Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2541/11.5TBOAZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: ACÇÃO DE DESPEJO
FALTA DE PAGAMENTO DA RENDA
INTERESSE EM AGIR
Nº do Documento: RP201310172541/11.5TBOAZ.P1
Data do Acordão: 10/17/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento da renda, em caso de mora superior a três meses, pode ser feita extrajudicialmente, através da comunicação ao arrendatário da resolução pela forma prevista no artigo 9º, nº 7, do NRAU, mas ao senhorio é ainda lícito recorrer à via judicial, instaurando a acção de despejo prevista no artigo 14º, nº 1, do NRAU.
II - Embora o senhorio tenha ambas as possibilidades ao seu dispor, optando pela via judicial deve ser-lhe reconhecido interesse em agir.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
Processo n.º 2541/11.5TBOAZ.P1 [Tribunal Judicial de Oliveira de Azeméis]

Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I.
B…, Lda., NIF ………, com sede em …, …, instaurou acção judicial contra C…, Lda., NIF ………, com sede na …, Rua …, Lote ., …, pedindo que seja decretada a resolução do contrato de arrendamento que celebrou com a ré e esta condenada a despejar o arrendado e a pagar as rendas em dívida no montante de €32.933 e as rendas vincendas até à entrega.
Para o efeito, alegou que celebrou com a ré um contrato de arrendamento e que a ré não pagou várias rendas vencidas, dando causa à resolução do contrato por falta de pagamento de rendas.
A ré foi citada e não contestou, pelo que se consideraram confessados os factos articulados pela autora.
Em sede de alegações de direito, a ré defendeu que a autora carecia de interesse em agir, uma vez que a resolução do contrato de arrendamento devia ter sido feita por via extrajudicial, não sendo a acção de despejo o meio processual próprio para proceder à resolução do contrato por falta de pagamento das rendas, pelo que acção a ré devia ser absolvida da instância.
A seguir foi proferida sentença, julgando a acção integralmente procedente e condenando a ré nos pedidos formulados pela autora. Na sentença tomou-se posição sobre a falta de interesse em agir da autora, decidindo-se que para resolver o contrato, embora pudesse lançar mão da via extrajudicial, nada impedia a autora de recorrer à via judicial, possuindo interesse em agir.
Do assim decidido, a ré interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1. A ora R./Recorrente invocou a excepção dilatória da falta do interesse em agir da A./Recorrida, tendo alegado, em síntese, que a forma legalmente prevista para cessar o contrato de arrendamento por resolução do senhorio por falta de pagamento de rendas é a prevista no art. 1084.º do CC, norma essa imperativa.
2. O Tribunal a quo julgou improcedente tal excepção dilatória, decisão esta com a qual a ora Recorrente não concorda.
3. O meio processual utilizado pela A., ora Recorrida, previsto no art. 14.º da Lei n.º 6/2006, de 27 Fevereiro, não é actualmente, nem o era antes das recentes alterações à referida lei introduzidas pela Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto, o meio próprio para realizar a cessação do contrato de arrendamento fundado em mora no pagamento de rendas.
4. O meio processual previsto no art. 14.º da referida lei apenas se destinava (e destina ainda hoje) à resolução com fundamento em uma das causas previstas no n.º 2 do artigo 1083.º do CC e já não à resolução do contrato do contrato por falta de pagamento de renda prevista no n.º 3 do art. 1083.º do CC.
5. O modo de operar a resolução pelo senhorio quando fundada em caso de mora igual ou superior a dois meses no pagamento da renda, encargos ou despesas que corram por conta do arrendatário realiza-se através da comunicação à contraparte onde fundamentadamente se invoque a obrigação incumprida (art. 1084.º do CC).
6. A A./Recorrida, por ter ao seu dispor um meio especialmente previsto na lei para poder fazer cessar a relação arrendatícia por falta de pagamento de rendas, mais precisamente o previsto no n.º 3 do art. 1083.º do CC, não tinha, no caso em apreço, a necessidade de recorrer a um caminho judiciário e à intervenção jurisdicional do tribunal para realizar o seu interesse material.
7. Ou seja, neste caso concreto, a A./Recorrida não tinha interesse em recorrer aos tribunais para tutelar o interesse material por si invocado, uma vez que tinha e tem ao seu dispor o mecanismo previsto no art. 1084.º, n.º 1 do CC consubstanciado na comunicação à contraparte onde fundamentadamente se invoque a obrigação incumprida.
8. Daí que dúvidas inexistem em como, no presente caso, inexiste interesse processual da A./Recorrida.
9. Pelo que mal andou o Tribunal a quo ao decidir negativamente a suscitada questão da falta de interesse processual em agir e, por conseguinte, ao ter julgado improcedente tal excepção dilatória deduzida pela R./Recorrente.
10. Ao não ter decidido assim a sentença recorrida violou expressamente o disposto nos artigos 288.º, nº 1, al. e), 493.º, 494º e 495º do CPC e, bem assim, o artigo 1084.º do CC.
11. A sentença recorrida deverá ser assim substituída por decisão que julgue procedente a invocada excepção dilatória inominada e que absolva da instância a R., ora Recorrente, tudo nos termos do disposto nos artigos 288.º, nº 1, al. e), 493.º, 494.º e 495º do CPC.
A recorrida respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II.
As conclusões das alegações de recurso colocam este Tribunal perante o dever de resolver se a resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento da renda, em caso de mora superior a três meses, só pode ser feita extrajudicialmente, através da comunicação ao arrendatário da resolução pela forma prevista no artigo 9º, nº 7, do NRAU, ou é ainda lícito ao senhorio recorrer à via judicial, instaurando a acção de despejo prevista no artigo 14º, nº 1, do NRAU. E ainda se, tendo o senhorio ambas as possibilidades ao seu dispor, optando pela via judicial ele carece afinal de interesse em agir judicialmente.

III.
Nos termos do artigo 663.º, n.º 6, do Código de Processo Civil (redacção da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho) remete-se, quanto à matéria de facto, para os termos da decisão da 1.ª instância.

IV.
Entrando na análise do mérito do recurso, convém começar por acentuar que a ré/recorrente não contestou a acção, ou seja, admitiu como verdadeiros os factos relativos à falta de pagamento da renda que motivou o pedido de resolução do contrato. E no presente recurso também não impugnou a decisão na parte em que com esse fundamento julgou a acção procedente e decretou o despejo.
Resulta assim, que embora reconhecendo o incumprimento da sua obrigação contratual de pagar tempestivamente as rendas previstas no contrato, a ré continua a litigar com o objectivo de impedir a verificação da consequência que a lei associa a esse incumprimento (o despejo) e que, uma vez assentes os factos, resulta afinal inelutável qualquer que seja a via, judicial ou extrajudicial, necessária para o declarar.
Cremos bem que bastava anotar esta particularidade da acção – a qual, em virtude das sucessivas suspensões da instância que se prolongaram muito para além do prazo máximo de 6 meses previsto na lei, dura, apesar da ausência de contestação, há bem mais de um ano – para tornar óbvio que a autora tinha afinal um interesse em agir relevante para instaurar a acção e que esta é afinal para a autora uma necessidade a que os tribunais não podiam deixar de atender, sob pena de incorrer numa pura jurisprudência dos conceitos que se julgava afastada.
Exactamente porque não contestou a acção, a ré nem sequer usou a contestação para invocar a falta de interesse em agir da autora. Apesar disso, face ao disposto nos artigos 489.º, n.º 2, parte final, e 495.º, do Código de Processo Civil (na redacção anterior à Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho que à data regulava esses actos), não lhe estava vedado suscitar essa questão nas alegações escritas previstas no artigo 484.º, n.º 2, do mesmo diploma, e, em qualquer caso, o tribunal podia conhecer oficiosamente dessa excepção na sentença.
O que fez, aliás, com inteira pertinência e fundamentação bastante, decidindo a questão da forma que merece a nossa inteira concordância e com argumentos que também subscrevemos.
Refira-se que estes argumentos são acompanhados pela esmagadora maioria da jurisprudência (entre os mais recentes, os Acórdãos desta Relação - e secção - de 25.10.2012, relatado por Araújo Barros, e de 14 de Março de 2013, relatado por Deolinda Varão, o da Relação de Lisboa de 13.09.2012, relatado por Maria de Deus Correia, e o da Relação de Guimarães de 31.05.2012, relatado por Maria Luísa Duarte, todos in www.dgsi.pt) e pela mais recente doutrina (Fernando Gravato Morais, in Anotação ao Ac. da RL de 23.10.2007, Cadernos de Direito Privado, n.º 22, pág. 65, e in Novo regime do Arrendamento Comercial, 2.ª edição, pág. 219; Paulo Soares do Nascimento, in O Incumprimento da obrigação de pagamento de renda …, Estudos de Homenagem ao Prof. I. Galvão Teles, 2007, pág. 1016; Soares Machado e Regina Santos Pereira, in Arrendamento urbano, 2.ª edição revista e aumentada, pág. 132; França Pitão, in Novo Regime do Arrendamento Urbano, 2.ª edição, actualizada, pág. 612), sem que se vislumbre o surgimento de qualquer fundamento que obrigue a reequacionar a solução.
As disposições do NRAU abandonaram a ideia que provinha da anterior legislação segundo a qual a resolução do contrato de arrendamento apenas podia ser decretada judicialmente (artigo 1084.º do Código Civil) e, em conformidade com essa inovação, criaram um mecanismo para, nos casos de falta de pagamento da renda em caso de mora superior a três meses, o senhorio poder resolver o contrato mediante mera comunicação extrajudicial ao arrendatário (artigo 9.º, n.º 7, da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro).
Esta inovação legislativa logo suscitou uma dúvida: se, nesses casos, o senhorio apenas pode operar a resolução através da comunicação extrajudicial, não possuindo interesse em agir para recorrer à acção de despejo ou se o senhorio, apesar de ter à sua disposição àquela via, pode optar por lançar mão da acção de despejo possuindo para o efeito interesse em agir suficiente.
Antes de procurar determinar o sentido das normas legais que regem sobre esta matéria (anotando-se aqui que a falta de pagamento da renda que constitui o fundamento do pedido de resolução e a instauração da acção de despejo tiveram lugar em momento anterior à entrada em vigor da Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto, pelo que ao caso se deverão aplicar apenas as anteriores disposições do Código Civil e do NRAU), convém acentuar que nos termos do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.
Esta imposição constitucional deve ter no seu conteúdo mínimo a ideia de que qualquer pessoa que tenha a necessidade objectiva de defender um direito ou interesse legalmente deve poder recorrer aos tribunais para o efeito. O que está aqui consagrado é um direito de acesso em primeira linha, não condicionado, e não um direito de acesso alternativo, apenas para os casos em que o cidadão não seja capaz de resolver o litígio pelas suas próprias mãos, por via de acção directa ou outro qualquer mecanismo extrajudicial. E isso é assim, desde logo, porque se entende que os tribunais servem não apenas para resolver litígios, mas também para assegurar a paz jurídica, alimentando a expectativa de que as relações em comunidade se podem desenvolver normalmente e sem receios uma vez que em caso de litígio estes serão dirimidos e decididos por um órgão soberano, com a necessária tranquilidade e autoridade e a subsequente faculdade de resolver em definitivo.
Esta imposição e estas ideias não podem estar arredadas da interpretação das normas legais que disponham sobre os mecanismos e procedimentos a adoptar em caso de litígio sobre uma qualquer relação jurídica. Pelo contrário, a interpretação destas deve ter sempre em mente aquelas ideias, impedindo soluções que no caso redundem em impedimentos ilegítimos de acesso aos tribunais.
Centrando agora a análise nas normas legais, será útil perceber o sentido do que foi intenção do legislador consagrar através delas. Refere-se no Ponto 1 da Exposição de Motivos da Proposta de Lei do Arrendamento Urbano nº 34/X, o seguinte: “O regime jurídico manterá a sua imperatividade em sede de cessação do contrato de arrendamento, mas abre-se a hipótese à resolução extrajudicial do contrato, com base em incumprimento que, pela sua gravidade, ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento”. Esta referência não deixa dúvidas de que o que se pretendeu foi apenas acrescentar aos mecanismos de resolução do contrato que vinham de trás a via da formação de título executivo extrajudicial, possibilitando ao senhorio o recurso imediato à acção executiva, mas não reduzir esses mecanismos àquela única via. É aliás o que se deduz também do ponto 2 da referida exposição de motivos onde, sob a epígrafe sintomática de “agilização processual”, se refere que “nos casos de cessação por resolução com base em mora no pagamento da renda superior a 3 meses, ou devido a oposição do arrendatário à realização de obra … se o senhorio proceder à notificação judicial avulsa do arrendatário e este mantiver a sua conduta inadimplente, permite-se a formação de título executivo extrajudicial”.
Também devemos questionar se ambas as vias de resolução do contrato referidas são absolutamente equiparáveis, servem os mesmos objectivos e colocam os interessados na mesma posição, já que apenas essa coincidência plena poderá justificar a postergação de uma das vias, com o fundamento de que pela outra será obtida precisamente a mesma tutela.
Ora a verdade é que isso não sucede. Se puder recorrer à via (judicial) da acção de despejo o senhorio: i) não tem de aguardar que se completem três meses de mora, como é necessário para proceder à resolução por comunicação extrajudicial; ii) não tem de aguardar mais três meses, subsequentes àquela comunicação, pela eventual purgação da mora pelo arrendatário (artigo 1084º, nº3 do Código Civil) e para exigir a desocupação do prédio (artigo 1087º); iii) ultrapassa eventuais dificuldades de concretização da notificação judicial ou comunicação por contacto pessoal do arrendatário; iv) evita a suspensão dos termos da acção executiva, quando seja deduzida oposição nos termos do artigo 930º-B, nº1, a) do Código de Processo Civil; v) permite que o arrendatário formule, desde logo, pedido reconvencional para pedir indemnização com fundamento na realização de benfeitorias, tornando desnecessário o recurso, com esse fim, a uma acção autónoma, ou que tal questão seja discutida em sede de oposição à execução; vi) torna mais rápida a purgação da mora, já que na acção judicial só pode ser feita até ao termo do prazo para a contestação, esgotando-se, com o seu exercício, essa faculdade, porquanto só pode ser usada uma vez (artigo 1048º, nºs 1 e 2 do Código Civil); vii) obtém o acesso ao incidente do despejo imediato previsto no artigo 14º, nºs 4 e 5 do NRAU.
Parece que se deve entender, sob pena de inconstitucionalidade, que conferindo a lei ao senhorio estas vantagens no caso de recurso à via judicial de resolução do contrato, lhe deve ser facultado o acesso a uma acção judicial onde possa exercer esses direitos ou o seu direito nessas condições vantajosas, acção essa que é naturalmente a acção de despejo.
Em rigor o único argumento que se pode sustentar para defesa do contrário é o resultante do teor literal dos artigos 1083.º e 1084.º do Código Civil e da sua imperatividade.
Segundo o nº1 do artigo 1083º do Código Civil, “qualquer das partes pode resolver o contrato, nos termos gerais do direito, com base em incumprimento pela outra parte”. Acrescenta o n.º nº 3 do preceito que “é inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento em caso de mora superior a três meses no pagamento da renda, encargos ou despesas (…), sem prejuízo do disposto nos nºs 3 e 4 do artigo seguinte”.
Por sua vez, o nº1 do artigo 1084º prescreve que: “a resolução pelo senhorio quando fundada em causa prevista no nº 3 do artigo anterior bem como a resolução pelo arrendatário operam por comunicação à contraparte, onde fundamentalmente se invoque a obrigação incumprida”. E o nº2: estabelece que “a resolução pelo senhorio com fundamento numa das causas previstas no nº 2 do artigo anterior é decretada nos termos da lei de processo”.
Finalmente resulta do artigo 1080.º que as referidas normas têm natureza imperativa. Todavia, como se refere nos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 06.05.2010, relatado por Custódio Montes, e da Relação de Coimbra de 22.6.2010, relatado por Fonte Ramos, e de 02-11-2010, relatado por Judite Pires, todos in www.dgsi.pt, “a imperatividade a que alude o art.º 1080º não é a de se considerar que a resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas superior a três meses se faz pela via extrajudicial exclusivamente, a imperatividade aí vertida reporta-se a todos os mecanismos que a lei prevê para obter a cessação do contrato e não apenas àquela (…). Portanto, a regra da imperatividade tem a ver com a definição do regime jurídico da cessação do contrato de arrendamento (a todo ele) e não com a possibilidade que se abre ao senhorio de a fazer operar também por via extrajudicial”. Por outras palavras, a imperatividade da norma significa que a resolução só tem lugar nos casos e com os fundamentos previstos na lei, que as partes não podem modificar contratualmente esse regime, que verificado o requisito legal da falta de pagamento de renda em certas circunstâncias a resolução não depende de prévia declaração judicial e pode ser feita pela própria parte.
Todavia, é absolutamente aceite pela doutrina e pela jurisprudência nos casos em que a resolução de um contrato pode ser feita por via extrajudicial, mediante mera comunicação à contraparte, como sucede no comum dos contratos (v.g. contrato-promessa, contrato de empreitada), que a citação para contestar a acção instaurada pela parte com o objectivo de proceder a essa resolução e obter a condenação do contraente inadimplente nas consequências do incumprimento funciona como comunicação da declaração de vontade da resolução, não podendo o demandado escudar-se na falta de comunicação prévia à acção.
Em consonância com essa leitura das normas legais, o facto de o nº 1 do artigo 1084º do Código Civil prescrever que a resolução do arrendamento pelo senhorio com fundamento na falta de pagamento de renda opera por comunicação à contraparte, apenas pode significar que a declaração de vontade no sentido da resolução pode ser manifestada por essa forma, mas já não que o senhorio esteja impedido de lançar mão de uma acção judicial manifestando essa vontade e pedindo a condenação do réu nas consequências legais do seu incumprimento.
Acresce, e com isto se apresenta o último dos argumentos, que o n.º 2 do artigo 21º do NRAU prevê expressamente que a acção de despejo é o meio processual idóneo para a resolução do contrato de arrendamento pelo senhorio, com fundamento na falta de pagamento de rendas, na situação de impugnação do seu depósito. “Mal se compreenderia que atenta a unidade do sistema jurídico (cf. art. 9º, nº 1, do Código Civil), se devesse entender que na situação sub judice o legislador havia querido vedar a possibilidade de recurso a tal meio processual – e não apenas colocá-lo em alternativa a outro procedimento que configurou como mais expedito, confiando por isso em que o senhorio, na melhor defesa dos seus interesses, o privilegiasse” – apud. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15.03.2011, relatado por Luís Espírito Santo, in www.dgsi.pt –.
Em suma, como muito bem se sintetiza no Acórdão Tribunal da Relação do Porto de 14 de Março de 2013, relatado por Deolinda Varão, in www.dgsi.pt, “tendo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada, as condições específicas do tempo em que é aplicada, bem como o desejável acerto e adequação das normas consagradas, entende-se que assiste ao senhorio o direito a instaurar acção declarativa destinada à resolução do contrato de arrendamento, mesmo quando tenha ao seu dispor a via da resolução extrajudicial (art. 9º do CC).”
Arrumada a questão de saber se nas circunstâncias referidas o senhorio também pode recorrer à acção judicial para obter a resolução do contrato de arrendamento, o que se poderia questionar agora é se dispondo também da via extrajudicial, podendo resolver o contrato mediante comunicação extrajudicial enviada ao arrendatário, o senhorio não possui afinal interesse em agir relevante para recorrer à acção judicial.
Trata-se, portanto, de saber se havendo duas possibilidades de exercer um direito, o seu titular deve exercer primacialmente a via extrajudicial, incorrendo em falta de interesse em agir na utilização imediata da via judicial.
Como sabemos, o interesse em agir está associado à necessidade de dar ao direito tutela judicial. Todavia, como afirmam Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág. 180 e seguintes, “a necessidade de recorrer às vias judiciais, como substractum do interesse processual, não tem que ser uma necessidade absoluta, a única ou a última via aberta para a realização da pretensão formulada. Mas também não bastará para o efeito a necessidade de satisfazer um mero capricho (de vindicta sobre o réu) ou puro interesse subjectivo (moral, científico ou académico) de obter um pronunciamento judicial. O interesse processual constitui um requisito a meio termo entre os dois tipos de situações. Exige-se, por força dele, uma necessidade justificada, razoável, fundada, de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a acção – mas não mais que isso”.
Havendo uma relação jurídica, havendo incumprimento por uma das suas partes das respectivas obrigações, havendo do incumpridor a não-aceitação pacífica das consequências desse incumprimento e permanecendo a situação fáctica aquém do que adviria dessas consequências, deve entender-se, de acordo com um critério de razoabilidade e de justa medida, que a parte não inadimplente tem interesse em agir bastante para poder recorrer a uma acção judicial que lhe reconheça o direito e condene a outra nas consequências do seu incumprimento.
Acresce que, como bem se anota na decisão recorrida, o Código de Processo Civil prevê expressamente que um demandante munido já de título executivo possa ainda assim instaurar uma acção declarativa para obter uma sentença que reconheça o seu direito. Nessa situação o Código de Processo Civil não veda o acesso à acção declarativa, apenas responsabiliza o autor pelas respectivas custas (cf. artigo 449.º, n.ºs 1 e 2, alínea c) do Código de Processo Civil, hoje artigo 535.º).
Por outras palavras, para o próprio Código de Processo Civil existe interesse em agir ainda quando o autor já possua um título executivo. O que releva para o efeito não é o interesse em obter propriamente uma decisão favorável, mas o interesse em obter os efeitos jurídicos consentâneos com o direito que a decisão reconhece. Por isso, o que afasta esse interesse não é a existência ou a possibilidade de obtenção deste outro título, há-se ser algo que em concreto dispense a acção em si mesma. E isso só pode ser evidentemente algo que coloque o autor na mesma posição a que aspira com a acção judicial, na mesma posição que resultará da existência de uma decisão judicial que reconheça o direito.
Ora no caso, conforme acima se acentuou, existem sensíveis diferenças entre as vias judicial e extrajudicial de resolução do contrato de arrendamento, com notório prejuízo para o senhorio no recurso a esta das vias. Tanto basta para recusar a ideia de que lhe falte interesse em agir no recurso à acção judicial.
Em suma: as conclusões de recurso não apresentam argumentos bastantes para infirmar a decisão recorrida e respectiva fundamentação, pelo que o recurso deve improceder.

V.
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso improcedente, e, em consequência, negando procedência à apelação, confirmam a sentença recorrida.
Custas pela recorrente (tabela I-B).
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Porto, 17 de Outubro de 2013.
Aristides Rodrigues de Almeida (Relator; Rto. 88)
José Amaral
Pinto de Almeida
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Sumário
1. A resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento da renda, em caso de mora superior a três meses, pode ser feita extrajudicialmente, através da comunicação ao arrendatário da resolução pela forma prevista no artigo 9º, nº 7, do NRAU, mas ao senhorio é ainda lícito recorrer à via judicial, instaurando a acção de despejo prevista no artigo 14º, nº 1, do NRAU.
2. Embora o senhorio tenha ambas as possibilidades ao seu dispor, optando pela via judicial deve ser-lhe reconhecido interesse em agir.

Aristides Rodrigues de Almeida