer à audiência uma vez que não foi autorizada pela Ordem dos Advogados a prestar depoimento no âmbito destes autos, porquanto foi por aquele órgão indeferido o seu pedido de dispensa de sigilo profissional” configurava uma invocação de escusa a prestar depoimento por força do sigilo profissional a que aquela está obrigada, tendo, por isso considerado justificada a falta e legítima a escusa, suscitando em consequência, o presente incidente.
Não vemos, porém, que tenha procedido a quaisquer averiguações que lhe permitissem aferir da legitimidade (substancial) da escusa.
Aliás, em nossa opinião, se uma pessoa obrigada ao dever de sigilo, não pretender exercer o direito correspectivo, i.e., não se escusando a depor sobre os factos por ele abrangidos, a lei comete à disponibilidade dos membros da respectiva profissão, a decisão sobre o sentido do seu exercício concreto. No que aos advogados diz respeito, o artº 87º nº 4 do E.O.A. estabelece que “o advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho distrital respectivo, com recurso para o Bastonário, nos termos previstos no respectivo regulamento”.
Conclui-se assim que, não obstante subsistam dúvidas sobre se estamos em face de uma verdadeira recusa (atentos os contornos formais atrás aludidos) para efeitos da dedução do incidente a que alude o artº 135º do C.P.P., o certo é que não se verificam, em concreto, os requisitos de que depende a quebra de sigilo profissional, ou seja, como se refere no douto parecer do Sr. Presidente do Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados, a essencialidade, a imprescindibilidade ou a exclusividade do referido meio de prova testemunhal.
Assim sendo, não se justifica a concessão de dispensa do sigilo profissional que impende sobre a Srª. Drª. B……….
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o presente incidente de quebra de sigilo profissional, não dispensando a Srª. Drª. B…….. do dever que sobre ela impende na sua qualidade de advogada.
Sem custas.
Comunique ao Sr. Presidente do Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados.
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Porto, 07 de Julho de 2010
(Processado e revisto pela 1ª signatária)
Eduarda Maria de Pinto e Lobo
Lígia Ferreira Sarmento Figueiredo
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[1] .-Da inviolabilidade das correspondências e do sigilo profissional dos funcionários telégrafo-postais", em "O Direito", ano LXXXVI, 1954, pág. 81.
[2] O segredo profissional é correlativo indispensável de todas as profissões que assentam numa relação de confiança.
[3] Como refere Emile Garçon, in Code Pénal Annoté, 378 “Nem o médico, nem o advogado nem o padre poderiam cumprir a sua missão se as confidências que lhe são feitas não forem asseguradas por um segredo”.
[4] In “Do Segredo Profissional”, 1939, cit. in Ac.R.L. 9.3.95, Col.II/67.
[5] Cfr. Ac. R. Coimbra de 20.01.1993, BMJ 423/618.
[6] V., por todos, Ac. do STJ de 21.04.2005, C. J. Acs. STJ, Tomo II, pág. 186.
[7] V., por todos, Ac. S.T.J. 19/12/06, pº nº 06B4446, relator: Salvador da Costa;. Ac.R.L. 14/12/95, pº nº 0006062, relator: Santos Bernardino e Ac.R.P. 5/3/07, pº nº 0656518, relatora: Anabela Luna de Carvalho, todos disponíveis no site www.dgsi.pt.
[8] Cfr. Sousa Magalhães, Estatuto Anotado, 4ª ed., artº 87º, nota 17, e teor geral do Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional.
[9] Cfr., entre os mais, despacho CDP n.º 34/2005, de 28 de Fevereiro de 2005, relator: Carlos Grijó, disponível em http://jurisprudencia.oa.pt
[10] Cfr. Diário da República – II Série, nº 64 de 16.03.1995
[11] Neste sentido, Ac.R. Guimarães de 04.05.2005, relatado pelo Des. Anselmo Lopes.
[12] In Cód. de Processo Penal anotado, 3ª edª, 2008, Vol. I, pág. 969.