Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
720/03.8PUPRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LÍGIA TROVÃO
Descritores: DECLARAÇÃO DE CONTUMÁCIA
CADUCIDADE DA DECLARAÇÃO DE CONTUMÁCIA
Nº do Documento: RP20230125720/03.8PUPRT-A.P1
Data do Acordão: 01/25/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Deve considerar-se verificada a caducidade da declaração de contumácia do arguido residente em país estrangeiro, nos termos previstos no artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, se o arguido se apresentou voluntariamente perante a autoridade judiciária desse país, por ter sido convocado pelo tribunal rogado que, em execução da carta rogatória expedida pelo tribunal português, o notifica pessoalmente da acusação, do despacho que a recebeu e do despacho que designou data para realização da audiência de julgamento, com a advertência de que se faltar, tal julgamento poderá ter lugar na sua ausência, sendo representado para todos os efeitos pelo defensor, do direito de requerer que o julgamento se realize na sua ausência ao abrigo do artigo 334.º, n.º 2 do Código de Processo Penal ou solicitar a sua inquirição por videoconferência nos termos do artigo 10.º, n.º 9, da Convenção Relativa ao Auxílio Judiciário Mútuo em Matéria Penal entre os Estados Membros da União Europeia.
II – Tal situação é equiparável à apresentação do arguido mencionada nesse artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
III – A tal não obsta a jurisprudência fixada pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 5/2014.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 720/03.8PUPRT-A.P1
Comarca do Porto
Juízo Local Criminal do Porto – Juiz 4

Acordam, em conferência, na 1ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto

I - RELATÓRIO
No início da 1ª sessão da audiência de julgamento ocorrida no dia 21/06/2022, no processo comum (Tribunal Singular) nº 720/03.8PUPRT que corre termos pelo Juízo Local Criminal do Porto – Juiz 4, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, foi proferido despacho que indeferiu o requerimento do Ministério Público que pugnava que se declarasse cessada a contumácia do arguido AA, pelo facto de este, no âmbito da carta rogatória expedida às autoridades judiciárias competentes de Botosani, ter sido notificado da acusação e do despacho que designa data para a audiência e se condenasse ainda o arguido em multa processual, nos termos dos arts. 116º nº 1 e 333º nº 1 do CPP, pela falta injustificada ao julgamento.
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Não se conformando com tal decisão, recorre o Ministério Público apresentando motivação que termina com as seguintes conclusões (transcrição):
1. Nos presentes autos, o arguido foi declarado contumaz.
2. Apesar da contumácia, foi possível apurar o paradeiro do arguido na Roménia e, através das autoridades Romenas, notificá-lo pessoalmente da acusação, do despacho que recebeu a acusação e do despacho que agendou o julgamento para de 21/06/2022.
3. Perante a não comparência do arguido, o signatário promoveu que se considerasse a notificação pessoal uma forma de contacto igual ou análoga à apresentação do arguido e, em consequência, a cessação da respectiva contumácia e a realização de julgamento na ausência do arguido.
4. Através do despacho recorrido, o Tribunal da Primeira Instância indeferiu o promovido, mantendo a contumácia do arguido e dando o julgamento sem efeito, por entender que a notificação não é apta a fazer cessar a contumácia. Para o efeito, invocou a doutrina fixada no AUJ 5/2014.
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5. O AUJ 5/2014 apenas se debruçou sobre a ineficácia das notificações realizadas por via postal de arguido residente no estrangeiro e, consequentemente, na irrelevância da recolha de TIR para efeitos de cessação da contumácia.
6. O AUJ 5/2014 nunca defendeu, directa ou indirectamente, que a notificação de arguido contumaz residente no estrangeiro, por contacto pessoal feito por autoridade oficial estrangeira, não faz cessar os efeitos da declaração de contumácia.
7. O promovido pelo Ministério Público, portanto, não viola, directa ou indirectamente, o dispositivo ou os fundamentos do AUJ 5/2014.
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8. A interpretação do despacho recorrido implica a absoluta impossibilidade jurídica (não prática) de notificação de arguidos e a consequente paralisação dos respectivos processos, só porque os arguidos se encontram contumazes e residem no estrangeiro.
9. Não se vislumbra razão justificativa para que, no espaço de justiça europeu, se possa notificar validamente uma sentença mediante contacto pessoal e executar (quase) automaticamente os mais diversos pedidos de cooperação judiciária emanados pelos tribunais dos outros Estados Membros, mas já não se possa confiar um acto tão simples e “corriqueiro” como contactar pessoalmente um arguido e realizar uma notificação.
10. Quando o art.º 336º/1 do Código de Processo Penal refere que a contumácia cessa com a “apresentação” do arguido, esta norma quer-se reportar ao contacto pessoal do arguido com o Tribunal, uma vez que é a falta desse contacto pessoal, traduzido na falta de notificação do despacho que designou data para julgamento, que dá origem à contumácia - art.º 335º/1 do Código de Processo Penal.
11. Ora, existe um claro contacto pessoal entre o tribunal e o arguido quando uma autoridade oficial estrangeira contacta pessoalmente com o arguido e notifica-o da acusação e do despacho que designa data para audiência, uma vez que aquela autoridade funciona como uma mera longa manus do tribunal português, no contexto de um pedido de cooperação internacional.
12. De resto, a contumácia tem uma natureza puramente instrumental: serve para conseguir a notificação dos despachos de acusação e de designação da data para julgamento; pelo que, perante a consecução desse objectivo, esgota totalmente a sua razão de ser.
13. Com todo o respeito, é um total contra-senso entender que a notificação pessoal dum arguido não contumaz residente no estrangeiro permite a realização do julgamento, enquanto que a notificação pessoal do mesmo arguido contumaz já não produz tais efeitos, porquanto a contumácia visa, precisamente, conseguir essa notificação.
14. Pelo exposto, a notificação pessoal realizada nos autos deve levar à caducidade da contumácia, assim se permitindo a realização de julgamento.
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15. Perante a “espada” constituída pelo AUJ 5/2014 e a “parede” constituída pela jurisprudência citada no despacho recorrido, a não adopção duma “terceira via” condenará centenas de processos à respectiva paralisia, ao arrepio da eficácia mínima da justiça penal pressuposta num Estado de Direito – art.º 1º da Constituição da República Portuguesa.
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16. Finalmente, parte das preocupações veiculadas no Ac. do TRP de 10/03/2021, proferido no processo 2354/11.4TDPRT-A.P1, ficam satisfeitas, no caso dos presentes autos, uma vez que o arguido foi expressamente advertido de que, faltando ao julgamento (ao qual podia participar via videoconferência), este poderia ser realizado na sua ausência.
17. O julgamento na ausência não constitui uma surpresa para o arguido, portanto, e, sopesada a necessidade da sentença ser-lhe notificada pessoalmente, nomeadamente para efeitos de exercício do direito de recurso, ficam salvaguardados todos os direitos processuais constitucionais do arguido.
Termos em que deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por decisão que declare a cessação da contumácia, assim se fazendo Justiça”.
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Dos autos não consta resposta.
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Nesta Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer desfavorável ao provimento do recurso, nos seguintes termos (transcrição):
“Salvo o devido respeito, entendemos que o recurso do Ministério Público não deverá obter provimento.
Vejamos:
O arguido AA foi declarado contumaz no Processo Comum (Tribunal Singular) n.º 720/03.8PUPRT, do Juiz 4, do Juízo Local Criminal do Porto.
Após a declaração da contumácia, foi possível apurar o paradeiro do arguido na Roménia e, através de carta rogatória, foi notificado pessoalmente da acusação, do despacho que recebeu a acusação e da data designada para julgamento.
O arguido não compareceu na data designada para julgamento, nem foi detido.
A questão a resolver neste recurso é assim apenas a de saber se se pode considerar verificada a caducidade da declaração de contumácia, nos termos previstos no artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, com a notificação pessoal ao arguido da acusação, do despacho que recebeu a acusação e do despacho que designou data para realização da audiência de julgamento.
Ora, pese embora se compreendam e respeitem os argumentos do Exm.º Senhor Procurador da República na primeira instância, não podemos esquecer que o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 5/2014, publicado no DR 97, SÉRIE I, de 21-05-2014, fixou a seguinte jurisprudência:
Ainda que seja conhecida a morada de arguido contumaz residente em país estrangeiro, não deve ser expedida carta rogatória dirigida às justiças desse país para ele prestar termo de identidade e residência, porque essa prestação não faz caducar a contumácia”.
Considerou-se, aliás, em tal Acórdão de Fixação de Jurisprudência que só a apresentação pessoal do arguido ou a sua detenção asseguram a sua efetiva disponibilidade para os posteriores termos do processo.
Ora, a ser assim, não vemos como a simples notificação pessoal da acusação, do despacho que recebeu a acusação e do despacho que designou data para realização da audiência de julgamento possa fazer caducar a contumácia.
A esse propósito, consignou-se, aliás, no Acórdão de 10-03-2021, deste Tribunal da Relação, processo n.º 2354/11.4TDPRT-A.P1: “Recordemos que anteriormente à Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de setembro, era entendimento pacífico que o artigo 32.º, nºs 1 e 5 da CRP impossibilitava a realização da audiência de julgamento em processo penal na ausência do arguido. Orientação que tinha a sua génese na Resolução n.º 62/78 da Comissão Constitucional, que declarou inconstitucional, com força obrigatória geral, por violação do artigo 32.º, nºs 1 e 5 da Constituição, os §§ 1.º, 2.º e 3.º do artigo 418.º do CPP de 1929, e que fez com que o artigo 332.º, n.º 1, do CPP de 1987 viesse estabelecer como obrigatória a presença do arguido na audiência de julgamento, exceto nas hipóteses previstas no artigo 334.º, nºs 1 e 2, ou seja, se ao caso coubesse processo sumaríssimo, mas o procedimento tivesse sido reenviado para a forma comum, com os demais requisitos referidos no nº 1, ou nos casos em que o arguido se encontrasse praticamente impossibilitado de comparecer à audiência por idade, doença grave ou residência no estrangeiro, e o mesmo requeresse ou consentisse que a audiência tivesse lugar na sua ausência.
Ora, o que veio a suceder com a reforma operada pela Lei nº 59/98, de 25 de agosto, posteriormente consolidada com as alterações impostas pelo DL n.º 320-C/2000, de 15 de dezembro, na sequência da abertura para tal permitida com a alteração à Constituição pela Lei Constitucional nº 1/97, foi alargar os casos de possibilidade de realização da audiência de julgamento na ausência do arguido, para além daqueles em que tivesse sido o mesmo a requerê-la ou consenti-la, mas tão só quando ao arguido tivesse sido aplicada a medida de coação de termo de identidade e residência, previsto no artigo 196.º do CPP, com expressa advertência da verificação futura de uma tal possibilidade, baseada numa série de pressupostos quanto ao modo de realização da sua notificação, e entre eles os seguintes:
“c) De que as posteriores notificações serão feitas por via postal simples para a morada indicada no n.º 2, exceto se o arguido comunicar uma outra, através de requerimento entregue ou remetido por via postal registada à secretaria onde os autos se encontrem a correr nesse momento;
d) De que o incumprimento do disposto nas alíneas anteriores legitima a sua representação por defensor em todos os atos processuais nos quais tenha o direito ou o dever de estar presente e bem assim a realização da audiência na sua ausência, nos termos do artigo 333.º”.
Daí que os campos de possibilidade de realização da audiência de julgamento estabelecidos no artigo 333.º do CPP só possam verdadeiramente ser alcançados em conjugação com o disposto no artigo 196º do mesmo diploma, especialmente a al. d) do seu nº 3.
Podendo agora dizer-se que, mantendo o art.º 332º, nº 1, do CPP como regra a obrigatoriedade da presença do arguido na audiência de julgamento, são precisamente as disposições normativas citadas, especialmente a al. d) do nº 3 do art.º 196.º, que nos fazem luz sobre o sentido e alcance da exceção aí prevista, por referência aos nºs 1 e 2 do art.º 333º, que autoriza a realização da audiência de julgamento na sua ausência (para além das já referidas dos nºs 1 e 2 do art.º 334º), isto é, e desde logo, nos termos do nº 1, se o arguido se encontrar regularmente notificado, sendo que o regularmente notificado não prescinde da prévia advertência, para que tal notificação opere, para os efeitos do artigo 333º, nº 1 e 2, e assim a realização do julgamento sem a presença do arguido, nos termos e pressupostos aí previstos.
Porém, para que tal aconteça é necessário que o arguido haja prestado TIR, e também que para efeitos da notificação mediante via postal simples, nos termos da al. c) do nº 1, do art.º 113, o arguido haja indicado a sua residência, o local de trabalho ou outro domicílio à sua escolha, e também haja sido expressamente advertido de que após a prestação do TIR, nos termos da al. c) do nº 3 do art.º 196º, “as posteriores notificações serão feitas por via postal simples para a morada indicada no n.º 2, exceto se o arguido comunicar uma outra, através de requerimento entregue ou remetido por via postal registada à secretaria onde os autos se encontrem a correr nesse momento”, e ainda que, de harmonia com o estabelecido na al. d) “o incumprimento do disposto nas alíneas anteriores legitima a sua representação por defensor em todos os atos processuais nos quais tenha o direito ou o dever de estar presente e bem assim a realização da audiência na sua ausência, nos termos do artigo 333.º”. Ou seja, será em função do TIR e do prévio aviso e advertência sobre a possibilidade e pressupostos da realização da audiência de julgamento na sua ausência, que esta poderá efetivamente correr, nos termos previstos no artigo 333.º do CPP, pois só assim se poderá considerar o arguido “regularmente notificado”, nos termos aí previstos.
Sendo assim, e porque o legislador, em conformidade com o disposto no artigo 32º, nº 6 da CRP, quando estabeleceu os novos parâmetros de possibilidade de realização da audiência de julgamento sem a presença do arguido, mantendo o conteúdo normativo do disposto no artigo 336.º, n.º 1, do CPP, no qual se integra o termo “se apresentar”, com o significado de vir por ele mesmo a estar presente fisicamente no tribunal, não vemos como possa vir agora defender-se que o “apresentar” (com ablação do pronome reflexivo, retirando assim ao verbo o efeito que expressa, da ação do arguido sobre si próprio) pode ser visto também numa dimensão exclusivamente processual, através de uma notificação pessoal, dando-se assim uma interpretação extensiva ao termo apresentar que não tem um mínimo de suporte nos elementos de interpretação disponíveis, porquanto nada permite, nem o recorrente o justifica minimamente, pensar que o legislador ao usar tal conceito, ou ao mantê-lo após a reforma de 1998, quisesse ir além do que dele objetivamente resulta e sobretudo quando uma tal interpretação, além de não ter qualquer apoio na letra da lei, é teleológica e sistematicamente negada com a conjugação das específicas possibilidades normativas de realização da audiência de julgamento do arguido na sua ausência, nos termos supra referidos”.
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Foi cumprido o estabelecido no art. 417º nº 2 do CPP, tendo o arguido apresentado resposta no sentido do acompanhamento do parecer da Sra. P.G.A.
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Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões do recorrente formuladas na respetiva motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer.
No caso presente e vistas as conclusões do recurso, a única questão suscitada e a decidir é a de saber se se pode considerar verificada a caducidade da declaração de contumácia do arguido residente em país estrangeiro, nos termos previstos no artigo 336º nº 1, do Código de Processo Penal, se o arguido se apresentou voluntariamente perante a autoridade judiciária desse país, por ter sido convocado pelo Tribunal Rogado que, em execução da Carta Rogatória expedida pelo Tribunal português, o notifica pessoalmente da acusação, do despacho que a recebeu e do despacho que designou data para realização da audiência de julgamento, com a advertência de que se faltar, tal julgamento poderá ter lugar na sua ausência, sendo representado para todos os efeitos pelo defensor, do direito de requerer que o julgamento se realize na sua ausência ao abrigo do art. 334º nº 2 do CPP ou solicitar a sua inquirição por videoconferência nos termos do art. 10º nº 9 da Convenção Relativa ao Auxílio Judiciário Mútuo em Matéria Penal entre os Estados Membros da U.E.
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O despacho recorrido tem o seguinte teor (transcrição):
“Nos presentes autos procedeu-se ao envio da Carta Rogatória para notificação do arguido.
O arguido foi notificado da data para a audiência de julgamento e não compareceu em juízo.
Nos termos do art.º 336º nº 1 do CPP a contumácia caduca logo que o arguido se apresente em juízo ou for detido.
O arguido não foi detido.
O arguido não compareceu em juízo.
Logo, o objectivo da rogatória não foi alcançado.
Neste sentido o acordo uniformizador de jurisprudência n.º 5 2014 de 2003 DR-I 21/5 de 2014.
Em obediência à fixação de Jurisprudência a Carta Rogatória - teve vista que o arguido prestasse TIR ou que se apresentasse em juízo, o que não se efectivou.
Assim sendo, decide-se manter a declaração de contumácia do arguido e, consequentemente, dar sem efeito a audiência de julgamento designada.
Notifique”.
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Apreciação do recurso
Com interesse para a apreciação da questão enunciada importa ter presente as seguintes ocorrências processuais:
1. O arguido AA prestou TIR em 03 de Julho de 2003, tem indicado como local de residência, “Barracos sita nos terrenos anexos ao Hospital ...” (cfr. fls. 4);
2. Em 04/11/2004, o OPC deslocou-se aos terrenos anexos ao Hospital ..., constatando que ali já não habitava qualquer indivíduo oriundo dos países do Leste Europeu e, em conversa com um dos vigilantes do Hospital ..., apurou que há mais de meio ano, as pessoas que ali residiam ausentaram-se e nunca mais foram vistas (cfr. fls. 47 dos autos);
3. Em 07/12/2004, o MP deduziu acusação contra o arguido AA, com última morada conhecida nos Barracos, sitos nos terrenos anexos ao Hospital … no Porto, imputando-lhe a prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256º nºs 1 a) e 3 do Cód. Penal;
4. O arguido não foi notificado da acusação, porque, a residência que indicou no TIR já não existia, tendo as barracas sido demolidas (cfr. fls. 67);
5. Remetidos os autos à distribuição, por despacho proferido em 28/02/05, foi recebida a acusação, mas não se designou data para o julgamento por se desconhecer o paradeiro do arguido;
6. Não foi possível notificar o arguido do despacho de 28/02/05 por se desconhecer o seu paradeiro;
7. Foi ordenado o cumprimento do disposto no art. 335º do CPP e, caso o arguido não se apresente no prazo de 15 dias, declarado contumaz;
8. Os editais foram fixados em 14/06/2005, decorrido o prazo concedido de 15 dias, o arguido não se apresentou em juízo;
9. Por despacho judicial proferido em 26/09/2005, o arguido foi declarado contumaz;
10. Por mail de 14 de Março de 2017, os autos foram informados de que o arguido reside na Roménia;
11. Foi expedida carta rogatória às autoridades judiciárias da Roménia para notificação ao arguido da acusação pública e do despacho judicial que a recebeu e ainda declarar se consente que o julgamento se realize na sua ausência;
12. Em 04/07/2017, as autoridades judiciárias romenas informaram os autos que o arguido não foi notificado por não ter sido encontrado no seu domicílio;
13. Por mail de 20/03/2019, os autos foram informados da nova morada do arguido na Roménia;
14. Por mail de 12/08/2019, foram os autos informados de nova morada do arguido, desta vez na Alemanha;
15. Por despacho proferido em 18/09/2019 foi ordenado que se expedisse nova carta rogatória para notificação do arguido e das datas designadas para a realização do julgamento;
16. Por despacho judicial proferido em 11/02/2020 foi ordenada a expedição de nova carta rogatória para notificação ao arguido da acusação e das novas datas designados para o julgamento;
17. Por mail de 06/04/2021, foram os autos informados que o arguido foi localizado na Hungria;
18. Por mail de 03/10/2021 foram os autos informados de que o arguido foi novamente localizado na Roménia;
19. Em 07/01/2022 foi proferido despacho judicial que designou o dia 21/06/2022 para a realização da audiência de julgamento;
20. Por mail de 19/03/2022 foram os autos informados da morada do arguido na Roménia;
21. Em Janeiro de 2021 foi expedida nova carta rogatória às autoridades judiciárias competentes de BOTOSANI (Roménia) para notificação ao arguido da acusação pública, do despacho de recebimento da acusação e do despacho judicial que designou o dia 21/06/2022 às 09.30 horas para a realização do julgamento;
22. No dia 19/05/2022 o arguido AA, que voluntariamente se apresentou perante o Tribunal de Botosani – Secção Criminal, Condato de BOTOSANI, em reunião pública com a presença do Ministério Público e do juiz, foi pessoalmente notificado de todo o conteúdo da carta rogatória expedida, nomeadamente: de todo o conteúdo da acusação proferida pelo MºPº; do prazo de 20 dias, contados a partir dessa notificação, do direito de requerer instrução, querendo e dos termos em que o pode fazer; do despacho que designou o dia 21/06/2022 às 09.30 horas para a realização do julgamento e se, faltando, tal julgamento poderia ter lugar na sua ausência, sendo representado para todos os efeitos pelo defensor; do despacho que recebeu a acusação e designa dia para julgamento; do direito de requerer que o julgamento se realize na sua ausência ao abrigo do art. 334º nº 2 do CPP ou solicitar a sua inquirição por videoconferência nos termos do art. 10º nº 9 da Convenção Relativa ao Auxílio Judiciário Mútuo em Matéria Penal entre os Estados Membros da U.E.; do direito de apresentar contestação no prazo de 20 dias e requerer provas; das sanções em que incorre faltando injustificadamente à audiência e em que termos pode justificar a falta; do defensor nomeado, domicílio profissional deste e contactos telefónicos e endereço eletrónico; do tipo de crime que lhe está imputado na acusação.
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No caso destes autos, em que o arguido AA se encontra declarado contumaz desde 26/09/2005, a Sra. Juiz a quo, apesar de ter ordenado a expedição de carta rogatória para que o arguido ( cujo paradeiro, veio a ser entretanto descoberto na aldeia de ..., comuna de ..., condado de Botosani, Roménia ) fosse notificado dos despachos:1) de acusação; 2) de recebimento dessa acusação; 3) e, do despacho que designou o dia 21/06/2022 para a realização do julgamento e, tendo-se logrado efetuar a notificação pessoal do arguido através daquela carta rogatória, no referido dia 21/06/2022, perante a constatada falta (injustificada) do arguido à audiência de julgamento, limitou-se a dar sem efeito a audiência de julgamento, com fundamento no facto de o arguido não ter comparecido voluntariamente em juízo e não ter sido detido, ancorando-se no AUJ nº 5/2014 de 2003, publicado no D.R. I Série, de 21/05/2014.
Por tal motivo, indeferiu o requerimento do MºPº para que fosse declarada cessada a contumácia do arguido, se condenasse o mesmo em multa processual pela falta injustificada ao julgamento e realizasse o julgamento.
Insurge-se o MºPº junto da 1ª instância contra esta decisão, considerando que, tendo o arguido sido pessoalmente notificado no estrangeiro, através de carta rogatória, dos despachos de acusação, de recebimento dessa acusação e, do despacho que designou data para a realização do julgamento (no qual podia participar por videoconferência), não há motivo para se manter a contumácia do arguido e não se realizar o julgamento na sua ausência; em seu entender, o AUJ nº 5/2014 debruça-se apenas sobre a questão da ineficácia das notificações realizadas por via postal de arguido residente no estrangeiro e na irrelevância da recolha de TIR para efeitos de cessação de contumácia.
Apreciando.
Afigura-se-nos que a razão está do lado do MºPº junto da 1ª instância.
Efetivamente, no que interessa para o caso em apreciação, o art. 335º nº 1 do CPP estabelece que se “(…), se não for possível notificar o arguido (…) do despacho que designa a data da audiência (…) o arguido é notificado por editais para (…) apresentar-se em juízo, num prazo até 30 dias, sob pena de ser declarado contumaz”.
A declaração de contumácia tem por pressuposto que não foi possível notificar o arguido do despacho para a apresentação de contestação ou do despacho que designa a data da audiência.
Declarada a contumácia, a mesma (só) caduca logo que o arguido se apresentar ou for detido (…) – cfr. art. 336º nº 1 do CPP.
Mas, se o arguido tiver sido regularmente notificado e não estiver presente na hora designada para o início da audiência (…) a audiência só é adiada se o tribunal considerar que é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença desde o início da audiência – cfr. art. 333º nº 1 do mesmo Código.
Contudo, se o tribunal considerar que a audiência pode começar sem a presença do arguido (e se a falta do arguido não se dever ao circunstancialismo previsto nos nºs 2 a 4 do art. 117º) a audiência não é adiada (…) – cfr. art. 333º nº 2 do CPP.
Neste caso, o arguido mantém o direito de prestar declarações até ao encerramento da audiência – cfr. nº 3 do art. 333º.
Portanto, a partir do D.L. nº 320-C/2000 de 15/12, a presença do arguido na audiência, passou a ser apenas um direito deste (e não um pressuposto indispensável para a realização do julgamento), o que significa que o tribunal pode realizar o julgamento na sua ausência, se considerar que a presença dele não é absolutamente indispensável.
E o nº 5 do citado art. 333º prescreve que no caso previsto nos nºs 2 e 3, havendo lugar a audiência na ausência do arguido, a sentença é notificada ao arguido logo que seja detido ou se apresente voluntariamente. O prazo para a interposição de recurso conta-se a partir da notificação da sentença – nº 5 do art. 333º.
O caso dos autos contém uma especificidade: o arguido encontra-se (declarado) contumaz.
E estando declarado contumaz, não pode ser condenado no pagamento de multa nos termos previstos no art. 116º nº 1 do CPP (nem ordenada a detenção do mesmo nos termos do art. 116º do CPP, pois que já existem mandados para obter a sua detenção, nos termos previstos no artigo 337º nº 1).
Mas atenta a notificação pessoal efetuada ao arguido através da carta rogatória, em cumprimento da qual - pode ler-se dos autos - houve uma audiência/reunião pública no dia 19 de Maio de 2022, com a presença do arguido que voluntariamente se apresentou no Tribunal de Botosani – Secção Criminal, Condato de BOTOSANI e com a presença do Ministério Público, o juiz procedeu à identificação do arguido, destacou fls. 5 a 14 do processo e informou o arguido do conteúdo da carta rogatória e do conteúdo dos documentos, julgou o pedido em estado de julgamento e deu a palavra para debates sobre o mérito da causa, ao MºPº e ao arguido, sendo que este, no uso da palavra, solicitou o cumprimento da carta rogatória internacional, recebendo os documentos comunicados.
Também de acordo com o disposto no art. 172º nº 1 do CPC, “A prática de atos processuais que exijam intervenção dos serviços judiciários pode ser solicitada a outros
(…) autoridades por carta (…) rogatória, empregando-se a carta rogatória quando a realização do ato seja solicitada a autoridade estrangeira “.
A carta rogatória é expedida pela secretaria e endereçada diretamente (…) ao tribunal estrangeiro, salvo tratado ou convenção em contrário – art. 177º nº 2 do CPC.
No cumprimento da carta rogatória, o tribunal estrangeiro destinatário da solicitação, deverá dar cumprimento ao que lhe é solicitado – cfr. art. 182º nºs 1 e 2 do CPC.
O que significa, na prática, que o tribunal estrangeiro irá proceder à realização dos atos solicitados em lugar do tribunal português e em seu nome, fazendo-o investido num poder de representação que lhe é solicitado (=conferido/outorgado) pela carta rogatória.
Neste caso, cabe perguntar: qual a diferença entre a apresentação voluntária do arguido AA perante o Tribunal de BOTOSANI – SECÇÃO CRIMINAL, CONDATO DE BOTOSANI, onde esta autoridade judiciária teve contacto pessoal com o arguido e o notificou pessoalmente de todo o conteúdo da acusação proferida pelo MºPº; de que dispõe do prazo de 20 dias, contados a partir dessa notificação, do direito de requerer instrução, querendo e dos termos em que o pode fazer; do despacho que designou o dia 21/06/2022 às 09.30 horas para a realização do julgamento e se, faltando, tal julgamento poderia ter lugar na sua ausência, sendo representado para todos os efeitos pelo defensor; do despacho que recebeu a acusação e designa dia para julgamento; do direito de requerer que o julgamento se realize na sua ausência ao abrigo do art. 334º nº 2 do CPP ou solicitar a sua inquirição por videoconferência nos termos do art. 10º nº 9 da Convenção Relativa ao Auxílio Judiciário Mútuo em Matéria Penal entre os Estados Membros da U.E.; do direito de apresentar contestação no prazo de 20 dias e requerer provas; das sanções em que incorre faltando injustificadamente à audiência e em que termos pode justificar a falta; do defensor nomeado, domicílio profissional deste e contactos telefónicos e endereço eletrónico; do tipo de crime que lhe está imputado na acusação, e a apresentação voluntária do arguido no Juízo Local Criminal do Porto – Juiz 4, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, (onde, após a prestação do TIR desde que o arguido indicasse uma morada em Portugal)
que o notificaria exatamente dos mesmos despachos, nos mesmos termos e conteúdo, por via postal simples nos termos do art. 113º nºs 3 e 4 do CPP?
O contacto pessoal do arguido com o tribunal português por meio de apresentação voluntária permite considerar caducada a contumácia (art. 336º nº 1 do CPP) e o mesmo contacto pessoal do arguido, que voluntariamente se apresentou no Tribunal de BOTOSANI – SECÇÂO CRIMINAL, CONDATO DE BOTOSANI, no país onde reside, que o contactou a pedido expresso e em representação do tribunal português, já não faz cessar a contumácia?
De acordo com o art. 336º nº 2 do CPP, o arguido que se apresente voluntariamente é sujeito a termo de identidade e residência, cuja utilidade, note-se, passa a ser a possibilidade de, daí por diante, poder ser notificado para os ulteriores trâmites do processo através de via postal simples nos termos do art. 113º nº 3 do CPP, caso incumpra o dever imposto no art. 196º nº 3 alíneas b) e c) e a realização da audiência de julgamento poder ter lugar na sua ausência, sendo representado pelo seu defensor – cfr. art. 196º nº 3 d) do CPP.
O TIR não é pressuposto para a cessação da contumácia, mas sim a apresentação voluntária do arguido perante o tribunal. O TIR é apenas um meio de facilitar as notificações em face dos deveres a que fica sujeito o arguido, elencados no nº 3 do art. 196º do CPP, ou, como se disse no AUJ nº 5/2014, é instrumento da ligação subsequente à caducidade da contumácia, não a causa dessa caducidade.
Se o arguido incumprir os deveres previstos nas alíneas a) a c) do nº 3 do art. 196º do CPP, legitima a sua representação por defensor em todos os atos processuais nos quais tenha o direito ou o dever de estar presente e bem assim a realização da audiência na sua ausência, nos termos do artigo 333º.
Mas, note-se, o arguido, que voluntariamente se apresentou no Tribunal de BOTOSANI – SECÇÂO CRIMINAL, CONDATO DE BOTOSANI, já aí foi notificado e solenemente advertido:
- () para comparecer Juízo Local Criminal do Porto – Juiz 4, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, em Portugal, no próximo dia 21-06-2022, às 09:30 horas, a fim de ser ouvido em audiência de julgamento, nos autos acima referenciados, e de que faltando, podendo esta, ter lugar na sua ausência, sendo representado para todos os efeitos possíveis pelo seu defensor;
- e () de que poderá requerer que o julgamento se realize na sua ausência, ao abrigo do artº 334º/2 do CPP (que prevê especificamente a residência de arguido no estrangeiro), ou solicitar a sua inquirição por videoconferência, ao abrigo do artº 10º nº 9 da Convenção Relativa ao Auxílio Judiciário Mútuo em Matéria Penal entre os Estados Membros das União Europeia, pese embora não esteja sujeito a TIR.
De forma que entendemos que, perante a falta do arguido ao julgamento no dia 21/06/2022 às 09.30 horas, a contumácia podia ter sido considerada cessada no início da audiência sem que essa decisão viole o disposto no art. 336º nº 1 do CPP, que, como dissemos supra, pressupõe que o arguido (por não se ter apresentado) não esteja regularmente notificado, no que para aqui interessa (dos despachos de acusação, do recebimento desta e) do despacho que designou a data da audiência para esse dia 21/06/2022 e com o conteúdo previsto nos arts. 196º nº 3 d), 334º nº 2 parte final e 4 do CPP, como o foi, apesar de não ter prestado TIR.
E sem que afronte a Jurisprudência fixada pelo STJ no AUJ nº 5/2014 de 21 de Maio.
Efetivamente, no AUJ citado, apenas se considerou que a realização do julgamento do arguido na sua ausência, só é admissível mediante a notificação regularmente efetuada ao arguido da data designada para o julgamento, como prescreve o nº 1 do art. 333º do CPP, entendendo como tal apenas a notificação efetuada através de via postal simples do arguido sujeito a TIR (note-se) e já não a notificação através de simples carta registada, prevista no art. 113º nº 1 b) do CPP. Considerou o STJ que a notificação por via postal simples, em consequência do TIR, por seguir o procedimento descrito nos nºs 3 e 4 do art. 113º do CPP, seja mais agilizado relativamente a outras modalidades de notificação como a pessoal, garante, se cumprido nos seus precisos termos, a fiabilidade da transmissão ao arguido da comunicação do tribunal.
A contumácia serve precisamente para conseguir a notificação dos despachos de acusação e de designação da data para julgamento e, perante a consecução desse objetivo, a sua razão de ser esgota-se totalmente (palavras do MºPº recorrente). Mas na verdade, a contumácia só alcança esse efeito, atentas as suas consequências descritas no art. 337º do CPP, para os arguidos que residam em Portugal; a mesma força persuasiva já não se verifica quanto a um arguido estrangeiro, residente no estrangeiro e que não tenha qualquer ligação a Portugal.
E, no AUJ nº 5/2014 nada se diz, quanto à notificação pessoal do arguido (através de carta rogatória onde intervém uma autoridade oficial/pública, estrangeira mas funcionando como mera longa manus do tribunal português, que o contacta pessoalmente, porque o arguido ali se apresentou voluntariamente) residente no estrangeiro, da acusação, (do direito de requerer instrução, querendo) do despacho que a recebeu e da data designada para o julgamento (bem como do defensor nomeado e dos contactos deste, telefónicos e eletrónico), com as demais especificações que constam da carta rogatória expedida e cumprida nos presentes autos.
Como alega o recorrente, “O AUJ 5/2014 nunca defendeu, direta ou indiretamente, que a notificação de arguido contumaz residente no estrangeiro, por contacto pessoal feito por autoridade oficial estrangeira, não faz cessar os efeitos da declaração de contumácia”.
Repare-se que no caso presente, o arguido foi notificado, e, portanto, solenemente advertido:
- () para comparecer neste Tribunal, no próximo dia 21-06-2022, às 09:30 horas, a fim de ser ouvido em audiência de julgamento, nos autos acima referenciados, sendo advertido de que faltando, podendo esta, ter lugar na sua ausência, sendo representado para todos os efeitos possíveis pelo seu defensor;
- e () de que poderá requerer que o julgamento se realize na sua ausência, ao abrigo do artº 334º/2 do CPP (que prevê especificamente a residência de arguido no estrangeiro), ou solicitar a sua inquirição por videoconferência, ao abrigo do artº 10º nº 9 da Convenção Relativa ao Auxílio Judiciário Mútuo em Matéria Penal entre os Estados Membros das União Europeia.
Nesta medida assiste razão ao MºPº junto do tribunal recorrido.
Seria na verdade um contrassenso, considerar-se mais fiável uma transmissão ao arguido da comunicação do tribunal através de via postal simples prevista no art. 113º nº 3 do CPP (porque, entretanto, prestou TIR), do que aquela que lhe foi feita pessoalmente, através da competente carta rogatória, com a intervenção do tribunal do país onde o arguido tem residência e ali se apresentou voluntariamente, e que nela vem certificada (apesar de ainda não ter prestado TIR).
Como refere o recorrente, é um total contrassenso entender que a notificação pessoal de um arguido não contumaz residente no estrangeiro permite a realização do julgamento, enquanto que a notificação pessoal do mesmo arguido contumaz já não produz tais efeitos, porquanto a contumácia visa, precisamente, conseguir essa notificação.
No caso presente (face à notificação efetuada, ao seu conteúdo e, pela autoridade judiciária estrangeira em representação do tribunal português e em seu nome), a prestação de TIR não é requisito necessário para que se possa realizar o julgamento do arguido na sua ausência, se não for considerada absolutamente indispensável a sua presença, para a descoberta da verdade material.
Assim sendo, a realização de julgamento na ausência do arguido não constituiria nenhuma surpresa inesperada para o arguido nem colidia com a concessão de uma efectiva possibilidade do arguido exercer plenamente todos os seus direitos processuais.
De facto, o arguido tinha pleno conhecimento:
- de que a falta ao julgamento permitia o seu julgamento na ausência, e de que tinha várias possibilidades para participar nesse julgamento, nomeadamente por videoconferência;
- sendo certo que o julgamento na sua ausência não afastava a necessidade da sentença ser-lhe notificada pessoalmente, nomeadamente para efeitos de exercício do direito de recurso (palavras do MºPº recorrente).
Consideremos agora outra hipótese (face à letra do nº 1 do art. 336º do CPP): a de o arguido estrangeiro (ou português do estrangeiro), detido, prestar TIR (art. 336º nº 1), mas não indicar nenhuma morada em Portugal? O arguido assina o TIR (e é advertido das consequências de tal ato) sem indicar qualquer morada por não a ter.
Deve considerar-se que houve contacto pessoal com o arguido de forma a que o arguido passe a ficar disponível para os ulteriores termos do processo?
A resposta tem de ser negativa: não está garantida a ligação do arguido ao processo, exceto se lhe for aplicada medida de coação privativa da liberdade que garanta a sua efetiva disponibilidade para aquele fim. No caso destes autos, atenta a moldura penal abstratamente aplicável ao crime que lhe vem imputado, existe essa possibilidade - cfr. arts. 256º nºs 1 a) e 3 do Cód. Penal e 202º nº 1 d) do CPP - desde que se verifique o requisito «fortes indícios» e ainda qualquer dos perigos previstos no art. 204º do CPP (nomeadamente, o de fuga - cfr. 204º nº 1 a)). Mas se da prova constante do inquérito não for possível concluir pela existência de «fortes indícios», não lhe poderá ser aplicável medida coativa restritiva da liberdade e, aplicando-se-lhe outra medida menos gravosa, o arguido, devendo ser restituído à liberdade, ausenta-se do tribunal, podendo regressar de novo ao estrangeiro.
Porém, como foi detido, cessa a contumácia.
Vê-se, assim, que uma interpretação da expressão “se apresentar”, constante do artigo 336º nº 1, do CPP, em termos estritamente naturalísticos, exigindo a presença física do arguido no Tribunal por onde segue o respetivo processo (e apenas neste), gera (ou pode gerar) problemas de difícil solução, desconsiderando, aliás, aspetos relevantes da cooperação judiciária internacional, em especial no âmbito da União Europeia.
Com efeito, se o regime da contumácia é largamente inconsequente para arguidos estrangeiros que vivam no estrangeiro (contra os quais, por isso, nada valem as medidas previstas no artigo 337º do CPP), o recurso aos mecanismos de cooperação judiciária em matéria penal mostra-se essencial para lograr a referida apresentação física do arguido em Juízo, mas tais mecanismos, sobretudo no seio da União Europeia, estão sujeitos a um juízo de proporcionalidade que naturalmente pode desaconselhar o desencadeamento de um processo de extradição para a simples tomada de um termo de identidade e residência (e eventuais demais notificações cabidas no caso).
Assim, como salienta a Comissão Europeia na sua Comunicação C(2017) 6389 final, de 28/09/2017 (Manual sobre a emissão e a execução de um Mandado de Detenção Europeu), pág. 19:
“Um MDE deve ser sempre proporcional ao seu objetivo. Mesmo quando as circunstâncias do processo são abrangidas pelo âmbito de aplicação do artigo 2º nº 1, da Decisão-Quadro relativa ao MDE, as autoridades judiciárias de emissão são aconselhadas a ponderar se a emissão de um MDE é justificada num caso específico.
Tendo em conta as graves consequências que a execução de um MDE tem sobre a liberdade da pessoa procurada e as restrições à sua livre circulação, as autoridades judiciárias de emissão deveriam avaliar um conjunto de fatores a fim de decidir se a emissão de um MDE é justificada.
(…)
Além disso, as autoridades judiciárias de emissão devem ponderar se outras medidas de cooperação judiciária poderiam ser utilizadas em vez de emitirem um MDE. Outros instrumentos jurídicos da União no domínio da cooperação judiciária em matéria penal preveem outras medidas que, em muitos casos, são eficazes e menos coercivas (…)”.
Dito de outro modo, infrações há que poderão não justificar o recurso à extradição de um arguido com vista, no fundo, à mera tomada de um termo de identidade e residência (sendo que o arguido poderá não ter qualquer ligação ao país e, consequentemente, morada nele, o que frustrará o efeito que, com a aplicação de tal medida de coação se persegue) e demais notificações, seguida de imediata libertação. Isso, seguramente, não deixará de repercutir-se negativamente na imagem da Justiça Portuguesa perante as jurisdições estrangeiras, com potencial recusa de, ou menor disposição para a, cooperação por parte destas no futuro.
Aqui chegados, temos que concluir que o AUJ nº 5/2014 tem de interpretar-se restritivamente, porquanto contemplou apenas a hipótese da expedição de carta rogatória para a prestação de TIR pelo arguido contumaz residente no estrangeiro, quando for conhecida a sua morada e por aí se queda.
No caso destes autos, a Sra. Juiz a quo não ordenou a expedição de carta rogatória para o arguido prestar TIR em BOTOSANI (Roménia), mas antes para a notificação
ao mesmo, repete-se, dos despachos de acusação, (do seu direito de, querendo, requerer a abertura de instrução no prazo de 20 dias a contar da notificação e dos termos do art. 287º nº 2 do CPP), de recebimento dessa acusação e, do despacho que designou data para
a realização do julgamento (no qual podia participar por videoconferência) (e ainda da nomeação do defensor e dos contactos deste).
Então, pergunta-se: se a carta rogatória não teve por objetivo a prestação de TIR pelo arguido no (local da sua residência) no estrangeiro, então qual a razão de ser da expedição da carta rogatória para os fins que o foi e considerando o seu conteúdo, tendo a mesma logrado atingir o seu objetivo – a notificação pessoal do arguido dos preditos despachos através da autoridade judiciária competente –, se na data do julgamento, se decidiu não o realizar pelo facto de o arguido ser contumaz, dar essa audiência sem efeito (?) e nada mais de útil se decidir?
O art. 130º do CPC aplicável por força do disposto no art. 4º do CPP, proíbe a prática de atos inúteis no processo.
Pensamos que terá sido na expectativa de que o arguido se apresentasse voluntariamente na audiência de julgamento.
De modo que, entendemos que a Sra. Juiz a quo, no dia 21/06/2022 deveria ter considerado cessada a contumácia (por ter deixado de existir o respetivo pressuposto) e, de seguida, decidido se considerava, ou não, absolutamente indispensável (para a descoberta da verdade material) a presença do arguido desde o início da audiência; se não fosse o caso, passar à produção da prova pela ordem indicada nas alíneas b) e c) do art. 341º do CPP. Posteriormente, uma vez proferida a respetiva sentença, sempre poderia ordenar a sua notificação ao arguido através de carta rogatória a expedir novamente às autoridades judiciárias competentes da Roménia. Logrando-se a notificação do arguido por essa via, nem por isso o mesmo ficaria prejudicado, visto que o prazo para a interposição do recurso só começaria a correr logo que fosse detido ou quando se apresentasse voluntariamente – cfr. art. 333º nº 5, parte final, do CPP.
Concluindo, procede o recurso interposto.
*
III – DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em conceder provimento ao recurso do MºPº e, em consequência, revogar o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído
por outro que determine a reabertura da audiência de julgamento já iniciada, considere cessada a situação de contumácia em que se encontra o arguido nos autos e decida se é ou não indispensável a presença deste em audiência, prosseguindo depois com a demais tramitação que se imponha e não seja incompatível com a presente decisão.
Notifique – cfr. art. 425º nº 6 do CPP.

Porto, 25/01/2023
Lígia Trovão
Pedro M. Menezes
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