Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0151125
Nº Convencional: JTRP00033508
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: TRANSPORTE MARÍTIMO
DANO
ACÇÃO
CADUCIDADE
Nº do Documento: RP200112100151125
Data do Acordão: 12/10/2001
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: 3 J CIV MATOSINHOS
Processo no Tribunal Recorrido: 138/89
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO. AGRAVO.
Decisão: ALTERADA A DECISÃO.
Área Temática: DIR COM - TRANSP MAR.
Legislação Nacional: DL 37748 DE 1950/02/01.
DL 352/86 DE 1986/10/31.
Sumário: I - O prazo para a instauração de acção de indemnização por alegados prejuízos sofridos por virtude de atraso de entrega de mercadorias transportadas por mar é de um ano a contar da entrega das mesmas ou da data em que estas deveriam ser entregues, conforme estabelece o n.6 do artigo 3 da Convenção Internacional para a Unificação de Certas Regras em Matéria de Conhecimento de Carga, assinado em Bruxelas em 25 de Agosto de 1924 (publicado no Diário do Governo de 2 de Junho de 1932, ratificado em 11 de Julho de 1932 e tornado direito interno pelo Decreto-Lei n.37748, de 1 de Fevereiro de 1950) e não o prazo estabelecido no artigo 27 n.2 do Decreto-Lei n.352/86, de 31 de Outubro.
II - O transportador marítimo tanto é o proprietário do navio como aquele que o afreta e que foi parte num contrato de transporte com um carregador.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

“C..... Ltd”, com sede em ....., USA, intentou, em 16.8.1989, pelo Tribunal Judicial da Comarca de Matosinhos, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra:
1°- “D....., Ldª.”, com sede na Rua ....., Porto.
2°-“D..... A.G.”, com sede em ....., Suíça.
3°- “United ..... Limited”, com sede em ....., Bermuda;
4°- “T..... D.....”, representada por “Agência ....., Ldª”, com sede na ....., Porto.
Pedindo a condenação solidária das Rés, no pagamento de 67.199,44 dólares USA, acrescidos dos juros legais, desde a data da última citação, até integral pagamento.
Para esse efeito, alegou, essencialmente, que:
- tendo adquirido, em Portugal, determinada quantidade de flanela de algodão, para revender à firma “I....., Inc.”, contratou com as 1ª e 2ª demandadas, o transporte dessa mercadoria, embarcada no Porto de Leixões, com destino ao porto de Hong-Kong, a efectuar pelo 4º demandado – um navio - mas, por atraso verificado na viagem e respectiva entrega, sofreu prejuízos do montante agora reclamado.
- o 4º Réu – o navio russo mercante transportador de carga geral, registado no porto de Odessa-URSS - pertencia à “U....., Co” e foi quem transportou o contentor com carga adquirida pela Autora.
A 3ª demandada foi accionada na qualidade de seguradora do contrato de transporte.
As demandadas foram citadas.
A representante legal de “T..... D.....”, doravante o “Navio”, veio chamar à autoria, “U....., Co”, com sede em ....., URSS, e “A....., Ldª.”, a lª como proprietária do “navio” e a 2ª como respectiva armadora.
Após a autora ter deduzido oposição, o incidente de chamamento à autoria foi indeferido.
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Todas as demandadas contestaram, por impugnação, e por excepção, alegando a caducidade/prescrição do direito invocado pela autora.
A co-ré United ..... Limited excepcionou, ainda, a sua ilegitimidade, alegando não poder ser directamente demandada pela Autora.
Tal excepção foi julgada improcedente, tendo tal Ré sido considerada parte legítima.
Quanto a saber se poderia ter sido directamente demandada pela tal Autora, tal foi considerado excepção inominada, cujo conhecimento se relegou para sentença.
Também o 4º Réu – o Navio- excepcionou a sua ilegitimidade, alegando só pode ser demandado quando se ignore, através do conhecimento de embarque, quem é o transportador, o que não acontece no caso, pois que o transportador como consta de tal conhecimento foi “U..... Co”.
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Foi, oportunamente, proferido o despacho saneador fls. 356 a 358 - que julgou as RR. “United ..... Limited” e “Navio” partes legítimas.
A excepção de caducidade, foi julgada improcedente, por se considerar que a URSS não tinha ratificado a Convenção de Bruxelas, que previa um prazo de caducidade de 1 ano, sendo aplicável o DL. 358/86, de 21.10, que estipula ser tal prazo de 2 anos e, por tal, não ter ocorrido caducidade do direito de accionar, já que a mercadoria foi entregue em 6.8.88 e a acção intentada, atempadamente, em 16.8.89, por o prazo de caducidade se suspender durante as férias judiciais.
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Da decisão que julgou improcedente a excepção de caducidade, foi interposto recurso pela rés “United ..... Limited” e Navio “P..... D.....”- fls. 368 – que pretendiam que fosse recebido como de apelação, com subida imediata e efeito suspensivo.
A fls. 369, as mesmas Rés, interpuseram recurso do despacho saneador, na “parte em que sobre as excepções de ilegitimidade suscitada pela “United ..... Limited” e ainda na parte em que considerou procedente a “actio in rem” contra o réu navio”.
Recurso que pediu que fosse recebido como de agravo e com subida deferida.
Por despacho de fls.373 verso e 374, tais recursos, o de fls. 368 e 369, foram recebidos como de agravo, a subir imediatamente, com o primeiro recurso que haja de subir nos próprios autos, e com efeito meramente devolutivo.
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As recorrentes “United ..... Limited” e “P..... D.....” alegaram, em 13.2.1991, de fls. 380-389, suscitando a questão prévia da espécie do recurso, concernente à excepção da caducidade julgada improcedente, sustentando ser ele de apelação e não de agravo, como foi recebido.
Formularam as seguintes conclusões- fls. 388-389-:
a) - Tal como se alegou (cfr. questão prévia) acima o presente recurso é de apelação e não de agravo;
b) – Está em causa nestes autos o alegado incumprimento de um contrato internacional de transporte de mercadorias por mar, tendo a mercadoria embarcado em Leixões, com destino a Hong-Kong, onde foi entregue a 6 (seis) de Agosto de 1988;
c) – As questões emergentes do transporte internacional de mercadorias por mar estão sujeitas ao regime injuntivo da Convenção Internacional para a Unificação de Certas Regras em Matéria de Conhecimentos de Embarque, Bruxelas, de 25.08.1924, de que Portugal é parte contratante (nela, de resto, se fundamentou o pedido – cfr. art. 46º e 50º da p.i.;
d) – Dispõe o n°6 do art.3° daquela Convenção que o direito à indemnização caduca se a respectiva acção não for instaurada no prazo de um ano a contar da entrega da mercadoria;
e) - O art. 10° daquela Convenção estipula que as suas disposições se aplicam a todo o conhecimento criado num dos estados contratantes (tal como aconteceu no caso em apreço) pelo que o caso dos autos cai na esfera espacial e material de aplicação da Convenção de Bruxelas de 1924;
f) - No mesmo sentido dispõe o art. 1° do D.L. 37.748, de 01.02.50, ao dispor que o regime injuntivo da Convenção se aplica a todos os conhecimentos de carga emitidos em território português, qualquer que seja a nacionalidade das partes contratantes;
g) – A Lei Fundamental portuguesa instituiu um regime de recepção plena e automática do direito convencional, que vigora na ordem interna enquanto vincular externamente o Estado Português (art. 8° da Constituição) e do qual decorre o valor supra-legal daquele direito relativamente à lei ordinária;
h)- O disposto no n° 2 do art. 27º do D.L. 352/86, de 21/10, não tem qualquer aplicação ao caso dos autos “ex vi” do disposto no art. 2° daquele diploma;
i)- Ao afastar o regime injuntivo daquela Convenção a decisão recorrida violou as seguintes normas: art. 8° da Constituição; art. 10° da Convenção de Bruxelas de 25.08.1924 sobre Conhecimentos de Embarque; art. 1° do D.L. 37.748, de 01.02.50, e art.2° do Decreto-Lei 352/86, de 21 de Outubro;
j)- Acresce que a acção apenas deu entrada no Tribunal a 16 (dezasseis) de Agosto de 1989, data em que o direito já caducara;
k) – Ao não considerar aplicável o prazo de caducidade de um ano e entender que, mesmo no domínio da Convenção, tal prazo estaria sujeito a suspensão, não diferenciando o instituto da caducidade do da prescrição, a douta decisão impugnada violou ainda as seguintes normas: art. 3°, n° 6, da Convenção de Bruxelas de 1924; art. 328° do Cód. Civil, art. 144°, n°4, do Código de Processo Civil.
Termos em que os recorrentes esperam provimento ao recurso, considerando caducado o direito de accionar e, em consequência sejam absolvidos do pedido.
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Corridos os ulteriores trâmites legais, realizou-se a audiência de discussão e julgamento, com intervenção do Tribunal Colectivo que proferiu o acórdão sobre a matéria de facto.
Apresentaram alegações de direito as lª e 3ª demandadas.
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A final foi proferida sentença – fls.571/577- em 22.2.2001, que:
1°- Julgou a acção improcedente, por não provada, quanto às demandadas “D....., Ldª” e “D..... AG”, que foram absolvidas do pedido;
2°- Considerou procedente, por provada, a excepção de ilegitimidade deduzida pela demandada “United ..... Limited” e, em consequência, absolveu esta demandada da instância;
3°- Julgou procedente, por provada, a acção e, em consequência, condenou o demandado “T..... D..... (“Navio”), representado pela “Agência ....., Ldª.”, a pagar à autora a quantia de 67.199,44 dólares dos Estados Unidos da América do Norte, acrescida de juros desde a última citação até integral e efectivo pagamento.
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Inconformadas com tal sentença, recorreram:
1- O réu “P..... D.....” – Navio – fls. 591- e,
2 - A Autora “C....., Ltd”, na parte em que a sentença absolveu do pedido as RR.- “D....., Ldª” e “D..... AG” - e absolveu da instância a ré “United ..... Limited” – fls. 594.
Tais recursos foram admitidos como de apelação e subida imediata nos autos –fls. 596.
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Nas alegações apresentadas, de fls. 602 a 614, completadas a fls. 685-689, na sequência do despacho do relator de fls.680 e verso, o Réu Navio- “P..... D.....” formulou as seguintes conclusões:
Quanto ao agravo - (“actio in rem”):
7.1.l . A ficção legal de atribuição de personalidade judiciária apenas releva - em caso de transporte de mercadorias por mar, que é o que está em apreço nestes autos - quando não é possível identificar, através dos dizeres do conhecimento de carga, quem nele figura como transportador (art. 28° do D.L. n° 352/86, de 21/10);
7.1.2. O conhecimento de carga contém, de forma detalhada, no seu cabeçalho, não apenas os nomes do armador (U..... Co, de Odessa) como o do seu agente geral em Portugal, isto para além de conter os dizeres relativos à actividade (M..... - -transportador marítimo) como ao nome da linha comercial (linha regular Golfo Indosuez), tudo em claro destaque no cabeçalho do conhecimento de carga;
7.1.3. É, “in casu”, irrelevante que o transportador marítimo possa ser o proprietário do navio ou um afretador a tempo do mesmo, visto que o que importa é que no cabeçalho do conhecimento haja uma identificação clara de quem o emite, o que ocorre no caso dos autos;
7.1.4. Na origem do regime consagrado no mencionado art. 28° do D.L. 352/86 está a dificuldade em efectivar a responsabilidade do transportador (“...se o transportador marítimo não for identificável com base nas menções constantes do conhecimento de carga, o navio que efectua o transporte responde perante os interessados na carga...”);
7.1.5. O que releva é que a identificação do transportador (que é quem emite o conhecimento de carga) não seja por completo ocultada (como sucede nos conhecimentos “sans un tête”) ou que só seja apurável com desrazoável dificuldade ou incerteza;
7.1.6. Não sendo responsável o navio, por ser identificável o transportador, não há que convocar a responsabilidade do próprio navio onde se fez o transporte, nem a sua personalidade judiciária ou sua representação;
7.1.7. Não estando preenchidos os requisitos legais do inciso referido acima, torna-se assim óbvia a improcedência da “actio in rem” que teve por sujeito passivo o navio “P..... D.....”.
Quanto ao recurso de apelação:
7.2.1. A Apelada fundou o seu pedido no alegado incumprimento do contrato de transporte marítimo de mercadorias por mar, com base na pretensa violação da Convenção de Bruxelas de 25.08.24, para a Unificação de Certas Regras em Matéria de Conhecimentos;
7.2.2. A Apelada não reclama perdas ou danos decorrentes de avarias ou faltas na mercadoria transportada (que, “in casu”, não ocorreram), mas despesas e/ou lucros cessantes que promanariam de uma alegada entrega tardia das mercadorias transportadas;
7.2.3. A versão autêntica da Convenção é a que decorre do texto francês, publicada com a carta de adesão, a qual alude expressamente a perdas ou danos (e não perdas e danos);
7.2.4. As perdas ou danos estão indissoluvelmente ligados à própria carga e/ou aos volumes de carga transportados, não se podendo interpretar a expressão constante daquele tratado “se as perdas ou danos não são aparentes (...)” de outro modo que não seja: se as faltas (de volumes/carga) e as avarias (em volumes de carga) não são visíveis;
7.2.5. As expressões “perdas ou danos” nunca estão referidas no tratado a prejuízos causados ao proprietário da mercadoria, mas sim estão ligadas expressamente aos próprios volumes que constituem a carga. Também nunca se fala no texto da Convenção em danos causados ao proprietário, mas unicamente em danos provocados à mercadoria;
7.2.6. Num contrato de transporte internacional regido pela Convenção, como é o do caso em apreço, o ressarcimento por perdas ou danos é feito com base na técnica da responsabilidade em valor, tendo em conta apenas a mercadoria transportada;
7.2.7. Esta é de resto a única interpretação compaginável com o instituto de limitação de responsabilidade civil consagrado naquela Convenção;
7.2.8. Atendendo a que os prejuízos reclamados não respeitam a perdas ou danos à mercadoria transportada, o ora Apelante não responde pelos valores peticionados;
7.2.9. Assim, a douta decisão recorrida não interpretou correctamente o art. 4°, n°6, da Convenção em apreço;
7.2.10. E também não atendeu ao que decorre do art. 4, n°5, com as actualizações constantes do D.L. 37.748, de 01.02.50 e do D.L. n° 352/86, de 21 de Outubro;
7.2.11. Além do mais, antes de efectuado o embarque ou no início do carregamento, a Apelada não informou que o prazo de duração da viagem era elemento essencial do contrato nem foi assumida obrigação de garantia a tal respeito;
7.2.12. A comparação entre a Convenção de Bruxelas e a Convenção de Hamburgo, referidas acima, também demonstra que, nos termos da primeira (única em vigor), o transportador marítimo não responde pelos prejuízos reclamados nesta lide.
Termos em que deve ser revogada a douta decisão impugnada, e, em consequência, deverá absolver-se o apelante do pedido, porquanto só assim se fará inteira Justiça.
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A Autora “C....., Ltd”, nas alegações apresentadas, de fls. 619 a 649, formulou as seguintes conclusões:
1. Na sentença “sub-judice”, a Ré, ora apelada, D....., Ldª foi qualificada com afretadora.
2. Na mesma sentença conclui-se que a R. D....., Ldª não contribuiu para o atraso do navio, e não podia prever esse atraso.
3. E, assim, a R. D....., Ldª foi absolvida do pedido.
4. Sucede, porém, que a caracterização jurídica da intervenção da R. D....., Ldª está incorrecta e a apreciação da sua responsabilidade também.
5. Na verdade, a R. D....., Ldª actuou como transitária, a pedido da Autora.
6. Assim, na sua qualidade de transitário competia à R. D....., Ldª efectuar, por conta da Autora, a planificação, controle, coordenação e direcção das operações necessárias à execução das formalidades e trâmites exigidos na expedição, recepção e circulação das mercadorias da Autor – cfr. art. 1° do Dec.Lei n° 43/83, de 25 de Janeiro.
7. E tais funções deveriam ser exercidas no interesse da Autora, com zelo e diligência.
8. Dos factos provados resulta, sem qualquer margem para dúvida, que a R. D....., Ldª não controlou, nem coordenou todas as operações exigidas a uma correcta expedição e circulação das mercadorias.
9. Quer porque emitiu documentos (conhecimento de embarque) com informações falsas.
10. Quer porque não manteve qualquer contacto com o transportador, a ponto de desconhecer a rota utilizada pelo navio e ter levado mais de um mês a apurar o paradeiro desse mesmo navio.
11 . A falta de acompanhamento da viagem da mercadoria por parte da R. D....., Ldª contribuiu, de forma significativa, para o atraso verificado, pois o transitário não se inteirou da rota (não habitual) que o navio tomou.
12. Situação que podia e devia ter previsto, pois uma das suas obrigações é planificar e coordenar a circulação das mercadorias.
13. Desta forma, a R. D....., Ldª violou, grosseiramente, os deveres de zelo e diligência que a lei (maxime o Dec-Lei n° 43/83, de 25 de Janeiro) lhe impunha, na sua qualidade de transitário.
14. Pelo que deveria ter sido condenada a pagar à Autora, os prejuízos por esta sofridos e cujo montante se encontra amplamente provado.
Termos em que, a sentença sob recurso, violou o preceituado nos arts. 1° e 9° do Dec-Lei n° 43.183, de 25 de Janeiro e, bem assim, o disposto nos arts. 798°, 799° e 562°, todos do Código Civil, pelo que deverá ser revogada e substituída por uma decisão que condene a R. D....., Ldª a pagar à Autora, ora apelante, a quantia de US$67.199,44 acrescida de juros a contar da data da citação até integral pagamento,
Porquanto só assim se fará Justiça.
A apelada “D....., Ldª”, contra-alegou, pugnado pela confirmação da sentença.
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Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que a sentença recorrida considerou provados os seguintes factos:
1°- A 3ª demandada é uma mútua de seguros que cobre a responsabilidade civil dos navios nela inscritos, incluindo a responsabilidade pelas avarias, faltas e demora na entrega das cargas neles transportadas.
2°- O 4° demandado é um navio mercante de carga geral, registado no Porto de Odessa, U....., Co.
3°- O 4° demandado estava inscrito, na altura em que ocorreu a viagem em causa, na 3ª demandada, estando assim a responsabilidade civil dele, perante os interesses da carga, transferida para esta.
4°- A autora é uma firma que se dedica à compra e venda de mercadorias.
5°- A demandada “D....., Ldª” é uma firma que exerce a actividade de transitário e de agente de navegação.
6°- A autora comprou à firma “O.....-Empresa ”, ....., 42,376 jardas de flanela de algodão, ao preço de US $I,60 por jarda.
7°- A autora tinha um contrato para revender à firma “I....., Inc.” aquela mercadoria, pelo preço de US $2,15 por jarda.
8°- Por seu turno, a “I..... Inc.” tinha um contrato com a “S..... Limited” para ela fabricar camisas com essa flanela, em Hong-Kong, camisas que seriam enviadas para a “I....., Inc.” nos EUA.
9°- Em 18 de Março de 1988, a autora pediu, por telex, à lª demandada informações sobre o custo do contentor, a frequência das partidas e o tempo de viagem, para o transporte da flanela de algodão de Portugal para Hong-Kong.
10°- Aquela demandada respondeu, no dia 21 seguinte, por telefax, que o custo do contentor era de US $2.600,00, que havia partidas semanais, via Antuérpia, e saídas de Antuérpia de 12 em 12 dias, e que o tempo de viagem era de cerca de 35 a 40 dias.
11°- A lª demandada, na qualidade de agente da 2ª demandada, emitiu um conhecimento de embarque desta, em 7 de Maio de 1988, sob o n° ....., estando nele aposta a indicação de que a carga estava a bordo, que o transporte era feito no “navio”, que o porto de carga era Leixões e o de destino era Hong-Kong, não se referindo nele qualquer transbordo; que o carregador era a “O......- Empresa”, que o conhecimento era à ordem do “BBC ..... Ltd.”, e que a entidade a notificar à chegada era a “S..... Limited”, firma encarregada pela “I....., Inc.” para fazer as camisas com a flanela de algodão que ela, “I....., Inc.”, tinha acordado comprar à autora.
12°- O conhecimento de embarque, a que respeita a fotocópia junta com a petição inicial, sob o documento 3, contém duas declarações contrárias à realidade: a mercadoria só foi embarcada em 24.05.88 e a 2ª demandada não se encarregou do transporte da flanela de Leixões para Hong-Kong.
13°- Apesar do referido no conhecimento de embarque, a “O......- Empresa”, vendedora da mercadoria, recebeu o respectivo preço, através de uma carta de crédito, contra a apresentação daquele conhecimento.
14°- A autora contava com a mercadoria em Hong-Kong até 15.06.88.
15°- Tal não aconteceu, e a autora enviou, em 20.06.88, à lª demandada um telefax referindo que ela tinha recebido informações de que a mercadoria não chegaria a Hong-Kong antes do fim de Julho.
16°- Nesse telefax, a autora chamou a atenção da lª demandada de que ela lhe tinha referido um tempo de viagem de 35 a 40 dias e solicitou-lhe, com urgência, uma história completa com todos os detalhes.
17°- Em 21.06.88, a autora enviou outro fax à lª demandada dando-lhe conhecimento que o escritório da “D....., Ldª Hong Kong” a tinha informado que o “navio” não tinha por destino Hong-Kong, mas estava em rota para a URSS, para transbordo no navio “US.....”, que não chegaria a Hong-Kong antes do fim de Julho.
18°- Nesse fax, a autora também chamou a atenção daquela demandada que a chegada no fim de Julho ocasionaria um grande desastre para o seu cliente, “que o poria fora do negócio” e pediu-lhe que a contactasse para se arranjar um frete aéreo para a flanela de algodão chegar a Hong-Kong o mais rapidamente possível.
19°- Nesse mesmo dia, a autora enviou um fax à 1ª demandada, chamando-lhe a atenção para o facto de que, dado o tempo de viagem por ela prometido e a data de carregamento de 07.05.88 a carga deveria ter chegado a Hong-Kong cerca de 15.06.88 e que a chegada no fim de Julho constituiria um desastre para o cliente dela, precisando a autora de conhecer a exacta localização da carga, o próximo porto de escala do “navio”, para arranjar um frete aéreo para Hong-Kong, terminando a mensagem dando o número de telefone e pedindo uma chamada logo que possível.
20°- Em 21.06.88, a 1ª demandada enviou à autora um fax, cujo conteúdo se transcreve: “Re: cont. de 1 x40, de O..... – Empresa. para Hong Kong pelo n/m “P..... D.....”, é de facto uma surpresa para nós a existência dum provável transbordo porque quando contactamos a linha de navegação em causa disseram-nos que este era um navio directo de Leixões para Hong Kong com um tempo de viagem de cerca de 30/35 dias.
Contudo, entramos agora em contacto com esta linha de navegação para sermos informados do que se passa com este contentor e a sua posição actual.
Como compreenderão qualquer mudança na viagem ou qualquer transbordo de contentor para outro navio nada tem a ver com a nossa firma vendo que, como podem facilmente observar através do conhecimento de embarque anexo, não se faz menção de transbordo ou mudança de navio transportador.
Esperamos poder em breve estar em posição de voltar com mais notícias. Cumprimentos – José .....”.
22°- Em 21.06.88, a lª demandada enviou à autora o telefax junto a fls. 25 e anexo o conhecimento de embarque junto a fls. 26.
23°- Este conhecimento de embarque de fls.26, foi emitido em representação do Comandante do “navio”, pela Agência ......, Ldª.
24°- Nele se refere que o navio transportador é o “navio”, sendo o porto de carregamento Leixões e o porto de descarga Hong-Kong, não se referindo nele qualquer transbordo.
25°- Do referido conhecimento de embarque consta que a carga estava carregada a bordo em 07.05.88, mas o “navio” só chegou a Leixões em 24.05.88.
26°- E saiu no dia seguinte.
27°- Em 21.06.88, a lª demandada enviou à Agência ......, Ldª o telex junto a fls. 10.
28°- Entre 22.06.88 e 27.07.88, a Autora trocou mensagens com a lª demandada e com a sua casa mãe, a “D..... AG.”, ....., Suíça, tentando receber um relatório completo do contentor desaparecido e, acima de tudo, removê-lo, num porto de escala, para o enviar por via aérea para Hong-Kong, mas tudo foi infrutífero.
29°- Finalmente, a D..... Al....., de Nova Iorque, deu conhecimento à autora de toda a saga: a chegada do “navio” a Ilychevsky atrasou-se e perdeu-se a ligação para o navio B....., tendo-se previsto o transbordo do contentor para o navio US....., com chegada prevista a Hong-Kong em 25.07.88. Mas esse transbordo não foi possível e o contentor acabou por ser carregado no navio BOL....., com chegada prevista a 06.08.88.
30°- O contentor com a flanela de algodão chegou a Hong-Kong em 06.08.88, quando deveria ter chegado cerca de 15.06.88, ou seja, com um atraso de dois meses menos uma semana.
31°- A Autora comprou à “O...... - Empresa” 42.376 jardas de flanela de algodão ao preço de US $I,60 por jarda, para as revender à I....., Inc. ao preço de US $2,15 por jarda.
32°- Em virtude da chegada tardia da flanela de algodão a Hong-Kong, a carta de crédito aberta a favor da autora expirou e esta não recebeu US $91.108,40.
33°- Em virtude de ter perdido o negócio com a I....., Inc., a autora tentou vender a mercadoria no mercado, mas encontrou as maiores dificuldades, porquanto a flanela tinha as especificidades e cores da I....., Inc., que não eram “Standarts”.
34°- Conseguiu, contudo, vender em Hong-Kong 16.114 jardas ao preço de US $ 1,60 por jarda, o que representa uma perda de US $0,55 por jarda, ou seja, com uma perda de US $8.862, em relação a essas 16.114 jardas.
35°- Tendo por objectivo minimizar os prejuízos da I....., Inc. e, acima de tudo, evitar que ela a accionasse por quebra de contrato, a autora entrou num arranjo com a I....., Inc., tendo em vista remeter-lhe as camisas para os USA.
36°- Para o efeito, a autora remeteu 14.161,5 jardas de flanela de algodão para a Coreia, para serem usadas no fabrico de 8.460 camisas.
37º- O custo de fabrico das camisas na Coreia foi de US $10,29 por camisa, mas a autora cedeu à I....., Inc. cada camisa ao preço de US $8, tendo assim perdido em cada camisa US $2,29, o que representa uma perda de US $ 19.373.
38°- A autora teve ainda que suportar o custo do frete das camisas da Coreia para os E.U.A., no montante global de US $11,676.
39°-A autora não foi capaz de revender 12.100,5 jardas da flanela de algodão, cujo valor actual é de US $0,20 por jarda, o que representa um prejuízo de US $23.595,58.
40°- A autora pagou ainda despesas de armazenagem e manuseamento em Hong-Kong e na Coreia, que não teria pago se não tivesse havido um atraso na entrega, no montante de US $3.691,76.
41°- A rota habitual de Portugal para Hong-Kong é pelo Mediterrâneo/Canal de Suez e leva cerca de 30 dias, de acordo, aliás, com a informação dada pela Agência ....., Ldª à demandada “D....., Ldª”.
Fundamentação:
Decidida a questão prévia, suscitada pelos recorrentes “United ..... Limited” e “P..... D.....”, no sentido de que o recurso que interpuseram do despacho saneador, na parte em que julgou improcedente a excepção da caducidade do direito de accionar por parte da Autora, é de agravo - cfr. despacho do relator de fls.679 a 680 – importa, nos termos do art. 710, nº1, do Código de Processo Civil conhecer desse recurso.
As mesmas recorrentes, a fls. 369, como antes se disse, recorreram também do despacho saneador na parte em que considerou “procedente a “actio in rem” contra o réu “Navio”.
A este recurso, admitido como de agravo, foi fixada subida diferida com o recurso interposto da decisão final.
Será apreciado depois o relativo à excepção da caducidade.
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Apreciando, o agravo interposto pelo requerimento de fls.368 dos RR. -“United ..... Limited” e “P..... D.....”- Navio- cujas conclusões constam de fls. 388/389.
Da caducidade:
A questão objecto de tal recurso, aferida pelo teor das respectivas conclusões, consiste em saber se o direito exercido pela Autora – pedido de indemnização por alegados prejuízos sofridos por virtude de atraso na entrega de mercadorias transportadas por mar – caducou por ter decorrido o prazo estabelecido na Convenção de Bruxelas.
Releva para o conhecimento de tal agravo, em função do pedido e da causa de pedir, a alegação da Autora de ter celebrado com a ré “D....., Ldª” um contrato de transporte marítimo de mercadorias, carregadas no navio “P..... D.....” e que deveriam ter sido entregues, oriundas do porto de Leixões, em Hong-Kong até ao dia 15.6.1988, quando o foram em 6.8.1988, com cerca de dois meses de atraso.
Vejamos:
Na ordem jurídica portuguesa sobre o contrato de transporte de mercadorias por mar, estão em vigor a “Convenção Internacional Para a Unificação de Certas Regras em Matéria de Conhecimento de Carga”, assinada em Bruxelas a 25.8.1924, publicada no Diário do Governo, Iª Série, de 2.6.1932, e rectificada em 11.7.1932, tornada direito interno pelo DL. 37.748, de 1.2.1950- “Convenção de Bruxelas”- e o DL. 352/86, de 31 de Outubro.
No nº6 do art. 3º da Convenção de Bruxelas estabelece-se que – “Em todo o caso o armador e o navio ficarão libertos de toda a responsabilidade por perdas ou danos, não sendo instaurada a respectiva acção no prazo de um ano a contar da entrega das mercadorias ou na data em que estas deveriam ser entregues”.
O art. 10º da aludida Convenção estabelece que as suas disposições são aplicadas a todo o conhecimento (de embarque) criado num dos estados contratantes.
Por sua vez o citado DL estabelece no art. 27º, nº2, que – “... Os direitos de indemnização previstos no presente diploma devem ser exercidos no prazo de dois anos a partir da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete”.
Vigoram, assim, dois prazos de caducidade; maior o do diploma de 1986 – 2 anos –menor, do da Convenção (direito interno português, à luz do nº2 da Constituição da República de 1933 e 8º da vigente) – que estabelece o prazo de um ano.
Como se sabe, por regra constitucional, o direito das convenções internacionais recebido na ordem interna, prevalece sobre o direito interno.
Todavia, importa atentar que o citado DL., depois de no seu art. 1º definir o contrato de transporte de mercadorias por mar, estabelece no seu nº2 do art. 2º que tal contrato “ É disciplinado pelas tratados e convenções internacionais vigentes em Portugal e, subsidiariamente, pelas disposições do presente diploma”.
Desde logo, como não podia deixar de ser, o DL afirma a primazia dos tratados e convenções vigentes em Portugal, relegando para si um campo de aplicação subsidiária, aplicando-se onde tais tratados ou convenções forem inaplicáveis.
Acerca do nº2 do art. 27º do DL 352/86, o Dr. Mário Raposo, no estudo “Sobre o Contrato de Transporte de Mercadorias Por Mar”, publicado no BMJ- 376-10, referindo-se ao campo de aplicação da citada norma, escreve:
- “A sua aplicação caberá nas hipóteses de transportes internacionais a que não se aplique a Convenção, como acontece nas situações excluídas pela alínea c) do art. 1º (transporte de animais vivos e transporte no convés, nos termos aí especificados) e, e ainda nos transportes internos, aos quais também não se aplica a convenção enquanto tal”.
Sendo o aludido DL de aplicação subsidiária, é a Convenção de Bruxelas aplicável no caso dos autos, já que se trata do transporte marítimo internacional, em contentor, de mercadorias (flanelas) do porto de Leixões para Hong-Kong.
Assim, temos por inquestionável que se aplica o prazo de caducidade de um ano, estabelecido pela Convenção de Bruxelas.
Para as situações não abrangidas pela Convenção é que rege o prazo maior do diploma de 1986. Neste sentido, cfr.- Ac. da Relação do Porto de 9.6.1999, in CJ, 1999, III, 208; Acs. da Relação de Lisboa de 8.7.1994, in CJ, 1994, III, 145; de 19-3-1996, in CJ, 1996, II, 84; de 12.6.1996, in, CJ, 1996, III, 116; de 28.5.1998, in CJ 1998, III, 110.
Assente que o prazo de caducidade é de um ano e que a Autora, tendo recebido as mercadorias em 6.8.1988, intentou a acção em 16.8.89, em férias judiciais do Verão, será que ocorreu caducidade, sendo certo que dispunha do prazo de um ano, a contar da data da entrega?
Dispõe o art. 328º do Código Civil que - “ O prazo de caducidade não se suspende nem se interrompe senão nos casos em que a lei o determine”.
A caducidade evita-se propondo a acção dentro do prazo correspondente, não dependendo - como na prescrição – da citação do réu.
A propositura da acção paralisa o prazo de caducidade.
Ora, a Autora instaurou a acção, em 16.8.1989, em férias judiciais do Verão de 1989, que decorriam, tal como agora, de 16 de Julho a 14 de Setembro – art. 10º da Lei 38/87, de 23.12, ao tempo em vigor.
Da conjugação dos arts. 296º e 279 e) do Código Civil, resulta que, quando o prazo de caducidade terminar durante período de férias judicias, ele se transfere para o 1º dia útil após elas.
Assim, a Autora para evitar o decurso do prazo de caducidade, poderia ter intentado a acção até ao “prazo-limite” de 15 de Setembro de 1989, 1º dia útil, após o decurso das férias judiciais.
Ao intentar a acção no dia 16.8.89, fê-lo de modo a não deixar caducar o seu direito, pelo que bem andou a decisão recorrida ao considerar atempada a propositura da acção, muito embora considerasse inaplicável a Convenção de Bruxelas - do que se discorda - , por alegadamente dela não ser signatária a URSS, mas considerando que mesmo que o fosse seriam aplicáveis os citados artigos do Código Civil.
Improcedem, deste modo, as conclusões dos recursos, no que concerne ao julgamento, pela improcedência ,da excepção da caducidade alegada pelas recorrentes.
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Recurso de agravo do Réu navio “P..... D.....”:
Tal recurso de agravo tem por objecto saber se, no caso concreto, a acção poderia ter sido intentada contra o navio P..... D..... – “actio in rem”.
Importa relembrar que a Autora intentou a acção contra o “Navio” – actio in rem – por, alegadamente, desconhecer, através da análise do conhecimento do embarque - “Bill of Lading”- “ e não ser possível identificar com precisão quem foi o transportador - “carrier” - que se encarregou do transporte”- art. 26º da petição inicial.
Tal questão ficou em aberto para julgamento, tendo após a produção de prova o Tribunal recorrido considerado que o 4º demandado - o “Navio” - é propriedade da “U....., Co” – item 2º da matéria de facto.
Ora, nos termos conjugados dos arts. 10º, nº1, e 28º, nº1, do DL 352/86 se o transportador marítimo não for identificável com base nas menções constantes do conhecimento de carga, o navio que efectua o transporte, responde perante os interessados na carga, nos mesmos termos em que responderia o transportador - actio in rem.
O nº2 confere, então ao navio personalidade judiciária, cabendo a sua representação em juízo ao proprietário, ao capitão ou seu substituto, ou ao agente de navegação que requereu o despacho do navio.
A “ratio” de tal preceito é evitar situações de fraude marítima quando se não conheça a identificação do real transportador, sabido que é que o transporte implica a intervenção de vários actores.
O transportador marítimo tanto é o proprietário do navio como aquele que o afreta e que foi parte num contrato de transporte com um carregador [ “Carrier” includes de owner or the charterer who enters into a contract of a carriage with a shipper] ”- The Hague Rules 1924 - International Convention for Unification of Certain Rules of Law Relating to Bills of Lading, Signed at Brussels on 26 August 1924 - art. 1º a). – cfr. fls.207.
Na versão portuguesa dessa Convenção – fls. 192 – a palavra “carrier” foi traduzida por “armador” sendo definido este “como o proprietário do navio ou o afretador que foi parte num contrato de transporte com um carregador”.
No título de transporte, figura como transportador marítimo que, como vimos, tanto pode ser o armador (“owner”) como outro afretador do navio, a “U....., Co”.
Tendo sido considerado provado que o “Navio” é propriedade de tal sociedade, como claramente já resultava do documento de embarque de fls. 100 – “Bill of Lading”- que não havia sido impugnado, não se justifica a “actio in rem”.
Com efeito no conhecimento de embarque consta, inequivocamente, que o proprietário do navio era a “U....., Co-Odessa”.
Não se verifica, pois, caso de não identificação do transportador, com base nas menções constantes do conhecimento de carga, a justificar a aplicação do regime legal dos arts. 10º, nº1, e 28º, nº1, do DL. 352/86.
Assiste razão ao agravante.
A procedência do recurso de agravo, interposto pelo Navio “P..... D.....”, ao decidir que, no caso concreto a “actio in rem” de que foi alvo não tem fundamento legal, implica a respectiva absolvição da instância, pelo que não há que apreciar o recurso de apelação que interpôs da sentença que o condenou no pedido.
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Prejudicado que está o conhecimento do recurso de apelação, interposto pelo 4º Réu - o Navio “P..... D.....”- pela procedência do agravo relativo a saber se, “in casu”, poderia ser demandado – “actio in rem” – importa conhecer do recurso interposto pela Autora “C....., Ltd”.
Como a recorrente afirmou – fls. 619 - a sua discordância cinge-se à parte da sentença recorrida que absolveu do pedido as RR.: “D..... Ldª” e “D..... AG”, e absolveu da instância a co-ré “United ..... Limited”.
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Todavia esta recorrente, a fls. 630 (há erro de paginação pois deveria ser fls. 620) afirma circunscrever o recurso à questão da absolvição da Ré “D....., Ldª”.
Tal procedimento é legítimo de harmonia com o preceituado no art. 684º, nº3, do Código de Processo Civil, pelo que apenas se conhecerá neste recurso, do bem ou mal fundado da absolvição da co-ré “D....., Ldª”.
A questão objecto deste recurso, aferida pelo teor das conclusões da recorrente, que recortam o respectivo âmbito, consiste em saber se a “D...., Ldª” deveria ter sido condenada, por lhe ser imputável o atraso na chegada das mercadorias a Hong-Kong, pelo facto de, como agente do “primeiro suposto transportador - a ré “D..... AG” - e principalmente na qualidade de transitário da própria Autora” , não ter actuado diligentemente.
Vejamos:
A Autora demandou as quatro Rés, pedindo a condenação solidária de todas elas a pagarem-lhe a quantia de 67.1999,44 dólares americanos, pelo facto de, tendo contratado com as rés “D....., Ldª” e “D..... AG”, o transporte de mercadoria em contentor, de Leixões para Hong-Kong a mercadoria aí ter chegado com cerca de dois meses de atraso, facto que lhe causou prejuízos que liquidou naquele montante.
Na sentença considerou-se que as 1ª e 2ª rés “agiram na qualidade de afretadoras do transporte e nessa qualidade emitiram o conhecimento de embarque”.
A condenação do réu “P..... D.....” baseou-se na presunção de culpa do art.799º do Código Civil considerada não ilidida.
Aquelas rés foram absolvidas por se ter considerado que o atraso foi para elas imprevisível, pelo que nada poderiam ter feito.
A causa de pedir da acção consiste no alegado incumprimento de um contrato de transporte de mercadorias por mar a que se aplica, como antes dissemos, a Convenção de Bruxelas de 1924.
A Autora não reclama a indemnização de quaisquer perdas ou danos na mercadoria em si, mas antes uma indemnização por danos indirectos pelo facto de a mercadoria ter chegado com atraso.
O transportador foi a 2ª ré, como resulta do conhecimento de embarque, e a 1ª ré actuou como transitária da Autora competindo-lhe a preparação do transporte.
A carga foi embarcada no Navio “P...... D....”.
“O contrato de transporte marítimo de mercadorias pode ser definido como aquele pelo qual um determinado transportador se obriga a transportar por mar uma certa quantidade de mercadorias que lhe foram entregues em determinado porto por um carregador e entregá-las num outro porto a um destinatário, mediante o pagamento de uma determinada remuneração, o frete. Por aqui se vê que são geralmente três as partes nesse contrato : o transportador, o carregador e o destinatário se designado no contrato” – “Contratos de Utilização do Navio”, de José M. P. Vasconcelos Esteves, 1988, vol. II, pág.84.
O contrato em causa implica uma obrigação de resultado, ou seja, o transportador ou armador, na designação do art. 1º da Convenção de Bruxelas de 1924, obriga-se a deslocar as mercadorias de um porto para outro – o do destino -, entregando-as incólumes.
“(...) No caso de não surgir qualquer impedimento, o navio deverá seguir viagem utilizando, para tal efeito, a rota habitual ou aquela que vier a ser fixada no contrato, acaso este se lhe refira.
No entanto, como a grande maioria dos transportes são efectuados através de linhas regulares, os interessados têm conhecimento prévio, através de anúncios públicos em jornais, dos diferentes portos a escalar pelo navio.
De qualquer modo, o navio deverá respeitar a rota indicada não devendo escalar portos que não estejam previstos nem desviar-se da rota prevista, a menos que algum facto anormal o venha a justificar.
Geralmente, os conhecimentos contêm cláusula que visa permitir o navio escalar quaisquer portos em qualquer ordem e para qualquer finalidade, navegar sem piloto, rebocar ou assistir navios e desviar a sua rota para salvamento de vidas.
No entanto, a existência desta cláusula não admite interpretações abusivas e não razoáveis, uma vez que o transporte deverá ser efectuado dentro do prazo previsto, acaso ele o seja, ou, pelo menos, razoável.
Com efeito, qualquer desvio ou atraso não justificável donde advenha um prejuízo, implicará a responsabilidade do armador.
Portanto, para que este seja responsabilizado, é necessário que o desvio seja qualificado como uma falta, que tenha havido um prejuízo para a mercadoria e que esse prejuízo o seja consequência directa do desvio. (...)” –obra citada pág. 118, destaque e sublinhado nosso..
Sendo a obrigação do transportador uma obrigação de resultado e não uma mera obrigação de meios, aquele será, em princípio, responsável se, no momento da descarga forem verificadas faltas ou avarias nas mercadorias, a si imputáveis.
A Convenção de Bruxelas, no nº1 do seu art. 4º, prevê uma série de exonerações do transportador, cuja abordagem não é pertinente no caso dos autos.
Esta Convenção estabelece limites de responsabilidade do transportador marítimo, no seu art. 4º nº5 que dispõe:
"Tanto o armador como o navio não serão obrigados, em caso algum, por perdas e danos causados às mercadorias ou que lhe digam respeito, por uma soma superior a 100 libras esterlinas por volume ou unidade, ou o equivalente desta soma numa diversa moeda, salvo quando a natureza e o valor destas mercadorias tiverem sido declaradas pelo carregador antes do embarque e essa declaração tiver sido inserida no conhecimento. Esta declaração assim inserida no conhecimento constituirá uma presunção, salva a prova em contrário, mas não obrigará o armador que poderá contestá-la.
Por convenção entre o armador, capitão ou agente do armador e o carregador, poderá ser determinada uma quantia máxima diferente da inscrita neste parágrafo, contanto que esse máximo convencional não seja inferior à cifra acima fixada.
Nem o armador nem o navio serão responsáveis, em caso nenhum, pelas perdas e danos causados às mercadorias ou que lhes sejam concernentes, se no conhecimento o carregador houver feito conscientemente, uma falsa declaração da sua natureza ou do seu valor".
“Relativamente ao montante referido neste parágrafo, o Decreto n.° 37.748 que introduziu no direito interno português as disposições da Convenção de Bruxelas, fixou em 12.500 escudos por volume ou unidade o limite de responsabilidade do armador.
Ao estabelecer este valor, o legislador teve em conta o preceituado no artigo 9.° da Convenção que estabelece que as unidades monetárias referidas são expressas em valor-ouro e que os Estados Contratantes poderão converter em moeda nacional os montantes referidos em libras esterlinas por forma aos seus nacionais poderem pagar em moeda cor-rente do seu país, de acordo com o curso do câmbio no dia da chegada do navio ao porto de descarga.
Com o passar dos anos e em virtude da erosão da moeda e da própria evolução das formas de transporte, de que é exemplo o fenómeno da contentorização, este montante tornou-se manifestamente desactualizado, senão irrisório, pelo que se impunha a sua revisão.
Foi o que fez o legislador, através do n.° 1 do artigo 31 .° do Decreto--Lei n.° 352/86 de 21 de Outubro. Aí foi fixado em 100.000 escudos o montante referido no § 1 .° do artigo 1 .° do Decreto-Lei n.° 37 748 de 1-2-1950” – obra citada págs. 153.
Quer a Convenção de Bruxelas, quer o DL 352/86, de 21 de Outubro, não contemplam senão a responsabilidade indemnizatória do armador ou transportador, relativamente às “perdas ou danos” sofridos na própria mercadoria.
Seria um absurdo que a Convenção de Bruxelas estabelecesse limites rígidos de indemnização – relativos a “perdas ou danos” causados nas mercadorias e não a “perdas e danos”, e depois fosse possível reclamar o pagamento de danos emergentes, estranhos ao transporte propriamente dito, como são os reclamados pela Autora.
Visando substituir a Convenção de Bruxelas de 1924 e respectivo Protocolo de 23.2.1968, foi elaborada e assinada em Hamburgo, em 31.3.1978, a Convenção Internacional Sobre o Transporte de Mercadorias por Mar, convenção que, todavia, não faz parte ainda da ordem jurídica portuguesa.
Segundo o Tratadista que vimos citando – págs. 165 e 166 - eram cinco as questões que se pretendiam ver consagradas na Convenção de Hamburgo:
“Em primeiro lugar havia a questão de se decidir sobre a eventual reintrodução da falta náutica como condição de exoneração do transportador.
Em segundo lugar era necessário definir a eventual presunção de não responsabilidade do transportador no caso de incêndio, a menos que se provasse ter ele resultado de uma falta ou negligência sua ou dos seus empregados.
Em terceiro lugar havia que definir o critério de cálculo da limitação de responsabilidade. Um duplo critério (volume e peso) de acordo com o Protocolo de 1968 ou um único critério peso)?
Em quarto lugar importava definir o regime de responsabilidade por atraso .-
Finalmente, em quinto lugar punha-se a questão de determinar qual a unidade de conta”. (sublinhámos).
Ora se na Convenção de Hamburgo [Sobre este tema vide o Estudo do Dr. Mário Raposo, in “ O Direito”, Ano 128º, 1996, I-II, págs. 27 a 43] se pretendeu introduzir e introduziu, no seu art. 5º, nºs 1, 2 e 4 a) ii), [e ainda assim em casos muito restritos], o princípio da responsabilidade do transportador por atraso na entrega da mercadoria, é sinal que a Convenção de Bruxelas não contemplava tal motivo como fundamento de responsabilidade.
Salvo o devido respeito, invocando a Autora a existência de um contrato de transporte de mercadorias por mar a que é aplicável, como todos os pleiteantes concordam, a Convenção de Bruxelas, o pedido que formula, não tendo havido qualquer perda ou dano na mercadoria em si própria, não poderia ser acolhido.
Por isso, e com o devido respeito, discordamos da fundamentação da sentença apelada que fazendo operar a presunção do art. 799º, nº1, do Código Civil considerou responsável quem na sua perspectiva – o réu Navio- foi o responsável pelo atraso.
Mas mesmo que assim não fosse, vejamos se a ré “D....., Ldª” – que é quem está em causa no recurso da Autora - enquanto transitária - se pode considerar responsável pelo atraso na entrega das mercadorias.
Como se sabe, no contrato de transporte de mercadorias por mar, em regra e em longas distâncias, como é o caso dos autos, a viagem faz-se por escala, não é directa e estando a navegação marítima sujeita a factores altamente aleatórios, como sejam a existência de tempestades, imprevistos - “fortuna do mar” - [lembre-se o recentemente ocorrido com o cargueiro norueguês “Tampa” que teve que alterar a sua rota para socorrer náufragos], não é usual fixar prazo rigoroso para a duração de viagem, razão pela qual, salvo grave negligência do transportador, pretensos “atrasos” desde que não provoquem avaria ou perda das mercadorias, não são indemnizáveis.
O armador, no título de transporte, não assumiu a obrigação de entrega no prazo a que a Autora alude, o que bem se compreende pelas razões expostas, mais a mais, tratando-se de uma muito longa viagem, transoceânica.
Por outro lado, a Autora não provou que o navio não tivesse seguido a rota habitual ou que tivesse havido na base do pretenso atraso, negligência do armador.
Ora, no caso dos autos, a apelada enquanto planificadora e coordenadora do transporte, transitária, não se comprometeu, nem com o exportador, nem com o importador das mercadorias, a fazê-las aportar a Hong-Kong numa concreta data.
Limitou-se a informar que o “tempo de viagem era de cerca de 35 a 45 dias” – cfr. item 10º da matéria de facto provada.
Também a apelada informou a apelante que a viagem em causa ocorria, semanalmente, via Antuérpia, com saídas de 12 em 12 dias.
No item 11º da matéria de facto considerou-se provado que no conhecimento de embarque “não se referia qualquer transbordo” da mercadoria.
Não tendo as partes negociado a proibição de transbordo ou baldeação de mercadorias, tem pleno cabimento e aplicação a cláusula 7ª do conhecimento de embarque de fls. 100 v (traduzida para português) que estabelece;
"7. Baldeação e Expedição. Quer seja ou não expressamente acordado previamente, ou de outro modo, o transportador é livre de transportar as mercadorias para o porto de destino pelo dito navio ou outro navio ou navios, quer pertençam ao transportador quer a terceiros ou por outros meios de transporte, quer seja por água, terra ou ar, de acordo com a tarifa e condições aplicáveis e pode descarregar as mercadorias em qualquer lugar para baldeação, baldear para outro navio para terra ou armazém as mercadorias, tanto em terra firme como a flutuar e reembarcar ou reexpedir as mesmas”.
Efectivamente provou-se que houve baldeação da carga – cfr. pontos 14º a 20º da matéria de facto.
Havendo apenas uma estimativa de data para a chegada ao porto de destino e tendo sido lícita a baldeação da carga, a Autora não poderia ter uma certeza acerca da data da chegada da mercadoria e se puder responsabilizar a apelada pelos danos sofridos apenas o poderá fazer à luz dos princípios da culpa na formação do contrato, por eventual má informação que induziu a apelante em erro, e não com base na Convenção de Bruxelas.
Por outro lado, e ainda que a apelada “D....., Ldª” fosse passível de censura, nos termos em que a apelante o faz, sempre seria de questionar se, entre o seu comportamento e também o dos demais demandados, se pode afirmar uma relação de causalidade entre a sua conduta e o dano alegado pela Autora.
Com efeito e admitindo que se aplica, “in casu”, o regime do Código Civil português da responsabilidade civil contratual - art. 483º, nº1, do Código Civil - sempre seria de questionar se existe o imprescindível nexo de causalidade entre a conduta e os danos, como é pressuposto de tal responsabilidade, a par da ilicitude e da culpa.
“Existe nexo de causalidade quando os danos são consequência ou efeito da falta de realização da prestação debitória. É um elemento da responsabilidade do devedor. Ele só pode ser compelido a reparar os danos a que a sua conduta deu origem” - (Galvão Telles, Direito das Obriga-ções, 4ª ed.-254).
As vicissitudes que sofreu a mercadoria após a chegada a Hong-Kong e a actuação da importadora “I....., Inc.” com vista a minorar alegados danos pela chegada alegadamente tardia – descritos nos itens 35º a 40º da matéria de facto – salvo o devido respeito, não apresentam qualquer nexo de causalidade entra a pretensa não pontualidade do transporte e os prejuízos sofridos.
Dispõe o art. 563º do Código Civil:
“A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”.
“ A obrigação de reparar um dano supõe a existência de um nexo causal entre o facto e o prejuízo; o facto, lícito ou ilícito, causador da obrigação de indemnizar deve ser a causa do dano, tomada esta expressão agora no sentido preciso de dano real e não de mero dano de cálculo.
A dis-posição deste artigo, pondo a solução do problema na probabilidade de não ter havido prejuízo se não fosse a lesão, mostra que se aceitou a doutrina mais generalizada entre os autores - a doutrina da causalidade adequada -, que Galvão Telles formulou nos seguintes termos: “Determinada acção ou omissão será causa de certo prejuízo se, tomadas em conta todas as circunstâncias conhecidas do agente e as mais que um homem normal poderia conhecer, essa acção ou omissão se mostrava, à face da experiência comum, como adequada à produção do referido prejuízo, havendo fortes probabilidades de o originar” (Manual de Direito das Obrigações, n.º 229).
Vaz Serra, depois de referir alguns casos em que não há uma causa adequada, afirma igualmente:
“Não podendo considerar-se como causa em sentido jurídico toda e qualquer condição, há que restringir a causa àquela ou àquelas condições que se encontrem para com o resultado numa relação mais estreita, isto é, numa relação tal que seja razoável impor ao agente responsabilidade por esse mesmo resultado.”- cfr. “Código Civil Anotado” de Pires de Lima e Antunes Varela, 4ª edição , pág. 578.
Importa, então, afirmar que não foi do conhecimento do transportador qual o “destino” da mercadoria; nem à luz da experiência comum é razoável supor que o atraso na chegada da mercadoria iria determinar um longo périplo, que envolveu a remessa dela de Hong-Kong para a Coreia, o fabrico aí das camisas, e o reenvio da Coreia para os USA., tudo com os inerentes custos, pelos quais se pretende responsabilizar agora a apelada.
Inexistindo nexo de causalidade entre a conduta, ainda que pretensamente ilícita, e os danos, não há responsabilidade civil nem é legítimo exigir indemnização.
Decisão:
Nestes termos acorda-se em:
I) – Negar provimento ao recurso de agravo das rés - “United ..... Limited”, e “P..... D.....”- “Navio”, no que concerne à excepção da caducidade do direito de accionar:
II) – Conceder provimento ao recurso de agravo do réu “P..... D.....” no que concerne à “actio in rem”, revogando a decisão recorrida no que concerne à legitimidade de accionar “in rem” o Navio e absolvê-lo da instância;
III) – Consequentemente, não conhecer do recurso de apelação que interpôs aquele réu “P..... D.....” da condenação de que foi alvo, não subsistindo, por isso, a sentença na parte em que o condenou;
IV) – Negar provimento ao recurso da Autora, mantendo a absolvição da co-ré “D..... Ldª”, ainda que por fundamentos diversos dos que constam da sentença apelada.
Custas dos agravo referido em I) pelos ali recorrentes.
Custas do agravo referido em II) pela Autora-agravada.
Custas da apelação pela Autora.
Porto, 10 de Dezembro de 2001
António José Pinto da Fonseca Ramos
José da Cunha Barbosa
José Augusto Fernandes do Vale