Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3039/22.1T8STS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISOLETA DE ALMEIDA COSTA
Descritores: DÍVIDAS COMUNS DO CASAL
PAGAMENTO
COMPENSAÇÃO
PARTILHA DE BENS DO CASAL
TORNAS
Nº do Documento: RP202402083039/22.1T8STS.P1
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Em termos gerais poderá dizer-se que são devidas compensações quando as dividas comuns forem pagas com bens próprios de um dos cônjuges, bem como quando as dividas de um só dos cônjuges sejam pagas com bens comuns.
II - O artigo 1697.º, nº 1, do Código Civil, regula as compensações devidas pela comunhão a favor de um dos cônjuges, quando este respondeu por dívidas comuns, como obrigado solidário (cfr. o art. 1695.º, n.º 1) ou como obrigado conjunto (cfr. o art. 1695.º, n.º 2), e o n.º 2, do art. 1697.º, pretende abranger todos os casos em que, por dívidas próprias, tenham respondido bens comuns.
III - O pagamento de tornas devidas pela aquisição do bem próprio de ex-cônjuge, com dinheiro comum do casal, apenas confere ao outro ex cônjuge, um mero direito de crédito, constituindo compensação, conforme os artigos 1697.º e 1689.º, do Código Civil exigível no momento da partilha.
IV - O artigo. 1689º, nº 3, do CC, estabelece o regime geral da liquidação e partilha do património do casal e do pagamento das dividas dos cônjuges, entre si, ou dos cônjuges ao património comum, fixando que o pagamento destes créditos é efetuado pela meação do cônjuge devedor no património comum; não existindo bens comuns, ou sendo estes insuficientes, respondem os bens próprios do cônjuge devedor.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc.º 3039/22.1T8STS.P1



SUMÁRIO (artigo 663º nº 7 do CPC)
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ACORDAM OS JUIZES DA 3ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:


AA, demandou BB, residente na Rua ..., ..., ... Trofa, peticionando a condenação da Ré a entregar ao Autor o prédio urbano destinado a habitação, correspondente a casa rés do chão e primeiro andar, com anexo para arrumos e quintal, sito no lugar ..., União de Freguesias ... (... e ...), descrito na conservatória de registo predial da Trofa, sob o número ...26 e inscrito na matriz respetiva, sob o artigo ...89, livre de pessoas e bens, no prazo máximo de 30 (trinta) dias.
Alega, sumariamente, que:
(i) Por escritura de partilha foi adjudicado ao Autor o prédio urbano, destinado a habitação, correspondente a casa rés do chão e primeiro andar, com anexo para arrumos e quintal, sito no lugar ..., União de Freguesias ... (... e ...), descrito na conservatória de registo predial da Trofa sob o número ...26 e inscrito na matriz respetiva sob o artigo ...89;
(ii) O referido prédio é bem próprio do Autor e constituiu a casa de morada de família durante o casamento com a Ré;
(iii) O Autor e a Ré divorciaram-se e a mesma não entrega o imóvel.
A Ré contestou, invocando a contitularidade do prédio descrito na petição inicial, sustentada no facto de terem sido pagas tornas devidas aquando da adjudicação do prédio ao autor, com dinheiro comum de ambos.

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A) Factos declarados provados na sentença:
1. Em 03 de julho de 2007, na Conservatória do Registo Civil da Trofa, decretou-se o divórcio entre AA e CC
2. Em 21 de maio de 2008, na Conservatória do Registo Civil da Trofa, AA e BB declararam celebrar o seu casamento civil, sem convenção antenupcial.
3. Em 03 de outubro de 2008, no Cartório Notarial da Trofa, lavrou-se escritura pública com a epígrafe “Partilha”, subscrita por AA e CC, no âmbito da qual consignou-se:
“Que o casal dos ex-cônjuges se encontra ainda indiviso e é constituído pelos seguintes bens:
1. Prédio urbano, destinado a habitação, correspondente a casa de rés-do-chão e primeiro andar, com anexo para arrumos e quintal, sito no lugar ..., da dita freguesia ..., cujo solo é o descrito na Conservatória do Registo Predial da Trofa sob o número ..., inscrito na matriz respectiva sob o artigo número ...13, registado a favor do primeiro outorgante pela inscrição G-Um, com o valor patrimonial de 10.663,75 euros e o atribuído de cento e sessenta mil euros, destinando-se a habitação própria. permanente do primeiro outorgante.
2. Terreno para construção urbana, sito no dito lugar ..., descrito na Conservatória do Registo Predial da Trofa sob (4o o número mil duzentos e quarenta, inscrito na matriz respectiva sob o artigo número ...00, registado a favor do primeiro outorgante pela inscrição G-Dois, com o valor patrimonial de 9.001,10 euros e o atribuído de quarenta mil euros.
Que o valor global dos bens a partilhar é de duzentos mil euros.
Que deste valor cabe a cada um dos ex-cônjuges a importância de cem mil euros.
Que procedem à partilha do seguinte modo:
Os referidos prédios, no valor de duzentos mil euros são adjudicados ao primeiro outorgante, AA, pelo que leva em excesso o valor de cem mil euros que se obriga a repor de tornas à segunda outorgante do seguinte modo:
Vinte mil euros nesta data, quantia que a segunda declara ter já recebido:
Quarenta mil euros até ao dia quatro de abril de dois mil e nove e os restantes quarenta mil euros até ao dia quatro de Outubro de dois mil e nove.
Que pelas duas últimas prestações em dívida no valor global de oitenta mil euros é ainda devida a taxa de juro de seis por cento ao ano, a liquidar no vencimento de cada uma das respetivas prestações, o que dá mil e duzentos euros para a primeira e dois mil e quatrocentos euros para a segunda e última.”
4. No circunstancialismo mencionado em 3), AA entregou a CC a sobredita quantia de 20.000,00€ (vinte mil euros).
5. Pela ap. ...87 de 20090526 afigura-se registada a aquisição a favor de AA do prédio urbano destinado a habitação, correspondente a casa de rés-do-chão e primeiro andar, com anexo para arrumos e quintal, sito no lugar ..., da freguesia ..., descrito na Conservatória do Registo Predial da Trofa sob o número ... e inscrito na matriz respetiva sob o artigo número ...13.
6. Em 05 de junho de 2009, o Banco 1..., S.A., como parte credora representada por DD, e AA e BB na qualidade de parte mutuária, subscreveram um escrito com a epígrafe “Título de Mútuo com Hipoteca”, no qual o antedito banco declarou conceder aos mutuários um empréstimo no montante de 60.000,00e (sessenta mil euros), que os mesmos declararam aceitar.
7. Por sentença proferida em 17 de junho de 2021 no processo n.º 1579/20.6T8STS, que correu termos no Juízo de Família e Menores de Santo Tirso, transitada em julgado, decretou-se o divórcio entre AA e BB, consignando-se a atribuição aos mesmos da casa de mora de família até à partilha.
8. No decurso do casamento, AA e BB residiram na casa indicada em 5).
9. Nos autos de inventário autuados sob o apenso E do processo enunciado em 7), a relação de bens consignou uma verba do ativo, atinente a quota na sociedade A... Unipessoal, Lda.
10. Em 22 de setembro de 2022, no apenso de inventário referenciado em 9), exarou-se sentença que homologou o mapa de partilha.
11. A Ré interpôs recurso da sentença indicada em 10) para o Tribunal da Relação do Porto.
12. Por Acórdão proferido em 10/01/2023, transitado em julgado, o sobredito recurso foi julgado improcedente.
13. A Ré reside atualmente na casa mencionada em 5).
14. Há mais de um ano que o Autor não acede à predita casa.
B) Factos não provados
15. O montante indicado em 6) foi utilizado pelo Autor AA para pagamento das tornas enunciadas em 3).
A SENTENÇA DECIDIU
A) Condenar a Ré a entregar ao Autor o prédio urbano destinado a habitação correspondente a casa de rés do chão e primeiro andar, com anexo para arrumos e quintal, sito no lugar ..., União de Freguesias ... (... e ...), descrito na conservatória de registo predial da trofa sob o número ...26 e inscrito na matriz respetiva sob o artigo ...89, livre de pessoas e bens, no prazo máximo de 30 (trinta) dias;
(…)
DESTA SENTENÇA APELOU A RÉ QUE FORMULOU AS SEGUINTES CONCLUSÕES:
II – Do erro de julgamento e da discordância com a sentença proferida:
b) A Apelante não se conforma com a decisão proferida, pois não foi produzida prova suficiente de que os valores pagos a título de tornas à ex-cônjuge do Recorrido, eram valores próprios destes;
d) A escritura de partilha do prédio urbano destinado a habitação correspondente a casa de rés-do-chão e primeiro andar, com anexo para arrumos e quintal, sito no lugar ..., União de Freguesias ... (... e ...), descrito na conservatória de registo predial da trofa sob o número ...26 e inscrito na matriz respetiva sob o artigo ...89, realizada entre o Recorrido e a sua ex cônjuge, ocorreu a dia 3 de Outubro de 2008;
e) Nesse momento, Recorrente e Recorrido já eram casados, ainda que o Recorrido se tivesse apresentado como “divorciado” naquele ato de partilha;
f) O Recorrido tinha de entregar € 100,00 (cem mil Euros) à sua ex-cônjuge, em três prestações, com o acréscimo de juros à taxa de seis por cento ao ano;
g) No ato da escritura foram entregues € 20.000,00 (vinte mil Euros);
h) A Recorrente, desde que chegou a Portugal, trabalhou com o Recorrido no negócio dos palcos, o que foi comprovado pelas declarações prestadas por esta, e pelas testemunhas EE, FF, e GG;
i) O enteado do Recorrido, filho da Recorrente, também trabalhava naquele negócio, embora o Recorrido fosse o único a negar tal facto (…)
(…)
k) A Recorrente fez prova bastante de que laborava diariamente para o negócio de palcos, descrevendo as funções e tarefas concretizadas, embora não auferisse qualquer salário;
l) O Recorrido alegava a existência de “cento e tal mil euros”, provenientes das tornas a que teve direito com a partilha da empresa de palcos com a sua ex-cônjuge;
m) Mas não fez prova de que aquelas partilhas ocorreram, nem que aquele dinheiro existia;
n) Pelo contrário, o Recorrido pedia dinheiro emprestado à testemunha GG – sendo certo que, esta testemunha, no seu depoimento, chegou a confirmar que o Recorrido lhe pedia dinheiro porque não tinha;
o) A dia 5 de Junho de 2009 a Recorrente e o Recorrido efetuaram um empréstimo bancário, no valor de sessenta mil euros, onde foi dado de garantia o prédio urbano objeto dos presentes autos;
p) Àquela data ainda era devida uma prestação de tornas à ex-cônjuge do Recorrido;
q) Todos os valores devidos a título de tornas à ex-cônjuge do Recorrido foram pagos enquanto a Recorrente e o Recorrido eram ainda casados;
r) A Recorrente e a testemunha EE afirmam que o empréstimo foi pedido para “terminar de pagar a casa”, confirmando que, por diversas vezes iam a balcões de instituições bancárias efetuar depósitos;
(…)
u) O Recorrido, de forma livre e consciente, ainda que os documentos juntos aos autos evidenciem precisamente o contrário, volta a relatar inverdades junto do Mui Nobre Tribunal a quo, ao dizer que o dinheiro dos cheques entregues à ex-cônjuge para pagamento das tornas devidas já se encontravam nas contas bancárias que tem junto dos Bancos “Banco 1...” e “Banco 2...”.
v) Não se encontra junto aos autos qualquer extrato do Banco “Banco 1...”, o qual se afigurava de extrema importância para a decisão da causa, ainda que o Recorrido tivesse requerido o respetivo ofício (cfr. 662.º n.º 2 alínea c), do Código de Processo Civil);
w) Da conta bancária domiciliada na “Banco 2...”, com n.º ...30, de onde foi pago o último cheque datado de 6 de Outubro de 2009, com n.º ...23, não constavam quaisquer valores monetários que fossem suficientes para pagar as tornas devidas;
(…)
y) O Recorrido não junta prova documental suficiente para provar o que alega;
(…)
dd) Não ficou provada, consequentemente, a propriedade exclusiva do Recorrido sobre o prédio objeto dos presentes autos;
ee) A Recorrente tem direito à sua quota-parte, em virtude dos valores monetários entregues à ex-cônjuge do Recorrido também lhe pertencerem.
Deve a presente apelação ser julgada procedente, por provada, e, em consequência, deverá ser revogada a sentença proferida pelo douto tribunal a quo.

RESPONDEU O RECORRIDO A SUSTENTAR A IMPROCEDÊNCIA DO RECURSO

OBJETO DO RECURSO:
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, ressalvadas as matérias que sejam de conhecimento oficioso (artigos 635º, n.º 3, e 639º, n.ºs 1 e 2, do código de processo civil).
Atentas as conclusões da recorrente as questões a decidir são as seguintes: Impugnação da matéria de facto. Reapreciar o direito

O MÉRITO DO RECURSO:

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
Dá-se aqui por reproduzida a fundamentação supra.

FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA:
I
O RECURSO DE IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO.
I.1
Como tem vindo a ser pacificamente entendido e decorre do disposto nos arts.º 635.º, n.º 4 e 639.º, do Código de Processo Civil, são as conclusões apresentadas pelo Recorrente que delimitam o objeto do recurso e fixam a matéria a submeter à apreciação do tribunal, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso, nos termos do art.º 608.º n.º 2, do CPC. Neste sentido, escreve Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 85: “Salvo quando se trate de matérias de conhecimento oficioso que possam ser decididas com base nos elementos constantes do processo e que, além disso, não se encontrem cobertas pelo caso julgado, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal.”
I.1.2
Artigo 640.º sob a epígrafe «Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto» estabelece os requisitos formais a que deve obedecer a impugnação da matéria de facto, dispondo:
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
I.1.3
Devendo na motivação do recurso o recorrente cumprir o ónus de alegação inserto no artº 640º, nº 1, do Código de Processo Civil, tem sido questão controvertida e debatida na jurisprudência, a de saber quais os elementos que têm de constar não só da motivação do recurso, mas também das conclusões do mesmo, quando o Recorrente pretenda impugnar a decisão sobre a matéria de facto, à luz das exigências previstas pelo legislador no referido normativo.
A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a firmar-se no sentido de que a exigência prevista no n.º 2 al. a) do art.º 640.º, relativa à indicação das passagens da gravação em que se funda o recurso quando a prova tenha sido gravada, não tem de ser incluída nas conclusões do recurso, e mais recentemente no AUJ 12/2023 entendeu-se que mesmo quanto à decisão que o recorrente pretende que seja dada aos pontos de facto impugnados desde que esta seja inequívoca alegada na motivação do recurso deve ser considerado satisfeito o respetivo ónus de alegação.
No entanto tem sido sustentado no Supremo que a admissibilidade do recurso depende de constar das conclusões do recurso pelo menos a exigência prevista na al. a) do n.º 1 deste artigo, ou seja, a indicação dos concretos pontos de facto considerados incorretamente julgados. O Acórdão de 29-10-2015 (LOPES DO REGO) 233/09.4TBVNC.G1.S1, in www.dgsi.pt refere: “Face aos regimes processuais que têm vigorado quanto aos pressupostos do exercício do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objeto e de fundamentação concludente da impugnação – que tem subsistido sem alterações relevantes e consta atualmente do nº 1, do art.º. 640º, do CPC; e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado, no seu conteúdo prático, ao longo dos anos e das várias reformas – indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exata das passagens da gravação relevantes (e que consta atualmente do art. 640º, nº2, al. a) do CPC).”
Neste mesmo sentido, de que pelo menos a indicação dos factos considerados incorretamente julgados tem de constar das conclusões do recurso, pronunciaram-se, entre outros, os Acórdãos do STJ de 12/05/2016 (ANA LUISA GERALDES) 324/20.9TTALM.L1.S1; e de 19/2/2015 (TOMÉ GOMES) 299/05.6TBMGD.P2.S1; de 22/09/2015in www.dgsi.pt
“Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões.” Acrescenta a pág. 129: “Importa observar ainda que as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo.” Abrantes Geraldes, in ob. cit., pág. 126.
I.1.4
De resto no recente AUJ nº 12/2023 de 17-10-2023, no processo 8344/17.6T8STB.E1-A.S1, publicado no DR nº 220/2023, de 14-11-2023, muito embora na concreta questão decidida tenha enunciado que: “Nos termos da alínea c), do n.° 1 do artigo 640.°do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações”, esclareceu no seu relato que: “ Da articulação dos vários elementos interpretativos, com cabimento na letra da lei, resulta que em termos de ónus a cumprir pelo recorrente quando pretende impugnar a decisão sobre a matéria de facto, sempre terá de ser alegada e levada para as conclusões, a indicação dos concretos pontos facto que considera incorretamente julgados, na definição do objeto do recurso.
Quanto aos dois outros itens, caso da decisão alternativa proposta, não podendo deixar de ser vertida no corpo das alegações, se o for de forma inequívoca, isto é, de maneira a que não haja dúvidas quanto ao seu sentido, para não ser só exercido cabalmente o contraditório, mas também apreendidos em termos claros pelo julgador , chamando à colação os princípios da proporcionalidade e razoabilidade instrumentais em relação a cada situação concreta, a sua não inclusão nas conclusões não determina a rejeição do recurso , conforme o n° l, alínea c) do art.º 640 (…).
I.1.5
No caso do presente recurso, constata-se que as conclusões são totalmente omissas relativamente a todos os ónus impostos pelo artigo 640º do Código de Processo Civil.
Ou seja, não se faz constar, nestas, (i) qual a decisão alternativa requerida, (ii) quais os concretos meios de prova que no entender da recorrente sustentariam a alteração da decisão, e, se, de acordo com a jurisprudência deste referido AUJ, a omissão de tais requisitos poderia sempre ser suprida caso os mesmos de forma inequívoca terem sido feitos constar do corpo das alegações, quanto ao terceiro requisito, já a sua omissão nas conclusões determina a rejeição imediata do recurso.
Ou seja, a admissibilidade da impugnação da matéria de facto não prescinde da alegação nas conclusões, da indicação dos concretos pontos facto que se considera incorretamente julgados, na definição do objeto do recurso, o que por não se verificar no caso presente determina a imediata rejeição do recurso.
II
Sem prejuízo, e apenas por razões meramente dialéticas, sempre se dirá que, ainda que assim não fosse, o recurso de impugnação da matéria de facto sempre seria de improceder; senão vejamos.
Como resulta da parte final da motivação das alegações a Recorrente requer o aditamento da seguinte matéria de facto:
6.1 A Ré R é contribuiu também com dinheiro seu, inclusive trabalhando diariamente, para que o Autor pagasse as tornas devidas à ex-cônjuge.
15. O montante indicado em 6) foi utilizado pelo Autor para pagamento das tornas enunciadas em 3”.
16. O que faz com que a Ré é tenha direito à corresponde à quota quarte correspondente (artigos 1724.º, alínea b), 1726.º e 1730.º, todos do Código Civil Civil) dos prédios descritos uma vez que as tornas devidas à ex-cônjuge do Autor foram foram pagas com o dinheiro de ambos (Autor e Ré).
17. O Autor não é o único proprietário do bem imóvel dos presentes autos.
18. Pois a Ré, é, de enquanto detentora legitima possuidora da quota ta parte que lhe corresponde no prédio objeto dos os presentes autos, tem direito a permanecer na casa de morada de família, família, por ser ser também dona e legítima proprietária.
Dos factos não provados:
19.Os valores entregues à ex cônjuge do Recorrido, a título de tornas são valores próprios deste.
20. O Recorrido não detém a propriedade total do prédio urbano objeto dos presentes autos.
II.1
Ora, é questão de facto tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais ou concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior, determinando o que aconteceu. (cfra Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. III, pg. 206): Dir-se-á, assim, ser matéria de facto a que envolve os acontecimentos ou circunstâncias do mundo exterior, os fenómenos da natureza, as manifestações concretas dos seres vivos e as atuações dos seres humanos, incluindo as do foro interno.
O juiz pronuncia-se sobre factos concludentes, pertinentes, (artigo 607º, nº 3 e 4, do Código de Processo Civil) pelo que, a decisão sobre a matéria de facto não poderá comportar asserções vagas, complexas, normativas ou que encerrem juízos valorativos, sob pena de violação daqueles comandos legais.
II.1.1
Isto posto, se, por um lado a substanciação dos pontos que se requer aditados, sob os nºs 16 a 20, supra, é constituída por asserções conclusivas e conceitos jurídicos com referência inclusive a normas legais, por outro lado, as asserções constantes dos supra referidos pontos da matéria de facto para além das conclusivas são irrelevantes (nomeadamente, pontos 6.1 e 15) para o desfecho da ação.
É que, em caso algum o pagamento de tornas. pela adjudicação do imóvel ao autor, enquanto divida sua exclusiva responsabilidade - mesmo que a provar-se que tinha sido efetuado com dinheiro do casal, teria como consequência transmutar um imóvel bem próprio de um dos cônjuges, em bem comum, (o direito de propriedade adquire-se por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão e demais modos previstos na lei, art.º 1316.º, do Código Civil).
II.1.2
A problemática das dividas dos cônjuges, está concentrada no código civil, no Livro IV, Titulo II Secção II. Aqui sob a epígrafe “Dividas Dos Cônjuges”, se, definem os critérios de distinção entre dividas que responsabilizam ambos os cônjuges ou apenas um deles, bem como se identifica os bens que respondem por umas e por outras dívidas (artº 1690º a 1696º) e se regula os modos como se corrigem os desvios à definição desta responsabilidade dos bens dos cônjuges (artº 1697º).
Resulta do artº 1694º, nº2, do CC que as dividas que onerem os bens próprios de um dos cônjuges são da sua exclusiva responsabilidade (…) Por sua vez o artigo 1697º, nº 1, regula as compensações devidas pela comunhão a favor de um dos cônjuges, quando este respondeu por dívidas comuns, como obrigado solidário ( art. 1695.°, n.º 1) ou como obrigado conjunto (art. 1695.°, n.º 2) e o n.º 2 do art. 1697.°, pretende abranger todos os casos em que, por dívidas próprias, tenham respondido bens comuns.
Em termos gerais, poderá dizer-se que são devidas compensações quando as dividas comuns forem pagas com bens próprios de um dos cônjuges, bem como quando as dividas de um só dos cônjuges sejam pagas com bens comuns. (Código Civil anotado, livro IV Direito da Família, Clara Sottomayor, Almedina, 2020, p.320).
Uma compensação presume um movimento de valores entre o património comum e o património próprio de um dos cônjuges, ou o contrário (Cristina Araújo Dias, Compensações devidas pelo pagamento de dividas dos cônjuges, Almedina, 2021 p 98/ nota 139). Trata-se de um crédito que se estabelece, no decurso do casamento e na vigência do regime de bens, entre a massa comum e um ou outro dos patrimónios próprios.
Isto posto, é evidente que o pagamento de uma divida própria do Recorrido (divida de tornas) com dinheiro comum apenas daria direito a um crédito da Recorrente sobre o mesmo, como resulta do princípio geral que se pode deduzir do artigo 1689.º, nº 3, do C.C. ao dispor: “os crédito de cada um dos cônjuges sobre o outro são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum” (…) e que obriga às compensações entre os patrimónios dos cônjuges, e entre estes e o património comum, sempre que um deles, no final do regime, se encontre enriquecido em detrimento do outro.
II.1.3
Portanto qualquer pagamento de tornas devidas pela aquisição do bem próprio do recorrido com dinheiro comum, isto é, também da recorrente, não constituiria mais que um mero direito de crédito da ré ( artigos 1697º e 1689º, do Código Civil) exigível no momento da partilha.
É o que decorre ainda do disposto no artº. 1689º nº 3, ao estabelecer o regime geral da liquidação e partilha do património do casal e do pagamento das dividas dos cônjuges, entre si, ou, dos cônjuges ao património comum, e que o pagamento destes créditos é efetuado pela meação do cônjuge devedor no património comum; não existindo bens comuns, ou sendo estes insuficientes, respondem os bens próprios do cônjuge devedor.
De resto, no sentido de que o inventário é a forma legal de proceder à partilha (artº 2101º e 2102º do CC) pelo que, não podem tais créditos dos cônjuges ou ex cônjuges ser reconhecidos e apreciados em ação declarativa de condenação na forma de processo comum, veja-se o acórdão desta Relação de 17-06-2019 (MANUEL DOMINGOS FERNANDES) 1975/17.6T8VLG.P1 in dgsi. Em idêntica situação de compensação, entre ex cônjuges, embora subsumida ao nº 1, do artº 1697º do CC, o acórdão do TRL de 26 de março de 2019 (JOSÉ CAPACETE) processo 2225/18.3.T8LRS.L1-7 in dgsi decidiu que: «O eventual crédito do A. sobre o R. só é exigível no momento da partilha dos bens comuns do casal».
Portanto, a pretensão da Ré, estaria sempre votada ao fracasso, nesta ação.
E no mais, do que resulta dos autos (sentença de partilha junta ao processo) também a Ré não reclamou qualquer direito compensatório no inventário que decretou por sentença transitada em julgado a partilha dos bens comuns.
Pelo que, também por esta razão, não haveria que proceder à reapreciação da matéria de facto, por inútil.
III
Com efeito, tem sido uniformemente entendido pelos tribunais superiores, que só deve ser reaparecida a impugnação da matéria de facto, se da alteração reclamada decorrer uma alteração de direito. (acórdãos do TRG de 9.04.2015 (ANA CRISTINA DUARTE), Processo:4649/11.8TBBRG.G e desta Relação de 09-03-2020 ( PEDRO DAMIÃO E CUNHA) 1967/17.5T8PRD.P2; de 15-12-2021 (JORGE SEABRA) processo 1442/20.0T8VNG.P1, todos in DGSI; neste se sustenta que: “impugnação da decisão de facto não é um fim em si mesmo antes assume evidente caráter instrumental face à pretensão do Recorrente” Também Abrantes Geraldes in Recursos em Processo Civil, Novo Regime”, 2ª edição, 2008, pág. 297-298 refere que a Relação deve (…) abster-se de conhecer da impugnação da decisão da matéria de facto quando os factos impugnados não interfiram de modo algum com a solução do caso, designadamente por não se visionar qualquer solução plausível da questão de direito que esteja dependente da modificação que o recorrente pretende operar no leque de factos provados ou não provados.”
Não se conhece por consequência do recurso de impugnação de facto por inobservância dos requisitos legais exigidos na lei de processo.
IV
DO DIREITO DO AUTOR.
O autor funda o seu pedido de restituição do imóvel dos autos que foi a casa de morada de família, do extinto casal formado por si, e pela ré, já que o casamento celebrado entre ambos foi decretado por sentença de divórcio transitada em julgado; (i) no direito de propriedade do imóvel (ii) na natureza de bem próprio do mesmo (iii) na inexistência de causa justificativa para a detenção do mesmo pela ré, (iv) já que o uso e habitação do referido prédio tinha sido por acordo de ambos, atribuído, enquanto casa de morada de família, até à partilha dos bens comuns, (v) sentença de partilha no inventário subsequente ao divórcio que transitou em julgado.
Ora, em face dos factos provados que (i) atestam fora de duvida a propriedade do imóvel pelo autor, (ii) a sua natureza de bem próprio dado que se trata de bem registado em nome do autor por adjudicação em partilha subsequente a divórcio do anterior casamento do autor (iii) o acordo das partes na atribuição do uso e habitação do mesmo à ré até à partilha, (v) na existência de sentença de partilha dos bens comuns já transitada em julgado, nada obsta à requerida entrega que é uma consequência necessária do direito de propriedade do autor (artigo 1305º do CC).


IV
SEGUE DELIBERAÇÃO:
NÃO PROVIDO O RECURSO. CONFIRMADA A SENTENÇA.

Custas pela Recorrente.




Porto, 8.02.2024
Isoleta de Almeida Costa
Isabel Peixoto Pereira
João Venade