Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
7734/20.1T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS PORTELA
Descritores: DIREITO DE RETENÇÃO
PRIVAÇÃO DO USO DE VEÍCULO
DEPOSITÁRIO
Nº do Documento: RP202402087734/20.1T8VNG.P1
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Para que exista direito de retenção, nos termos deste artigo 754º, é necessário, em primeiro lugar, que o respectivo titular detenha (ilicitamente: cfr. art.º 756º, alínea a)) uma coisa que deva entregar a outrem; em seguindo lugar, que, simultaneamente, seja credor daquele a quem deve a restituição; por último, que entre os dois créditos haja uma relação de conexão, nas condições definidas naquele artigo.
II - O depositário está obrigado a restituir a coisa quando lhe for exigida e no estado em que a recebeu, obrigação a ser perspectivada segundo um critério de razoabilidade/proporcionalidade e de justiça contratual, à luz do princípio da boa-fé.
III - Pedido implícito é aquele que, com base na natureza das coisas, está presente na acção, apesar de não ter sido formulado de modo expresso, ou seja, o pedido apresentado na petição pressupõe outro pedido que, por qualquer razão, o autor não exprimiu de forma nítida ou óbvia.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 7734/20.1T8VNG.P1
Tribunal recorrido: Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia

Relator: Carlos Portela
Adjuntos: Ernesto Nascimento
Ana Márcia Vieira




Acordam na 3ª Secção do Tribunal da Relação do Porto



I. Relatório:
AA e BB, casado em regime de comunhão de adquiridos, ambos residentes na Rua ...., ... Barreiro vieram intentar a presente acção declarativa de condenação contra A..., S.A., com sede na Rua ..., ... Vila Nova de Gaia onde pedem que na procedência da acção seja a Ré condenada a: a) reconhecer o direito de propriedade dos AA., sem prejuízo da verificação da presunção legal da propriedade resultante do registo de propriedade na Conservatória de Registo Automóvel; b) a restituir aos AA., o veículo automóvel de marca Peugeot, modelo ..., ano 2009, de cor cinzenta, com a matrícula ..-IL-.., nas exactas condições em que se encontrava aquando entrega à Ré; c) a pagar aos AA. a quantia de €50,00 (cinquenta euros), a titulo de sanção pecuniária, por cada dia de retenção abusiva, contados desde a sua citação até entrega efectiva da viatura automóvel; d) a pagar aos AA. a quantia de €20.601,92 (vinte mil seiscentos e um euro e noventa e dois cêntimos), a título de compensação pelos danos patrimoniais e morais, acrescido de juros legais desde a notificação até efectivo e integral pagamento; e e) a pagar aos AA. os danos patrimoniais que os AA. tenham no futuro, como consequência dos actos ilícitos praticados pela Ré.
Para tanto e em síntese alegaram o seguinte:
São donos e legítimos proprietários do veículo automóvel de marca Peugeot, modelo ..., ano 2009, de cor cinzenta, com a matrícula ..-IL-.., cujo domínio lhes adveio em 10 de Janeiro de 2019, através de celebração de contrato de compra e venda celebrado com a sociedade B... Unipessoal, Lda., com sede na Avenida ..., ... ....
No dia 27 de Janeiro de 2019, o referido veículo automóvel sofreu uma avaria grave, ficando imobilizado em Alcobaça.
De imediato, foi contactado o colaborador da sociedade vendedora do veículo automóvel, CC, que comunicou aos AA que a empresa tinha subscrito um seguro de garantia com cobertura para estas situações da Seguradora C..., SA.
O mesmo colaborador comunicou e autorizou que os AA. chamassem o reboque e encaminhassem a sua viatura automóvel para a oficina de mecânica que lhes aprouvesse, solicitando apenas que depois o informassem do local para onde iria a viatura.
Os AA. indicaram as oficinas do Concessionário A... Barreiro pertencente à ora R., sitas na Rua ..., ..., Quinta ..., ... Barreiro, por ser o local mais próximo da sua área de residência.
De tal facto deram, de imediato, conhecimento à Sociedade vendedora.
Na sequência da entrada da viatura automóvel no concessionário pertença da Ré, a sua colaboradora DD solicitou ao gestor operacional da C... Seguros, EE, que fosse confirmada existência do supra referido seguro para que pudessem orçamentar o custo da reparação da viatura automóvel propriedade dos AA..
Confirmada que foi a cobertura do seguro de garantia, em 11 de Fevereiro de 2019, foram remetidos 2 orçamentos para a seguradora, solicitando autorização de reparação da viatura automóvel.
No entanto, tal autorização foi recusada pela seguradora, em virtude do valor elevado apresentado para a execução da reparação se mostrar incompatível com o valor contratado, 624,99€ por reparação, na subscrição do referido seguro.
Os AA. voltaram a contactar a vendedora que, de imediato, assumiu a reparação o veículo, em oficina própria e a suas expensas, para eliminação do defeito da viatura automóvel que lhe fora adquirida, motivo pelo qual os AA. se dirigiram ao concessionário propriedade da Ré para efectuar o levantamento da sua viatura automóvel.
Lá chegados foi-lhes negada a entrega da viatura automóvel, sua propriedade, uma vez que a Ré alegava que para o fazerem teriam de efectuar o pagamento da quantia de 1.225,00€, acrescido de Iva à taxa legal em vigor.
Tendo questionado os colaboradores da Ré acerca da origem de tal obrigação e valor, foram os AA. informados que tal dizia respeito à execução de trabalhos de desmontagem do veículo automóvel, sua pertença, por forma a ser elaborado o orçamento para entregar à seguradora.
Os AA. não concordaram em liquidar tal quantia, uma vez que, em momento, algum solicitaram e/ou autorizaram a execução de qualquer tipo de trabalhos no seu veículo automóvel.
De imediato solicitaram a devolução da viatura automóvel no estado em que a mesma se encontrava quando a receberam, o que, até à data não aconteceu.
Os AA. contactaram a vendedora e a seguradora para dar conta do sucedido e recuperar a sua viatura automóvel, tendo ficado a saber que também estes não tinham solicitado e/ou dado qualquer autorização para a desmontagem do veículo automóvel sua pertença.
De facto, os AA. tomaram até conhecimento que a execução da desmontagem da viatura automóvel teve lugar antes, mesmo, da execução da necessária peritagem pela seguradora para prosseguimento do processo.
Na sequência de todo o exposto, os AA., por diversas vezes, reivindicaram a entrega da viatura, sem que tivessem tido qualquer sucesso.
Os AA. nunca autorizaram solicitado e/ou deram qualquer autorização para a desmontagem do veículo automóvel sua pertença, pelo que a retenção indevida do mesmo é ilícita e causadora de graves danos para os AA.
È certo que a R., mesmo após ter conhecimento expresso da situação em apreço, não declarou ou sequer demonstrou qualquer intenção de, voluntariamente, entregar o veículo automóvel pertença dos AA., bem sabendo que o fazia em claro desrespeito do direito de propriedade dos AA..
Desta forma foram os Autores privados do pleno uso do seu direito de propriedade sobre o veículo.
De facto, devido a toda esta situação, e necessitando do veículo para se deslocarem, diariamente, com os seus filhos, os Autores inicialmente tiveram de alugar uma viatura automóvel, o que lhes causou um prejuízo patrimonial no valor de 41,92€ (quarenta e um euro e noventa e dois cêntimos).
Posteriormente, tiveram de adquirir outra viatura e encontram-se a pagar dois empréstimos bancários, em virtude de toda esta situação, valores que apenas poderá calcular em sede de liquidação de sentença.
Devido a toda esta situação, os Autores estão privados da propriedade do seu veículo automóvel há cerca de 1000 dias, o que à razão diária de 15,00€ (valor referência do aluguer efectuado, o que lhes provocou um dano grave em valor não inferior a 15.000,00€, correspondente à privação de uso do seu veículo automóvel.
Ademais, tiveram de continuar a efectuar o pagamento do Imposto de Circulação Automóvel, cujo documento protestam juntar, sem que pudessem usufruir da propriedade da sua viatura automóvel.
Além do mais, a conduta ilícita da Ré provocou graves danos não patrimoniais aos Autores.
De facto, devido a toda esta situação, os AA. ficaram com níveis de strees extramente elevados, tiveram de faltar ao trabalho, por diversas vezes, para poderem tentar reaver o seu veículo automóvel, foram privados de gozar férias no estrangeiro, porque foram obrigados a contrair um empréstimo para aquisição de uma segunda viatura automóvel.
Acresce que, se viram obrigados a colocar os seus filhos na escola pública, por já não terem capacidade económica para pagar a escola privada que os menores frequentavam.
Contabilizam tais danos não patrimoniais, causados pela conduta da Ré, na quantia de 5.000,00€ (cinco mil euros).
Mais alegam ter interpelado a Ré por diversas ocasiões e sem sucesso para a entrega da viatura automóvel sua pertença.
Computam os danos patrimoniais à entrada da acção em €15.601,92 (quinze mil seiscentos e um euro e noventa e dois cêntimos) e os danos não patrimoniais em quantia nunca inferior a 5.000,00€ (cinco mil euros).
Citada para contestar a Ré deduziu reconvenção e impugnou os factos alegados pelos Autores.
Aceitou que o veículo Peugeot modelo ... de matrícula ..- IL-.. foi encaminhado para uma das oficinas da Ré, correspondente ao Concessionário A... no Barreiro.
O veículo deu entrada no dia 29 de Janeiro de 2019 por meio de reboque constando desde logo da respectiva Guia de Transporte a informação de Avaria “cx Velocidades”.
A queixa do Cliente que motivou a abertura da Ordem de Reparação está identificada como “A 3 E 4 VELOCIDADE NÃO ESTÁ A ENTRAR”.
Efectuada a ligação do veículo à máquina de diagnóstico, não foi identificada qualquer avaria eléctrica/electrónica.
Logo se concluiu que se estava perante uma avaria mecânica da caixa de velocidades e só após desmontagem de diversos componentes foi possível efectuar a estimativa de custos de reparação.
Para aceder à caixa de velocidades é necessário desacoplar do motor e para ter acesso ao motor é necessário desmontar o charriot e afastar a suspensão para permitir o acesso.
Só após esta intervenção do técnico a quem foi confiada a obra, se concluiu que existia uma avaria nos carretos da caixa de velocidades.
Foi elaborada a estimativa de custos de reparação e comunicada à entidade responsável pelo seguro de garantia – C... conforme informação prestada pelos AA enquanto Clientes da Ré.
A Seguradora declinou a responsabilidade pelos custos inerentes à reparação.
Os AA comunicaram que a reparação seria efectuada numa outra oficina sob responsabilidade da entidade vendedora.
Para diagnóstico e avaliação de custos de reparação, foi necessário proceder à desmontagem sendo utilizado um total de 12.20 unidades de trabalho de mão-de-obra.
Estes trabalhos foram quantificados em €1.225,00 acrescidos de IVA à taxa legal.
Perante a recusa de pagamento deste valor por parte dos AA, a Ré não autorizou que o veículo fosse retirado das suas instalações, convocando exercício do Direito de Retenção previsto no artigo 754º do Código Civil.
Os trabalhos executados pela Ré constituem trabalhos preparatórios da reparação que segundo os AA alegam iria ser realizada a expensas da entidade vendedora.
A entrega do veículo com os trabalhos já executados pela Ré, resultaria num benefício para terceiros em detrimento da satisfação do seu crédito.
O veículo dos autos foi intervencionado na oficina da Ré por intermédio de técnicos com formação específica da marca Peugeot.
Do programa de gestão oficinal resulta que todo o trabalho realizado é traduzido em tempos de trabalho contabilizados.
Relativamente a este veículo resulta que foram executados trabalhos num total de 12.20 unidades de trabalho que internamente traduzem um custo de €597,80; as estimativas de custo destes trabalhos foram comunicadas aos AA no valor de €1.225,00 acrescidos de IVA, valor este traduz o prejuízo da Ré Reconvinte e cujo pagamento se reclama no total de €1.506,75.
Desde 29 de Janeiro de 2019 que o veículo se encontra parqueado, totalizando ao dia da entrada da presente contestação 708 dias de parqueamento.
O veículo ficou parqueado numa zona útil da actividade da Ré, onde todo o espaço é importante, valorizado e revela-se reduzido para a actividade exercida pela Ré.
Por meio de carta enviada a 13 de Maio de 2019 para a morada da Autora mulher, a Ré comunicou que passaria a ser cobrado um valor/dia de €31,50.
A carta veio devolvida com indicação de “Objecto não reclamado”.
Contabilizando os dias de permanência no interior da oficina após envio da carta resulta um total de 627 dias de ocupação abusiva. A Ré quantifica o prejuízo pela permanência em oficina em €1.500,00, mas acrescerá por cada dia que se vencer, o valor/dia de €18,69 considerando o preço m2 de €2,10.
O total dos danos causados à Ré ascende à quantia de €3.006,75.
Os autores replicaram exercendo o contraditório quanto à matéria de excepção e impugnado a matéria da reconvenção.
Os autos prosseguiram os seus termos, dispensando-se a realização de audiência prévia.
Foi proferido despacho que saneou o processo, dispensando-se a fixação do objecto do litígio e definição dos temas da prova.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento no culminar da qual foi proferida sentença onde se julgaram a acção e a reconvenção parcialmente procedentes e, em consequência:
1) - Se reconheceu o direito de propriedade dos Autores o veículo automóvel de marca Peugeot, modelo ..., ano 2009, de cor cinzenta, com a matrícula ..-IL-..;
2) - Se condenou a Ré a restituir aos autores o veículo automóvel de marca Peugeot, modelo ..., ano 2009, de cor cinzenta, com a matrícula ..-IL-.., nas exactas condições em que se encontrava aquando entrega à Ré;
3) - Se condenou a Ré a pagar aos Autores, a título de sanção pecuniária compulsória, a quantia de €50,00 (cinquenta euros), por dia, contado do momento em que os Autores cumpram para com a ré o pagamento do montante líquido em que infra vão ser condenados;
4) - Mais, se condenou a Ré a pagar aos Autores a quantia que em execução de sentença venha a ser liquidada até ao limite do pedido referente aos pedidos formulados na alínea d) e na alínea e) da petição inicial;
5) - Se condenaram os Autores a pagar à Ré a quantia de €597,80 – quinhentos e noventa e sete euros e oitenta cêntimos –, acrescido do IVA à taxa legal, quantia que vence juros desde o vencimento e até efectivo e integral pagamento;
6) - Mais se condenaram os Autores a pagar à Ré a quantia que relativamente ao facto provado em P) venha a ser liquidado em execução de sentença até ao limite do pedido.
*
Os Autores e a Ré vieram interpor recurso desta decisão, apresentando ambos e desde logo as suas alegações.
Foi proferido despacho no qual se consideraram os recursos tempestivos e legais e se admitiram os mesmos como sendo de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo.
Recebido o processo nesta Relação emitiu-se despacho que teve os recursos como próprios, tempestivamente interpostos e admitidos com efeito e modo de subida adequados.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*

II. Enquadramento de facto e de direito:
Aos recursos dos autos são aplicáveis as regras processuais da Lei nº 41/2013 de 26 de Junho.
É consabido que o objecto do recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso obrigatório, está definido pelo conteúdo das conclusões vertidas pelos apelantes nas suas alegações (cf. artigos 608º, nº2, 635º, nº4 e 639º, nº1 do CPC).
E é o seguinte o teor dessas conclusões:
No recurso dos Autores:
A) Os ora Apelantes intentaram uma acção de processo comum de reivindicação, pedindo a condenação da Ré no reconhecimento do direito de propriedade dos AA., e, consequentemente, na restituição aos AA., do veículo automóvel de marca Peugeot, modelo ..., ano 2009, de cor cinzenta, com a matrícula ..-IL-.., nas exactas condições em que se encontrava aquando entrega à Ré.
B) Mais peticionaram a condenação da Ré no pagamento da quantia de €50,00 (cinquenta euros), a titulo de sanção pecuniária, por cada dia de retenção abusiva, contados desde a sua citação até entrega efectiva da viatura automóvel, bem como no pagamento aquantia de € 20.601,92 (vinte mil seiscentos e um euro e noventa e dois cêntimos), a título de compensação pelos danos patrimoniais e morais, acrescido de juros legais desde a notificação até efectivo e integral pagamento e no pagamento dos danos patrimoniais que os AA. viessem a ter no futuro, como consequência dos actos ilícitos praticados pela Ré.
C) A Ré deduziu pedido reconvencional, mediante o qual peticionou a condenação dos AA. no pagamento à Ré da quantia de 3.006,75€ (três mil e seis euros e setenta e cinco cêntimos), a título de compensação de danos.
D) O douto Tribunal a quo julgou a acção procedente e, em consequência, reconheceu o direito de propriedade dos AA. sobre o veículo automóvel em questão e condenou a Ré.
E) Não obstante, simultaneamente, o douto Tribunal a quo condenou os AA. no pedido reconvencional formulado pela Ré.
F) Os Recorrentes não se conformando com a douta sentença condenatória, vem interpor o presente Recurso, tendo o mesmo como objecto a matéria de facto e de direito, vertida na mesma.
G) O Tribunal a quo deu como provado, no ponto U que “Desde o dia 29 de Janeiro de 2019 que o veículo se encontra parqueado nas instalações da Ré, em zona útil da sua actividade”.
H) Da prova produzida em sede de audiência de julgamento, nomeadamente da testemunha FF, cujo depoimento se encontra devidamente gravado, tendo tido inicio às 11:19:50 e termo às11:39:03 da audiência realizada a 7 de Novembro de 2022, (00:10:18 a 00:11:40 da gravação constante dos autos) e da testemunha GG, cujo depoimento se encontra devidamente gravado, tendo tido inicio às 11:39:57 e termo às 11:45:28, da audiência realizada a 7 de Novembro de 2022, (00:04:24 a 00:04:35 da gravação disponível nos autos). Resultou provado que a viatura foi deslocada do local onde se encontra actualmente durante o período em que a oficina teria sido pintada.
I) Pelo que mal andou o douto tribunal a quo em dar por provado o facto provado U, nos termos em que o fez, uma vez que deveria, outrossim, ter dado o facto como não provado!
J) Pelo que se impõe a reapreciação dos referidos depoimentos no sentido se se alterar tal facto provado em conformidade com a prova testemunhal produzida.
K) Atendendo ainda ao depoimento de FF, ao minuto 00:18:40 a 00:18:51 da gravação disponível nos autos, resulta provado que o veículo automóvel encontra-se, na data da realização da audiência, “completamente desmontado”.
L) Facto que deveria constar dos factos provados, uma vez que se demonstra relevante para a boa decisão da causa.
M) De facto, tendo ambas as testemunhas referido em sede de declarações prestadas o quantum de tempo despendido no veículo automóvel em questão, bem como na interpelação dos Apelantes para procederem ao pagamento da quantia em dívida e levantamento da viatura, importante e relevante para a boa decisão da causa estabelecer se tal era exequível, uma vez que a viatura ainda hoje se encontra desmontada.
N) Quanto aos factos dados por não provados, mal andou o douto tribunal a quo em dar por não provado o facto a), uma vez que tal facto resultou provado pela análise conjugado dos documentos juntos aos autos, nomeadamente os documentos n.ºs 1 e 2, juntos com a petição inicial e o documento n.º 1, junto com o requerimento datado de 13/06/2022.
O) Pelo que se impõe, igualmente, a reapreciação da referida prova documental e deverá o mesmo passar a constatar da alínea V) dos factos provados da douta sentença ora em crise.
P) Em consequência é nula a sentença ora em crise, uma vez que estamos perante uma falta de especificação de fundamentos de facto que justifiquem a decisão proferida, conforme dispõe a alínea b) do art.º 615.º do C.P.C..
Q) Caso assim não se entenda, e sem prescindir, sempre haverá um notório erro na apreciação da prova produzida em sede de audiência de julgamento, pelo que se impõe a sua reapreciação na sua globalidade.
R) O Douto Tribunal a quo, ao dar por assente o facto referido em R), ou seja, ao reconhecer que os ora Apelantes têm um prejuízo diário por não poderem usar o seu veículo automóvel, deveria ter extraído as suas conclusões desse facto e ter fixado indemnização decorrente da privação do uso do mesmo.
S) Pelo que mal andou o douto Tribunal a quo, o que fere de nulidade a sentença ora em crise, e que expressamente se invoca, nos termos do disposto na alínea d) do art.º 615.º do CPC.
T) Na sentença ora em crise, atendendo ao facto dados por provado em R), o douto tribunal a quo não poderia ter deixado de reconhecer aos ora Apelantes o direito a obter uma indemnização relacionada com a privação do uso do seu veículo automóvel, que usavam habitualmente nas suas deslocações diárias.
U) Não sendo possível determinar o valor exacto dos danos face aos factos provados, o douto tribunal a quo deveria ter recorrido à equidade para fixar a indemnização, nos termos previstos no n.º 3 do art.º 566º do Código Civil.
V) Atenta a realidade que se demonstrou provada nos autos fixação do valor de € 15,00 diários pela privação do uso do veículo não se demonstra desproporcionada ou excessiva, pelo que deveria a Ré ter sido condenada no pagamento desta indemnização, desde a data da ilegal retenção até à data da entrega do veículo automóvel, acrescida dos devidos juros de mora.
W) Em consequência é nula a sentença ora em crise, uma vez que estamos perante uma falta de pronúncia acerca da qual se deveria ter pronunciado face à sentença proferida, conforme dispõe a alínea d) do art.º 615.º do C.P.C..
X) Os Apelantes não podem concordar com as conclusões formuladas pelo douto tribunal a quo acerca da verificação do alegado direito de retenção da Ré e, consequentemente, com a douta decisão proferida, pois as mesmas condenam a sentença ora em crise à contradição.
Y) O direito de retenção invocado pela Ré, previsto no art.º 754.º do Código Civil, não se demonstrou aplicável ao caso concreto, pelo que mal andou ao douto tribunal a quo ao condenar os ora Apelantes.
Z) Tal como resulta dos factos provados, pontos E) (a contrario) e J), os Apelantes não celebraram qualquer contrato de prestação de serviços, mediante o qual solicitassem e aceitassem a execução de qualquer tipo de trabalho de desmontagem, alegadamente, prestado pela Ré.
AA) Nunca se constituíram devedores da Ré.
BB) Consequentemente, não tendo os Apelantes celebrado qualquer tipo de contrato com a Ré, e considerando a permanência do veículo automóvel nas suas instalações se deveu, única e exclusivamente, à retenção indevida do mesmo, não poderão os Apelantes ser condenados ao pagamento de qualquer quantia relativamente ao parqueamento da mesma, aliás, responsabilidade decorrente do acto ilícito da Ré.
CC) Pelo que a Douta Decisão do Tribunal a quo recorrida enferma ainda da nulidade prevista na alínea c) do art.º 615.º do C.P.C.
DD) O Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 4.º e 5.º, n.º 1, e 609.º C.P.C., motivo pelo qual a douta decisão por si proferida está irremediavelmente ferida de nulidade, o que desde já se arguiu nos termos e para os efeitos do disposto no art.201.º e alínea c) e d) do n.º 1 do art.615.º do C.P.C.
EE) Finalmente, quanto à questão relativa à litigância de má-fé, aflorada, a final, na douta sentença ora em crise, embora se repudie a sua verificação no caso concreto, sempre se invoca o princípio inserto no n.º 1 do 613.º do CPC, uma vez que proferida a sentença, o poder jurisdicional do juiz se esgota quanto à matéria da causa.
FF) Pugna-se assim, pela prolação de acórdão que, emanado deste Venerando Tribunal da Relação, revogue a decisão recorrida, determine a alteração das respostas à matéria de facto da douta sentença recorrida nos termos sobreditos (art.º 662º do CPC.) e, em consequência, julgue o pedido reconvencional deduzido pela Ré totalmente improcedente e, consequentemente, decida ser a Ré condenada nos exactos termos do peticionado pelos ora Apelantes no seu petitório inicial
*
No recurso da Ré:
I – A Recorrente não se conforma com a Douta Sentença, na parte em que a condenou a restituir o veículo nas exactas condições em que se encontrava aquando entrega à Ré (1ª questão) e bem assim a pagar aos autores a quantia que em “execução de sentença” venha a ser liquidada até ao limite do pedido referente a título de compensação pelos danos patrimoniais e morais (2ª questão), bem como a pagar aos autores a quantia que em “execução de sentença” venha a ser liquidada até ao limite do pedido referente a danos patrimoniais que os AA. tenham no futuro, como consequência dos actos ilícitos praticados pela Ré (3ª questão).
II – A Recorrente igualmente não se conforma com a Douta Sentença, na parte em que condenou os AA a pagar à Ré a quantia relativamente ao facto provado em P) Por meio de carta enviada …… a Ré comunicou que passaria a ser cobrado um valor / dia de €31,50…que venha a ser liquidada em “execução de sentença” apenas até ao limite do pedido.
III - Quanto à primeira questão se o veículo vai ser intervencionado por oficina indicada pela entidade que vendeu o veículo aos AA, não faz sentido que a Ré proceda à montagem das peças para depois serem desmontadas pela oficina que vai reparar a caixa de velocidades.
IV - Deve, à luz do princípio da boa-fé ser o veículo entregue com os trabalhos preparatórios (desmontagem) necessários para a reparação do veículo.
V - Remontar o motor e demais componentes, como obrigação da Ré, configurar-se-ia como um procedimento essencialmente inútil, pois não supriria o defeito pré-existente, não satisfaz o interesse dos AA (depositantes) e oneraria excessivamente, sem qualquer retorno, a posição da Ré (depositária).
VI - Deve, pois, a Ré ser condenada a entregar aos AA o veículo no estado em que se encontra na sequência da desmontagem parcial já realizada.
VII - Quanto à segunda questão, a Douta Sentença considerou preenchido o pressuposto para que a Ré invoque o direito de retenção preenchidos que estão os requisitos enunciados no artigo 754º, do Código Civil.
VIII - Considerou o Tribunal de cuja decisão se recorre que, nos presentes autos ocorreu um contrato de depósito e nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 755º, do Código Civil o depositário goza de direito de retenção sobre as coisas que lhes tiverem sido entregues em consequência dos respectivos contratos, pelos créditos deles resultantes.
IX - Constituem pressupostos que condicionam a responsabilidade por factos ilícitos: o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Se é lícito o exercício do Direito de Retenção, actuou a Ré a coberto de uma causa justificativa que afasta a ilicitude e neste contexto, não deve proceder os pedidos dos AA no sentido de reparação dos danos alegadamente causado pela Ré.
X - Quanto à terceira questão, a Ré deduziu pedido reconvencional tendo a sentença condenado os “autores a pagar à ré a quantia que relativamente ao facto provado em P) venha a ser liquidado em execução de sentença até ao limite do pedido. (sublinhado nosso)
XI - Pese embora o pedido tenha sido formulado apenas se contabilizando € 1.500,00, a Ré vem trazer à colação a teoria do “Pedido Implícito” considerando que na fase final do seu articulado e imediatamente antes do pedido, quantifica o prejuízo pela permanência em oficina em €1.500,00, acrescentando que a este valor “acrescerá por cada dia que se vencer o valor/dia de €18,69 considerando o preço m2 de €2,10”
XII - Constitui facto provado que “Desde o dia 29 de Janeiro de 2019 que o veículo se encontra parqueado nas instalações da ré, em zona útil da sua actividade”.
XIII - Sobre a matéria alegada tiveram os AA oportunidade de exercer o contraditório e dúvidas não restam de que o veículo permanece parqueado daí resultando prejuízo para a Ré.
XIV - Condenar os AA para além do limite do valor do pedido à data quantificado não constituirá uma decisão-surpresa porque foi alegada uma pretensão petitória que não a expressamente formulada a final e sem que para tal seja necessário recorrer a regras interpretativas da declaração judicial.
XV - O pedido é claro – quantifica em €1.500,00 ao qual acrescerá por cada dia que se vencer um determinado valor/dia.
XVI - É neste entendimento que a Ré pugna pela alteração da sentença no sentido em que estabelece como limite para cobrança do espaço ocupado pelo veículo na sua oficina, o limite do pedido.
XVII - Condenar a Ré - Recorrente nos moldes previstos revela-se uma injustiça com a qual não se conforma, devendo este Venerando Tribunal revogar a decisão recorrida.
*
Perante o antes exposto, resulta claro serem as seguintes as questões suscitadas nestes dois recursos:
No recurso dos Autores:
1ª) A impugnação da decisão da matéria de facto;
2ª) A nulidade da decisão proferida (omissão de pronúncia, obscuridade e contradição entre os fundamentos e a decisão);
3ª) A condenação da Ré na indemnização pelo dano da privação do uso do veículo por parte dos Autores;
4ª) A absolvição dos Autores do pedido reconvencional formulado pela Ré.
No recurso da Ré:
1ª) A revogação da decisão proferida na parte em que condenou a Ré na restituição do veículo aos Autores no estado em que o mesmo se encontrava quando lhe foi entregue;
2ª) A revogação da decisão proferida na parte em que condenou a Ré no pagamento dos danos causados aos Autores pela retenção do veículo;
3ª) A revogação da decisão proferida de modo a que os Autores sejam condenados na quantia que em liquidação de sentença venha a ser apurada tendo em conta o período de permanência do veículo nas instalações da Ré, até ao momento da efectiva entrega do mesmo aos Autores, sem estar limitado pelo pedido formulado a tal título pela Ré.
*

É o seguinte o teor da decisão de facto proferida e que agora é objecto de impugnação:
“FACTOS PROVADOS
A) Os Autores são donos e legítimos proprietários do veículo automóvel de marca Peugeot, modelo ..., ano 2009, de cor cinzenta, com matrícula ..- IL-.., que o adquiriram em 10 de Janeiro de 2019, através de celebração de contrato de compra e venda celebrado com a sociedade B... Unipessoal, Lda., contribuinte fiscal n.º ...54, com sede na Avenida ..., ... ....
B) No dia 27 de Janeiro de 2019, o referido veículo automóvel sofreu uma avaria grave, ficando imobilizado em Alcobaça.
C) De imediato, foi contactado o colaborador da sociedade vendedora do veículo automóvel foram os autores informados que a empresa tinha subscrito um seguro de garantia com cobertura para estas situações da Seguradora C..., SA., tendo os autores sido autorizados a chamar o reboque e informados que encaminhassem a sua viatura automóvel para a oficina de mecânica que lhes aprouvesse, solicitando apenas que depois o informassem do local para onde iria a viatura.
D) Os AA. indicaram as oficinas do Concessionário A... Barreiro pertencente à ora R., sitas na Rua ..., ..., Quinta ..., ... Barreiro, tendo dado conhecimento à Sociedade vendedora
E) Na sequência da entrada da viatura automóvel no concessionário pertença da Ré, a sua colaboradora DD solicitou ao gestor operacional da C... Seguros, EE, que fosse confirmada existência do supra referido seguro para que pudessem orçamentar o custo da reparação da viatura automóvel propriedade dos AA., tendo sido confirmada que foi a cobertura do seguro de garantia, em 11 de Fevereiro de 2019, foram remetidos 2 orçamentos para a seguradora, solicitando autorização de reparação da viatura automóvel.
F) Autorização essa que foi recusada pela seguradora, em virtude do valor elevado apresentado para a execução da reparação se mostrar incompatível com o valor contratado, 624,99€ por reparação, na subscrição do referido seguro.
G) Os AA. voltaram a contactar a vendedora que, de imediato, assumiu a reparação o veículo, em oficina própria e a suas expensas, para eliminação do defeito da viatura automóvel que lhe fora adquirida.
H) Os AA. se dirigiram ao concessionário propriedade da Ré para efectuar o levantamento da sua viatura automóvel, mas foi-lhes negada a entrega da viatura automóvel, alegando a ré que para o fazerem teriam de efectuar o pagamento da quantia de 1.225,00€, acrescido de Iva à taxa legal em vigor, referente à execução de trabalhos de desmontagem do veículo automóvel, por forma a ser elaborado o orçamento para entregar à seguradora.
I) Os autores não liquidaram tal quantia, tendo renovado, por mais que uma vez, a solicitação de devolução da viatura automóvel no estado em que a mesma se encontrava quando a receberam, o que não ocorreu.
J) Nem os autores, nem a seguradora autorizaram a desmontagem da viatura.
K) Os autores continuam a efectuar o pagamento do Imposto de Circulação Automóvel.
L) O veículo deu entrada nas oficinas da ré no dia 29 de Janeiro de 2019, tendo sido aberta a Ordem de Reparação em que está identificada a queixa como “A 3 E 4 VELOCIDADE NÃO ESTÁ A ENTRAR”
M) Efectuada a ligação do veículo à máquina de diagnóstico, não foi identificada qualquer avaria eléctrica/electrónica, concluiu-se que se estava perante uma avaria mecânica da caixa de velocidades e só após desmontagem de diversos componentes foi possível efectuar a estimativa de custos de reparação.
N) Para aceder à caixa de velocidades é necessário desacoplar do motor e para ter acesso ao motor é necessário desmontar o charriot e afastar a suspensão para permitir o acesso e só após esta intervenção do técnico a quem foi confiada a obra, se concluiu que existia uma avaria nos carretos da caixa de velocidades.
O) Foi elaborada a estimativa de custos de reparação e comunicada à entidade responsável que não aceitou a reparação.
P) Por meio de carta enviada a 13 de Maio de 2019 para a morada da Autora mulher, a Ré comunicou que passaria a ser cobrado um valor/dia de €31,50, carta que veio devolvida com indicação de “Objecto não reclamado”.
Q) Mercê do Facto Provado em I) (a final) os autores tiveram que alugar um veículo automóvel para fazer face às necessidades diárias de deslocação, nomeadamente, com os seus filhos, o que lhes causou um prejuízo patrimonial no valor de 41,92€ (quarenta e um euro e noventa e dois cêntimos).
R) Os autores têm um prejuízo diário por não poderem usar o seu veículo automóvel.
S) Os autores sentiram aumento dos níveis de stress, mercê da situação em causa nos autos, que se reflectiu na vida familiar.
T) Para diagnóstico e avaliação de custos de reparação, foi necessário proceder à desmontagem, trabalhos preparatórios da reparação, foi utilizado um total de 12.20 unidades de trabalho de mão-de-obra, que internamente traduzem um custo de €597,80, acrescido do IVA no montante de €137,49.
U) Desde o dia 29 de Janeiro de 2019 que o veículo se encontra parqueado nas instalações da ré, em zona útil da sua actividade.
FACTOS NÃO PROVADOS
a) Posteriormente, os autores tiveram de adquirir outra viatura e encontram-se a pagar dois empréstimos bancários.
b) Por referência ao Facto Provado em R): de aproximadamente 15,00€.
c) Os autores tiveram de faltar ao trabalho, por diversas vezes, para poderem tentar reaver o seu veículo automóvel, foram privados de gozar férias no estrangeiro, por não terem liquidez resultante da aquisição de um novo veículo automóvel, razão porque tiveram que colocar os filhos numa escola pública.
Não se provaram outros factos com interesse para a apreciação da causa.
*
Como antes já vimos, os Autores recorrem da decisão de facto antes proferida requerendo a alteração das respostas dadas aos pontos T) e U) dos factos provados e à alínea a) dos factos não provados.
Para tanto cumprem devidamente os ónus impostos pelo art.º 640º do CPC.
Vejamos, pois, se tal pretensão merece ou não ser provida.
Quanto aos pontos T) e U) questionam o facto de tal matéria ter sido dada como provada tendo apenas por base o que resultou dos depoimentos prestados em julgamento pelas testemunhas FF e GG, ambos funcionários da Ré á data dos factos e dos quais, em seu entender, não resultam elementos suficientes para fundamentar a convicção probatória adquirida.
Como nos era imposto, procedeu-se à audição das gravações onde ficaram registados tais depoimentos, o primeiro com inicio às 11:19:50 e termo às 11:39:03 e o segundo com início às 11:39:57 e termo às 11:45:28.
E desta audição retiramos conclusões que nos permitem subscrever, sem quaisquer dúvidas, as considerações tecidas a propósito dos mesmos pelo Tribunal “a quo” e que são, recorde-se as seguintes:
“Prestaram declarações as testemunhas FF e GG, depoimentos que também se valoraram, porque decorreram de modo tranquilo e dando estes resposta a matéria que em razão das suas funções demonstraram conhecer. Destes depoimentos resultou explicada a dinâmica da oficina, nomeadamente que, via de regra, há cerca de 20/30 viaturas em reparação, estando a viatura dos autores numa box de trabalho (tendo de lá saído apenas temporariamente para pintar a oficina e depois voltou para o local); mais resultou que foi pedido um orçamento de reparação, mas para o poder fazer era preciso desmontar o carro – tiveram que tirar o motor e a transmissão –, tendo os contactos (com os autores e com a empresa detentor da garantia) sido efectuados pela recepcionista. Mais resultou que para os autores procederem ao levantamento da viatura tinham que pagar o trabalho tido, correspondente a 15/16h de trabalho – que podem ser 12H se o técnico for rápido –.”
Assim e quanto aos depoimentos destas duas testemunhas pode afirmar-se que ambos foram claros, isentos e convincentes quando, entre o mais, confirmaram que a viatura dos Autores se encontra totalmente desmontada e parqueada numa zona de trabalho das instalações da Ré desde o dia 29 de Janeiro de 2019.
Mais, contrariamente ao que afirmam os Autores, destes depoimentos não resultou qualquer referência relevante quanto à pretensa deslocação da mesma durante o período em que a oficina da Ré teria estado a ser pintada.
Por ser assim e porque tal factualidade também não resultou de qualquer outro meio de prova produzida nos autos, impõe-se concluir que nada justifica a alteração proposta pelos Autores ao referido ponto U) dos factos provados.
Já quanto ao ponto T) para além destes dois depoimentos os quais foram esclarecedores no que toca ao “preço” da mão-de-obra da Ré, releva a prova documental apresentada por esta (cf. documentos nºs 3 e 4 juntos com a contestação).
Por isso também quanto a esta matéria não há razões para alterar o que ficou decidido pela 1ª instância.
Por fim e no que toca aos factos inscritos na alínea a) o que cabe dizer é o seguinte:
Os Autores justificam a sua pretensão na prova documental que apresentaram, designadamente os documentos nºs 1 e 2 juntos com a petição inicial e o documento nº1, junto com o requerimento com a Ref.ª
Ora quanto aos primeiros dois documentos o que se verifica é que os mesmos dizem respeito ao veículo dos autos, melhor identificado no ponto A) dos factos provados e não quanto a um outro veículo que tenham adquirido posteriormente nos termos alegados.
Já quanto ao segundo documento o que se constata é que os Autores, em 18.02.2019, contraíram um crédito ao consumo junto do Banco 1..., o qual teve como bem objecto do mesmo o veículo de marca Peugeot ....
A ser assim, o que deve ser dado como provado é apenas e só o que resulta deste documento, nada havendo que nos confirme que ainda se encontram a pagar dois empréstimos bancários.
Nestes termos e atento o disposto no art.º 662º, nº1 do CPC, concede-se parcial provimento ao recurso da decisão de facto interposto pelos Autores e adita-se o seguinte ponto aos Factos Provados.
“V) Em 18.02.2019, os Autores contraíram um crédito ao consumo junto do Banco 1..., o qual teve como objecto a aquisição de um veículo de marca Peugeot ....”
Quanto às nulidades apontadas pelos Autores à decisão proferida, pode desde já dizer-se que tal pretensão não tem qualquer fundamento.
E isto porque face ao que é alegado o que em nosso entender se constata é que não estamos perante nenhuma das nulidades previstas nas alíneas c) e d) mas quando, muito perante verdadeiros erros de julgamento que, a ocorrer, só podem ser decididos em momento posterior.
Face ao exposto, impõe-se concluir que não se verificam de todo as nulidades da decisão aqui invocadas pelos Autores.
Ficou já visto que neste seu recurso os Autores e tendo em conta o que ficou provado no ponto R), requerem a condenação da Ré na indemnização pelo dano da privação do uso do veículo por parte dos Autores.
Ora da leitura mais atenta da petição inicial o que se verifica é que tal pedido foi formulado pelos Autores, entre outros, na alínea d) onde se pediu a condenação da Ré a pagar aos Autores a quantia de € 20.601,92, a título de compensação pelos danos patrimoniais e morais, acrescido de juros legais desde a notificação e até efectivo e integral pagamento.
É evidente que no supra referido ponto de facto ficou provado que os Autores têm um prejuízo diário por não poderem usar o seu veículo automóvel, factualidade que o Tribunal “a quo” não deixou de considerar quando na sentença recorrida fez constar que tal pedido havia de proceder na medida do que em liquidação de sentença se apurar até ao limite do pedido.
E mais quando na parte decisória da sentença e de modo expresso condenou a Ré a pagar aos Autores a quantia que em execução de sentença venha a ser liquidada até ao limite do pedido referente ao pedido formulado na alínea d).
Sendo assim e constando-se que o dano pela privação do veículo se enquadra nos danos patrimoniais que o Tribunal “ a quo” considerou que devem ser ressarcidos pela Ré, não há nesta parte que conceder provimento ao recurso dos Autores.
Por fim, os Autores questionam o segmento da decisão recorrida na parte em que, na procedência parcial da reconvenção, foram condenados a pagar à Ré a quantia de € 597,80 (quinhentos e noventa e sete euros e oitenta cêntimos), acrescida do IVA à taxa legal, quantia que vence juros desde o vencimento e até efectivo e integral pagamento;
Mais também no segmento da decisão em que foram condenados a pagar à Ré a quantia que relativamente ao facto provado em P) venha a ser liquidado em execução de sentença até ao limite do pedido.
Isto por considerarem que no caso dos autos não são de aplicar as regras do direito de retenção que estão previstas no art.º 754º do Código Civil.
Vejamos pois.
Nas palavras de Pires de Lima e Antunes Varela, “consiste o direito de retenção na faculdade que tem o detentor de uma coisa de a não entregar a quem lha pode exigir, enquanto este não cumprir a obrigação a que está adstrito para com aquele. (cf. Código Civil Anotado, Volume I, pág.696)
Dizem também o seguinte: “Para que exista direito de retenção, nos termos deste artigo 754º, é necessário, em primeiro lugar, que o respectivo titular detenha (ilicitamente: cfr. art.º 756º, alin. a)) uma coisa que deva entregar a outrem; em seguindo lugar, que, simultaneamente, seja credor daquele a quem deve a restituição; por último, que entre os dois créditos haja uma relação de conexão (debitum cum re junctum), nas condições definidas naquele artigo – despesas feitas por causa da coisa ou danos por ela causados.”
No entendimento do Tribunal “a quo”, impunha-se aplicar ao caso dos autos o que decorre do disposto no art.º 755º, nº1, alínea e) do Código Civil segundo o qual goza do direito de retenção o depositário, sobre as coisas que lhe tiverem sido entregues em consequência do respectivo contrato, pelos créditos deles resultantes.
Em nossa opinião o resultado a que se chegou é o juridicamente correcto atenta a factualidade que esta dada como provada nos pontos L), M), N), P) e T) e o que decorre do disposto no art.º 1185º do CC, quanto ao contrato de depósito.
Sendo assim não colhe a argumentação dos Autores segundo a qual, a retenção do seu veículo é indevida não estando por isso obrigados ao pagamento de qualquer quantia pelo seu parqueamento nas instalações da Ré.
Nestes termos bem decidiu pois o Tribunal “a quo”, quando julgou parcialmente provado e procedente o pedido reconvencional da Ré e, em conformidade, condenou os Autores nos termos antes melhor referidos em 5) e 6).
Quanto ao recurso da Ré já ficou visto quais são as questões suscitadas.
Assim e quanto à revogação da decisão proferida na parte em que condenou a Ré na restituição do veículo aos Autores no estado em que o mesmo se encontrava quando lhe foi entregue, o que cabe referir é o seguinte:
Desde logo, cabe dizer que nenhum reparo nos merece a fundamentação que a tal propósito ficou a constar na decisão proferida, recorrendo ao explanado no Acórdão da Relação de Coimbra de 20.06.2017, no processo nº96/14.8TBSRE.C1, relatado pelo Desembargador Vítor Amaral, onde no respectivo sumário se escreveu o seguinte que, “ O depositário está obrigado a restituir a coisa quando lhe for exigida e no estado em que a recebeu, obrigação a ser perspectivada segundo um critério de razoabilidade/proporcionalidade e de justiça contratual, à luz do princípio da boa-fé.
E também que, “Este princípio revela determinadas exigências objectivas de comportamento – de correcção, honestidade e lealdade – impostas pela ordem jurídica, exigências essas de razoabilidade, probidade e equilíbrio de conduta, em campos normativos onde podem operar subprincípios, regras e ditames ou limites objectivos, postulando certos modos de actuação ao longo de toda a execução do contrato e liquidação da relação.”
No entanto, tais regras e princípios levam, em nosso entender, a um resultado diverso daquele a que chegou o Tribunal “a quo”.
Assim, dos elementos de facto que constam do processo resulta evidente que o veículo dos Autores, por força da avaria que sofreu, se encontra impossibilitado de circular.
Deste modo, a sua montagem pela Ré traduzir-se-ia num procedimento claramente inútil, sendo certo que posteriormente, terá que ser novamente desmontado na oficina onde, por decisão dos Autores, irá ser reparado.
Por isso, não encontramos razões para obrigar a Ré na montagem do veículo, impondo-se-lhe sim que a entregue aos Autores no estado em que a mesma se encontra.
Nestes termos e pelo exposto, procede pois nesta parte o recurso aqui interposto pela Ré.
Quanto à revogação da decisão proferida na parte em que condenou a Ré no pagamento dos danos causados aos Autores pela retenção do veículo, são as seguintes e recorde-se, as razões que constam da decisão proferida:
É consabido a reparação do dano tem como medida a da reconstituição da situação que existiria se não houvesse evento danoso, nos termos do previsto no artigo 562º do Código Civil; ou, medida em dinheiro, deve em geral corresponder à diferença entre a situação patrimonial do lesado, vista a sua esfera com os danos, e a que teria, vista a mesma esfera sem eles, em conformidade com o previsto no n.º 2 do artigo 566º, do Código Civil.
No caso dos autos, resultaram provados os Factos Q) e R), portanto, o pedido dos autores formulado em d) e e) há-de proceder na medida do que em liquidação de sentença se apurar até ao limite do pedido.”
Impõe-se manifestar, desde já, a nossa discordância com tal entendimento.
Assim e como já vimos, a permanência do veículo dos Autores nas instalações da Ré está a coberto do direito de retenção do art.º 754º do Código Civil.
Mais, tal direito justifica a atitude da Ré de não ter procedido à necessária montagem do veículo para, como queriam os Autores, posterior entrega no estado em que o tinha recebido.
Por isso, não se justifica a condenação da Ré nos pedidos formulados pelos Autores nas alíneas c), d) e e) do seu articulado inicial.

Cabe agora apurar o que deve ocorrer com a condenação dos Autores no pagamento da quantia que em liquidação de sentença venha a ser apurada tendo em conta o período de permanência do veículo nas instalações da Ré e até ao momento da efectiva entrega do mesmo aos seus proprietários, tendo por limite o valor do pedido formulado a este propósito pelos Autores.
Como ficou visto, na tese da Ré tal decisão deve ser revista tendo em conta a denominada teoria do “Pedido Implícito”.
A este propósito refere o seguinte o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.09.2022, processo nº605/17.0T8PVZ-P1.S1, relatado pelo Conselheiro Fernando Baptista, em www.dgsi.pt:
“I. Como decorrência do princípio do dispositivo, continua a vingar na nossa lei adjectiva o princípio do pedido, de acordo com o qual o tribunal não pode resolver qualquer conflito de interesses que a acção pressupõe sem que essa resolução lhe seja pedida (art.º 3º, n.º 1 do CPC).
II. Se é certo que os juízes não devem ser extremamente formalistas na interpretação e aplicação dos princípios em que assenta o processo civil, sob pena de se perder a efectividade da justiça cível, também não devem, sem assento no alegado e peticionado pelo Autor, simplesmente, pôr de lado aquela espécie de mandamento que recai sobre os juízes: «Não dês mais do que aquilo que te é pedido».
III. Quando perante o alegado na petição inicial há dúvidas quanto aos concretos e efectivos pedidos pretendidos pelo Autor ou ao real conteúdo da pretensão, e, recorrendo às regras interpretativas da declaração judicial, se extrai implícita uma outra pretensão petitória não expressamente ali formulada, pode o tribunal levá-la em conta, extraindo os efeitos jurídicos correspondentes, sem dessa forma violar o princípio do pedido.
IV. Porém, como o princípio do pedido se encontra a par do princípio do contraditório, tem este último que ser sempre respeitado, pois uma sentença desrespeitadora do princípio do pedido, traduzir-se-ia numa decisão-surpresa.
V. Pedido implícito é aquele que, com base na natureza das coisas, está presente na acção, apesar de não ter sido formulado expressis verbis, ou seja, o pedido apresentado na petição pressupõe outro pedido que, por qualquer razão, o autor não exprimiu de forma nítida ou óbvia.”
Voltando aos autos o que cabe considerar é o seguinte:
A Ré deduziu pedido reconvencional alegando o seguinte na sua contestação:
“35. O veículo ficou parqueado numa zona útil da actividade da Ré, onde todo o espaço é importante, valorizado e revela se reduzido para a actividade exercida pela Ré.
…..
38. contabilizando os dias de permanência no interior da oficina após envio da carta resulta um total de 627 dias de ocupação abusiva.
39. A Ré quantifica o prejuízo pela permanência em oficina em €1.500,00, mas acrescerá por cada dia que se vencer o valor/dia de €18,69 considerando o preço m2 de €2,10.”
A final peticionou a quantia de € 3.006,75 valor que foi considerado para efeitos de acréscimo no valor da acção.
Como antes já vimos, na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos:
P) Por meio de carta enviada a 13 de Maio de 2019 para a morada da Autora mulher, a Ré comunicou que passaria a ser cobrado um valor/dia de €31,50, carta que veio devolvida com indicação de “Objecto não reclamado”.
U) Desde o dia 29 de Janeiro de 2019 que o veículo se encontra parqueado nas instalações da ré, em zona útil da sua actividade.
Na parte final da sentença e no que toca ao pedido reconvencional, a sentença condenou os “autores a pagar à ré a quantia que relativamente ao facto provado em P) venha a ser liquidado em execução de sentença até ao limite do pedido.”
Apesar do pedido ter sido formulado indicando apenas o montante de €1.500,00, a verdade é que a Ré na parte final do seu articulado e imediatamente antes do pedido, quantifica o prejuízo pela permanência em oficina em €1.500,00, acrescentando que a este valor “acrescerá por cada dia que se vencer o valor/dia de €18,69 considerando o preço m2 de €2,10”
Sabemos todos que está provado que “Desde o dia 29 de Janeiro de 2019 que o veículo se encontra parqueado nas instalações da ré, em zona útil da sua actividade”.
Importa salientar que sobre tal alegação os Autores tiveram oportunidade de exercer o contraditório o que afasta a possibilidade de estarmos perante uma decisão surpresa, que todos aceitam não podia ser admitida.
Como antes já vimos, na decisão recorrida ficou consignado que “ mais são condenados os autores a pagar à ré a quantia que relativamente ao facto provado em P) venha a ser liquidado em execução de sentença até ao limite do pedido.” (sublinhado nosso).
A ser assim e perante tudo o que se acabou de expor, deve entender-se que o limite desta condenação não corresponde ao valor de € 1.500,00, podendo sim e se tal se apurar, ter como limite o indicado valor de € 3.006,75.
Por isso, impõe-se conceder provimento, nesta parte, ao recurso interposto pela Ré, aditando à decisão proferida o presente esclarecimento.
*

Sumário (cf. art.º 663º, nº7 do CPC):
………………………………………
………………………………………
………………………………………
*

III. Decisão:

Pelo exposto, decidem-se nos seguintes termos os recursos aqui interpostos:
1º) Nega-se provimento ao recurso interposto pelos Autores;
2º) Concede-se provimento ao recurso interposto pela Ré, revogando-se nos seguintes termos a decisão proferida:
- Julga-se a acção parcialmente procedente por provada e, em consequência, condena-se a Ré a reconhecer o direito de propriedade dos Autores quanto ao veículo automóvel de marca Peugeot, modelo ..., ano de 2009, de cor cinzenta, com a matrícula ..-IL-...
- Mais se condena-se a Ré a restituir aos Autores o veículo automóvel antes melhor identificado, nas condições em que o mesmo se encontra actualmente nas suas instalações.
- Absolve-se a Ré dos restantes pedidos que contra si foram formulados pelos Autores.
- Confirma-se a decisão proferida no que toca ao pedido reconvencional da Ré, determinando-se no entanto que quanto à última da decisão proferida passe a constar o seguinte:
“Mais são condenados os autores a pagar à ré a quantia que relativamente ao facto provado em P) venha a ser liquidado em execução de sentença até ao limite do pedido, que se considera ser de € 3.006,75.”
*
Custas a cargo dos Autores (cf. art.º 527º, nºs 1 e 2 do CPC),
*
Notifique.





Porto, 8 de Fevereiro de 2024
Carlos Portela
Ernesto Nascimento
Ana Vieira