Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
935/23.2Y2MTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULA GUERREIRO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DE CONTRAORDENAÇÃO
LEI TEMPORÁRIA
LEIS COVID
SUSPENSÃO DA PRESCRIÇÃO
RETROATIVIDADE DA LEI TEMPORÁRIA
NÃO INCONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RP20240207935/23.2Y2MTS.P1
Data do Acordão: 02/07/2024
Votação: UNANIMIDADE COM 2 DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL/CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I - A impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa que aplica uma coima não constitui um verdadeiro recurso, mas um reexame do objeto processual com plenos poderes em matéria de facto e de direito e com possibilidade de produção de prova. Trata-se de uma verdadeira transferência da questão do domínio da administração para o judicial.
II - O dever de indagação que impende sobre o Tribunal, implica que seja possível ao Juiz alargar o âmbito da sua intervenção para além das questões que forem suscitadas pelos recorrentes.
III - O Juiz que julga em primeira instância a impugnação judicial está apenas sujeito à proibição da reformatio in pejus, consagrada no art. 72-A do RGCO, introduzido pelo DL 244/95 de 14 de Setembro.
IV - Nada obsta a que o disposto no art. 7º, n.º 3 da Lei 1-A/2020 de 19 de março, e da Lei 4-A/2020, de 6 de abril, quanto à suspensão da prescrição ali prevista, possa ser aplicado retroativamente aos prazos iniciados anteriormente à respetiva vigência, não obstante tratar-se de lei posterior, dado que a mesma é desfavorável por alargar o prazo de punição, mas teve como objetivo a proteção sanitária de todos os cidadãos e nessa parte não se pode considerar desfavorável, mas antes benéfica a todos os utentes da justiça aqui se incluindo os arguidos e seus mandatários.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 935/23.2Y2MTS.P1


1. Relatório

Por decisão proferida pelo Sub-director Geral da Direcção-Geral de Recursos Naturais, Segurança e Serviços Marítimos, no âmbito do processo de contraordenação n.º ...9, foi aplicado à arguida A..., Lda:
- a coima parcelar no valor de 600,00€ (seiscentos euros) por infração ao disposto no n.º 1 do Despacho n.º 6794/2019 do Secretário de Estado das Pescas, de 30 de Julho, e punida pelo artigo 12.º, n.º 2, alínea g), do Decreto-Lei n.º 35/2019, de 11 de Março;
- a coima parcelar no valor de 250,00€ (duzentos e cinquenta euros), por infração ao disposto no artigo 17.º, n.º 1 do Regulamento (CE) n.º 1224/2009 do Conselho, de 20 de Novembro, e punida pelo artigo 12.º, n.º 3, alínea j), do Decreto-Lei n.º 35/2019, de 11 de Março;
- a coima parcelar no valor de 600,00€ (seiscentos euros) por infração ao disposto no artigo 3.º, n.º 1, alínea a), da Portaria n.º 58/2014, de 7 de Março e artigo 30.º, n.º 4, do Regulamento (UE) 2016/1627 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de Setembro, e punida pelo artigo 12.º, n.º 2, alínea f), do Decreto-Lei n.º 35/2019, de 11 de Março;
- a coima parcelar no valor de 600,00€ (seiscentos euros) por infração ao disposto no artigo 4.º, n.º 1, do Regulamento (UE) n.º 640/2010, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 7 de Julho e artigo 56.º, n.º 1, do Regulamento (UE) 2016/1267, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de Setembro, e punida pelo artigo 12.º, n.º 2, alínea f), do Decreto-Lei n.º 35/2019, de 11 de Março.
Em cúmulo jurídico das coimas parcelares supra indicadas, a coima única no valor de 800,00€ (oitocentos euros).
E ao arguido AA foi aplicado:
- a coima parcelar no valor de 600,00€ (seiscentos euros) por infração ao disposto no n.º 1 do Despacho n.º 6794/2019 do Secretário de Estado das Pescas, de 30 de Julho, e punida pelo artigo 12.º, n.º 2, alínea g), do Decreto-Lei n.º 35/2019, de 11 de Março;
- a coima parcelar no valor de 250,00€ (duzentos e cinquenta euros), por infração ao disposto no artigo 17.º, n.º 1 do Regulamento (CE) n.º 1224/2009 do Conselho, de 20 de Novembro, e punida pelo artigo 12.º, n.º 3, alínea j), do Decreto-Lei n.º 35/2019, de 11 de Março;
- a coima parcelar no valor de 600,00€ (seiscentos euros) por infracção ao disposto no artigo 3.º, n.º 1, alínea a), da Portaria n.º 58/2014, de 7 de Março e artigo 30.º, n.º 4, do Regulamento (UE) 2016/1627 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de Setembro, e punida pelo artigo 12.º, n.º 2, alínea f), do Decreto-Lei n.º 35/2019, de 11 de Março;
- a coima parcelar no valor de 600,00€ (seiscentos euros) por infração ao disposto no artigo 4.º, n.º 1, do Regulamento (UE) n.º 640/2010, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 7 de Julho e artigo 56.º, n.º 1, do Regulamento (UE) 2016/1267, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de Setembro, e punida pelo artigo 12.º, n.º 2, alínea f), do Decreto-Lei n.º 35/2019, de 11 de Março.
Em cúmulo jurídico das coimas parcelares supra indicadas, a coima única no valor de 800,00€ (oitocentos euros).
Inconformados vieram os arguidos apresentar impugnação judicial da decisão administrativa que deu origem ao recurso de contraordenação com o nº 935/23.2Y2MTS do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Criminal de Matosinhos, Juiz 3.
Por decisão datada de 19/10/2023, e depositada em 20/03/2023, foi apreciada a impugnação judicial da seguinte forma:
«Pelo exposto, julgo parcialmente procedente o presente recurso de contra-ordenação e, em consequência:
a) revogo parcialmente a decisão administrativa no que diz respeito à condenação da arguida A..., Lda. e AA, pela prática das seguintes contra-ordenações:
a. por infracção ao artigo 17.º, n.º 1 do Regulamento (CE) n.º 1224/2009 do Conselho, de 20 de Novembro, e punida pelo artigo 12.º, n.º 3, alínea j), do Decreto-Lei n.º 35/2019, de 11 de Março;
b. por infracção ao artigo 3.º, n.º 1, alínea a), da Portaria n.º 58/2014, de 7 de Março e artigo 30.º, n.º 4, do Regulamento (UE) 2016/1627 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de Setembro, e punida pelo artigo 12.º, n.º 2, alínea f), do Decreto-Lei n.º 35/2019, de 11 de Março;
c. por infracção ao artigo 4.º, n.º 1, do Regulamento (UE) n.º 640/2010, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 7 de Julho e artigo 56.º, n.º 1, do Regulamento (UE) 2016/1267, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de Setembro, e punida pelo artigo 12.º, n.º 2, alínea f), do Decreto-Lei n.º 35/2019, de 11 de Março;
b) Mantenho a decisão administrativa de condenação:
a. da arguida A..., Lda. na coima de 600,00€ (seiscentos euros) por infracção ao n.º 1 do Despacho n.º 6794/2019 do Secretário de Estado das Pescas, de 30 de Julho, e punida pelo artigo 12.º, n.º 2, alínea g), do Decreto-Lei n.º 35/2018, de 11 de Março;
b. da arguida A..., Lda. na sanção acessória prevista no artigo 14.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º 35/019, de 11 de Março, de perda do valor relativo à venda dos 260 kg de atum-rabilho ilicitamente capturado, que se cifrou em 2.366,00€ (dois mil trezentos e sessenta e seis euros).
c. do arguido AA na coima de 600,00€ (seiscentos euros) por infracção ao n.º 1 do Despacho n.º 6794/2019 do Secretário de Estado das Pescas, de 30 de Julho, e punida pelo artigo 12.º, n.º 2, alínea g), do Decreto-Lei n.º 35/2018, de 11 de Março;
c) sem custas, por não serem devidas.»
Inconformados vieram interpor recurso para esta Relação o MP e os arguidos.
É o seguinte o teor das conclusões do recurso do MP:
«1- O tribunal recorrido violou o art. 412.º do Código de Processo Penal, aplicável ao processo contra-ordenacional por força do art. 41.º do Regime Geral das Contra-Ordenações e das Coimas e o art. 59.º n.º 3 deste Regime, ao ter conhecido questões que não forma suscitadas na impugnação judicial pelos arguidos/recorrentes A..., Lda. e AA nem são de conhecimento oficioso (concurso aparente ou efetivo de infrações).
2- Só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respetiva motivação, é que o tribunal recorrido poderia apreciar, conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica.
3- O tribunal recorrido ao ter julgado a improcedência das duas (únicas) questões suscitas na impugnação judicial (nulidade insanável por violação do art. 50.º do Regime Geral das Contra-Ordenações e prescrição do procedimento contra-ordenacional, ambas de direito processual), deveria, nessa decorrência, e porque mais nenhuma questão foi suscitada, ter confirmado integralmente a decisão administrativa, ao invés de revogar parcialmente a decisão, absolvendo parcialmente os arguidos das contra-ordenações pelas quais tinham sido condenados administrativamente.»
Conclui pedindo que na procedência do presente recurso seja revogada a decisão recorrida e substituída por outra que confirme integralmente a decisão administrativa impugnada.
É o seguinte o teor das conclusões do recurso conjunto de AA e A..., Lda:
« I. Entre o dia 07 de janeiro de 2020 (data da receção da notificação para apresentação de defesa) e o dia 26 de maio de 2023 (data da notificação da decisão administrativa) decorreram mais de três anos, não se tendo verificado quaisquer causas de interrupção durante esse período, uma vez que não foram levadas a cabo pela autoridade administrativa quaisquer diligências de prova, designadamente exames e buscas, ou pedido de auxílio às autoridades policiais.
II. A suspensão dos prazos prescricionais relativos aos processos penais e contraordenacionais que tenham por referência factos praticados em data anterior à vigência da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março e da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro é violadora do princípio da não aplicação retroativa da lei penal e contraordenacional e, como tal, inadmissível do ponto de vista constitucional.
III. Não se verificando qualquer causa de suspensão ou de interrupção, verifica-se sim a prescrição do procedimento contraordenacional, uma vez que entre ambas as notificações (da notificação para apresentação de defesa e da notificação da decisão administrativa) decorrem mais de três anos.
IV. Acresce que o fundamento da prescrição, é ser o “castigo” demasiado longe do delito ou da condenação uma inutilidade. E é uma inutilidade porque a intervenção do direito penal ou contraordenacional, com todas as suas armas, a partir de determinada altura, não é capaz de cumprir nenhuma das suas funções ou finalidades.
V. No que à notificação das pessoas coletivas para o exercício de defesa, para que tal se considere regular no âmbito do processo contraordenacional, essa notificação deverá ser feita por contacto pessoal com quem vincule ou represente a sociedade.
VI. Tendo a Autoridade Administrativa optado por proceder à notificação da arguida na modalidade de carta registada com aviso de receção, procedimento ao qual está associado um formalismo específico, concretamente, a necessidade de identificação da pessoa que recebeu a carta ou aviso e a verificação da capacidade dessa pessoa para obrigar a sociedade (circunstância que a Autoridade Administrativa tinha condições de apurar), verificando que a notificação para o exercício de defesa foi assinado e recebido por quem não tinha poderes de representação da sociedade, tinha a obrigação de regularizar tal situação. Não o tendo feito, dúvida não há de que a arguida sociedade não foi regularmente
notificada para os efeitos previstos no artigo 50.º do RGCO.
VII. Ao decidir como decidiu, a sentença aqui em crise violou os artigos 5º, 27º, 28º e 41º nº 1 do Decreto- Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, o artigo 113º nº 16 do Cod. Proc. Penal e os artigos 19º nº 6 e 32º da Constituição da Républica Portuguesa.»
Pretendem que na procedência do recurso seja revogada a decisão recorrida e declarada a prescrição do procedimento contraordenacional relativamente ao arguido AA e a nulidade da notificação para o exercício do direito de defesa da arguida sociedade.
Os recursos foram admitidos por despacho proferido nos autos em 6/11/2023.
Em primeira instância o MP respondeu ao recurso dos arguidos concluindo que a decisão recorrida não merece reparo no que respeita ao cômputo da prescrição e não padece de nulidades designadamente da invocada nulidade de falta de notificação para apresentação da defesa.
Pugna pela respetiva manutenção quanto às questões suscitadas pelos arguidos.
Nesta Relação a Srª Procuradora-geral-adjunta emite parecer de improcedência relativamente ao recurso do MP por entender que na impugnação judicial da decisão administrativa o Tribunal não está limitado estritamente pelas conclusões da impugnação, uma vez que não se trata de um verdadeiro recurso, mas de um reexame do objeto processual, em matéria de facto e de direito.
No que respeita ao recurso dos arguidos também emite parecer no sentido da improcedência aderindo aos fundamentos da resposta do MP em primeira instância.
Cumprido o disposto no art. 417 nº2 do CPP não foi apresentada resposta ao parecer.


2 - Fundamentação

A - Circunstâncias com interesse para a decisão a proferir.
Para melhor compreensão da situação em recurso passamos de seguida a transcrever a decisão recorrida, quanto aos fundamentos de facto e de direito:
«O Ministério Público apresentou os autos de contra-ordenação a juízo.
Foi proferido despacho de admissão liminar do presente recurso e, atenta a desistência dos arguidos quanto à produção de prova e face à não oposição do Ministério Público, determinou-se a prolação da decisão por despacho.
2. Saneamento
Nos presentes autos, foram suscitadas duas questões: a primeira atinente à nulidade da decisão administrativa e a segunda relativa à prescrição do procedimento contra-ordenacional, as quais cumpre apreciar.
Da invocada nulidade insanável da decisão administrativa:
Os arguidos vêm invocar a nulidade insanável da decisão administrativa.
Alegam, para o efeito, que nunca foram notificados para apresentar defesa nos termos do disposto no artigo 50.º, do Regime Geral das Contra-ordenações, pelo que,
- que não conhecem o auto de notícia;
- que não conhecem a participação interna da Direcção-Geral de Recursos Naturais, Segurança e Serviços Marítimos (DGRM);
- que não conhecem o relatório de saída de porto da embarcação “...” referente aos factos em questão;
- que não conhecem o relatório de actividade de pesca do dia em questão;
- que não conhecem o relatório de retorno a porto do dia em questão;
- que não conhecem a declaração de descarga aqui em causa;
- que não conhecem o mapa de representação gráfica da rota aqui em causa;
- que, em momento algum, lhes foi dado conhecimento da prática das infracções e dada a oportunidade do exercício do direito de defesa.
Cumpre apreciar e decidir.
O artigo 50.º, do Regime Geral das Contra-ordenações, dispõe que “não é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre”.
Não desconhecendo o tribunal a divergência doutrinal e jurisprudencial quanto à natureza da invalidade que decorre da violação da citada norma, cumpre apenas referir que, acompanhando o entendimento de Paulo Pinto de Albuquerque, quando esteja em causa a ausência pura de notificação da decisão e respectivos elementos para o exercício de defesa, está-se perante uma nulidade insanável da decisão administrativa, nos termos do artigo 119.º, alínea c), do Código de Processo Penal, ex vi artigo 32.º, do Regime Geral das Contra-ordenações (cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Regime Geral das Contra-ordenações à Luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, págs. 210 e 211).
O Regime Geral das Contra-ordenações não estabelece uma regulamentação específica quanto ao modo de realização da notificação da decisão da autoridade administrativa.
Nesta sequência, ao abrigo do disposto no artigo 41.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra-ordenações devem aplicar-se subsidiariamente “os preceitos reguladores do processo crime”.
Por seu turno, o artigo 113.º, n.ºs 1, alíneas a) e b), e 10, do Código de Processo Penal, determina que a notificação do arguido se efectua mediante contacto pessoal com o notificando ou via postal registada com aviso de recepção.
A lei obriga a que a comunicação, ao arguido, da decisão da autoridade administrativa que aplique uma coima tenha a formalidade própria de uma notificação pessoal no âmbito do processo penal, devendo naquele acto o arguido ser informado da admissibilidade, prazo de forma de impugnação da mesma. Esta obrigação é compreensível uma vez que o que está em causa é o direito constitucional de audiência e defesa (cf. artigo 32.º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa).
Descendo ao caso vertente e perscrutados os autos, verifica-se que a fls. 31 a 34 constam talões de registo e avisos de recepção, datados de 06/01/2020, cujos destinatários são os arguidos.
Atentando no teor dos avisos de recepção, constata-se que o primeiro (fls. 33), referente ao arguido AA, encontra-se assinado pelo próprio, com menção do n.º do seu documento de identificação e datado de 7/01/2020.
Já no que concerne ao segundo aviso de recepção (fls. 33), desta feita dirigido à sociedade arguida, verifica que o mesmo se mostra assinado pelo arguido AA, com menção do n.º do seu documento de identificação e datado de 7/01/2020.
Assim, quanto ao arguido AA não existem dúvidas quanto à existência e regularidade da notificação da decisão administrativa.
Já a notificação da sociedade arguida merece umas considerações adicionais.
Conforme se aludiu, o aviso de recepção dirigido ao legal representante da sociedade arguida e remetido para a sua sede, foi assinado pelo arguido AA.
Do teor da certidão permanente da sociedade arguida junta aos autos (ref.ª citius 452381183) resulta que o arguido AA é sócio daquela.
Neste seguimento, pese embora aquele não exercesse, à data da referida notificação, a gerência da sociedade, a verdade é que, atenta a circunstância de a sociedade ter àquela data apenas dois sócios, sendo certo que, face à regras da experiência, este tipo de sociedade tem uma estrutura diminuta com o consequente envolvimento quer de sócios, quer gerentes na vida da empresa, não há como a sociedade negar o evidente: que foi notificada da decisão e dos elementos necessários à construção da respectiva defesa.
Acresce que, se entende, como se referiu o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19/02/2018, que “a notificação das sociedades e demais pessoas colectivas ao abrigo do Decreto-Lei n.º 433/83, de 27.10, que aprovou o Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas (RGCOC), deve ser feita nos termos das citações destas em processo civil, ou seja, segundo o artigo 223º/CPC, na pessoa dos seus legais representantes ou na pessoa de qualquer empregado que se encontre na sede ou local onde funciona normalmente a administração” (decisão proferida no âmbito do processo n.º 385/17.0Y4LSB.L1-3; no mesmo sentido veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11/07/2013, Proc. n.º 45/13.0TBETZ.E1, acessíveis em www.dgsi.pt).
Do que vem sendo dito, resta concluir pela existência e validade de notificação também quanto à sociedade arguida.
Pelo exposto, julgo improcedente a invocada nulidade insanável da decisão administrativa por violação do disposto no artigo 50.º, do Regime Geral das Contra-ordenações.
Da invocada prescrição do procedimento contra-ordenacional quanto ao arguido AA
Vem ainda o arguido AA invocar a prescrição do procedimento contra-ordenacional.
Alega, para o efeito:
- que as infracções imputadas ocorreram em 26 de Agosto de 2019;
- que não foi notificado para apresentar defesa;
- que, as infracções aplicáveis aos arguidos encontram-se tipificadas no artigo 12.º, do Decreto-Lei n.º 35/2019, de 11 de Março, estando aí descritas as molduras sancionatórias que vão dos 250,00€/600,00€ a 25.000,00€/37.500,00€;
- que não se deve considerar os máximos sancionatórios legalmente previstos para as pessoas colectivas, porque tal implicaria a prova de que o agente tenha actuado a ordens ou instruções expressas da mesma, o que inexiste nos autos;
- que ao abrigo do disposto no artigo 27.º, alínea b), do Regime Geral das Contra-ordenações, o procedimento extingue-se por prescrição logo que sobre a prática da contra- ordenação hajam decorrido três anos quando se trate de contra-ordenação a que seja aplicável uma coima de montante igual ou superior a 2.493,99€ e inferior a 49.879,70€;
- que, no causo dos autos, ocorreu somente uma causa de suspensão da prescrição, prevista na designada legislação Covid, e pelo período total de 160 dias, pelo que o procedimento prescreveu a 5/02/2023.
Cumpre apreciar e decidir.
O artigo 27.º, alíneas a) e b), do Regime Geral das Contra-ordenações, dispõe que o procedimento de contra-ordenação extingue-se por efeito da prescrição logo que sobre a prática da contra-ordenação hajam decorrido cinco anos, quando se trate de contra-ordenação, cujo montante máximo da coima seja igual ou superior a 49.879,79€ e três anos quando se trate de contra-ordenação, cujo montante máximo seja igual ou superior a 2.493,99€ e inferior a 49.879,70€.
Já o artigo 27.º-A, do mesmo diploma legal, estabelece:
“1 - A prescrição do procedimento por contra-ordenação suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que o procedimento:
a) Não puder legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal;
b) Estiver pendente a partir do envio do processo ao Ministério Público até à sua devolução à autoridade administrativa, nos termos do artigo 40.º;
c) Estiver pendente a partir da notificação do despacho que procede ao exame preliminar do recurso da decisão da autoridade administrativa que aplica a coima, até à decisão final do recurso”.
Por seu turno, o artigo 28.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra-ordenações, preceitua:
1 - A prescrição do procedimento por contra-ordenação interrompe-se:
a) Com a comunicação ao arguido dos despachos, decisões ou medidas contra ele tomados ou com qualquer notificação;
b) Com a realização de quaisquer diligências de prova, designadamente exames e buscas, ou com o pedido de auxílio às autoridades policiais ou a qualquer autoridade administrativa;
c) Com a notificação ao arguido para exercício do direito de audição ou com as declarações por ele prestadas no exercício desse direito;
d) Com a decisão da autoridade administrativa que procede à aplicação da coima.
Nos termos conjugados do disposto no artigo 28.º, n.º 3, do Regime Geral das Contra-ordenações e do artigo 121.º, n.º 2, do Código Penal, após cada interrupção começa a correr novo prazo de prescrição, tendo esta sempre lugar, quando desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo de prescrição aplicável, acrescido de metade.
Revertendo ao caso concreto e analisados os autos, constata-se que:
- os factos descritos no auto de notícia ocorreram no dia 26/08/2018;
- o arguido AA foi notificado para exercer defesa no dia 7/01/2020;
- em 8/05/2023 foi proferida a decisão administrativa condenatória;
- em 26/05/2023, foi o arguido notificado da decisão administrativa condenatória;
- o arguido interpôs recurso da decisão em crise em 23/06/2023;
- o arguido AA foi notificado do exame preliminar do recurso da decisão administrativa em 28/09/2023 (ref.ª citius 452076068).
Atento o limite máximo das molduras abstractas aplicáveis às infracções imputadas ao arguido AA, o prazo de prescrição é de 3 anos, conforme o artigo 27.º, n.º 1, alínea b), do Regime Geral das Contra-ordenações.
A contagem da prescrição iniciou em 26/08/2019 e interrompeu em 7/01/2020, com a notificação do arguido para exercer o direito de defesa, nos termos do artigo 28.º, n.º 1, alínea c), do Regime Geral das Contra-ordenações, sem que mostrassem transcorridos três anos.
Assim, a sua contagem reiniciou em 7/01/2020, tendo estado suspensa por força da legislação que suspendeu os prazos da prescrição devido à pandemia da doença COVID-19.
O primeiro período suspensivo foi introduzido pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 7.º, da Lei n.º 1-A/2020, de 19/03, vigorando entre o dia 9/03/2020 e o dia 2/06/2020, num total de 86 dias (cf. art.º 5.º da Lei n.º 4-A/2020, de 6/04, e art.ºs 8.º e 10.º da Lei n.º 16/2000 de 29/05). Depois, voltou a vigorar um regime de suspensão dos prazos de prescrição dos procedimentos criminais e contra-ordenacionais introduzido pelo n.º 3 do artigo 6.º-B da Lei n.º 4-B/2021, de 01/02, vigorando entre 22/01/2021 e 5/04/2021, num total de 74 dias (cf. art.º 4.º da Lei n.º 4-B/2021, de 01/02, e art.º 7.º da Lei n.º 13-B/2021, de 5/04).
O procedimento contra-ordenacional esteve assim suspenso pelo período de 160 (cento e sessenta dias).
Deste modo, em 8/05/2023, data em que voltou a ocorrer nova causa de interrupção, por ter sido proferida a decisão administrativa condenatória, não se mostravam decorridos três anos, atenta a referida causa de suspensão.
Nesta sequência, o prazo de prescrição reiniciou a sua contagem em 8/05/2023 e suspendeu em 28/09/2023, com a notificação ao arguido do exame preliminar do recurso, nos termos do artigo 27.º-A, n.º 1, alínea c), do Regime Geral das Contra-ordenações, sem que também tivessem decorrido três anos.
O referido prazo encontra-se, deste modo, suspenso desde 28/09/2023, situação que é susceptível de se manter até 28/03/2024, atento o disposto no artigo 27.º-A, n.º 2, do Regime Geral das Contra-ordenações.
Entre a data da prática dos factos descritos no auto de notícia e susceptíveis de integrarem a prática de quatro contra-ordenações, e as diversas causas de suspensão ocorridas, não decorreu o prazo de quatro anos e seis meses, previsto no artigo 28.º, n.º 3, do Regime Geral das Contra-ordenações.
Pelo exposto, improcede a invocada prescrição do procedimento contra-ordenacional.


3. Fundamentação de Facto

a) Factos provados
1) Na viagem de pesca iniciada no dia 25/08/2019, pelas 22h12, no porto de pesca de Matosinhos, e finda no dia seguinte, pelas 09h44, no mesmo porto, foi iniciada e exercida actividade de pesca, pela embarcação ..., com recurso à utilização de arte de cerco na zona 9 do Conselho Internacional para a Exploração do Mar (CIEM), mais concretamente pelas 03h 32 do dia 26 de agosto, na posição de latitude 40º 47 42” N e longitude 008º 55 ’ 2” W, que resultou na captura, manutenção a bordo e transporte de 260 kg de "atum rabilho"; 787 kg de sardinha e 765 kg de cavala.
2) A partir de 31/07/2019, inclusive, a captura acessória, manutenção a bordo, transporte e desembarque de "Atum rabilho" foi interdita para as embarcações registadas ou que desembarcassem nos portos do continente.
3) A actividade descrita em 1), veio a culminar no desembarque, no porto de Matosinhos, e primeira venda em lota de 260 kg de “atum rabilho”,
4) circunstâncias em que o mestre AA não procedeu ao registo e transmissão electrónica da notificação prévia de chegada a porto,
5) não preencheu documento de captura para o efeito, vulgo BCO, nem solicitou a sua validação à DGRM, aquando da operação de desembarque.
6) A quantia de “atum rabilho” referida em 1), foi vendida em lota pela quantia de 9,10€ (nove euros e dez cêntimos) por kg, num total que se cifra em 2.366,00€ (dois mil trezentos e sessenta e seis euros).
7) O arguido AA é o mestre da embarcação ....
8) Os arguidos não agiram com o zelo a que estavam obrigados e de que eram capazes, uma vez que, bem sabendo que estava interdita a captura de atum-rabilho, procederam à captura, manutenção a bordo, transporte, desembarque e venda em lota de "Atum rabilho", conhecendo o carácter ilícito da sua actuação.
9) Os arguidos não têm averbado qualquer registo de sanção pela prática de contra-ordenação.
10) A embarcação ... encontra-se registada a favor de A..., Lda. (anterior B..., Lda).
11) No ano de 2019, a embarcação ... tinha as seguintes licenças:
a. Licença de Pesca
Arte - Cerco, para bordo, Tipo americano
Águas - Oceânicas
Zona - ZEE Portuguesa - Sub área Continente
Início - 1 de Janeiro de 2019
Fim - 31 de Dezembro de 2019
Estado – Aceite
b. Licença de Pesca
Arte - Pesca à linha, Palangre de fundo, Espécies demersais
Águas - Oceânicas
Zona - ZEE Portuguesa - Sub área Continente
Início - 1 de Janeiro de 2019
Fim - 31 de Dezembro de 2019
Estado - Aceite
c. Licença Especial
Nome - Espécies demersais
Descrição - Autorizada a captura de espécies demersais, nos termos do Regulamento (CE) 1954/2003, de 4 de Novembro
Zona - Aplicável a todas as zonas para onde está licenciada
Início - 1 de Janeiro de 2019
Fim - 31 de Dezembro de 2019
Estado - Aceite
d. Licença Especial
Nome – Obrigação descarga 2019
Descrição – Embarcação abrangida pela
Zona - Aplicável a todas as zonas para onde está licenciada
Início - 1 de Janeiro de 2019
Fim - 31 de Dezembro de 2019
Estado - Aceite

Factos não provados
Com interesse para a decisão da causa, não existem factos não provados.

Motivação
Para dar os factos como provados consignados de 1) a 7); 10) e 11), o Tribunal considerou a prova documental constante dos autos, designadamente os autos de notícia de fls. 2; participação interna da DGRM de fls. 3/4; relatório de saída de porto de fls. 8; relatório de actividade de pesca de fls. 10; relatório de retorno a porto de fls. 12; declaração de descarga de fls. 14; mapa de representação gráfica de rota de fls. 16; lista de posição geográfica de fls. 17; licenças de pesca relativa ao ano 2019 de fls. 18; registo da embarcação de fls. 19 a 22 e registo de detalhes de pessoa/organização de fls. 22.
Os factos atinentes à falta de zelo que configura a conduta dos arguidos decorrem da factualidade objectiva vertida. A arguida, enquanto sociedade comercial que actua na área da segurança e arguido, enquanto mestre da embarcação em causa nos autos e sócio da sociedade arguida, não podem deixar de conhecer as regras que regem a actividade piscatória, pelo que a sua actuação não pode deixar de reflectir a falta de zelo e diligência que lhes são exigíveis.
O facto descrito em 9) resulta do teor dos registos de cadastro de fls. 25 e 26.
No que concerne ao benefício económico, resulta do conteúdo da nota de venda junta a fls. 15.
Acresce que em sede de recurso não foi produzida prova que infirme, por qualquer forma, a aludida facutalidade vertida na decisão administrativa, permanecendo assim incólume.


4. Fundamentação de Direito

Da integração jurídica dos factos:

Apurados os factos, cumpre aplicar o Direito.
- Contra-ordenação de captura acessória, manutenção a bordo, transporte, transbordo e desembarque de atum-rabilho:
O n.º 1 do Despacho n.º 6794/2019, de 25 de Julho de 2019, do Secretário de Estado das Pescas, dispõe: “fica interdita a captura acessória (by-catch), manutenção a bordo, transporte, transbordo e desembarque de atum-rabilho às embarcações registadas ou que desembarcam nos portos do continente”.
Nos termos do n.º 4, do mesmo Despacho, preceitua que o mesmo produz efeitos no dia seguinte ao da sua publicação, sendo que foi publicado em 30/07/2019 (cf. Diário da República n.º 144/2019, Série II de 2019-07-30, acessível em https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/despacho/6794-2019-123578425).
Por seu turno, o artigo 12.º, n.º 2, alínea f), do Decreto-Lei n.º 35/2019, de 11 de Março, estabelece que constitui contra-ordenação punível com coima de 600,00€ (seiscentos euros) a 37.500,00€ (trinta e sete mil e quinhentos euros) realizar actividades de pesca na zona de uma ORGP (Organização Regional de Gestão das Pescas) de modo incompatível com as medidas de conservação e de gestão dessa organização ou em violação dessas medidas.
Conforme o disposto no artigo 8.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 35/2019, de 11 de Março: “1 – É responsável pela prática de contra-ordenação a pessoa singular ou colectiva que pratique o facto constitutivo da mesma ou, no caso de omissão, que não tenha praticado a acção adequada a evitá-lo, independentemente do momento em que o resultado típico se tenha produzido. 2 - Para efeitos do disposto no presente decreto-lei, pessoas colectivas responsáveis pela prática de contraordenação são as públicas ou privadas, ainda que irregularmente constituídas, e as sociedades e associações sem personalidade jurídica ou quaisquer outras entidades equiparadas, sempre que os factos sejam ou devessem ter sido praticados no exercício da respectiva atividade, em seu nome ou por sua conta, pelos titulares dos seus órgãos sociais, mandatários, representantes ou pelos seus trabalhadores”.
O n.º 6, da mesma norma, preceitua que “é ainda responsável pela prática de contraordenação prevista no presente decreto-lei, por acção ou omissão, o capitão ou mestre do navio ou embarcação de pesca”.
O Regime Geral das Contra-ordenações, ao regular a matéria da responsabilidade das pessoas colectivas, prevê no seu artigo 7.º:
“1 - As coimas podem aplicar-se tanto às pessoas singulares como às pessoas colectivas, bem como às associações sem personalidade jurídica.
2 - As pessoas colectivas ou equiparadas serão responsáveis pelas contra-ordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções”.
Nesta sequência, a imputação da infracção à pessoa colectiva resulta da consideração de que é autor da contra-ordenação o sujeito que, por acção ou omissão, viole a proibição legal, sendo que o ilícito da pessoa colectiva é autónomo face ao da pessoa singular que cometeu o acto ou se absteve de agir, desde que, o último actue por conta e em nome da pessoa jurídica.
Acresce que o tribunal adere ao entendimento, de resto defendido, entre outros, no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13/10/2021, Proc. n.º 3682/20.3T9LRA.C1 (acessível em www.dgsi.pt) de que “o artigo 7.º, n.º 2, do Regime (acessível em www.dgsi.pt) de que “o artigo 7.º, n.º 2, do Regime Geral das Contraordenações requer uma interpretação extensiva, de modo a incluir no seu âmbito os trabalhadores, os administradores e gerentes e os mandatários ou representantes da pessoa colectiva ou equiparada, deste que actuem no exercício das suas funções ou por causa delas”.
No que concerne ao caso vertente, até pela coincidência entre a pessoa singular que ocupa a posição de sócio e exerce o cargo de mestre da embarcação, é a arguida A..., Lda. conhecedora de toda a actividade que desenvolve, incluindo a da embarcação ..., pelo que não pode negar o desconhecimento dos factos praticados, em seu nome e por sua conta, pelo mestre da referida embarcação.
Cabe à pessoa colectiva, na medida em que é ela que retira proveito do exercício de uma determinada actividade económica, independentemente da sua natureza, o dever de diligenciar por todos os meios ao seu alcance de modo a garantir o cumprimento escrupuloso e integral das normas aplicáveis ao seu sector de actividade.
Nesta sequência, competia à arguida a obrigação de verificar se os seus trabalhadores cumprem a legislação em vigor, e se efectuam, com zelo e diligência, as tarefas que lhes são atribuídas.
No presente caso, a arguida tem acesso aos diários de pesca e respectivos mapas de venda em lota pelo que conhece (ou pode conhecer) a todo o momento a actuação do mestre de embarcação, ora arguido, ao invés de aguardar a notícia da infracção.
Revertendo ao caso dos autos, da factualidade provada resulta que a embarcação ..., pertencente à arguida pessoa colectiva e tendo como mestre o arguido AA, no dia 26/08/2019, capturou, manteve a bordo, transportou e desembarcou 260 kg de atum rabilho, actividade essa que estava vedada desde 31/07/2019.
Os arguidos não agiram com o zelo a que estavam obrigados e de que eram capazes, uma vez que, bem sabendo que estava interdita a captura de atum-rabilho, procederam à captura, manutenção a bordo, transporte, desembarque e venda em lota de "Atum rabilho", conhecendo o carácter ilícito da sua actuação
Assim, e face a tal factualidade, não restam dúvidas de que estão preenchidos todos os elementos objectivos e subjectivos da contra-ordenação em causa, no que concerne a ambos os arguidos nos termos supra expostos, impondo-se a manutenção da decisão administrativa recorrida.
- Contra-ordenação de falta de notificação prévia
O artigo 17.º, n.º 1 do Regulamento (CE) n.º 1224/2009 do Conselho, de 20 de Novembro, dispõe: “ os capitães dos navios de pesca comunitários de comprimento de fora a fora igual ou superior a 12 metros que exerçam actividades de pesca em pescarias sujeitas a um plano plurianual e que estejam sujeitos à obrigação de manter um diário de pesca electrónico de acordo com o disposto no artigo 15.º notificam às autoridades competentes do Estado-Membro do seu pavilhão com, pelo menos, quatro horas de antecedência relativamente à hora prevista de chegada ao porto, as seguintes informações: a) Número de identificação externa e nome do navio de pesca; b) Nome do porto de destino e finalidade da escala, como seja, desembarque, transbordo, ou acesso a serviços; c) Datas da viagem de pesca e zonas geográficas pertinentes em que as capturas foram efectuadas; d) Data e hora previstas de chegada ao porto; e) Quantidades de cada espécie registadas no diário de pesca; f) Quantidades de cada espécie a desembarcar ou transbordar”.
Por seu turno, o artigo 12.º, n.º 3, alínea j), do Decreto-Lei n.º 35/2019, de 11 de Março, estabelece que constitui contra-ordenação punível com coima de 250,00€ (duzentos e cinquenta euros) a 25.000,00€ (vinte e cinco mil euros) não efectuar as comunicações e notificações prévias legalmente previstas ou efectuá-las de modo incorrecto ou deficiente.
- Contra-ordenação de descarga de pescado capturado no âmbito de ORGP fora de porto designado
O artigo 30.º, n.ºs 1 e 2, do Regulamento (UE) 2016/1627, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de Setembro, determina que os Estados-Membros devem designar portos ou local perto do litoral (portos designados) onde as operações de desembarque ou transbordo de atum-rabilho sejam autorizadas e ainda que, para que um porto possa ser considerado como porto designado, o Estado Membro do porto deve especificar os períodos e os locais em que os desembarques e os transbordos são autorizados.
Por seu turno, o n.º 4, da mesma norma, proíbe o desembarque e o transbordo de atum-rabilho capturado no Atlântico Este ou no Mediterrâneo dos navios de pesca para qualquer local que não seja um porto ou um local perto do litoral designado pelos Estados-Membros.
Já o artigo 3.º, n.º 1, alínea a), da Portaria n.º 58/2014, de 7 de Março, estabelece que “ Os portos designados para a descarga ou transbordo de atum-rabilho (Thunnus thynnus), capturado na área regulamentar da Comissão Internacional para a Conservação dos Tunídeos do Atlântico (ICCAT), no Atlântico Este e Mediterrâneo, são: a) No Continente: Olhão, Peniche, Sesimbra e Viana do Castelo”.
Finalmente, o artigo 12.º, n.º 2, alínea f), do Decreto-Lei n.º 35/2019, de 11 de Março, estabelece que constitui contra-ordenação punível com coima de 600,00€ (seiscentos euros) a 37.500,00€ (trinta e sete mil e quinhentos euros), realizar actividades de pesca na zona de uma ORGP (Organização Regional de Gestão das Pescas) de modo incompatível com as medidas de conservação e de gestão dessa organização ou em violação dessas medidas.
- Contra-ordenação de falta de documento de captura
O artigo 4.º, n.º 1, do Regulamento (UE) 640/2010, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 7 de Julho de 20210, preceitua que os capitães dos navios de captura, operadores de explorações aquícolas, os vendedores e os exportadores, ou os respectivos representantes autorizados, preenchem um documento de captura, se possível por via electrónica, facultando as informações exigidas nas secções adequadas, e solicitam a sua validação, em conformidade com o n.º2, aquando de cada operação de desembarque, transferência, enjaulamento, colheita, transbordo, comércio interno ou exportação de atum-rabilho.
Por seu turno, o artigo 56.º, n.º 1, do Regulamento (UE) 2016/1267 ,do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de Setembro de 2016, dispõe: “ Sem prejuízo dos Regulamentos (CE) n.º 1224/2009 e (CE) n.º 1005/2008 e do Regulamento (UE) n.º 1379/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho (1), são proibidos na União o comércio, o desembarque, a importação, a exportação, o enjaulamento para engorda ou cultura, a reexportação e o transbordo de atum-rabilho não acompanhado da documentação exacta, completa e validada prevista pelo presente regulamento, pelo Regulamento (UE) n.º 640/2010 e pelo artigo 4.o-B do Regulamento (CE) n.º 1936/2001”.
Finalmente, o artigo 12.º, n.º 2, alínea f), do Decreto-Lei n.º 35/2019, de 11 de Março, estabelece que constitui contra-ordenação punível com coima de 600,00€ (seiscentos euros) a 37.500,00€ (trinta e sete mil e quinhentos euros), realizar actividades de pesca na zona de uma ORGP (Organização Regional de Gestão das Pescas) de modo incompatível com as medidas de conservação e de gestão dessa organização ou em violação dessas medidas.
Analisado o teor das normas que preveem as contra-ordenações de falta de notificação prévia; descarga de pescado capturado no âmbito de ORGP fora de porto designado e falta de documento de captura, constata-se que as mesmas se reportam ao incumprimento de deveres acessórios da actividade piscatória de atum-rabilho.
Isto significa que os cumprimentos dos referidos deveres/obrigações só podem ter como pressuposto a realização de captura lícita do aludido espécime.
Do que se trata é de um concurso aparente de infracções, na medida em que a infracção de captura acessória, manutenção a bordo, transporte, transbordo e desembarque de atum-rabilho, consome as demais condutas descritas.
O concurso aparente ocorrem quando várias normas concorrem só em aparência, uma vez que apenas uma delas exclui as outras em virtude da ocorrência, entre as normas de uma relação de especialidade, de subsidiariedade ou de consumpção (cf. Jescheck, Tratado de Derecho Penal, vol. II, pág. 1033).
Para aferir da relação de concurso aparente não basta a simples comparação dos elementos constitutivos da contra-ordenação, sendo necessário atentar nos fins visados pela norma que estabelece o dever jurídico violado.
Revertendo ao caso concreto, como se aludiu, as normas que preveem a obrigação de notificação prévia; descarga de pescado capturado no âmbito de ORGP fora de porto designado e falta de documento de captura, configuram verdadeiros deveres acessórios do exercício da actividade piscatória, os quais só ganham sentido perante uma actividade lícita.
Afirmar o contrário é propender para o absurdo de que o infractor tem a obrigação de cumprir deveres por referência à prática de um ilícito, como seria, por hipótese, o caso de um indivíduo furtar um automóvel e ainda ser penalizado pelo facto de não ter procedido à alteração do respectivo registo de propriedade.
Assim, a conduta de captura acessória, manutenção a bordo, transporte, transbordo e desembarque de atum-rabilho às embarcações registadas ou que desembarcam nos portos do continente consome as demais, sendo que estas se reportam a factos não puníveis.
Pelo exposto, a única conduta relevante é a de captura acessória, manutenção a bordo, transporte, transbordo e desembarque de atum-rabilho às embarcações registadas ou que desembarcam nos portos do continente, sendo que importa revogar a decisão administrativa na parte em que condena os arguidos nas demais infracções.
Da medida da coima:
Realizada a subsunção jurídica dos factos, resta-nos determinar se será de manter a coima aplicada pela autoridade administrativa.
Analisada a decisão administrativa, constata-se que foi aplicada:
- à arguida A..., Lda. a coima única no valor de 800,00€ (oitocentos euros);
- ao arguido AA, a coima única no valor de 800,00€ (oitocentos euros).
Conforme se aludiu, ao contrário do defendido na decisão administrativa, está em causa somente a prática de uma contra-ordenação, concretamente, a de captura acessória, manutenção a bordo, transporte, transbordo e desembarque de atum-rabilho às embarcações registadas ou que desembarcam nos portos do continente, a qual é punível com coima 600,00€ (seiscentos euros) a 37.500,00€ (trinta e sete mil e quinhentos euros).
Nos termos do conjugados do disposto no artigo 18.º, do Regime Geral das Contra-ordenações e artigo 13.º, do Decreto-Lei n.º 35/2019, de 11 de Março, a determinação da medida da coima faz-se em função da gravidade da contra-ordenação, da culpa, da situação económica do agente, do benefício económico obtido pela prática da contra-ordenação (efectivo ou potencial) e, finalmente, da reincidência.
Quanto à arguida A..., Lda. deve atender-se:
- à gravidade da conduta, uma vez que a mesma é frontalmente atentória do regime legal que visa assegurar as medidas adequadas de gestão e conservação dos recursos vivos marinhos, com vista à sua preservação e manutenção;
- à circunstância de ter agido com negligência grosseira, uma vez que, sendo pessoa colectiva que exerce actividade piscatória, não pode deixar de conhecer as normas que regem a sua actividade e bem assim respeitar as obrigações que para si advêm em virtude de tal actividade;
- ao facto de ter obtido um benefício económico efectivo mediante a prática da contra-ordenação em causa nos autos em montante que se cifra em 2.366,00 (dois mil trezentos e sessenta e seis euros);
- à ausência de registo de contra-ordenações anteriores.
Tudo ponderado afigura-se adequada a fixação da coima em 600,00€ (seiscentos e cinquenta euros), mantendo-se a coima parcelar fixada na decisão administrativa.
Quanto ao arguido AA, deve considerar-se:
- à gravidade da conduta, uma vez que a mesma é frontalmente atentória do regime legal que visa assegurar as medidas adequadas de gestão e conservação dos recursos vivos marinhos, com vista à sua preservação e manutenção;
- a circunstância de ter agido com negligência grosseira, uma vez que, sendo pessoa colectiva que exerce actividade piscatória, não pode deixar de conhecer as normas que regem a sua actividade e bem assim respeitar as obrigações que para si advêm em virtude de tal actividade;
- a ausência de registo de contra-ordenações anteriores.
Tudo ponderado afigura-se adequada a fixação da coima em 600,00€ (seiscentos euros), mantendo-se a coima parcelar fixada na decisão administrativa.
Sanção acessória:
O artigo 14.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 35/019, de 11 de Março, prevê a possibilidade de, em função da gravidade e da culpa, poderem ser aplicadas ao arguida uma ou mais sanções acessórias.
A alínea b), do mesmo dispositivo legal, prevê a perda dos produtos provenientes da pesca como uma das possíveis sanções acessórias.
Por seu turno, o artigo 15, n.º 1, do referido diploma, estabelece que “as sanções previstas nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo anterior só podem ser decretadas quando as artes de pesca, instrumentos, objetos ou produtos serviram ou estavam destinados a servir a prática de uma contraordenação ou por esta foram produzidos”.
Conforme se aludiu, a contra-ordenação em causa nos autos é grave, sendo que a arguida pessoa colectiva obteve um benefício económico efectivo com a sua prática, sendo esta a verdadeira beneficiária da prática do ilícito.
Assim, atentas as finalidades de prevenção geral e especial que se fazem sentir no caso, e verificados os enunciados pressupostos, afigura-se adequada a aplicação da sanção acessória prevista no artigo 14.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º 35/019, de 11 de Março, isto é, a perda do valor relativo à venda dos 260 kg de atum-rabilho ilicitamente capturado, que se cifrou em 2.366,00€ (dois mil trezentos e sessenta e seis euros).
Decisão
Pelo exposto, julgo parcialmente procedente o presente recurso de contra-ordenação e, em consequência:
a) revogo parcialmente a decisão administrativa no que diz respeito à condenação da arguida A..., Lda. e AA, pela prática das seguintes contra-ordenações:
a. por infracção ao artigo 17.º, n.º 1 do Regulamento (CE) n.º 1224/2009 do Conselho, de 20 de Novembro, e punida pelo artigo 12.º, n.º 3, alínea j), do Decreto-Lei n.º 35/2019, de 11 de Março;
b. por infracção ao artigo 3.º, n.º 1, alínea a), da Portaria n.º 58/2014, de 7 de Março e artigo 30.º, n.º 4, do Regulamento (UE) 2016/1627 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de Setembro, e punida pelo artigo 12.º, n.º 2, alínea f), do Decreto-Lei n.º 35/2019, de 11 de Março;
c. por infracção ao artigo 4.º, n.º 1, do Regulamento (UE) n.º 640/2010, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 7 de Julho e artigo 56.º, n.º 1, do Regulamento (UE) 2016/1267, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de Setembro, e punida pelo artigo 12.º, n.º 2, alínea f), do Decreto-Lei n.º 35/2019, de 11 de Março;
b) Mantenho a decisão administrativa de condenação:
a. da arguida A..., Lda. na coima de 600,00€ (seiscentos euros) por infracção ao n.º 1 do Despacho n.º 6794/2019 do Secretário de Estado das Pescas, de 30 de Julho, e punida pelo artigo 12.º, n.º 2, alínea g), do Decreto-Lei n.º 35/2018, de 11 de Março;
b. da arguida A..., Lda. na sanção acessória prevista no artigo 14.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º 35/019, de 11 de Março, de perda do valor relativo à venda dos 260 kg de atum-rabilho ilicitamente capturado, que se cifrou em 2.366,00€ (dois mil trezentos e sessenta e seis euros).
c. do arguido AA na coima de 600,00€ (seiscentos euros) por infracção ao n.º 1 do Despacho n.º 6794/2019 do Secretário de Estado das Pescas, de 30 de Julho, e punida pelo artigo 12.º, n.º 2, alínea g), do Decreto-Lei n.º 35/2018, de 11 de Março;
c) sem custas, por não serem devidas.»

B – Fundamentação de direito
O recurso do MP prende-se com a questão de saber se a decisão recorrida violou o disposto no art. 412 do CPP aplicável ex vi do art. 41 nº1 do DL 433/82.
Diz-nos o citado art. 412 nº1 do CPP que a motivação especifica os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Entende este recorrente que só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respetiva motivação, é que o tribunal recorrido poderia apreciar.
Desde já discordamos de tal entendimento, porquanto, o Juiz que julga em primeira instância a impugnação judicial está apenas sujeito à proibição da reformatio in pejus, consagrada no art. 72-A do RGCO, introduzido pelo DL 244/95 de 14 de Setembro.
Entende-se na jurisprudência que a impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa que aplica uma coima não constitui um verdadeiro recurso, mas um reexame do objeto processual com plenos poderes em matéria de facto e de direito e com possibilidade de produção de prova.
Na verdade, verifica-se uma verdadeira transferência da questão do domínio da administração para o judicial.
Compete sempre ao tribunal, mesmo quando decide por simples despacho, indagar se as provas indicadas na decisão da autoridade administrativa demonstram os factos imputados ao arguido.
No caso em apreço chamamos à atenção que, por falta de prova a produzir, foi dada sem efeito a audiência de julgamento agendada nos autos, e ordenada a abertura de conclusão para proferir decisão.
Neste sentido veja-se o Acórdão da Relação de Lx de 22/04/2008 relatado por Emídio Santos, disponível em www.dgsi.pt
Este entendimento é também corroborado pelos fundamentos do Acórdão do STJ nº3/2019 que passamos a citar :
«3.2. A decisão da qual se recorre para a Relação, prolatada em 1.ª instância, constitui a primeira decisão judicial, decorrente de uma impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa. Em sede de 1.ª instância, o Tribunal conhece de toda questão em discussão - "o objecto da sua apreciação não é a decisão administrativa, mas a questão sobre a qual incidiu a decisão administrativa" (6).
O âmbito de cognição deste tribunal é bastante amplo: não se limita a um controlo da legalidade do ato, mas procede a uma apreciação de todo o ato administrativo, uma "apreciação da veracidade e exactidão dos factos (e da sua qualificação)", e também uma apreciação da medida da coima aplicada, considerando-se que o Tribunal tem "poderes de jurisdição plena" (7).
Isto é, "são admissíveis, na fase judicial do processo contraordenacional, todos os tipos de pronúncia que incidem sobre o mérito da causa, designadamente a manutenção da decisão administrativa, a sua revogação in totum, por via da absolvição, e a sua modificação, quer da qualificação jurídica quer da sanção" (8). Não se trata, pois, de um mero controlo da legalidade, mas de um pleno poder de conhecimento do mérito da questão, de uma plena jurisdição à semelhança do que ocorre atualmente nos tribunais administrativos (9).»
O teor das notas é o seguinte:
«(6) Maria Borges Campos, Os poderes de cognição e decisão do tribunal na fase de impugnação judicial do processo de contraordenação, Estudos sobre Law Enforcement, Compliance e Direito Penal, coord. Maria Fernanda Palma, Augusto Silva Dias e Paulo de Sousa Mendes, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2018, p. 390.
(7) Assim, Joaquim Pedro Formigal Cardoso da Costa, O recurso para os tribunais judiciais da aplicação de coimas pelas autoridades administrativas, Ciência e Técnica Fiscal, n.º 366 (abril-junho, 1992), p. 59, 64, 67-8.
(8) Maria Borges Campos, ob. cit., p. 390.
(9) Cf. art. 3.º, n.º 1,.º do Código de Processo dos Tribunais Administrativos segundo o qual - "(...) os tribunais administrativos julgam do cumprimento pela Administração das normas e princípios jurídicos que a vinculam e não da conveniência ou oportunidade da sua atuação".»
O dever de indagação que impende sobre o Tribunal, implica que seja possível ao Juiz alargar o âmbito da sua intervenção para além das questões que forem suscitadas pelos recorrentes, como sucedeu no caso vertente, em que o Tribunal se deparou com sucessivas condenações, quando se estava em presença de um concurso aparente de normas.
Relembramos que consta da decisão recorrida:
« Analisado o teor das normas que preveem as contra-ordenações de falta de notificação prévia; descarga de pescado capturado no âmbito de ORGP fora de porto designado e falta de documento de captura, constata-se que as mesmas se reportam ao incumprimento de deveres acessórios da actividade piscatória de atum-rabilho.
Isto significa que os cumprimentos dos referidos deveres/obrigações só podem ter como pressuposto a realização de captura lícita do aludido espécime.
Do que se trata é de um concurso aparente de infracções, na medida em que a infracção de captura acessória, manutenção a bordo, transporte, transbordo e desembarque de atum-rabilho, consome as demais condutas descritas.
O concurso aparente ocorrem quando várias normas concorrem só em aparência, uma vez que apenas uma delas exclui as outras em virtude da ocorrência, entre as normas de uma relação de especialidade, de subsidiariedade ou de consumpção (cf. Jescheck, Tratado de Derecho Penal, vol. II, pág. 1033).
Para aferir da relação de concurso aparente não basta a simples comparação dos elementos constitutivos da contra-ordenação, sendo necessário atentar nos fins visados pela norma que estabelece o dever jurídico violado.
Revertendo ao caso concreto, como se aludiu, as normas que preveem a obrigação de notificação prévia; descarga de pescado capturado no âmbito de ORGP fora de porto designado e falta de documento de captura, configuram verdadeiros deveres acessórios do exercício da actividade piscatória, os quais só ganham sentido perante uma actividade lícita.
Afirmar o contrário é propender para o absurdo de que o infractor tem a obrigação de cumprir deveres por referência à prática de um ilícito, como seria, por hipótese, o caso de um indivíduo furtar um automóvel e ainda ser penalizado pelo facto de não ter procedido à alteração do respectivo registo de propriedade.
Assim, a conduta de captura acessória, manutenção a bordo, transporte, transbordo e desembarque de atum-rabilho às embarcações registadas ou que desembarcam nos portos do continente consome as demais, sendo que estas se reportam a factos não puníveis.
Pelo exposto, a única conduta relevante é a de captura acessória, manutenção a bordo, transporte, transbordo e desembarque de atum-rabilho às embarcações registadas ou que desembarcam nos portos do continente, sendo que importa revogar a decisão administrativa na parte em que condena os arguidos nas demais infracções. »
Aqui chegados concluímos que o alargamento da intervenção do Tribunal recorrido, para além das questões suscitadas pelos arguidos recorrentes, se fez ao abrigo do dever de indagação e fundamentação, que resulta do disposto no art.64 nºs 4 e 5 do Regime Geral das Contraordenações.
Improcede, pelo exposto, o recurso do MP.

O recurso dos arguidos suscitas as seguintes questões:
1ª - Aferição sobre se decorreu o invocado prazo de prescrição do procedimento contraordenacional invocado quanto ao arguido AA.
2ª - Conhecer da invocada nulidade da notificação da arguida pessoa coletiva para apresentar a sua defesa.

questão
Invocam os recorrentes que o arguido AA foi notificado para exercer a sua defesa em //01/2020.
O prazo de prescrição atento o valor da coima aplicável às infrações a corre a partir da data da prática das contraordenações, no caso concreto a partir de 26 de Agosto de 2019 e é de 3 anos.
Na situação aqui em análise, a prescrição interrompeu-se com o conhecimento da notificação para o exercício de defesa em 07 de janeiro de 2020, dando-se por inutilizado o prazo decorrido até essa data, iniciando-se nova contagem do prazo de três anos.
A decisão administrativa aqui em crise foi proferida a 08 de maio de 2023 e notificada ao arguido a 26 de maio de 2023.
Entre o dia 07 de janeiro de 2020 (data da receção da notificação para apresentação de defesa) e o dia 26 de maio de 2023 (data da notificação da decisão administrativa) decorreram mais de três anos, não se tendo verificado quaisquer causas de interrupção durante esse período.
Entende o arguido que a suspensão resultante da aplicação da legislação especial por efeito do Covid não deverá ser aplicada aos processos contraordenacionais cujo prazo se encontrava já em curso aquando da publicação dessa legislação.
Nos casos em que o agente praticou factos puníveis antes do início do regime especial da suspensão da prescrição pela COVID-19, a suspensão da prescrição não pode ser justificada por maiores ou menores dificuldades de investigação ou realização de atos processuais, já que a proibição da aplicação retroativa da lei penal e contraordenacional existe e está justificada - única e exclusivamente - pela proteção do agente, em particular, pelo direito do arguido à segurança jurídica.
A proibição da aplicação retroativa da lei penal e contraordenacional não está associada a razões ou problemas de saúde pública ou dificuldades de investigação e, por isto mesmo, estas razões não podem ser usadas para afastar a proibição de aplicação retroativa da lei substantiva em matéria penal e contraordenacional.
Entende assim o recorrente que, no presente caso se verifica a prescrição do procedimento contraordenacional, uma vez que entre ambas as notificações (da notificação para apresentação de defesa e da notificação da decisão administrativa) decorrem mais de três anos, sem que se tivesse verificado qualquer causa de suspensão ou de interrupção.
A decisão recorrida, porém, consignou o seguinte:
« A contagem da prescrição iniciou em 26/08/2019 e interrompeu em 7/01/2020, com a notificação do arguido para exercer o direito de defesa, nos termos do artigo 28.º, n.º 1, alínea c), do Regime Geral das Contra-ordenações, sem que mostrassem transcorridos três anos.
Assim, a sua contagem reiniciou em 7/01/2020, tendo estado suspensa por força da legislação que suspendeu os prazos da prescrição devido à pandemia da doença COVID-19.
O primeiro período suspensivo foi introduzido pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 7.º, da Lei n.º 1-A/2020, de 19/03, vigorando entre o dia 9/03/2020 e o dia 2/06/2020, num total de 86 dias (cf. art.º 5.º da Lei n.º 4-A/2020, de 6/04, e art.ºs 8.º e 10.º da Lei n.º 16/2000 de 29/05). Depois, voltou a vigorar um regime de suspensão dos prazos de prescrição dos procedimentos criminais e contra-ordenacionais introduzido pelo n.º 3 do artigo 6.º-B da Lei n.º 4-B/2021, de 01/02, vigorando entre 22/01/2021 e 5/04/2021, num total de 74 dias (cf. art.º 4.º da Lei n.º 4-B/2021, de 01/02, e art.º 7.º da Lei n.º 13-B/2021, de 5/04).
O procedimento contra-ordenacional esteve assim suspenso pelo período de 160 (cento e sessenta dias).
Deste modo, em 8/05/2023, data em que voltou a ocorrer nova causa de interrupção, por ter sido proferida a decisão administrativa condenatória, não se mostravam decorridos três anos, atenta a referida causa de suspensão.
Nesta sequência, o prazo de prescrição reiniciou a sua contagem em 8/05/2023 e suspendeu em 28/09/2023, com a notificação ao arguido do exame preliminar do recurso, nos termos do artigo 27.º-A, n.º 1, alínea c), do Regime Geral das Contra-ordenações, sem que também tivessem decorrido três anos.
O referido prazo encontra-se, deste modo, suspenso desde 28/09/2023, situação que é susceptível de se manter até 28/03/2024, atento o disposto no artigo 27.º-A, n.º 2, do Regime Geral das Contra-ordenações.»
Assim delineada, a questão fundamental é a de saber se os prazos de suspensão resultantes das leis especiais criadas em virtude da situação excecional provocada pela pandemia do Covid 19, se aplicam às infrações praticadas em data anterior à sua entrada em vigor.
As citadas leis 1-A/2020, de 19/03 e 4-A/2020, de 6/04 surgiram no âmbito de uma situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-COV-2 e da doença COVID-19.
Consagra o art. 7º nº3 da Lei nº1-A/2020 e da Lei nº 4-A/2020 que:
«A situação excecional constitui igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos.»
Por regra as normas respeitantes a prazos de prescrição são consideradas leis de natureza mista com conteúdo material, contidas no direito processual, e por isso, sujeitas à proibição de retroatividade de lei desfavorável.
Neste sentido fazendo dando nota da evolução desta corrente de pensamento veja-se Taipa de Carvalho em Sucessão de Leis Penais, Edição de Coimbra Editora, 1990, pág.219 e seguintes.
Sobre a natureza das normas relativas à prescrição veja-se Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, Edição de Coimbra Editora, 2005, pág. 701.
Ora, uma lei temporária excecional não pode afetar os prazos de natureza substantiva ou material em curso, designadamente, os prazos de prescrição do procedimento criminal/contraordenacional e da pena, alargando-os e aumentando as possibilidades de punição existentes anteriormente à sua criação.
Neste sentido se pronunciaram os Acórdãos da Relação de Lisboa de 24/07/2020, relatado por Jorge Gonçalves e da Relação do Porto de 4/04/2021, relatado por Élia São Pedro, ambos disponíveis em www.dgsi.pt relativamente às normas temporárias n.º 1-A/2020, de 19 de março e 4-A/2020, de 6/04.
No entanto é de salientar que o Acórdão Tribunal Constitucional nº 660/2021 decidiu não julgar inconstitucional a interpretação do artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, no sentido de que a causa de suspensão dos prazos de prescrição do procedimento contraordenacional aí prevista se aplica aos prazos que, à data da sua entrada em vigor, se encontram já em curso, pela seguinte ordem de razões:
«… a prescrição do procedimento criminal, enquanto condição negativa de punibilidade, não deixa de deter uma natureza mista, material e adjetiva, sendo certo que determinados aspetos do seu regime ligar-se-ão preferencialmente a cada uma dessas faces da mesma moeda (cfr. pontos 2.2.3. supra). Tal implica, por um lado, que essa categorização não importe automaticamente a subordinação tout court de qualquer elemento do seu regime a todas as dimensões do princípio da legalidade (cfr. Acórdãos n.ºs 449/2002, 205/1999 e 500/2021, que, neste ponto, seguiremos de perto).
Na verdade, o princípio da legalidade desempenha um papel de barreira ao ius puniendi, como um mecanismo de garantia do cidadão ante a prossecução da ação penal pelo Estado, que deverá balizar-se dentro de regras que salvaguardem o indivíduo de qualquer intervenção excessiva ou arbitrária, sendo esta a pedra basilar em que este princípio assenta, desde a sua consagração na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.
A proibição da aplicação retroativa da lei penal in malam partem está umbilicalmente ligada ao princípio da confiança, que radica “numa ideia de previsibilidade” das normas, no sentido de que qualquer cidadão, para além de não ser surpreendido pela incriminação de um comportamento anteriormente adotado (n.º 1 do artigo 29.º da Constituição), também não pode ser surpreendido pela aplicação de uma sanção mais grave ou por normas processuais materiais de efeitos mais gravosos do que aqueles com que podia contar à data da prática do facto (cfr. Acórdão n.º 261/2020).
Como escrutinado nos pontos 2.1.1 e 2.1.2., supra, a suspensão do prazo prescricional prevista no artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, configura uma medida, entre várias, tomadas no âmbito da legislação de emergência para fazer face à situação pandémica, que originou o estado de exceção constitucional. O período que mediou entre 9 de março e 3 de junho de 2020 foi tido como causa de suspensão do prazo prescricional de procedimentos criminais (e contraordenacionais), em grande medida como decorrência da paralisação da atividade judiciária lato sensu durante esse período.
Não podemos olvidar que o desiderato último do acervo de medidas implementadas pelo Estado, perante a ameaça pandémica à escala mundial, era restringir o contacto social entre indivíduos por forma a controlar a propagação da epidemia da doença Covid-19, através de restrições profundas à liberdade de circulação dos cidadãos, que obviavam à realização das normais atividades do Estado, como particular incidência na administração da justiça.
Estas medidas foram cogitadas e executadas no cumprimento da incumbência do Estado de proteger a vida e a integridade física de todos os cidadãos (artigos 24.º, n.º 1, e 25.º, n.º 1, da CRP), num quadro de pandemia à escala global.
Nesse conspecto, as atividades que se realizam através do contato pessoal e que exigem uma vertente gregária foram sustadas.
No quadro da administração da justiça, numa visão global das medidas concretizadas, podemos concluir que estas implicaram uma paragem forçada do andamento dos processos em curso, através da suspensão dos prazos para a prática de atos processuais. Mesmo no âmbito processual penal, nos processos de natureza urgente, as diligências apenas foram realizadas, mediante condições especiais. Ou através de meios de comunicação à distância, caso se afigurasse viável e possível a sua utilização por todos os intervenientes processuais, ou presencialmente, consoante estivesse reunido um conjunto de circunstâncias físicas e estruturais que permitissem cumprir as regras das autoridades de saúde referentes a distanciamento social entre intervenientes e cumprimento de etiqueta respiratória (cfr. 2.1.1., supra). Tudo isto implicou, até mesmo nos processos de natureza urgente, que contendem com direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, um retardamento óbvio da atividade judiciária.
Não poderemos olvidar que a regra geral consistiu na sustação e suspensão de todos os processos processuais e o prosseguimento apenas daqueles que contendessem com direitos, liberdades e garantias, desde que fossem asseguradas todas as regras sanitárias, ficando a sua realização dependente de condições físicas e estruturais (como, por exemplo, a dimensão das salas de audiências ou de realização de diligências, a existência de sistemas de ventilação e arejamento de divisões em tribunais, a lotação máxima de pessoas nos edifícios, etc.).
Esta perspetiva ampla das medidas em que se insere a causa de suspensão da prescrição permite-nos concluir que foram razões excecionais de ordem sanitária que conduziram, em primeira linha, à suspensão da atividade judiciária, mediante a suspensão do andamento dos processos. Tratou-se de uma medida implementada em benefício de todos os intervenientes processuais, sem distinção, incluindo os próprios arguidos.
Como consequência dessa paralisação forçada do andamento generalizado dos processos, o legislador determinou a suspensão dos prazos de prescrição dos procedimentos criminais, na medida em que a inatividade do aparelho judiciário, globalmente considerado, projetava-se, não só sobre todos os intervenientes processuais, mas também sobre o próprio Estado, na veste de prossecutor da ação penal, que se viu, em virtude da mesma situação excecional, obrigado a suster tal desiderato.
Na verdade, a causa de suspensão da prescrição prevista no artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, deve ser lida como uma decorrência necessária da paralisação da atividade dos tribunais portugueses e da sustação do rito processual, quase generalizado, durante o período de 9 de março a 3 de junho de 2020, dos processos de grande parte das jurisdições.
Naturalmente, a sua consagração não radicou em nenhum objetivo de política criminal, i.e., não houve uma alteração de ponderação de valores pelo legislador, no âmbito processual penal, que tenha presidido à implementação de uma nova causa de suspensão da prescrição. O legislador não pretendeu com esta norma “prolongar” a sua atividade de prossecutor da ação penal, nem reparar uma situação de “inércia pretérita” do Estado (Acórdão n.º 500/2021), repondo um período de tempo em seu benefício.
Esta causa de suspensão da prescrição distancia-se, com esta nuance, dos restantes casos sobre os quais a jurisprudência do Tribunal se debruçou, ostentando uma finalidade e um contexto muitíssimo excecionais (cfr. ponto 2.2.4. supra).
A razão de ser desta causa de suspensão derivou, única e exclusivamente, da situação de emergência sanitária e que originou o estancamento da atividade judiciária, por um determinado período.
Tal premissa conduz-nos à conclusão de que as finalidades subjacentes ao próprio regime da prescrição, que ditam a sujeição desta causa de suspensão ao princípio da proibição da aplicação retroativa da lei penal, não se verificam, porquanto não presidiu à sua consagração uma finalidade de política criminal que reclame o freio do princípio da legalidade, como defesa do cidadão perante o ius puniendi do Estado: pelas razões descritas, nem está em causa reverter sobre o arguido as consequências da inércia pretérita do Estado, nem uma violação do princípio da confiança, já que o evento era imprevisível, para além do arguido, para qualquer outro sujeito processual e para o próprio Estado titular da ação penal, não sendo a situação de pandemia, pela sua imprevisibilidade, apta a constituir um quadro de referência sobre o qual se possa falar de “confiança” (essencialmente no mesmo sentido, v. o já citado Acórdão n.º 500/2021).»
Na verdade, tendo a sustação da atividade judiciária em geral sido determinada em benefício de todos intervenientes processuais, designadamente arguidos e seus mandatários, de modo a que o menor número de pessoas possível fosse contaminada pelo vírus que originou a situação de pandemia, e que se tratou de uma ocorrência totalmente imprevisível e alheia aos órgãos de poder do Estado, faz, por isso, sentido a aplicação das leis temporárias de suspensão do prazo de prescrição a todos os prazos mesmo aos iniciados antes da vigência das referenciadas leis, já que estas não foram criadas para salvaguardar qualquer situação de inércia da administração pública ou com a finalidade politica de obter maior prazo para as punições.
Deste modo, concluímos que nada obsta a que o disposto no art. 7º, n.º 3 da Lei 1-A/2020 de 19 de março, e da Lei 4-A/2020, de 6 de abril, quanto à suspensão da prescrição ali prevista, possa ser aplicado retroativamente aos prazos iniciados anteriormente à respetiva vigência, não obstante tratar-se de lei posterior, dado que a mesma é desfavorável por alargar o prazo de punição, mas teve como objetivo a proteção sanitária de todos os cidadãos e nessa parte não se pode considerar desfavorável, mas antes benéfica a todos os utentes da justiça aqui se incluindo os arguidos.
Neste sentido os Acórdãos da Relação de Lisboa de 5/04/2022, relatado por Paulo Barreto, e de 8/03/2021, relatado por João Carrola, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
Nesta linha de raciocínio nada temos a censurar à decisão recorrida quando considera que a contagem do prazo de prescrição quanto ao arguido AA esteve suspensa por força da legislação que suspendeu os prazos da prescrição devido à pandemia da doença COVID-19.
Improcede pelo exposto o argumento relativo à prescrição do procedimento criminal.

questão
A arguida sociedade A..., Lda foi notificada para apresentar a sua defesa, nos termos do art. 50 do RGCO, via postal, para a direção da sede da mesma, sita na Rua ..., ..., ..., Vila Nova de Gaia, mostrando-se o aviso de receção assinado pelo arguido AA em 7/01/2020. - doc. junto a fls.34 dos autos.
Sucede que conforme a certidão permanente junta aos autos o arguido AA, a essa data, era sócio da sociedade, mas não exercia a gerência da mesma, não sendo por isso legal representante da sociedade.
Porém, AA era o mestre da embarcação onde ocorreram os ilícitos a qual se encontrava registada em nome da sociedade arguida.
Ora, a jurisprudência tem vindo a entender que uma vez que o RGCO e o CPP não contêm qualquer regra específica para a notificação das sociedades e demais pessoas coletivas, a sua notificação pode ser feita nos termos das citações destas em processo civil, ou seja, segundo o artigo 223 nº3 do CPC, - aplicável por via do art. 41 nº1 do RGCO e do art. 4º do CPP -, na pessoa dos seus legais representantes ou na pessoa de qualquer empregado que se encontre na sede ou local onde funciona normalmente a administração.
Neste sentido vejam-se os Acórdãos da Relação de Lisboa de 12/09/2018, relatado por Maria da Graça dos Santos Silva, da Relação de Évora de 11/07/2013, relatado por Gilberto Cunha e da Relação do Porto, de 2/05/2012, relatado Por Melo Lima.
Assim, e para os efeitos do art. 50 do RGCO, seguindo a citada jurisprudência tem-se por regularmente notificada para apresentar a sua defesa a sociedade arguida, deste modo improcedendo a invocada nulidade.



Decisão:

Tudo visto e ponderado, com base nos argumentos que ficaram expostos, acordam os Juízes na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento aos recursos do MP e dos arguidos, confirmando integralmente a decisão recorrida.

Os arguidos recorrentes suportarão as custas do processo e pagarão cada um deles taxa de justiça que se fixa em 3 Ucs.





Porto, 7/2/2024.

Relatora: Paula Cristina Guerreiro
1ª adjunta: Maria Luísa Arantes com a seguinte declaração de voto:
["Voto a decisão, com a seguinte declaração: Quanto à questão de saber se a suspensão da prescrição estabelecida nas Leis n.º1-A/2020, de 19/3 e n.º4-B/2021, de 1/2, legislação temporária que vigorou durante a pandemia Covid 19, é aplicável a factos praticados antes do início da sua vigência, entendo, seguindo de perto o Ac.R.Porto de 7/9/2022, proc. n.º 294/22.0T9VCD.P1, relatado pelo Desembargador João Pedro Pereira Cardoso, assim como o Ac.R.Porto de 8/3/2023, proc. n.º3482/22.6T9AVR.P1, relatado pela Desembargadora Paula Natérica Rocha, o que se verifica é uma outra causa suspensiva da prescrição - a prevista no art.27º- A, n.º1, alínea a), do RGCOC - decorrente da paralisação legal da generalidade dos atos e prazos processuais e procedimentais, primeiramente, por força dos nºs 1 e 6, do art. 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, entre 9 de março de 2020 e 3 de junho de 2020 e posteriormente, por força do art. 6º-B, nº 1, e art. 6º-C, nº 1, al. b), da Lei nº 4-B/2021, de 1 de fevereiro, que determinou nova suspensão no período de 22/01/2021 a 05/04/2021. Durante estes dois períodos (86 dias +73 dias) o procedimento contraordenacional não podia continuar por não estar autorizado legalmente o andamento do processo.
Assim, os referidos períodos, que totalizam 159 dias, em que o procedimento contraordenacional não podia continuar, configuram a causa de suspensão prevista no art.º 27.º-A, n.º 1, alínea a), do RGCOC.»]
2ª adjunta: Paula Natércia Rocha com a seguinte declaração de voto:
[Acompanho a decisão por também entender que não é inconstitucional a interpretação do artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, no sentido «de que a causa de suspensão dos prazos de prescrição do procedimento contraordenacional aí prevista se aplica aos prazos que, à data da sua entrada em vigor, se encontram já em curso». No entanto, e seguindo a declaração de voto da Senhora Conselheira Fátima Mata-Mouros a referida norma só não é inconstitucional porque se inscreve no âmbito de um processo contraordenacional e a proibição de retroatividade da lei criminal ressalvada no artigo 19.º, n.º 6, entre os direitos invioláveis em estado de exceção, não pode deixar de ser compreendida de forma estrita na sua dimensão de proibição aplicável exclusivamente ao processo criminal, enquanto instrumento de defesa dos valores humanos essenciais e bens jurídicos mais sensíveis na vida em sociedade, em especial a liberdade individual. O processo contraordenacional não protege esses valores, sendo exclusivamente patrimonial o bem atingido pela coima. Por conseguinte, a proibição da retroatividade enquanto limite ao estado de exceção não pode deixar de ater-se exclusivamente à lei que a Constituição expressamente designa no artigo 19.º, n.º 6, e esta é a “lei criminal”.
Contudo, independentemente da posição que se tome, e tal como já se decidiu no acórdão n.º 3482/22.6T9AVR, de 08.03.2023, diferente desta causa de suspensão de prescrição do procedimento criminal estabelecida nas Leis n.º 1-A/2020 e n.º 4-B/2021, a verdade é que outra causa suspensiva se verifica, relacionada com a paralisação legal da generalidade dos atos e prazos processuais e procedimentais, no domínio criminal e contraordenacional, primeiramente, por força dos nºs 1 e 6, do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, entre 9 de março de 2020 e 3 de junho de 2020, e por força do artigo 6º-B, nº1, e artigo 6º-C, nº1, al. b), da Lei nº 4-B/2021, de 01/02.
Durante estes dois períodos o procedimento contraordenacional não podia continuar por falta de autorização legal, ante a paralisação imposta por lei para os atos e prazos a decorrer na administração, no Ministério Público e nos tribunais (cf. Acórdão do TRP de 09.03.2022, in http://www.dgsi.pt/jtrp).
O prazo de prescrição suspendeu-se durante o período em que não foi autorizado legalmente o andamento do processo, ou seja, levantado legalmente o obstáculo legal da suspensão dos atos e prazos no procedimento contraordenacional.
A razão de ser desta suspensão baseia-se, como foi o caso, na existência de um obstáculo previsto na lei, de carácter geral, ao início ou continuação do procedimento contraordenacional, “o qual suspende o respetivo prazo de prescrição do procedimento mal o obstáculo legal produza os seus efeitos” (cf. Tiago Lopes de Azevedo, in Lições de direito das contraordenações, Almedina, 2020, pg.223).]