Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
97/12.0GAVFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL SOARES
Descritores: INQUÉRITO
ENCERRAMENTO
OMISSÃO
PROMOÇÃO
NULIDADE INSANÁVEL
Nº do Documento: RP2017030897/12.0GAVFR.P1
Data do Acordão: 03/08/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 701, FLS.82-83)
Área Temática: .
Sumário: I - A omissão do MºPº do despacho final de encerramento do inquérito sobre um procedimento por crime semipúblico integra a nulidade insanável do artº 119º al. b) CPP: falta de promoção do processo nos termos do artº 48º CPP, ao não se pronunciar sobre a totalidade do objecto do inquérito.
II - O Tribunal de Instrução Criminal ao declarar tal nulidade e ordenar o suprimento de tal nulidade cometida em inquérito não viola o princípio da autonomia do MºPº para exercer a acção penal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 97/12.0GAVFR
Comarca de Aveiro
2º Juízo Central de Instrução Criminal do Tribunal de Santa Maria da feira
Acórdão deliberado em Conferência

1. Relatório
1.1. Decisão recorrida
Por despacho de 15 de Setembro de 2016 o tribunal de instrução criminal decidiu declarar a nulidade do despacho final proferido em inquérito e de todos os actos subsequentes, por falta de promoção do Ministério Público em relação a crime de natureza semipública, objecto de queixa sobre a qual não houve pronúncia, com a consequente remessa do processo ao Ministério Público para os fins tidos por convenientes.

1.2. Recurso
O Ministério Público interpôs recurso do despacho, pedindo a sua revogação, essencialmente com os seguintes fundamentos:
- A omissão de decisão no despacho final de inquérito sobre a queixa por crime de natureza semipública integra a nulidade sanável prevista no artigo 120º nº 2 al. d) e não a insanável prevista no artigo 119º al. b), ambos do CPP[1];
- Não tendo sido atempadamente arguida, tal nulidade mostra-se sanada, pelo que o tribunal não a podia ter declarado;
- Mesmo que se entendesse que se trata da nulidade do artigo 119º al. b), o tribunal não podia ter ordenado a devolução do processo ao Ministério Público porque (i) o Ministério Público não está hierarquicamente subordinado ao juiz de instrução, (ii) o juiz de instrução não tem prorrogativa de ordenar actos idênticos aos previstos no artigo 279º, (iii) se o processo for devolvido ao Ministério Público este pode, como dono do inquérito, limitar-se a recebê-lo e a ordenar nova remessa para o tribunal de instrução, gerando-se assim um impasse insolúvel, (iv) o juiz de instrução não tem competência para remeter o processo para reabertura do inquérito, sob pena de violação dos artigos 268º, 269º, 278º e 279º a 310º e ainda do artigo 219º e 20º nº 4 da Constituição, bem como o artigo 6º nº 1 da CEDH, no que respeita à autonomia do Ministério Público e ao princípio da decisão do processo em prazo razoável.

1.3. Resposta
Os demais sujeitos processuais não responderam ao recurso.

1.4. Parecer do Ministério Público na Relação
Na Relação o Ministério Público teve vista do processo e não emitiu parecer

2. Questões a decidir
O que há a decidir é apenas se ocorre nulidade processual insanável que possa ser declarada pelo juiz de instrução criminal e tenha por efeito a devolução do processo ao Ministério Público para suprimento do vício.

3. Fundamentação
3.1. Ocorrências processuais relevantes
- O inquérito iniciou-se com uma queixa de B… contra a sociedade C…, Lda. por crime de burla, tendo-se o queixoso constituído assistente.
- Posteriormente, veio a ser integrado nesse inquérito, por apensação, outro inquérito iniciado por uma denúncia apresentada pela sociedade C…, Lda. contra o mesmo B…, que veio a ser constituído arguido.
- Por despacho proferido pelo Ministério Público, foi encerrado o inquérito, no que respeita aos factos denunciados pela sociedade C…, Lda., sem que tivesse havido qualquer pronúncia sobre a queixa apresentada por B….
- O Instituto da Segurança Social requereu a abertura de instrução, reagindo contra o aludido arquivamento do inquérito contra o arguido B….
- O tribunal de instrução criminal declarou a nulidade do despacho final proferido pelo Ministério Público, por falta de promoção do processo nos termos do artigo 48º, e determinou a devolução do processo ao Ministério Público para os fins tidos por convenientes.

3.2. Análise do mérito do recurso
Vamos analisar em primeiro lugar se a omissão de despacho final em inquérito por crime semipúblico integra a nulidade insanável do artigo 119º al. b): falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artigo 48º, ou a nulidade sanável do artigo 120º nº 2 al. d): insuficiência de inquérito por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios.
O Ministério Público invocou em abono da sua tese dois acórdãos do TRP, de 26SET2012 (processo 275/10.5JAPRT-A.P1) e 30ABR2014 (processo 1059/11.0GBPNF-A.P1), ambos consultáveis em www.dgsi.pt. Porém, julgamos que tais acórdãos não trataram de questão equiparável à que aqui estamos a decidir. Aliás, os seus sumários induzem em erro, na medida em que dão mais ênfase a um argumento lateral do que ao cerne da questão-objecto. Nesses casos tratava-se de recursos de decisões que tinham rejeitado a abertura de instrução do assistente quanto a factos sobre os quais o Ministério Público não se tinha pronunciado, arquivando ou acusando. Era, portanto, uma instrução sem objecto, na medida em que visava sindicar uma decisão inexistente. O que se decidiu foi que o assistente tinha usado de meio processual impróprio para reagir contra a omissão, pois em vez de requerer a instrução deveria ter arguido a nulidade da omissão de pronúncia do Ministério Público. É certo que se considerou estar em causa a nulidade sanável do artigo 120º nº s al. d), mas é preciso ver que não se tratava de casos de controvérsia sobre os efeitos da declaração de nulidade, nomeadamente a possibilidade de devolução do processo ao Ministério Público para completar o inquérito com o respectivo despacho final. Este diferente enfoque daqueles acórdãos faz toda a diferença.
Não há qualquer dúvida de que o Ministério Público é quem tem legitimidade para promover o processo penal e que uma vez aberto inquérito o mesmo tem de ser encerrado com despacho de arquivamento, dedução de acusação ou despacho de suspensão provisória (artigos 48º, 262º, 267º e 276º e 281º). Tal decisão é um acto processual obrigatório que não está na disponibilidade do Ministério Público omitir. Daí decorre que a omissão do acto integra um vício processual formal.
Não nos parece que a omissão desse acto se enquadre na nulidade sanável do artigo 120º nº 2 al. d). Quando a lei se refere a um inquérito insuficiente, por falta da prática de actos legalmente obrigatórios, pressupõe logicamente que essa fase do processo chegou ao seu termo com a prolação do respectivo despacho final, embora com omissão de actos que eram obrigatórios. No caso do inquérito sem decisão final, a respectiva fase processual não fica completa. O processo não fica no estado de pendente, porque passou o momento processual próprio para a realização das diligências investigatórias, mas também não fica findo com uma pronúncia expressa sobre o mérito dos indícios.
Concordamos com o despacho recorrido. A nulidade que se verifica é a do artigo 119º al. b). O Ministério Público simplesmente não completou a promoção do inquérito a que está vinculado. Este vício não visa apenas sancionar a violação de uma regra de competência processual – por exemplo, um caso em que o arquivamento tivesse sido decidido por entidade diferente do Ministério Público – mas também a violação da regra da obrigatoriedade da promoção do processo – na situação em que o Ministério Público termina a fase processual sem despacho final sobre o objecto do inquérito.
No plano da interpretação sistemática das normas, não teria aliás sentido, que a falta de abertura de inquérito nos casos em que é obrigatório constituísse nulidade processual insanável (artigo 119º al. d) e depois a sua não finalização fosse sanável, uma vez que em ambas as situações está em causa a omissão da obrigatoriedade da promoção da acção penal.
Esta situação é muito semelhante à que foi decidida no Acórdão de fixação de jurisprudência do STJ, de 16DEZ1999 (DR, I Série, nº 4, de 6JAN2000), em que se decidiu o seguinte: “Integra a nulidade insanável da alínea b) do artigo 119.º do Código de Processo Penal a adesão posterior do Ministério Público à acusação deduzida pelo assistente relativa a crimes de natureza pública ou semipública e fora do caso previsto no artigo 284.º, n.º 1, do mesmo diploma legal”. Neste caso o Ministério Público tinha notificado o assistente para deduzir acusação num crime de natureza semipublica sem que tivesse encerrado o inquérito com o despacho que lhe competia proferir. O tribunal considerou que ao não deduzir acusação ou arquivar o inquérito, o Ministério Público violou o dever de promover a acção penal. Não há diferença relevante entre o caso analisado neste acórdão de fixação de jurisprudência e aquele que agora estamos a ver. Em ambos o que está em causa é a mesma omissão do acto processual próprio de promoção da acção penal.
No sentido de que se trata de uma nulidade insanável podem ainda ser consultados os seguintes acórdãos: TRP de 20JUN2012 (processo 35/10.5P6PRT-A.P1) e TRG de 30NOV2015 (processo 471/13.5TAGMR.G1) e 12JUL2016 (processo 679/14.6GCBRG-B.G1), todos em www.dgsi.pt.
Em face do exposto, é nosso entendimento que o tribunal recorrido decidiu acertadamente ao declarar a nulidade do despacho final em que o Ministério Público não se pronunciou sobre a totalidade do seu objecto.
É indiferente o argumento avançado no recurso de que de todo o modo o despacho a proferir seria o de arquivamento por intempestividade da queixa. Nessa parte, que se refere ao mérito da decisão, é óbvio que o juiz de instrução não pode intrometer-se por falta de competência. E como tal, não pode deixar de declarar uma nulidade no pressuposto de que o seu suprimento conduzirá a este ou àquele resultado. Essa decisão compete ao Ministério Público.
Temos agora de ver qual é o efeito desta declaração de nulidade, uma vez que o Ministério Público expressou a opinião de que não pode ser objecto de suprimento.
Devemos em primeiro lugar dizer que não vemos congruência nem racionalidade numa solução interpretativa que levasse à conclusão de que a lei se opõe ao suprimento de uma nulidade insanável, que o tribunal tem de declarar oficiosamente em qualquer fase do procedimento, nomeadamente na instrução (artigos 119º e 308º nº 3). Tratar-se- ia de uma nulidade insanável que, porém, não poderia ser sanada, com a prática do acto devido, o que parece um absurdo lógico.
A nosso ver, todos os argumentos do recurso para sustentar a tese de que o tribunal não pode determinar a devolução ao Ministério Público para que a nulidade seja suprida com a prolação do despacho omitido são improcedentes.
A autonomia estatutária do Ministério Público afirmada no artigo 221º da Constituição e nos artigos 1º e 2º do respectivo Estatuto (Lei nº 47/86, de 15OUT) refere-se à sua relação orgânica com os demais órgãos da administração do Estado, incluindo naturalmente os tribunais. Nesse plano de análise, a autonomia do Ministério Público para desenvolver as atribuições que a lei lhe confia não difere substancialmente da autonomia estatutária dos advogados que representam as pessoas singulares ou colectivas em tribunal nem tão pouco da autonomia pessoal de cada sujeito processual. Por isso, quando o tribunal de instrução criminal, no exercício das suas competências próprias, declara uma nulidade e ordena o seu suprimento, a autonomia estatutária do Ministério não lhe confere qualquer prerrogativa diferente da que caracteriza a posição dos outros sujeitos processuais. O Ministério Público não é imune ao dever de obediência às decisões judiciais quando a determinação se coloca na relação entre o juiz e um sujeito do processo e não na relação orgânica entre o Ministério Público e o tribunal, enquanto instituições com atribuições legais distintas.
É evidente que no sentido colocado no recurso, não existe uma subordinação hierárquica do Ministério Público ao juiz. A regra da organização hierárquica do Ministério Público estatuída no artigo 221º nº 3 da Constituição refere-se à relação interna entre seus vários órgãos e magistrados. Isso nada tem a ver com a relação processual de autoridade que se estabelece entre o juiz e os sujeitos do processo. Evidentemente que as decisões judiciais vinculam todos os sujeitos, não por supremacia hierárquica – conceito que nem sequer se aplica nas relações entre titulares de órgãos diferentes – mas porque é a lei que lhe atribui essa qualidade.
No processo penal o Ministério Público tem completa autonomia para exercer a acção penal de acordo com as suas atribuições. Isso decorre da estrutura acusatória do processo estabelecida no artigo 32º nº 5 da Constituição. O juiz penal está numa posição de total independência em relação aos sujeitos processuais. A iniciativa do processo é do Ministério Público e a responsabilidade da decisão é do juiz. Simplesmente, o suprimento de uma nulidade processual cometida na fase de inquérito não viola aquele princípio. Ao contrário do defendido no recurso, o que está em causa não é a reabertura do inquérito referida no artigo 279º. Esta pressupõe um prévio arquivamento que no caso nunca existiu e destina-se a realizar novos actos de investigação, o que também não foi ordenado pelo tribunal de instrução.
O argumento de que o Ministério Público, por ser o dono do inquérito, pode vir a devolver de novo o processo ao juiz de instrução sem suprir a nulidade, a ser verdadeiro, significaria que o Ministério Público seria imune à autoridade do juiz na condução do processo e poderia “boicotar” a regularização formal dos actos que a lei prescreve como obrigatórios. Não é essa certamente a interpretação correcta das normas em questão.
O acórdão do STJ referido no recurso, de 27ABR2006, não é aplicável à situação em apreço. Ali estava em causa a proibição do juiz ordenar ao Ministério Público a realização de diligências de inquérito. Tratava-se de uma intromissão do tribunal na condução de uma fase do processo que é da competência do Ministério Público. Aqui a situação é totalmente diferente. O juiz de instrução não determinou a realização de quaisquer diligências mas apenas o suprimento de uma omissão que impede o prosseguimento do processo. O Ministério Público mantém intacta a sua competência para decidir como proceder: pode acusar, arquivar ou realizar diligências com inteira autonomia. Não é por isso que o Ministério Público deixa de ser o titular do inquérito.
O argumento de que a decisão recorrida viola o princípio constitucional do processo equitativo em prazo razoável com franqueza escapa ao nosso entendimento. O atraso que o suprimento do vício pode provocar na marcha do processo decorre da necessidade de suprir um vício a que o Ministério Público deu causa e não da interpretação da lei feita pelo tribunal.

3.3. Conclusão
Em conclusão, a omissão por parte do Ministério Público do despacho final de encerramento do inquérito em procedimento por crime semipúblico integra a nulidade insanável do artigo 119º al. b), de falta de promoção do processo nos termos do artigo 48º. Como tal, a decisão recorrida não violou nenhuma das normas invocadas no recurso e que deve ser confirmada. O processo será devolvido ao Ministério Público a quem competirá suprir a nulidade com a prática do acto que considerar adequado.

4. Decisão
Pelo exposto, acordamos em negar provimento ao recurso e em confirmar a decisão recorrida.
Isento de custas.

Porto, 8 de Março de 2017
Manuel Soares
João Pedro Nunes Maldonado
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[1] Referem-se a este código todos os preceitos sem outra indicação.