Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
222/21.0PCMTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ QUARESMA
Descritores: CRIME DE BURLA QULIFICADA
MODO DE VIDA
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
Nº do Documento: RP20240207222/21.0PCMTS.P1
Data do Acordão: 02/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL/CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I - A circunstância modificativa agravante do modo de vida pressupõe a realização plúrima, ainda que intermitente, da conduta criminosa e a afetação dos recursos gerados ao sustento do agente, ainda que para tanto concorram rendimentos lícitos.
II - Não se tendo provado que a prática criminosa aportasse um rendimento exclusivo ou substancial para o sustento do agente, mas apurando-se que os proventos da(s) burla(s) se destinavam à satisfação de componentes desse seu “sustento” - como sejam a aquisição de vestuário e cuidados estéticos – contextualizada pelo período de execução do plano/estratagema e pela pluri-reincidência que sobressai das sucessivas condenações, tem-se no caso por verificada a qualificativa da burla.
III - Hodiernamente o “sustento” não integrará, apenas, o estritamente necessário à sobrevivência, como a alimentação ou habitação, mas implicará, também, outros valores que fazem parte de uma existência condigna e normal, como sejam momentos de lazer, aquisição de roupa, cuidados com a aparência e higiene.
IV - Tratando-se de agente que foi praticando várias burlas ao longo dos anos, em paralelo com o exercício, lícito, de outra atividade, sendo os proventos em dinheiro dessas atividades necessariamente fungíveis e complementares, impõe-se concluir, por ilação lógica e consistente com os factos provados, que o dinheiro obtido com as burlas comprovadamente praticadas concorreu (também) para o sustento do agente, ao integrar o pecúlio geral disponível a afetar à vivência normal daquele.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 222/21.0PCMTS.P1




Acordam em conferência na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I.

I.1
Nos autos de processo comum n.º 222/21.0PCMTS, que correu termos no Juízo Local Criminal de Matosinhos – Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, por sentença de 30.06.2023, na procedência da acusação decidiu-se, além do mais:
(…)
a) Condenar a arguida AA, pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, alínea b), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 7 (sete) meses de prisão.
b) Suspender a execução da pena de prisão aplicada à arguida AA pelo mesmo período de tempo, sujeitando-a a regime de prova.
c) Condenar o arguido BB pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, alínea b), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão.
d) Suspender a execução da pena de prisão aplicada ao arguido BB pelo mesmo período de tempo, sujeitando-a a regime de prova.
(…)
*
I.2
Inconformada, veio a arguida AA interpor o recurso ora em apreciação (Ref.ª 36523223) referindo, em conclusões, o que a seguir se transcreve:
1. Não pode a recorrente conformar-se com o subscrito na douta sentença.
2. Foi a arguida, ora recorrente, foi condenada pela prática de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelas disposições conjugadas pelos artigos 217.º, nº 1 e 218, nº 2, al. b), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 7 (sete) meses de prisão, suspensa a sua execução pelo mesmo período, sujeitando-a a regime de prova.
3. Sob pena de comprometer o embasamento das diligências adotadas e seus resultados, cumpre afirmar que, não se questionando a verosimilhança das ilações retiradas de uma apreciação crítica das provas, tem-se como inadequada, face aos factos apurados, a medida da pena concretamente aplicada.
4. A recorrente foi condenada por um crime de burla qualificado, previsto e punido pelo artº 218, nº 2, al. b) do Código Penal, havendo sido dado como provado que esta fazia da burla modo de vida.
5. Ora, e com o devido respeito, considera a recorrente não ter resultado provado na audiência e discussão de julgamento esta circunstância qualificativa do crime de burla.
6. Faz da burla modo de vida quem com a intenção de conseguir uma fonte contínua de rendimentos com repetição mais ou menos regular de factos dessa natureza. Embora a Lei não contenha elementos para avaliar o tempo necessário à definição do que seja um modo de vida, a agravação não se coaduna com a simples ocasionalidade.
7. Este modo de vida esta mais perto da noção “profissionalidade” do que da “habitualidade”.
8. Podemos, igualmente, considerar que o modo de vida é a atividade com que o agente se sustenta. Não é necessário que se trate de uma ocupação exclusiva, nem contínua, podendo até ser intermitente ou esporádica, mas necessariamente que contribua de forma significativa para o sustento do agente.
9. Deve ser assim uma forma de vida, bem como fonte dos proventos para a sustentação do agente que pratica o crime de burla.
10. Não é suficiente que as infrações tenham sido cometidas com o escopo de lucro ou com o fim de outro proveito económico, mas o conjunto das infrações deve revelar um sistema de vida, sustentando-se o agente nos proventos dos delitos cometidos.
11. In casu, a recorrente e apesar de ter plasmadas no seu certificado de registo criminal algumas condenações pela pratica de crimes idênticos, o facto é que estes foram praticados em períodos alargados de tempo, verificando-se um grande hiato temporal entre os ilícitos,
12. e não menos despiciendo, os crimes em que foi condenada são em numero relativamente reduzido.
13. Considera, assim, a recorrente ter havido uma incorreta apreciação da prova produzida em sede de audiência de julgamento, por insuficiente, não podendo, por tal, permitir ao Tribunal a quo condenar esta pela pratica de um crime de burla qualificada pelo modo de vida.
14. Devendo Vossa Excelências, com o devido respeito, revogar a pena no que tange à qualificativa do crime em causa, condenando a recorrente pela pratica de um crime de burla simples previsto e punido pelo artº 217, nº 1 do Código Penal.
15. Colocam-se, igualmente em crise os termos em que se procedeu à determinação da medida concreta da pena.
16. A douta sentença não ponderou tal dinâmica.
17. No caso sub júdice e com o devido respeito não foram convenientemente valoradas pelo Tribunal a quo as circunstâncias que determinaram a pena aplicada,
18. concretamente a culpa ínsita ao crime praticado ser reduzida, resultante do valor diminuto do enriquecimento ilegítimo por parte da recorrente,
19. a confissão integral e sem reservas e o ressarcimento da vitima.
20. Se de facto as necessidades de prevenção geral são elevadas, não o são as necessidades de prevenção especial, consideramos, assim, que a pena de prisão em que foi condenada a recorrente foi excessiva, devendo, por tal, ser determinada uma pena inferior.
21. Pugna a recorrente pela revogação da douta sentença no que especificamente refere a qualificativa do crime de burla, modo de vida, bem como quanto à pena condenatória vertida na douta sentença de que se recorre, que deve ser inferior.
22. Pelo exposto, deve ser condenada a recorrente pela pratica de um crime de burla simples, previsto e punido no artº 217, nº 1 do Código Penal, pena esta suspensa na sua execução, sujeita a regime de prova, conforme o prescrito nos artºs. 50º e 53º, do Código Penal.
23. A recorrente entende, igualmente, que deve ser apreciada a inconstitucionalidade da interpretação normativa do artigo 127º do Código Processo Penal, acolhida na decisão recorrida de que a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, permite o recurso às presunções de prova previstas nos artigos 349º e 350º do Código Civil, considerando e com o devido respeito, que tal interpretação ora colocada em crise viola as garantias de defesa e da presunção de inocência e o princípio in dúbio pro reo, consagrados no artigo 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa, bem como, do dever de fundamentar, estatuído no artigo 205º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa.
24. A recorrente considera e com o devido respeito que o Tribunal recorrido deveria ter aplicado os princípios constitucionais supra referidos aquando da interpretação normativa do artigo 127º do Código de Processo Penal, enquanto expressão garante da minimização de equívocos irrefletidos quando se recorre a este tipo de prova, como resulta do acórdão recorrida quando formou a sua convicção sobre a verdade do facto e o seu convencimento da veracidade do mesmo, para lá da dúvida razoável, sustentando tal convencimento em elementos de prova que mesmo concatenados com outros não deveriam ter permitido formar a convicção do Tribunal a quo, pela verdade do facto e sua demonstrabilidade no que concerne à prática dos crimes em causa.
25. Pelo exposto, foram violados os artºs. 217, nº 1 e 218, nº 2, al. b), 40, 50, 53, 70, 71, todos do Código Penal e artº 127 do Código Processo Penal, artºs. 32, nº 2 e 205, nº 1 da Constituição da Republica Portuguesa.
NESTES TERMOS, e nos mais de direito que Vossas Excelências doutamente suprirão, deverá ser revogada a decisão de que agora se recorre, fazendo-se a costumada JUSTIÇA!
*
I.3
Igualmente em dissídio com o decidido, veio o arguido BB interpor recurso (Ref.ª 36617354), referindo, em conclusão:
I. Vem o presente recurso interposto da sentença que condenou o Recorrente pela prática, em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, alínea b), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período de tempo, sujeitando-a a regime de prova.
II. As razões de discordância prendem-se com a avaliação da prova produzida em audiência de julgamento, a qual, sempre salvaguardando o devido respeito e consideração merecidos ao Meritíssimo Juiz “a quo”, foi manifestamente escassa ou até nenhuma, pelo que, e quanto mais não seja, sempre teria o arguido que ser absolvido por aplicação do princípio in dubio pro reo.
III. Em consonância com essa discordância, o arguido/Recorrente considera incorretamente julgada a factualidade, que o Tribunal “a quo” considerou provada, constante dos pontos 1, 2, 5, 6, 7, 11, 12, 13, 14 e 15 da sentença.
IV. Impõe uma decisão diversa, desde logo, a ausência de prova, em conjugação com o auto de notícia, o depoimento da testemunha da acusação CC, e as declarações dos arguidos, cujas transcrições integrais se anexam.
V. Das declarações da arguida AA não resulta a prova dos factos impugnados, nomeadamente quanto à intervenção do arguido e aqui recorrente na prática do crime de burla que a sentença lhe imputa, além de que desconsiderou o Tribunal a quo que as parcas referências feitas ao Recorrente pela arguida AA são resultado de perguntas sugestivas e capciosas, o que haveria de se refletir na valoração de tais declarações.
VI. Os trechos transcritos na motivação das declarações da arguida AA constituem toda a prova produzida nos autos relativamente ao Recorrente, resultando dos aludidos trechos que as breves referências ao Recorrente resultam de questões sugestivas e capciosas.
VII. No caso concreto, e como bem revelam os trechos transcritos das declarações da arguida AA, foram-lhe formuladas perguntas sugestivas e capciosas acerca da intervenção do Recorrente sobre os factos da acusação, o que, não tornando nula a prova produzida, tem obvias e relevantes implicações na valoração das declarações da arguida AA, faltando espontaneidade e genuinidade nas respostas.
VIII. De resto, as questões às quais a arguida respondeu de forma espontânea e genuína foi quando referiu que a intervenção do Recorrente se limitou à titularidade da conta bancária, e que este não estava a par ou ao corrente da generalidade da atuação da arguida.
IX. Tendo por base os trechos transcritos, e tendo em consideração que não subsiste qualquer outra prova que refira o arguido, não se vislumbra, contrariamente ao referido na motivação da sentença quanto à demonstração dos pontos 1) a 15) da matéria de facto provados, que as declarações da arguida tenham sido prestadas de modo espontâneo (muito pelo contrário) ou que esta tenha descrito qualquer plano gizado por si e pelo Recorrente, não tendo essa matéria factual, no que respeita à intervenção do Recorrente, respaldo na prova produzida.
X. Inclusive, conforme resulta das declarações da arguida, as páginas da internet foram criadas exclusivamente por si, sendo a única a publicitar quis bens ou a contactar com terceiros.
XI. A participação criminal que deu origem aos presentes autos a queixa foi apresentada única e exclusivamente contra a arguida AA, vindo mais tarde o Recorrente a ser arrastado para o processo e constituído arguido pela única e singela razão de ser o único titular da conta bancária para onde a ofendida transferiu a quantia de 136,50€, conta essa à qual a arguida AA tinha acesso e a movimentava, conforme referiu nas suas declarações.
XII. Do depoimento da testemunha e ofendida CC resulta que esta afirmou não conhecer e nunca ter contactado, por qualquer forma, com o Recorrente, tendo todos os contactos sido encetados exclusivamente com a arguida AA.
XIII. A condenação do Recorrente não constituiu o corolário ou consequência lógica da apreciação e valoração de qualquer provas concretas, antes resultando da falta de credibilidade que o Tribunal “a quo” conferiu às declarações prestadas pelo Recorrente (que negou os factos), em conjugação com os seus antecedentes criminais, tendo sido violado o princípio in dubio pro reo, bem como o princípio da livre apreciação da prova na medida em que da (ausência) de prova produzida não é possível extrair a conclusão de se terem demonstrado os factos provados e impugnados no que respeita à atuação do Recorrente.
XIV. Em face do supra exposto, entende o arguido/Recorrente que não poderia ter sido dado como provada, como foi, a matéria constante dos pontos 1, 2, 5, 6, 7, 11, 12, 13, 14 e 15 da factualidade provada.
XV. No ponto 1) dos factos provados, deve dar-se como não provado, por ausência de prova, que o Recorrente “em execução de plano por si previamente delineado e gizado, formulou o propósito de locupletar-se, indevidamente, com quantias pecuniárias a que sabia não ter direito”;
XVI. No ponto 2) dos factos provados, dar-se como não provado, por ausência de prova, que o Recorrente tenha “agido em conjugação de esforços e em execução em plano previamente delineado com a arguida”,
XVII. No ponto 5) dos factos provados, dar-se como não provado que “a ofendida tenha acreditado na efetiva intenção do arguido BB em vender-lhe e enviar-lhe os objetos descritos em 4)”, o que decorre das declarações da ofendida e da arguida AA, que relataram que o Recorrente nenhuma intervenção teve nesses contactos,
XVIII. No ponto 6) dos factos provados, dar-se como não provado que o Recorrente “BB, tal como fora sua intenção desde o início, não remeteu, nem dentro do prazo acordado (dia 30 de Março de 2021), nem em momento posterior e até à presente data, os correspetivos objetos referidos em 4).,
XIX. No ponto 7) dos factos provados, dar-se como não provado que o arguido BB, desde sempre, tenha apenas pretendido receber a quantia monetária paga pela ofendida CC, não tendo sido nunca sua intenção proceder à venda com posterior envio à ofendida dos objectos mencionados em 4).”,
XX. No ponto 11) dos factos provados, dar-se como não provado que “o arguido BB pretendeu criar a convicção errónea na ofendida CC e nas demais pessoas que acedessem, como acederam, à sua sobredita página de internet da rede social Facebook denominada DD Revenda, que efetivamente tinham disponibilidade e interesse em vender de artigos de vestuário e acessórios como sapatilhas, malas e carteiras.”
XXI. No ponto 12) dos factos provados, dar-se como não provado que “o arguido BB tenha agido com a intenção concretizada de convencer a ofendida CC a comprar-lhe os objeitos aludidos em 4), bem como a entregar-lhes o correspetivo valor de 136,50€ (cento e trinta e seis euros e cinquenta cêntimos) a título de preço das mesmas, bem sabendo que esta apenas aceitou efetuar tal compra por essa quantia por estar convencida de que os arguidos dispunham, efetivamente, dos mesmos objetos e lhos iriam remeter como acordado, a título de contrapartida.”
XXII. No ponto 13) dos factos provados, dar-se como não provado que “o arguido BB atuou de modo a suportar, de forma regular, os encargos inerentes a despesas com serviços de estética, aquisição de vestuário e aquisição de bens e serviços em cafés.”
XXIII. No ponto 14) dos factos provados, dar-se como não provado que “o arguido BB, ao agir da forma descrita, atuou, também, com a intenção de para si obterem, como obtiveram, um benefício indevido e de à ofendida CC causar, como causaram, os correspondentes prejuízos patrimoniais”,
XXIV. E no ponto 15) dos factos provados, dar-se como não provado que “o arguido BB, agiu de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo que a sua conduta era contrária ao direito e criminalmente punível.”
XXV. Com o devido respeito e salvo melhor opinião, dos fundados argumentos acima expostos e da alteração da factualidade provada, resulta que a correta e devida ponderação da prova produzida não poderá conduzir a outra conclusão que não seja a de que não ficou demonstrada a prática, pelo arguido ora Recorrente, dos factos pelos quais foi condenado, pelo que, ao invés do decidido, se impõe a sua ABSOLVIÇÃO relativamente ao crime de burla qualificada de que vinha acusado.
Sem prejuízo do supra exposto, e para a hipótese de improcedência da absolvição do arguido, o que apenas por dever de patrocínio se equaciona:
XXVI. Entende o recorrente que a pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão que lhe foi aplicada é manifestamente desproporcionada, assim como entende que não se encontra preenchida a circunstância qualificativa do crime de burla prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 218.º do CP, não subsistindo factos provados suscetíveis de preencher tal circunstância qualificativa.
XXVII. Pese embora o quadro factual resultante dos antecedentes criminais alusivo a quatro condutas configuradoras de crimes de burla, as mesmas não se mostram concentradas no tempo (os factos foram praticados em 06/01/2016, 08/06/2020, 06/2020 e 05/01/2021, respetivamente), a que acresce o montante reduzido das quantias resultantes dos ilícitos, e a situação socioeconómica do mesmo, de onde resulta que o arguido labora, o que não consente, por ilação lógica, ter-se por verificada a referida qualificativa, tendo-se como inadequada a medida da pena concretamente aplicada.
XXVIII. Com o devido respeito, e sem prejuízo de não ter sido produzida prova quanto à prática, pelo arguido, do crime de burla de que vinha acusado, muito menos foi provado, na audiência de discussão e julgamento, a circunstância qualificativa do crime de burla como modo de vida.
XXIX. In casu, o recorrente, e apesar de ter plasmadas no seu certificado de registo criminal quatro condenações pela prática de crimes idênticos, o facto é que estes foram praticados em períodos alargados de tempo, verificando-se um grande hiato temporal entre os ilícitos, e não menos despiciendo, os valores resultantes do ilícito são reduzidos, não permitindo sustentar um modo de vida, pelo que considera o recorrente ter havido uma incorreta apreciação da prova produzida em sede de audiência de julgamento, por insuficiente, não podendo, por tal, permitir ao Tribunal a quo condenar o arguido pela prática de um crime de burla qualificada pelo modo de vida.
XXX. Deverá a sentença ser revogada no que especificamente respeita à qualificativa do crime de burla como modo de vida, bem como quanto à pena condenatória vertida na sentença de que se recorre, que deverá ser consideravelmente inferior.
XXXI. Por outro lado, e salvo o devido respeito, entende o Recorrente que o Tribunal a quo violou os normativos correspondentes à determinação da medida da pena nos termos do disposto no artigo 71.º do Código Penal.
XXXII. Na determinação concreta da pena deve o Tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do arguido e contra ele, designadamente o modo e execução e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao arguido (grau de ilicitude do facto); a intensidade do dolo; os fins ou motivos que determinaram o cometimento do crime e os sentimentos manifestados as condições pessoais e económicas do agente; a conduta anterior e posterior ao facto e ainda a falta ele preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
XXXIII. É entendimento do recorrente que na hipótese de improcedência da sua absolvição face à ausência de prova, deveria ter condenado o arguido numa pena mais harmoniosa, proporcional e justa face às circunstâncias expostas, de acordo com o disposto no artigo 71.º do Código Penal, o qual se mostra violado.
XXXIV. Face ao exposto, e ao muito que será suprido por vossas excelências, requer respeitosamente a V. Exas. se dignem conceder provimento ao presente recurso, e revogar a sentença que condenou o recorrente, por ser desproporcionada às finalidades da punição, condenando o recorrente pela prática de um crime de burla simples, previsto e punido no artº 217, nº 1 do Código penal, pena esta suspensa na sua execução, sujeita a regime de prova, conforme o prescrito nos artºs. 50º e 53º, do Código Penal.
TERMOS EM QUE DEVE CONCEDER-SE INTEGRAL PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, REVOGANDO E MODIFICANDO A SENTENÇA RECORRIDA NOS TERMOS SUPRA EXPOSTOS, FAZENDO-SE DESSA FORMA A HABITUAL JUSTIÇA.
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I.4
Admitidos os recursos, por tempestivos e legais, o Ministério Público - quanto ao recurso interposto pela arguida AA - apresentou articulado de resposta, sem formulação de conclusões (Ref.ª 37029229), pugnando pela preservação do decidido porquanto, perante o primeiro facto dado como provado, em conjugação com os antecedentes criminais da arguida, é inequívoco que a integração jurídica daqueles e dos demais, dados como provados, foi efetuada de forma correta, tendo por verificada a qualificativa do “modo de vida”.
Também a pena concretamente aplicada, na ótica do Ministério Público, se mostra ajustada, considerada a intensidade do dolo e as fortes exigências de prevenção especial.
*
No que tange ao recurso interposto pelo coarguido, o Ministério Público ofereceu resposta (Ref.ª 37029512), igualmente sem formulação de conclusões, pugnando pela improcedência da pretensão recursória referindo, em síntese, que a prova foi devidamente valorada pelo Tribunal a quo, sendo a pretensa impugnação da matéria de facto alicerçada, apenas, em distinta avaliação dessa mesma prova preconizada pelo recorrente, insuscetível de motivar a alteração do decidido.
Por outro lado, inexiste qualquer violação do princípio in dubio pro reo ante a inexistência de qualquer non liquet probatório a resolver a favor do recorrente.
Por fim, face aos factos apurados, encontra-se verificada a circunstância qualificativa do “modo de vida”, sendo a pena concretamente aplicada adequada ao caso.
*
O recorrente BB pronunciou-se, como sujeito afetado pelo recurso, relativamente ao recurso apresentada pela coarguida, sufragando a procedência dos seus argumentos.
*
I.4.
Neste Tribunal a Digna Procuradora-Geral Adjunta teve vista nos autos, tendo emitido parecer (Ref.ª 17523118), sufragando integralmente a análise das questões suscitadas pelos arguidos efetuada pelo Ministério Público em primeira instância, entendendo ser de negar provimento aos recursos e manter, na íntegra, a decisão condenatória.
*
I.5
Deu-se cumprimento ao disposto no art.º 417.º n.º 2 do C.P.P., não tendo sido exercido o contraditório.
Foram os autos aos vistos e procedeu-se à conferência, importando, pois, apreciar e decidir.
*
II.
Questões a decidir:
Conforme jurisprudência recorrente e pacífica, o âmbito de qualquer recurso é delimitado pelas conclusões que sobrevêm às alegações do recorrente, sem prejuízo do conhecimento, ainda que oficioso, dos vícios da decisão a que se alude no n.º 2 do art.º 410.º do C.P.P. (cfr. art.ºs 119.º, n.º 1, 123.º, n.º 2 e 410.º, n.º 2, als. a) a c) do C.P.P. e Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, de 19.10).
No caso, vistas as conclusões apresentadas em sede recursória, constitui objeto do presente recurso apreciar:
II.1
Recurso da arguida AA
a) Do preenchimento da qualificativa do crime de burla
b) Da adequação da pena aplicada
c) Da inconstitucionalidade do recurso a presunções judiciais.
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II.2
Recurso do arguido BB
a) Do erro de julgamento
b) Da violação do princípio in dubio pro reo
c) Do preenchimento da qualificativa do crime de burla
d) Da adequação da pena aplicada
*
III.
III.1
Por facilidade de exposição, retenha-se o teor da sentença posta em crise, na parte atinente à respetiva fundamentação de facto:
(…)
*
3. Fundamentação de facto
a) Factos provados
1) Desde data não concretamente apurada, mas certamente anterior a 1 de Janeiro de 2016 e até pelo menos 21 de Março de 2021, os arguidos AA e BB em execução de plano por si previamente delineado e gizado, formularam o propósito de locupletar-se, indevidamente, com quantias pecuniárias a que sabiam não ter direito, provenientes de terceiros incautos que contactassem com a arguida AA através da internet, para efeitos de aquisição de artigos de vestuário e acessórios como sapatilhas, malas e carteiras e de arrendamento de habitações, pretensamente na sua disposição, por si anunciados em páginas de internet da rede social Facebook por si criadas, nomeadamente, com a denominação/nome de perfil ..., DD Revenda e Arrendar por Indicação Portugal.
2) Assim, com tal desiderato, aproveitando as possibilidades de anonimato fornecidas pela internet, em data não concretamente determinada, mas seguramente anterior a 21 de Março de 2021, a arguida AA, agindo em conjugação de esforços e em execução em plano previamente delineado com BB, anunciou na página de internet da rede social Facebook por si criada, denominada DD Revenda, a sua pretensa predisposição para vender artigos de vestuário e acessórios como sapatilhas, malas, carteiras e porta-moedas, ostentando os dizeres e logótipos das marcas All Star, Fila, Cavalinho, Prada, Guess e Tous, respectivamente, por valores unitários de 6,70€ (seis euros e setenta cêntimos), no caso das sapatilhas, e pelo valor mínimo de 5,00€ (cinco euros) no caso das malas e carteiras.
3) Após ter acedido à sobredita página de internet e tomado conhecimento do seu supra referido conteúdo, em 21 de Março de 2021, a ofendida CC entrou em contacto com a arguida AA através do sistema de mensagens electrónicas Messenger associado a tal página de internet da rede social Facebook.
4) A ofendida CC acordou com a arguida AA a compra de 5 pares de sapatilhas ostentando os dizeres e logótipos da marca All Star, de 5 pares de sapatilhas ostentando os dizeres e logótipo da marca Fila e de uma mala/carteira ostentando os dizeres e logótipos da marca Prada, de uma mala/carteira ostentando os dizeres e logótipos da marca Guess e de duas malas/carteiras ostentando os dizeres e logótipos da marca Tous, pelo montante total de 136,50€ (cento e trinta e seis euros e cinquenta cêntimos), valor que incluía já os custos do seu envio à ofendida.
5) Nessa sequência, no dia 26 de Março de 2021, crente na genuinidade do conteúdo da aludida página de internet da rede social Facebook decorrente da predisposição para venda que nela era anunciada e na aparência de fidedignidade que esta, pelas suas características, criava, e, acreditando na efectiva intenção dos arguidos AA e BB em vender e enviar-lhe os objectos descritos em 4), a ofendida procedeu à transferência da mencionada quantia de 136,50€ (cento e trinta e seis euros e cinquenta cêntimos) para a conta bancária n.º PT50....36 da instituição bancária Banco 1..., S.A. titulada e pertencente ao arguido BB.
6) Pese embora a ofendida CC tivesse procedido à transferência bancária com o inerente pagamento da referida quantia de 136,50€ (cento e trinta e seis euros e cinquenta cêntimos), apesar das várias insistências por meio de mensagens de texto enviadas pela ofendida através do distema de mensagens electrónicas messenger associado à aludida página do Facebook, os arguidos AA e BB tal como fora sua intenção desde o início, não remeteram, nem dentro do prazo acordado (dia 30 de Março de 2021), nem em momento posterior e até à presente data, os correspectivos objectos referidos em 4).
7) Tendo os arguidos AA e BB, desde sempre, apenas pretendido receber a quantia monetária paga pela ofendida CC, não tendo sido nunca sua intenção proceder à venda com posterior envio à ofendida dos objectos mencionados em 4).
8) No período temporal compreendido entre 1 de Janeiro de 2016 e 21 de Março de 2021, o arguido BB exerceu actividade profissional como operário de construção civil.
9) Por sua vez, no mesmo lapso temporal compreendido entre 1 de Janeiro de 2016 e 21 de Março de 2021, a arguida AA exerceu actividade profissional como costureira.
10) À data, ambos os arguidos residiam em habitação arrendada, juntamente com 3 filhos menores do casal, pela qual despendiam a quantia mensal de 350,00€ (trezentos e cinquenta euros) a título de renda.
11) Ao actuarem da forma supra descrita, os arguidos AA e BB pretenderam criar a convicção errónea na ofendida CC e nas demais pessoas que acedessem, como acederam, à sua sobredita página de internet da rede social Facebook denominada DD Revenda, que efectivamente tinham disponibilidade e interesse em vender de artigos de vestuário e acessórios como sapatilhas, malas e carteiras.
12) Agindo ainda os arguidos AA e BB, com a intenção concretizada de convencer a ofendida CC a comprar-lhe os objectos aludidos em 4), bem como a entregar-lhes o correspectivo valor de 136,50€ (cento e trinta e seis euros e cinquenta cêntimos) a título de preço das mesmas, bem sabendo que esta apenas aceitou efectuar tal compra por essa quantia por estar convencida de que os arguidos dispunham, efectivamente, dos mesmos objectos e lhos iriam remeter como acordado, a título de contrapartida.
13) Os arguidos actuaram de modo a suportar, de forma regular, os encargos inerentes a despesas com serviços de estética, aquisição de vestuário e aquisição de bens e serviços em cafés.
14) Ao agirem da forma descrita os arguidos AA e BB actuaram também, com a intenção de para si obterem, como obtiveram, um benefício indevido e de à ofendida CC causar, como causaram, os correspondentes prejuízos patrimoniais, que ascenderam, pelo menos, ao citado valor de 136,50€ (cento e trinta e seis euros e cinquenta cêntimos) que a mesma despendeu em 26 de Março de 2021, com a transferência bancária efectuada para efeitos de pagamento da compra dos aludidos objectos descritos em 4).
15) Os arguidos AA e BB, ao actuarem da forma supra descrita, agiram ainda, sempre de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo que a sua conduta era contrária ao direito e criminalmente punível.
Mais se provou quanto à arguida AA:
16) O seu processo de desenvolvimento decorreu num contexto sociofamiliar modesto, marcado pela separação dos pais durante alguns anos, pelo que a mãe foi figura central no seu processo educativo.
17) Abandonou a escola com 13 anos de idade após a conclusão do 6.º ano de escolaridade, tendo iniciado, por esta altura, o seu percurso laboral, ainda que pouco consistente, como operária têxtil.
18) Contraiu casamento aos 18 anos de idade com o arguido BB, do qual nasceram quatro filhos.
19) O casal separou-se em meados de 2022, estando actualmente divorciados.
20) Trabalha como costureira, auferindo a quantia semanal de cerca de 300,00€ (trezentos euros).
21) Reside com o actual companheiro em casa arrendada, despendendo 200,00€ (duzentos euros mensais) a título de renda.
22) Os filhos da arguida encontram-se à guarda dos avós maternos, no âmbito do processo 1977/22.0T8BCL, que corre termos no Tribunal de Família e Menores de Barcelos, em processo de promoção e proteção dos menores, com duração de 1 ano, revista de 6 em 6 meses.
23) Tem como despesas fixas mensais, além da renda referida em 21), a prestação de um crédito automóvel no valor de 250,00€ (duzentos e cinquenta euros) e a pensão de alimentos dos filhos, que se encontram à guarda dos avós maternos, no valor de 200,00€ (duzentos euros).
24) Recorreu a consulta de urgência no dia 05/06/2023, onde solicitou o encaminhamento para consulta de psiquiatria.
25) Foi condenada:
i. por sentença datada de 24/10/2017, transitada em julgado em 14/11/2017, no âmbito do processo sumaríssimo n.º 482/16.9PLLRS, do Juízo de Pequena Criminalidade de Loures – Juiz 2, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 6,00€, pela prática, em 30/05/2016, de um crime de burla simples previsto e punido pelo artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal. Esta pena foi declarada extinta em 30/05/2019, pelo cumprimento.
ii. por sentença datada de 10/04/2018, transitada em julgado em 28/05/2020, no âmbito do processo comum n.º 74/16.2GALSD, do Juízo Local Criminal de Penafiel – Juiz 1, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 5,00€, pela prática, em 06/01/2016, de um crime de burla simples previsto e punido pelo artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal. Esta pena foi declarada substituída por 100 horas trabalho em 09/10/2020, tendo sido extinta em 26/10/2021, pelo cumprimento.
iii. por sentença datada de 07/02/2019, transitada em julgado em 21/06/2019, no âmbito do processo comum n.º 193/16.5GFLLE, do Juízo Local Criminal de Loulé – Juiz 2, na pena de 220 dias de multa, à taxa diária de 5,00€, pela prática, em 2016, de um crime de burla simples previsto e punido pelo artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal. Esta pena foi substituída por 220 horas de trabalho em 23/09/2019, tendo sido declarada extinta em 13/06/2020, pelo cumprimento.
iv. por sentença datada de 10/12/2020, transitada em julgado em 12/01/2021, no âmbito do processo sumaríssimo n.º 2392/19.9GBABF, do Juízo Local Criminal de Albufeira – Juiz 1, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de 5,00€, pela prática, em 11/10/2019, de um crime de burla simples previsto e punido pelo artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal. Esta pena foi declarada extinta, em 04/04/2022, pelo cumprimento.
v. por sentença datada de 06/01/2021, transitada em julgado em 26/01/2021, no âmbito do processo sumaríssimo n.º 1367/19.2S5LSB, do Juízo de Pequena Criminalidade de Lisboa – Juiz 2, na pena 30 dias de multa, à taxa diária de 5,00€, pela prática, em 19/10/2019, de um crime de burla informática e nas comunicações, previsto e punido pelo artigo 221.º, n.º 1 do Código Penal. Esta pena foi substituída por 30 horas de trabalho em 13/09/2021, tendo sido declarada extinta em 13/11/2021, pelo cumprimento.
vi. por sentença datada de 21/01/2021, transitada em julgado em 20/09/2021, no âmbito do processo comum n.º 1275/19.7PFLRS, do Juízo Local Criminal de Lisboa – Juiz 7, na pena de prisão de 1 ano, suspensa na sua execução pelo mesmo período, subordinada ao cumprimento do dever de a arguida entregar ao Banco Alimentar Contra a Fome a quantia de 300,00€ (trezentos euros) fazendo prova de tal pagamento no prazo de 3 meses, pela prática, em 25/08/2019, de um crime de burla simples previsto e punido pelo artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal.
vii. por sentença datada de 19/01/2022, transitada em julgado em 15/03/2022, no âmbito do processo comum n.º 1326/19.5PBVCT, do Juízo Local Criminal de Viana do Castelo – Juiz 1, na pena de 220 dias de multa, à taxa diária de 5,00€, pela prática, em 11/2019, de um crime de burla simples previsto e punido pelo artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal. Esta tendo sido declarada extinta em 30/11/2020, pelo cumprimento.
viii. por sentença datada de 17/02/2022, transitada em julgado em 31/03/2022, no âmbito do processo comum n.º 450/20.6PCSNT, do Juízo Local Criminal de Sintra – Juiz 4, na pena de prisão de 1 ano e 6 meses, suspensa na sua execução pelo mesmo período, com sujeição a regime de prova, pela prática, em 08/04/2022, de um crime de burla simples previsto e punido pelo artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal.
ix. por sentença datada de 03/10/2022, transitada em julgado em 02/11/2022, no âmbito do processo comum n.º 93/21.7GAVCD, do Juízo Local Criminal de Vila do Conde – Juiz 2, na pena de 40 dias de multa, à taxa diária de 6,00€, pela prática, em 30/01/2021, de um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigosg 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, do Código Penal. Esta pena foi substituída por prisão subsidiária de 26 dias, tendo sido declara extinta em 15/03/2023, em virtude do cumprimento da pena de multa.
x. por sentença datada de 10/02/2023, transitada em julgado em 10/02/2023, no âmbito do processo sumaríssimo n.º 116/20.7GEVCT, do Juízo Local Criminal de Viana do Castelo – Juiz 2, na pena de prisão de 1 ano, suspensa na sua execução pelo mesmo período, condicionada ao pagamento ao ofendido da indemnização de 500,00€ (quinhentos euros), no prazo de 6 meses, pela prática em 05/2020, de um crime de burla simples, previsto e punido pelo artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal.
xi. por sentença datada de 13/02/2023, transitada em julgado em 23/03/2023, no âmbito do processo comum n.º 804/19.0PAMGR, do Juízo de Competência Genérica da Marinha Grande – Juiz 2, na pena de prisão de 1 ano, suspensa na sua execução pelo mesmo período, condicionada ao pagamento a EE da quantia de 85,00€ (oitenta e cinco euros) até ao termo da suspensão, pela prática, em 27/11/2019, de um crime de burla simples previsto e punido pelo artigo 217.º, n.º 1 do Código Penal.
Mais se provou quanto ao arguido BB:
26) Nasceu em Barcelos onde decorreu o seu percurso de desenvolvimento integrado num agregado familiar de modestas condições sócio-económicas.
27) Ao nível académico apresentou dificuldades de aprendizagem, tendo-se habilitado com o 6.º ano de escolaridade.
28) Apresenta um percurso profissional precário e inconsistente, tendo subsistido maioritariamente ao longo do percurso vivencial, com base no apoio dos progenitores e sogros e de expedientes.
29) Trabalha actualmente como servente de construção civil, auferindo o salário mínimo mensal.
30) Reside com os pais, em casa propriedade destes.
31) Tem como despesas fixas mensais o valor de 75,00€ (setenta e cinco euros) relativos a um crédito pessoal.
32) Está obrigado a pagar alimentos aos filhos, que se encontram à guarda dos avós maternos, no valor de 200,00€ (duzentos euros).
33) Foi condenado:
i. por sentença datada de 10/04/2018, transitada em julgado em 28/05/2020, no âmbito do processo comum n.º 74/16.2GALSD, do Juízo Local Criminal de Penafiel – Juiz 1, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 5,00€, pela prática, em 06/01/2016, de um crime de burla simples previsto e punido pelo artigo 217.º, n.º 1 do Código Penal. Esta pena foi substituída por 100 horas trabalho em 09/10/2020, tendo perdido a sua autonomia em 12/07/2021, por ter sido englobada em cúmulo jurídico superveniente.
ii. por sentença datada de 04/03/2020, transitada em julgado em 29/06/2020, no âmbito do processo sumário n.º 60/20.8GAPVZ, do Juízo Local Criminal da Póvoa de Varzim, na pena de 75 dias de multa, à taxa diária de 5,00€, pela prática, em 18/02/2020, de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, com referência ao artigo 121.º do Código da Estrada. Esta pena foi substituída por 75 horas trabalho em 23/11/2020, tendo perdido a sua autonomia em 12/07/2021, por ter sido englobada em cúmulo jurídico superveniente.
iii. por sentença datada de 21/10/2020, transitada em julgado em 23/11/2020, no âmbito do processo sumário n.º 669/20.0PAVNF, do Juízo Local Criminal de Vila Nova de Famalicão – Juiz 1, na pena de 2 meses de prisão, substituída por 60 dias de multa, à taxa diária de 5,50€, pela prática, em 04/10/2020, de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro. Esta pena foi declarada extinta em 15/07/2021, pelo cumprimento.
iv. por sentença datada de 22/10/2020, transitada em julgado em 23/11/2020, no âmbito do processo abreviado n.º 680/20.0T9PVZ, do Juízo Local Criminal da Póvoa de Varzim, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de 5,00€, pela prática, em 28/04/2020, de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro. Esta pena perdeu a sua autonomia em 07/12/2021, por ter sido englobada em cúmulo jurídico superveniente.
v. por sentença datada de 09/04/2021, transitada em julgado em 10/05/2021, no âmbito do processo abreviado n.º 410/19.0GAPVZ, do Juízo Local Criminal da Póvoa de Varzim, na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de 5,00€, pela prática, em 01/12/2019, de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro. Esta pena perdeu a sua autonomia em 07/12/2021, por ter sido englobada em cúmulo jurídico superveniente.
vi. por sentença datada de 27/04/2021, transitada em julgado em 01/07/2021, no âmbito do processo sumaríssimo n.º 306/20.2GAPFR, do Juízo Local Criminal de Paços de Ferreira, na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de 5,00€, pela prática, em 08/06/2020, de um crime de burla simples previsto e punido pelo artigo 217.º, n.º 1 do Código Penal. Esta pena foi substituída por 150 horas trabalho em 09/10/2020, tendo sido extinta em 07/03/2023, pelo cumprimento.
vii. por sentença cumulatória datada de 11/06/2021, transitada em julgado em 12/07/2021, no âmbito do processo abreviado n.º 410/19.0GAPVZ, do Juízo Local Criminal da Póvoa de Varzim, na pena de 250 dias de multa, à taxa diária de 5,00€, abrangendo as penas aplicadas nos seguintes processos: i. processo n.º 74/16.2GALSD, do Juízo Local Criminal de Penafiel – Juiz 1; ii. processo n.º 410/19.0GAPVZ, do Juízo Local Criminal da Póvoa de Varzim; iii. processo n.º 680/20.0T9PVZ, do Juízo Local Criminal da Póvoa de Varzim; iv. processo n.º 60/20.8GAPVZ, do Juízo Local Criminal da Póvoa de Varzim.
viii. por sentença datada de 19/01/2022, transitada em julgado em 15/03/2022, no âmbito do processo comum n.º 1326/19.5PBVCT, do Juízo Local Criminal de Viana do Castelo – Juiz 1, na pena de 160 dias de multa, à taxa diária de 5,00€, pela prática, em 06/2020, de um crime de burla simples previsto e punido pelo artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal. Esta tendo sido declarada extinta em 28/10/2022, pelo cumprimento.
ix. por sentença datada de 14/09/2022, transitada em julgado em 04/11/2022, no âmbito do processo comum n.º 1032/21.0T9BCL, do Juízo Local Criminal de Barcelos – Juiz 1, na pena de 160 dias de multa, à taxa diária de 5,00€, pela prática, em 22/07/2021, de um crime de falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução, previsto e punido pelo artigo 360.º, n.º 1 e 2, do Código Penal.
x. por sentença datada de 29/11/2022, transitada em julgado em 04/01/2023, no âmbito do processo sumaríssimo n.º 10/21.4GCBNV, do Juízo Local Criminal de Benavente – Juiz 2, na pena de 320 dias de multa, à taxa diária de 5,50€, pela prática, em 05/01/2021, de um crime de burla simples previsto e punido pelo artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal. Esta pena foi convertida em prisão subsidiária de 161 dias.
Mais resultou assente que:
34) A arguida ressarciu a ofendida do montante referido em 5).
35) A ofendida manifestou pretender desistir da queixa e os arguidos declararam aceitar essa desistência.
b. Factos não provados
a) O arguido BB criou as páginas de internet da rede social Facebook referidas em 1).
b) Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 3), a ofendida CC, entrou em contacto com o arguido BB.
c) Nas circunstâncias referidas em 8) e 9), os arguidos auferiam a título de vencimento a quantia de 705,00€ (setecentos e cinco euros).
d) A actuação dos arguidos dirigiu-se a suportar os encargos inerentes ao seu dia-a-dia e, de assim, significativamente/substancialmente conseguirem obter, de forma regular, rendimentos para proverem ao seu sustento e do seu agregado familiar.
*
Motivação
Considerando os princípios e regras legais atinentes ao sistema probatório - isto é, aos meios de prova, meios de obtenção de prova e força probatória, o tribunal formou a sua convicção de acordo com o princípio de livre apreciação da prova (artigo 127.º do Código de Processo Penal), livre apreciação que não se confunde com exame arbitrário ou análises subjectivas do julgador, incontroláveis e imotiváveis.
Os pontos 1) a 15) da matéria de facto provada resultam das declarações espontâneas, credíveis e objectivas prestadas pela arguida, que admitiu os factos constantes da acusação, confirmando as circunstâncias de tempo, modo e lugar dos mesmos, admitindo ter efectivamente criado a aludida página na rede social Facebook, descrevendo o plano gizado por si e pelo arguido BB, relatando a participação de cada um no mesmo.
Nesta sequência, a arguida explicou que a si cabia criar as referidas páginas de internet, sendo o arguido responsável pela disponibilização da conta si pertencente, referindo que a conta referida em 5) foi aberta para este efeito. A arguida explicou ainda que o arguido acedia à aludida conta, usufruindo do dinheiro que para ali era transferido, que usava essencialmente em cafés.
Atento o relato que a arguida fez, assumindo a sua responsabilidade e descrevendo uma participação que, em extensão, se afigura maior que a do seu co-arguido, não se vislumbra qualquer razão para se concluir que a arguida pretendia prejudicar a posição processual do último, pelo que logrou convencer o tribunal.
Os factos relatados pela arguida são coincidentes com o depoimento, espontâneo e isento, da ofendida CC que identificou a arguida AA como sendo a pessoa com quem sempre contactou, confirmando que encomendou os objectos aludidos em 4) e que nunca os recebeu. A testemunha atestou ainda que a arguida, no dia anterior ao julgamento, terá efectuado uma transferência no valor de 136,50€ (cento e trinta e seis euros e cinquenta cêntimos) para conta por si indicada.
Acresce que tais declarações da arguida e o depoimento da ofendida estão em consonância com o teor da prova documental junta aos autos, designadamente:
− prints de mensagens de texto escrito de fls. 6 a 15, contendo as mensagens enviadas e recebidas pela ofendida no Messenger da sobejamente referida página de Facebook, sendo que a fls. 13 a ofendida identifica a pessoa com quem fala como AA e refere-se ainda a um café sito na freguesia ..., localidade onde os arguidos residiam à data;
− print de comprovativos de transferências bancárias efectuadas pela ofendida via mbway de fls. 16; 17; 22; 23 e 66;
− prints de fls. 18 a 27, 35 a 60, contendo diversas denúncias em páginas de Facebook relativamente a factos da mesma natureza onde são identificados os arguidos;
− prints de perfil de Facebook de fls. 28 a 34;
− informação bancária do Banco 1..., S.A. de fls. 67 que identifica o arguido como único titular da conta referida em 5);
− extractos bancários do Banco 1..., S.A., do período compreendido entre 24/03/2021 e 05/05/2021 de fls. 68 a 71, referentes à conta aludida em 5) onde é possível verificar a existência de 45 movimentos de crédito através de mbway e transferência bancária de valores que oscilam entre os 8,00€ (oito euros) e os 430,20€ (quatrocentos e trinta euros e vinte cêntimos);
− prints da base de dados de identificação civil de fls. 75; 76; 88 e 89;
− print da base de dados da Autoridade Tributária e Aduaneira de fls. 77; certidões de assento de nascimento de fls. 172 a 175;
− informações da Vodafone de fls. 190 e 191;
− print da base de dados do Instituto da Segurança Social de fls. 197 a 199;
− informações da Autoridade Tributária e Aduaneira de fls. 355 a 380;
− Cópia de despacho de acusação dos autos de processo comum singular n.º 430/20.9GCSTS de fls. 192 a 196;
− Cópia de elementos dos autos de processo comum singular n.º 368/20.2GAPVZ de fls. 233 a 241;
− Cópia de elementos dos autos de processo especial abreviado n.º 410/19.0GAPVZ de fls. 242 a 267;
− Cópia de elementos dos autos de processo comum singular nº 93/21.7GAVCD de fls. 268 a 282;
− Certidão por fotocópia dos autos de processo especial sumaríssimo n.º 74/16.2GALSD de fls. 94 a 108;
− Certidão por fotocópia dos autos de processo especial sumaríssimo n.º 482/16.9PLLRS de fls. 307 a 311;
− Certidão por fotocópia dos autos de processo especial sumaríssimo n.º 2392/19.9GBABF de fls. 297 a 300;
− Certidão por fotocópia dos autos de processo especial sumaríssimo n.º 306/20.2GAPFR de fls. 301 a 306;
− Certidão por fotocópia dos autos processo comum singular n.º 450/20.6PCSNT de fls. 387 a 404;
− Certidão por fotocópia dos autos processo comum singular n.º 193/16.5GFLLE de fls. 336 a 345;
− Certidão por fotocópia dos autos processo comum singular n.º 1275/19.7PFLRS de fls. 347 a 354;
− Certidão por fotocópia dos autos processo comum singular n.º 1326/19.5PBVCT de fls. 312 a 328.
O arguido BB também prestou declarações, negando a prática dos factos. No entanto, face à inverosimilhança e inconsistência das mesmas, não logrou o arguido contrariar o que resulta da prova produzida e supra elencada.
O arguido começou por negar em absoluto qualquer conhecimento acerca da actividades descritas na acusação e dos movimentos associados à conta bancária referida em 5), invocando, para o efeito, que tem dificuldades de leitura e escrita.
Sendo certo que dos autos resulta que o mesmo padece de dificuldades de aprendizagem, a sua versão quanto ao completo desconhecimento das aludidas circunstâncias não se afigura minimamente consentânea com as regras da experiência.
Em primeiro lugar, o alegado desconhecimento de tal actividade resulta contrariado pelas declarações do próprio que, posteriormente, referiu terem sido ambos detidos no aeroporto ..., quando regressavam do Canadá, por factos de igual natureza.
Acresce que tal versão é frontalmente desmentida pelo teor dos certificados de registo criminal dos arguidos devidamente conjugado com o teor da cópia por certidão da sentença de fls. 312 a 328. Da conjugação dos referidos documentos resulta que os arguidos sofreram uma condenação pela prática, em 2019, e em co-autoria, de um crime de burla no âmbito do processo comum n.º 1326/19.5PBVCT, do Juízo Local Criminal de Viana do Castelo – Juiz 1, não podendo o arguido desconhecer tal facto.
No que se refere ao alegado desconhecimento dos movimentos da conta bancária aludida em 5), o arguido explicou que, face às mencionadas dificuldades de leitura e escrita, não sabe utilizar e consultar quaisquer contas bancárias.
Desde logo, se o arguido consegue explicar e entender a natureza e necessidade de abertura de uma conta-ordenado, razão que avançou para a abertura da conta referida em 5), não se afigura verosímil que o mesmo não saiba efectuar quaisquer movimentos ou levantamentos no multibanco. Posteriormente, o arguido acabou por admitir que efectivamente aprendeu a fazer tais movimentos, reconhecendo que efectuou movimentos e levantamentos da referida conta, referindo-se aos movimentos decorrentes da actividade descrita na acusação como sendo “de baixo valor”.
Ainda quanto à inconsistência das declarações do arguido, não pode deixar de se atender à circunstância de aquele ter começado por referir que teve a necessidade de abrir a conta referida em 5) como uma conta-ordenado, onde receberia o seu vencimento, para depois dizer que o seu ordenado era pago em dinheiro, tentando, assim, justificar a alegação de desconhecimento dos movimentos efectuados na sua conta.
De acordo com as regras da experiência comum e a normalidade do acontecer, as pessoas que são titulares de uma conta bancária, na qual recebem montantes cuja proveniência não é do seu trabalho ou de qualquer outro rendimento ou ganho, quantias essas que são posteriormente movimentadas, fazem-no conhecendo a origem de tais montantes.
Importa ainda referir que dos extractos bancários do Banco 1..., S.A., do período compreendido entre 24/03/2021 e 05/05/2021 de fls. 68 a 71, referentes à conta aludida em 5), constam 45 movimentos de crédito através de mbway e transferência bancária de valores que oscilam entre os 8,00€ (oito euros) e os 430,20€ (quatrocentos e trinta euros e vinte cêntimos). Face ao número de movimentos, resulta muito pouco verosímil, para não dizer impossível, que o seu titular, o arguido, não conhecesse ou não se apercebesse das referidas transferências.
Finalmente, sendo certo que é possível sustentar as despesas inerentes a uma habitação e 3 filhos menores com os proventos do trabalho lícito de ambos os arguidos, a verdade é que, das regras da experiência resulta que tal só é possível com uma gestão criteriosa de recursos. Assim, não podia o arguido ignorar alguns sinais exteriores desse acréscimo patrimonial como fosse a aquisição de serviços de beleza e de peças de vestuário pela arguida, como esta afirmou que ocorreu por diversas vezes.
Face às evidentes inconsistências nas declarações do arguido, as mesmas não se afiguraram credíveis, sendo mesmo contrárias às regras da experiência, pelo que não lograram convencer o tribunal.
A proximidade física e afectiva dos arguidos (casados há vários anos) e a ausência de qualquer reacção do arguido na sequência da recepção das referidas quantias na sua conta, designadamente rejeitando qualquer responsabilidade ou recusando a recepção de tais valores perante a sua mulher, leva-nos a concluir, com segurança, que este comportamento foi precedido de um plano elaborado necessariamente por ambos, correspondendo o comportamento de ambos ao que haviam planificado.
O conhecimento e vontade dos arguidos relativamente aos factos praticados resultam da forma de actuação dos mesmos evidenciada nos factos que lhe são objectivamente imputados, atenta a respectiva dinâmica (criação de páginas na internet anunciando a venda de objectos que sabiam não ter, respondendo às questões colocadas pelas pessoas que ali acedessem, criando uma aparência de genuinidade e de predisposição para concretizar a venda, o que é demonstrativo de uma conduta praticada com dolo directo).
O conhecimento da ilicitude da conduta é do conhecimento da generalidade dos cidadãos, onde se inserem os arguidos.
O recurso da arguida ao serviço de urgência resulta do teor do documento junto aos autos pela mesma com o requerimento de 06/06/2022.
Os factos relativos às condições pessoais dos arguidos resultam do teor dos relatórios sociais juntos aos autos em 22/05/2023 e 31/05/2023.
Os antecedentes criminais dos arguidos resultam dos certificados de registo criminal juntos aos autos emitidos em 23/05/2023.
Os factos consignados em 34) e 35) resultam do teor do depoimento da ofendida, a qual referiu, de modo objectivo e claro, ter recebido da arguida a aludida quantia e que pretendia desistir de queixa, tendo confirmado a recepção de tal montante por declaração junta aos autos com o requerimento de 14/06/2023 (ref.ª citius 35935568).
O facto não provado consignado em a) resulta contrariado pela prova produzida quanto à participação de cada um dos co-arguidos nos factos.
A factualidade assente em b) resulta contrariada pela prova documental constante das sentenças juntas aos autos devidamente conjugadas com as consultas e informações da Segurança Social e da Autoridade Tributária.
A matéria descrita em c) resulta contrariada pelo teor das declarações lógicas e isentas por parte da arguida, que negou que tal actividade visasse suportar os encargos familiares e despesas diárias para o que eram suficientes os ordenados que o casal auferia pelo exercício das respectivas actividades laborais. Neste contexto, a arguida descreveu, de modo absolutamente lógico, que tal actividade visava suportar despesas com cabeleiro, roupas e manicures, gozando ainda o arguido de tais quantias nas despesas que realizava na frequência de cafés. Mais referiu que atribui o seu concreto comportamento a uma compulsão para o consumo, que a actividade laboral do casal não podia suportar, e que se apercebeu de uma possível patologia no momento em que, sem sucesso, tentou cessar com tais comportamentos.
*
(…)
*
III.2
III.2.1
Recurso da arguida AA
III.2.1.1
Da verificação da qualificativa do crime de burla
No segmento em apreciação, a recorrente não impugna, pelo menos de modo expresso, a matéria de facto.
A decisão da matéria de facto – como é consabido e pacífico - só pode ser sindicada, em sede de recurso, por duas vias distintas:
- Por verificação dos vícios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do C.P.P., a denominada revista alargada que, a proceder, deflui na realização de um novo julgamento, total ou parcial, apenas excecionalmente o podendo fazer o próprio tribunal superior (art.ºs 426.º, n.º 1, 430.º, n.º 1, e 431.º, als. a) e c), do C.P.P.);
- Através da impugnação ampla, prevista no art.º 412.º, n.ºs 3, 4 e 6 do C.P.P., com eventual correção do decidido pelo tribunal superior (cfr. art.º 431.º, al. b), do C.P.P.).
No primeiro caso, o substrato para a verificação do(s) vício(s) deverá colher-se no texto da própria decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, sem recurso a elementos externos (designadamente probatórios) concretizando-se na (i) insuficiência dos factos provados para suportar a correlativa decisão de direito (o que não pode confundir-se com uma putativa insuficiência das provas para alicerçar a decisão de facto), na (ii) contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão (entre os factos provados e não provados, entre si ou uns com os outros, ou entre aqueles e a motivação, ou ainda nesta mesma) e (iii) o erro notório na apreciação da prova (ante o padrão do homem médio e evidente a partir do escrutínio do texto da decisão) (cfr. art.º 410.º, n.º 2, als. a), b) e c) do C.P.P.), vício que, neste contexto, não se verifica quando a fonte da discordância resultar, tão só, da não conformação com a versão acolhida pelo Tribunal que, aos olhos do recorrente, deveria ter sido distinta.
No segundo caso – impugnação ampla – a sindicância pode envolver o próprio processo e resultado da formação da convicção do julgador sobre a prova produzida, designadamente a suficiência ou insuficiência desta para a materialidade considerada, a capacidade e a segurança do convencimento que emerge dos meios de prova a valorar, seja à luz dos critérios legais da avaliação (art.º 127.º do C.P.P.), seja sob o espectro das disposições sobre prova vinculada.
Em síntese, no caso da denominada impugnação restrita, tendo por fundamento os vícios decisórios, apenas se consente o escrutínio da sentença na sua literalidade e sob o espartilho apontado supra. Já no caso da impugnação ampla, esta já pode visar o próprio juízo decisório revidendo, a sua verosimilhança e consistência, no cotejo com a prova produzida, sem que a operação envolva, como já se disse, a realização de um novo julgamento, sobreposto ao realizado em primeira instância e com o benefício da oralidade e da imediação que o enriquece. A impugnação, ainda que alargada, constitui, tão só, o remédio jurídico apropriado para a deteção de eventuais erros in judicando ou in procedendo, considerando o exame crítico da prova efetuado na primeira instância que está, naturalmente, vinculado a critérios objetivos, jurídicos e racionais e sustentado nas regras da lógica, da ciência e da experiência comum, sendo por isso mister que se demonstre a impossibilidade lógica e probatória da valoração seguida e a imperatividade de uma diferente convicção.
Mais.
No caso da impugnação alargada, - em que a atividade do Tribunal de recurso não se restringe ao texto da decisão, expandindo-se à análise da prova concretamente produzida em audiência de julgamento e devidamente registada – o juízo de apreciação e conformidade far-se-á de acordo com os limites fornecidos pelo(s) recorrente(s) e decorrentes do cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art.º 412.º do C.P.P.. Ou seja, sempre que o recorrente vise impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto deve especificar (i) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; (ii) As concretas provas [ou falta delas] que impõem decisão diversa da recorrida; (iii) As provas que devem ser renovadas, ao que acresce que ”Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas (…) fazem-se por referência ao consignado na ata (…) devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”. Em epítome e em tese geral, não bastará ao recorrente configurar hipóteses decisórias alternativas, da sua conveniência ou modo de ver, mais ou menos compagináveis com a prova produzida, sendo ainda necessário que a eventual insuficiência da prova para a decisão da matéria de facto que foi tomada, ou, na proposta de apreciação alternativa, a prova que foi produzida, imponham, como conclusão lógica, uma decisão distinta e, em concreto, aquela que na argumentação de recurso se defende.
Neste último aspeto referido importa reforçar que não basta a afirmação do dissídio, a apreciação crítica do decidido ou a asseveração de considerandos ou propostas de decisão alternativa. Antes, impõe-se ao recorrente um dever de fundamentação que torne evidente que as provas indicadas impõem decisão diferente, com o mesmo grau de argumentação e convencimento que é exigível ao julgador para fundamentar os factos provados e não provados, só assim se percebendo qual o raciocínio seguido para se poder afirmar que o mesmo impõe decisão diversa da recorrida [cfr., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica, 2ª Edição, fls. 1131, notas 7 a 9, em anotação ao artigo 412º, do Código de Processo Penal].
Dito isto e avançando, revertendo ao caso.
Embora a recorrente afirme, na sua conclusão 5, “(…) não ter resultado provado na audiência e discussão de julgamento esta circunstância qualificativa do crime de burla” a afirmação da dissonância deverá restringir-se à apreciação sobre a correta qualificação jurídica dos factos assentes, sem por em crise o próprio substrato factual sedimentado na decisão recorrida. Na verdade, embora a recorrente não se conforme com o afirmado preenchimento da circunstância qualificativa da burla, a sua convicção dissonante não é acompanhada de argumentação recursória apta a alterar o factualismo assente, pois que não se explicitam quais os factos incorretamente julgados e as provas e concretas passagens que imporiam decisão diversa da adotada. Efetivamente, a recorrente acaba, apenas, por glosar criticamente o decidido, quanto à verificação daquela qualificativa, mas sem a aptidão de por em causa os factos assentes já que, como já se abordou perfunctoriamente, o incumprimento do ónus previsto no art.º 412.º, n.ºs 3 e 4 do C.P.P. implica a inconsideração da possibilidade de impugnação alargada, se fosse esse o alcance (também) pretendido pela recorrente [cfr. no mesmo sentido, acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 09.01.2018, proc. n.º 31/14.3GBFTR.E1, Rel. Ana Barata Brito, acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12.09.2012, proc. n.º 245/09.8GBACB.C1, Rel. Brízida Martins, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.06.2008, proc. n.º 07P4375, Rel. Raúl Borges, acedidos em www.dgsi.pt] alcance que, do teor das alegações, não se vislumbra.
Não se desconhece a jurisprudência firmada no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 685/2020 [proc. n.º 20/20, Rel. Pedro Machete, in www.tribunalconstitucional.pt]. Não obstante, a impugnação efetuada pela recorrente é dirigida à questão da correta subsunção pelo que a desconsideração da hipótese, não concretizada, de impugnação alargada, no caso vertente, não coarta os direitos de defesa da recorrente pois não estamos perante a falta de concretização, nas conclusões, das referências impostas pelo preceito (eventualmente corrigível) mas, antes, ante a falta de construção de uma impugnação estruturada quanto ao processo valorativo da prova, passando-se à apreciação do decidido nos moldes preconizados pela própria recorrente.
Assim, alega a recorrente, neste particular:
“(…) não ter resultado provado na audiência e discussão de julgamento esta circunstância qualificativa do crime de burla.
Faz da burla modo de vida quem com a intenção de conseguir uma fonte continua de rendimentos com repetição mais ou menos regular de factos dessa natureza. Embora a Lei não contenha elementos para avaliar o tempo necessário à definição do que seja um modo de vida, a agravação não se coaduna com a simples ocasionalidade.
Este modo de vida esta mais perto da noção “profissionalidade” do que da “habitualidade”.
Podemos, igualmente, considerar que o modo de vida é a atividade com que o agente se sustenta.
Não é necessário que se trate de uma ocupação exclusiva, nem continua podendo até ser intermitente ou esporádica, mas necessariamente que contribua de forma significativa para o sustento do agente.
Deve ser assim uma forma de vida e fonte dos proventos para a sustentação do agente que pratica o crime de burla.
Não é suficiente que as infrações tenham sido cometidas com o escopo de lucro ou com o fim de outro proveito económico, mas o conjunto das infrações deve revelar um sistema de vida, sustentando-se o agente nos proventos dos delitos cometidos.
In casu, a recorrente e apesar de ter plasmadas no seu certificado de registo criminal algumas condenações pela prática de crimes idênticos, o facto é que estes foram praticados em períodos alargados de tempo, verificando-se um grande hiato temporal entre os ilícitos, e não menos despiciendo, os crimes em que foi condenada são em numero relativamente reduzido.
Considera, assim, a recorrente ter havido uma incorreta apreciação da prova produzida em sede de audiência de julgamento, por insuficiente, não podendo, por tal, permitir ao Tribunal a quo condenar esta pela pratica de um crime de burla qualificada pelo modo de vida.”.
Condensada, no trecho transcrito, a argumentação alinhada em fundamentação deste segmento do recurso, passamos a apreciar a pretensão.
Dispõe o art.º 217.º do C.P., sob a epígrafe burla: “1 - Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa. 2 - A tentativa é punível. 3 - O procedimento criminal depende de queixa. 4 - É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 206.º e 207.º”.
Por sua vez estatui o art.º 218.º do mesmo diploma (burla qualificada) que: “1 - Quem praticar o facto previsto no n.º 1 do artigo anterior é punido, se o prejuízo patrimonial for de valor elevado, com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias. 2 - A pena é a de prisão de dois a oito anos se: a) O prejuízo patrimonial for de valor consideravelmente elevado; b) O agente fizer da burla modo de vida; c) O agente se aproveitar de situação de especial vulnerabilidade da vítima, em razão de idade, deficiência ou doença; ou d) A pessoa prejudicada ficar em difícil situação económica. 3 - É correspondentemente aplicável o disposto nos n.os 2 e 3 do artigo 206.º
4 - O n.º 1 do artigo 206.º aplica-se nos casos do n.º 1 e das alíneas a) e c) do n.º 2.”
(sublinhado nosso).
Não discutindo a recorrente a correção da subsunção da conduta ao crime de burla (simples), importa então apreciar, apenas, se se mostra verificada a qualificativa em destaque - fazer da burla modo de vida – impondo a sua caraterização, chamando à colação a forma como a doutrina e jurisprudência têm adensado e concretizado este conceito.
Miguez Garcia e J. M. Castela Rio [Código Penal, Parte Geral e Especial, Notas e Comentários, Coimbra, Almedina 2014, pág. 927] referem que “Faz da burla modo de vida quem com a intenção de conseguir uma fonte contínua de rendimentos com a repetição mais ou menos regular de factos dessa natureza. Embora a lei não contenha elementos para avaliar o tempo necessário à definição do que seja o modo de vida, a agravação não se coaduna com a simples ocasionalidade, podendo até haver repetição. O rendimento do crime não tem que ser a única fonte nem a maior fatia dos proventos do burlão que, com sorte, pode até viver do produto de uma só burla durante uma larga temporada sem que isso constitua caso de agravação. Note-se que este modo de vida criminoso acarreta o perigo de especialização e do domínio de certas “artes” e inculca a ideia de vadiagem e de marginalidade, aproximando-se duma característica pessoal de pendor subjectivo. Está mais perto da noção de “profissionalidade” do que da “habitualidade” ou de simples “dedicação”. A habitualidade é diferente do “modo de vida“, assenta num inclinação para a prática do correspondente delito adquirida com a repetição, Jeschek, 1998,p.651(…)”.
Em sentido equivalente Paulo Pinto de Albuquerque [Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3ª ed. atualizada, Universidade Católica Editora, pág. 804, nota 23], em anotação ao art.º 204.º do C.P., quanto a idêntica qualificativa do crime de furto, refere “O modo de vida é a atividade com que o agente se sustenta. Não é necessário que se trate de uma ocupação exclusiva, nem contínua, podendo até ser intermitente ou esporádica, desde que ela contribua significativamente para o sustento do agente. Não se identifica, pois, com a mera habitualidade (…)”.
Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette [Código Penal Anotado e Comentado, Legislação Conexa e Complementar, Quid Juris, Sociedade Editora, lisboa, 2008, pág. 543] também sobre o crime de furto e aqui aplicável, referem “(…) não tem de ser o furto perpetrado por quem ainda nada mais faz do que furtar. O agente pode ter e pôr em prática uma profissão socialmente reconhecida como normal, visível e adequada – por vezes até se serve dela para melhor levar a cabo actividades ilícitas, como a de se apropriar do alheio – que nem por isso deixará de incorrer nesta qualificativa, se a série de furtos a seu cargo for de tal ordem que nela se reconheça um processo (ainda que subterrâneo) de realizar proventos destinados à sustentação da sua vida em comunidade.”.
Faria Costa [Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, Coimbra Editora 1999, pág. 70 § 41 e ss.] a propósito de igual qualificativa prevista para o crime de furto, escreve: “(…) o pressuposto fundamental para que se verifique a circunstância-elemento reside na prática – obviamente que anterior – de vários furtos [no caso, burlas]. Mas, mesmo que tal pressuposto tenha lugar, estamos ainda longe de haver o preenchimento do texto-norma em apreço. Exige-se ainda de maneira insofismável que essa prática corresponde a um modo de vida. Ora, assim, temos, por conseguinte, que analisar o que se deve entender, não só pelo que seja prática de furtos, mas também modo de vida. (…) uma série mínima de furtos em uma intencionalidade que possa dar substância, em termos de apreciação pelo comum dos cidadãos, a um modo de vida. Modo de vida é a maneira – em uma óptica estritamente objectiva, isto é, sem qualquer espécie de valoração sobre o sentido lícito ou ilícito do comportamento assumido no quotidiano – pela qual quem quer que seja consegue os proventos necessários à própria vida em comunidade (…). Por outro lado, a plasticidade como hoje se captam os diferentes modos de vida (…) não pode deixar de se reflectir neste domínio. (…) Os modos de vida (…) não se espelham ou cristalizam num só segmento. (…) não é absolutamente preciso que o delinquente se dedique, de jeito exclusivo, aos furtos para que se possa dizer que dessa prática faz um modo de vida. Bem pode ter uma profissão socialmente visível (…). Temos vindo a defender que a noção modo de vida deve ser olhada menos como categoria dogmática atinente ao direito e mais como noção indesmentivelmente ligada a um valor estritamente sociológico. (…)”.
Na jurisprudência, em breve recensão, para a caraterização do conceito, podemos convocar os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 27.01.2021, proc. 111/19.9PBCVL.C1, Rel. Rosa Pinto e de 07.11.2018, proc. 1239/10.6PBCBR.C1, Rel. Maria José Nogueira, disponíveis em www.dgsi.pt e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.01.2022, proc. 90/17.7GBFND.C2.S1, Rel. M. Carmo Silva Dias, acedido em www.jurisprudencia.pt.
A circunstância modificativa agravante de o agente fazer da burla modo de vida constitui um quid em relação à habitualidade. Esta última é possível identificar enquanto propensão para o crime radicada na personalidade do delinquente. Se a habitualidade, na essência, se reconduz à reiteração da pluri-reincidência, o modo de vida, pressupondo-a, resulta da circunstância de a prática criminosa ser, ainda que não totalmente, destinada ao sustento do criminoso e reveladora de um sistema de vida.
Aqui chegados e em fundamentação do decidido, exarou-se no acórdão recorrido:
“Importa agora atentar no que se deve entender pela qualificativa “modo de vida”.
Sendo certo que a qualificativa tem como pressuposto fundamental a existência de uma pluralidade de infracções, a verdade é que a qualificativa “modo de vida” não se esgota no carácter reiterado da prática dos factos.
Nas palavras de Faria Costa, a propósito do crime de furto, mas cujas considerações são inteiramente transponíveis para o tipo de ilícito em apreço nos autos, “o verdadeiro sentido só se apreende em todas as suas implicações jurídico-penais, quando envolvermos essa série mínima de furtos em uma intencionalidade que possa dar substância, em termos de apreciação pelo comum dos cidadãos, a um modo de vida. Modo de vida é a maneira – numa óptica estritamente objectiva, isto é, sem qualquer espécie de valoração sobre o sentido lícito ou ilícito do comportamento assumido no quotidiano – pela qual quem quer que seja consegue os proventos necessários à própria vida em comunidade. Modo de vida é, aqui, por conseguinte, perspectivado como uma categoria axiologicamente neutral”(cf. Comentário Conimbricense do Código Penal, Vol. II, pág. 70).
A doutrina e a jurisprudência são unânimes quanto ao entendimento que a qualificativa modo de vida não significa exercício exclusivo da prática dos factos, admitindo-se que os arguidos possam ter uma profissão socialmente visível (cf., a título meramente exemplificativo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/01/2022, Proc. n.º 90/17.7GBFND.C2.S1, Acórdão do Tribunal de Coimbra de 17/01/2022, Proc. n.º 111/19.9PBCVL.C1 e Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11/05/2021, Proc. n.º 560/15.1GAVNO.E1, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Acompanhamos aqui o entendimento de Faria Costa quando refere que “para o modo de vida temos uma estabilidade ligada, sem margem para dúvidas, a um comportamento que, em princípio se traduz em benefício pessoal e social enquanto a habitualidade se cristaliza, nas representações sociais, como uma forma de conduta reiterada tour court.” (cf. op. cit., pág. 71; na jurisprudência e a título meramente exemplificativo vide o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/01/2022, Proc. n.º 90/17.7GBFND.C2.S1 acessível em www.dgsi.pt).
Conforme se escreveu de modo claro e incisivo no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03/12/2014, “Na verdade bem se percebe que não seja a mera factualidade constitutiva da agravação, de per se, que responsabiliza automaticamente o agente pelo resultado produzido, mas o desvalor da acção e do resultado, na imputação objectiva ao agente. Mas para que se verifique o crime, aquela intenção, tal como os demais elementos constitutivos do mesmo, terá de surpreender-se-nos nos factos provados, pois que constitui matéria de facto. No domínio da acção do agente há que apurar pois, a amplitude da sua vontade na representação desse facto agravativo, de forma a poder definir-se a modalidade da sua responsabilidade criminal (dolo directo, necessário, eventual?). A análise valorativa jurídico-criminal do telos da norma, perante a acção desenvolvida pelo arguido, reclama averiguação factual sobre o conhecimento do agente sobre essa factualidade agravativa, sob pena de a norma agravanda deixar de ter qualquer significado jurídico-penal, sendo que na sociedade de hoje o modo de vida pode assumir-se de forma multifacetada” (cf. Proc. n.º 446/09.9GAPTL.S1, disponível em www.dgsi.pt).
Nas palavras de Paulo Pinto de Albuquerque, “o conceito de modo de vida pode ser aproximado ao de “exercício profissional” de uma actividade que inclui: - pluralidade de acções; - a intenção de aquisição de meios de subsistência através dessas acções; - a disponibilidade para realizar outras acções do mesmo tipo” (cf. Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3ª Edição actualizada, pág. 804).
(…)
Resta apreciar se se verificam os pressupostos da qualificativa da alínea b), do n.º 2, do artigo 218.º, do Código Penal, tal como acima de expôs.
É inegável, face ao registo criminal dos arguidos, que existe uma prática reiterada de acções do tipo descrito e que, pelo menos até 2021, os arguidos mantinham disponibilidade para continuar a perpetrar actos da mesma natureza.
De facto, resultou provado que os arguidos delinearam um acordo para, pelo menos durante o período compreendido na acusação, praticarem os factos ali descritos de modo a suportarem despesas tidas como supérfluas, nomeadamente, quanto à arguida para aquisição de serviços de estética e no que se refere ao arguido gastando socialmente em cafés. Mais resultou que com tais actos os arguidos visavam obter meios de garantir aquele nível de vida, como a própria arguida reconheceu.
Assim, face à globalidade dos factos, da conduta dos arguidos e do seu passado criminal resulta que mantinham a disponibilidade para continuar a sustentar tais despesas com a prática de factos como os descritos na acusação, fazendo desta conduta uma prática com “estabilidade que se traduz em benefício pessoal”.
Deste modo, estão verificados os elementos de que depende a qualificativa enunciada.
Em face do exposto, estão reunidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime de burla qualificada imputado aos arguidos, sendo certo que ambos actuaram em execução de um plano prévia e comummente traçado, pelo que actuaram em co-autoria (cf. artigo 26.º, do Código Penal).”
*
Vejamos então, retendo os conceitos.
No caso o Tribunal a quo reteve e evidenciou que, desde data não concretamente apurada, mas certamente anterior a 1 de janeiro de 2016 e pelo menos até 21 de março de 2021 (ou seja um período de, pelo menos, 5 anos) os arguidos formularam um plano com o propósito de se locupletarem com quantias pecuniárias, provenientes de terceiros incautos que respondessem a anúncios colocados em páginas e plataformas da Internet, publicitando a venda de artigos de que não dispunham nem entregariam após receberem dos interessados os valores referentes aos artigos “encomendados”.
No caso da ofendida CC a mesma, tendo visualizado a página da rede social Facebook, acordou com a arguida a aquisição de vários artigos publicitados, referidos em 4), no valor de € 136,50, que pagou por transferência bancária, nada tendo recebido.
É certo (foi dado como provado) que no período em causa e mencionado em 1), a arguida desenvolveu a atividade de costureira e o arguido a de operário da construção civil, vivendo ambos, juntamente com os 3 filhos, em casa arrendada e pela qual pagavam € 350,00 mensais.
Face ao exercício, no período, de atividade profissional remunerada, o Tribunal considerou não provado em d) que “A actuação dos arguidos dirigiu-se a suportar os encargos inerentes ao seu dia-a-dia e, de assim, significativamente/substancialmente conseguirem obter, de forma regular, rendimentos para proverem ao seu sustento e do seu agregado familiar.”. No entanto, pelos motivos que fez consignar da motivação da decisão de facto, considerou provado que (cfr. 13) “Os arguidos actuaram de modo a suportar, de forma regular, os encargos inerentes a despesas com serviços de estética, aquisição de vestuário e aquisição de bens e serviços em cafés.”.
Acresce que, no caso da recorrente, a mesma foi condenada em outubro de 2017 (por factos de maio de 2016), em abril de 2018 (por factos de janeiro de 2016), em fevereiro de 2019 (por factos de 2016), janeiro de 2021(por factos de outubro de 2019), em janeiro de 2021 (por factos de outubro de 2019), em janeiro de 2021 (por factos de agosto de 2019), em janeiro de 2022 (por factos de novembro de 2019), em fevereiro de 2022 (por factos de abril de 2020), em fevereiro de 2023 (por factos de maio de 2020) e novamente em fevereiro de 2023 (por factos de novembro de 2019), sempre pela prática de crimes de burla e, pelo que se alcança das certidões, essencialmente por condutas semelhantes à que agora se discute, publicitando a venda de objetos.
O Tribunal, nesta questão da qualificativa, também referiu a prova documental existente quanto às várias manifestações de desagrado de internautas relativas ao “engano” motivado pelas publicações da arguida (e o crime de burla, nesta forma de execução, tem cifras negras significativas, dados os valores relativamente baixos que envolvem cada transação, se individualmente considerada, desincentivando a apresentação de queixa). A forma de atuação é, ainda, propiciadora da captação de um número indeterminado, mas não desprezível, de incautos, prolongando-se as ofertas de negócio em várias plataformas e por um período razoável.
Do exposto resulta que, pelo menos desde 2016 e até à prática dos factos ora em discussão, a arguida dedicou-se, de forma consistente, à prática de crimes de burla, vindo a ser consecutivamente condenada.
Temos, pois, por verificado a primeira circunstância-elemento da qualificativa em questão e acima analisada: - a realização plúrima deste tipo de condutas.
Ao acabado de referir acresce que, como vimos supra, para a qualificativa modo de vida não é necessário uma ocupação exclusiva com a atividade ilícita (podendo ser concorrente e concordante com a atividade profissional lícita demonstrada), nem mesmo contínua, podendo até ser intermitente, desde que contribua para o sustento da recorrente.
Ora, quanto à concorrência para o sustento, não se tendo provado a contribuição exclusiva ou substancial, apurou-se que os proventos da(s) burla(s) se destinavam a componentes desse mesmo “sustento”, como sejam a aquisição de vestuário e cuidados estéticos, enformada pelo período de execução do plano/estratagema e a pluri-reincidência que sobressai das sucessivas condenações. Sendo o dinheiro fungível e não sendo crível que haja uma completa separação de pecúlios lícito/ilícito, a verdade é que os montantes assim obtidos permitiam à arguida recorrer a serviços de estética ou comprar roupa o que, de outra forma, implicaria a afetação de montantes do seu trabalho considerando, também, que hodiernamente o “sustento” não integrará, apenas, o estritamente necessário à sobrevivência, como a comida, mas implicará, também, outros valores que fazem parte de uma existência condigna e normal, como sejam momentos de lazer, aquisição de roupa, cuidados com a aparência e higiene, uma refeição fora de casa, o consumo num estabelecimento de café.
Assim, estamos perante uma arguida/recorrente que foi praticando várias burlas ao longo dos anos, em paralelo com o exercício, lícito, da atividade de costureira impondo-se, por ilação lógica e consistente com os factos provados, que o dinheiro obtido com as burlas comprovadamente praticadas concorreram para o sustento daquela, pelo menos para as componentes assinaladas e para as quais afetou recursos, integrariam o pecúlio geral disponível (em concorrência ou complementaridade com os proventos lícitos) fornecendo uma representação de estabilidade, de comportamento e de direcionamento dos recursos obtidos por via ilícita, pelo menos em parte, para a aquisição de componentes do sustento (complementando os obtidos por via do trabalho) que permitem afirmar, como verificada, ante o maior desvalor do facto, a qualificativa em questão.
Aliás e nesta parte, procurando contrariar o decidido, pretendeu a arguida em audiência assumir tudo o que lhe era imputado à exceção – como quis a outrance demonstrar – de que o dinheiro obtido com as burlas fosse destinado “às despesas da casa”, denotando conhecimento sobre a temática e procurando afastar a qualificativa em causa.
À conclusão – que confirma o decidido – não se opõe ou constitui escolho o valor marginal do provento neste caso obtido (a considerar na medida da pena) tendo em conta que a verificação da qualificativa não depende da obtenção do montante necessário ao sustento exclusivo nem o modo de vida detetado se desprende do panorama geral de reiteração (e de obtenção de outros contributos financeiros) trazido pelas condutas anteriores.
*
III.2.1.2
Da adequação da pena aplicada
Contesta a recorrente a adequação da pena concretamente aplicada porquanto, em seu entender “não foram convenientemente valoradas pelo Tribunal a quo as circunstâncias que determinaram a pena aplicada, concretamente a culpa ínsita ao crime praticado ser reduzida, resultante do valor diminuto do enriquecimento ilegítimo por parte da recorrente, a confissão integral e sem reservas e o ressarcimento da vítima. Se de facto as necessidades de prevenção geral são elevadas, não o são as necessidades de prevenção especial, consideramos, assim, que a pena de prisão em que foi condenada a recorrente foi excessiva, devendo, por tal, ser determinada uma pena inferior.”.
Relembra-se que à recorrente foi aplicada uma pena de 2 anos e 7 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova, numa moldura abstratamente aplicável de 2 a 8 anos de prisão (considerando a moldura da burla agravada ante a improcedência da requalificação dos factos à luz da moldura da burla simples sufragada pela recorrente).
Por via do recurso ao art.º 16.º, n.º 3 do C.P.P. o limite superior da pena de prisão aplicável ficará reduzido a 5 anos.
Uma nota prévia à apreciação deste segmento do recurso.
A fim de delimitar os poderes e modo de intervenção deste Tribunal, cumpre desde já referir que a sindicância do decidido não se efetivará como se inexistisse decisão recorrida ou como se este Tribunal da Relação se predispusesse a aplicar a pena contestada pela primeira vez. Ademais, note-se que “(…) o tribunal de recurso deve intervir na alteração da pena concreta, apenas quando se justifique uma alteração minimamente substancial, isto é, quando se torne evidente que foi aplicada sem fundamento, com desvios aos citérios legalmente apontados” [cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18.03.2015, proc. 109/14.3GATBU.C1, Rel. Inácio Monteiro, consultado em www.dgsi.pt, sublinhado nosso].
Como se pode ler no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 05.03.2018 [proc. n.º 827/17.4GAEPS.G1, Rel. Armando Azevedo, consultado em www.blook.pt], em alinhamento com a doutrina e jurisprudência aí citada, “(…) quanto aos limites de controlabilidade da determinação da pena em sede de recurso - entendemos ser de seguir o entendimento da doutrina e da jurisprudência no sentido de que é suscetível de revista a correção das operações de determinação ou do procedimento, a indicação de fatores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, a falta de indicação de fatores relevantes, o desconhecimento pelo tribunal ou a errada aplicação dos princípios gerais de determinação, mas a determinação do quantum exato de pena só pode ser objeto de alteração perante a violação das regras da experiência ou a desproporção da quantificação efetuada”.
Efetivamente e tendo existido, a montante, um julgamento – com contraditório pleno, oralidade e imediação – e uma atividade jurisdicional de fixação concreta da pena no culminar daquela audiência, na dependência do Tribunal ad quem não estará a realização de nova e originária determinação da pena mas, tão só, no que o caso convoca, a sindicância do quantum da pena, seguindo e tendo por referencial os critérios de determinação utilizados pelo Tribunal a quo e respetiva motivação, escrutinando a eventual existência de falhas ou omissões, exercendo a sua função corretiva se o resultado da operação se revelar ilegal ou manifestamente desproporcionado.
Do exposto resulta que a intervenção em segunda instância deverá ser sempre pautada pelo princípio da mínima intervenção, intercedendo se e quando o processo determinativo se revelar insuficiente ou desajustado à luz dos critérios legais de determinação da pena, tendo por matriz os factos assentes.
Na verdade, a individualização judiciária da pena não é imune a um grau controlado de discricionariedade, inexistindo uma pena concreta inquestionável ou uma sentença certa e ideal, mas, antes, uma gama de decisões que, numa faixa de razoabilidade e proporcionalidade, poderão ser adequadas, conquanto os tribunais, aplicando os mesmos critérios de determinação das penas concluam, em casos semelhantes, por penas aproximadas.
Regressando ao caso em apreço, como é consabido e resulta expressamente do estatuído no art.º 40.º, n.º 1, do C.P., a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Em síntese e pela sua clareza, retenha-se o constante do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.09.2010 [proc. n.º 1687/04.0GDLLE.E1.S1, Rel. Pires da Graça, www.dgsi.pt]: - “1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial. 2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa. 3) dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto ótimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico. 4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excecionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais. A moldura de prevenção, comporta ainda abaixo do ponto ótimo ideal outros em que a pressuposta tutela dos bens jurídicos “é ainda efetiva e consistente e onde portanto a pena pode ainda situar-se sem que perca a sua função primordial de tutela de bens jurídicos. Até se alcançar um limiar mínimo – chamado de defesa do ordenamento jurídico – abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem se pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar de bens jurídicos.” (idem, Temas Básicos…, p. 117, 121): Tal desiderato sobre as penas integra o programa político-criminal legitimado pelo artº 18º nº 2 da Constituição da República Portuguesa e que o legislador penal acolheu no artigo 40º do Código Penal, estabelecendo, contudo, o nº 2 que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.
Neste conspecto e atentas aquelas finalidades, o art.º 71.º do C.P. estabelece os critérios da determinação da medida concreta da pena, dispondo que a determinação desta, dentro dos limites definidos na moldura legal, efetua-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, valorando o Tribunal todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, depuserem a favor ou contra o agente, tendo sempre por limite a culpa que, axiologicamente estranha a finalidades retributivas, estabelece o limite superior da pena que ainda seja concordante com as exigências de preservação da dignidade da pessoa humana.
No caso que nos ocupa, o Tribunal a quo individualizou a pena aplicada considerando:
Em desfavor da recorrente:
- as elevadas necessidades de prevenção geral, atenta a frequência com que este tipo de criminalidade ocorre, em particular quando são praticados à distância beneficiando do anonimato proporcionado por plataformas como as redes sociais;
- as necessidades de prevenção especial, que se afiguram especialmente prementes, sendo os antecedentes criminais da arguida demonstrativos de uma atitude de desinteresse pelas normas penais, não tendo aquelas condenações servido de advertência suficiente;
- a maior participação da arguida nos factos constantes da acusação;
- ter praticado os factos com dolo direto.
A favor da recorrente:
- a demonstração de juízo crítico quanto à sua conduta;
- a circunstância de ter ressarcido a ofendida;
- a demonstração de interesse na procura de ajuda médica para lidar com um comportamento que refere ser uma compulsão;
- a sua inserção familiar e profissional.
Aqui chegados, é certo que não se refere, na decisão recorrida e em benefício da recorrente, a confissão integral e sem reservas. Mas também não poderia referi-lo já que esta não existiu, embora a recorrente tenha genericamente admitido os factos constantes da acusação mas retendo-se que, por exemplo, o facto c) foi considerado não provado com base nas declarações da recorrente, evento inexistente (pelo menos quanto a esta coarguida) no caso da preexistência de confissão integral e sem reservas.
Não obstante a colaboração reconhecida à recorrente, enfatizada na fundamentação da decisão de facto, a pena aplicada situa-se próxima do limite mínimo da moldura (agravada), o que acomoda, quer aquela colaboração, quer o ressarcimento posteriormente ocorrido, quer ainda o valor do benefício, ante os extensos antecedentes criminais que apelam a uma sanção mais robusta.
Assim sendo, considerando que a pena aplicável se situa num mínimo de 2 anos, a sua concretização em 2 anos e 7 meses não é, certamente, desadequada por excessiva e que careça de intervenção corretiva deste Tribunal mantendo-se, por isso, inalterada.
*
III.2.1.3
Da inconstitucionalidade do recurso a presunções judiciais
Ainda que não impugne a matéria de facto, alega ainda a impetrante (conclusões 23 e 24) que “(…) entende, igualmente, que deve ser apreciada a inconstitucionalidade da interpretação normativa do artigo 127º do Código Processo Penal, acolhida na decisão recorrida de que a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, permite o recurso às presunções de prova previstas nos artigos 349º e 350º do Código Civil, considerando e com o devido respeito, que tal interpretação ora colocada em crise viola as garantias de defesa e da presunção de inocência e o princípio in dúbio pro reo, consagrados no artigo 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa, bem como, do dever de fundamentar, estatuído no artigo 205º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa. A recorrente considera e com o devido respeito que o Tribunal recorrido deveria ter aplicado os princípios constitucionais supra referidos aquando da interpretação normativa do artigo 127º do Código de Processo Penal, enquanto expressão garante da minimização de equívocos irrefletidos quando se recorre a este tipo de prova, como resulta do acórdão recorrida quando formou a sua convicção sobre a verdade do facto e o seu convencimento da veracidade do mesmo, para lá da dúvida razoável, sustentando tal convencimento em elementos de prova que mesmo concatenados com outros não deveriam ter permitido formar a convicção do Tribunal a quo, pela verdade do facto e sua demonstrabilidade no que concerne à prática dos crimes em causa.”.
A invocação da inconstitucionalidade da dimensão interpretativa da norma, perante os fundamentos esgrimidos, afigura-se-nos inconforme à motivação do próprio recurso e ao teor da decisão recorrida. A recorrente alega, inclusivamente (e quando discute a pena concretamente aplicada), que confessou os factos (acrescentando, até, que o fez integralmente e sem reservas) pelo que pouco se compreende a afirmação de que o Tribunal a quo, no espectro da livre apreciação da prova, recorreu a presunções para a demonstração da prática do crime. É que, como resulta do texto da sentença, os factos dados como provados, no que tange à prática do crime (factos 1 a 15) resultaram:
“(…) das declarações espontâneas, credíveis e objectivas prestadas pela arguida, que admitiu os factos constantes da acusação, confirmando as circunstâncias de tempo, modo e lugar dos mesmos, admitindo ter efectivamente criado a aludida página na rede social Facebook, descrevendo o plano gizado por si e pelo arguido BB, relatando a participação de cada um no mesmo.
Nesta sequência, a arguida explicou que a si cabia criar as referidas páginas de internet, sendo o arguido responsável pela disponibilização da conta si pertencente, referindo que a conta referida em 5) foi aberta para este efeito. A arguida explicou ainda que o arguido acedia à aludida conta, usufruindo do dinheiro que para ali era transferido, que usava essencialmente em cafés.
Atento o relato que a arguida fez, assumindo a sua responsabilidade e descrevendo uma participação que, em extensão, se afigura maior que a do seu co-arguido, não se vislumbra qualquer razão para se concluir que a arguida pretendia prejudicar a posição processual do último, pelo que logrou convencer o tribunal.
Os factos relatados pela arguida são coincidentes com o depoimento, espontâneo e isento, da ofendida CC que identificou a arguida AA como sendo a pessoa com quem sempre contactou, confirmando que encomendou os objectos aludidos em 4) e que nunca os recebeu. A testemunha atestou ainda que a arguida, no dia anterior ao julgamento, terá efectuado uma transferência no valor de 136,50€ (cento e trinta e seis euros e cinquenta cêntimos) para conta por si indicada.
Acresce que tais declarações da arguida e o depoimento da ofendida estão em consonância com o teor da prova documental junta aos autos acedia à aludida conta, usufruindo do dinheiro que para ali era transferido, que usava essencialmente em cafés.
Atento o relato que a arguida fez, assumindo a sua responsabilidade e descrevendo uma participação que, em extensão, se afigura maior que a do seu co-arguido, não se vislumbra qualquer razão para se concluir que a arguida pretendia prejudicar a posição processual do último, pelo que logrou convencer o tribunal.
Os factos relatados pela arguida são coincidentes com o depoimento, espontâneo e isento, da ofendida CC que identificou a arguida AA como sendo a pessoa com quem sempre contactou, confirmando que encomendou os objectos aludidos em 4) e que nunca os recebeu. A testemunha atestou ainda que a arguida, no dia anterior ao julgamento, terá efectuado uma transferência no valor de 136,50€ (cento e trinta e seis euros e cinquenta cêntimos) para conta por si indicada.
Acresce que tais declarações da arguida e o depoimento da ofendida estão em consonância com o teor da prova documental junta aos autos [que a seguir são referidos]”.

Ora, perante o acabado de referir (porque o princípio da livre apreciação se surpreende e justifica no momento da valoração e não no da subsunção dos factos ao Direito) e ante uma demonstração dos factos assentes em prova direta (incluindo a admissão da arguida) não se compreende a inconstitucionalidade invocada, claramente desprovida de objeto e, como tal, inexistente.
Ainda que assim não fosse e sobre a matéria que, em jeito desgarrado com o efetivamente sucedido, a recorrente invoca, o Tribunal Constitucional tem recorrentemente afirmado a constitucionalidade do recurso a presunções. A título de exemplo cfr. acórdão n.º 391/2015, que concluiu pela não inconstitucionalidade do artigo 127.º do C.P.P., na interpretação de que a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador permite o recurso a presunções judiciais em processo penal, jurisprudência sucessivamente reiterada nos acórdãos n.ºs 578/2016, 197/2017, 149/2018, 541/2018, 717/2019 e 6/2022, que confirmaram decisões sumárias que haviam remetido para a fundamentação de tal aresto, acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt.
No primeiro dos referidos acórdãos pode ler-se o que aqui se sufraga:
«Da consagração constitucional do princípio da presunção de inocência decorre que o processo penal tem de ser estruturado de forma a assegurar todas as garantias de defesa do arguido, tido à partida como inocente, por não haver qualquer fundamento para que aquele não se considere como tal enquanto não for julgado culpado por sentença transitada em julgado. Em matéria de prova, este princípio é identificado por muitos autores com o princípio in dubio pro reo, o qual se traduz numa imposição dirigida ao julgador no sentido de que qualquer situação de dúvida a respeito dos factos relevantes para a decisão da causa ou da culpabilidade do arguido deve ser valorada a favor deste, resolvendo-se desta forma os casos de non liquet em matéria de prova (sobre as diferentes opiniões defendidas na doutrina acerca das relações entre o princípio da presunção de inocência e o princípio in dubio pro reo, cfr. Helena Magalhães Bolina, «Razão de ser, significado e consequências do princípio da presunção da inocência (art. 32.º, n.º 2, da CRP»), Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Vol. LXX, Coimbra, 1994, págs. 440-442). No entanto, mesmo a nível probatório, ele tem um sentido e alcance mais amplos que o princípio in dubio pro reo, como explica Helena Magalhães Bolina (cit., págs. 443-446):
O princípio in dubio pro reo só se aplica no caso de surgir a dúvida quanto à apreciação da matéria de facto. O princípio da presunção de inocência, atento o objetivo que visa atingir, intervém em momento anterior, condicionando o surgimento dessa dúvida, impondo-o em todas as situações em que, à luz da verdade material, a culpabilidade do arguido não possa considerar-se afirmada com certeza.
A dúvida é, assim, por imposição do princípio de presunção de inocência, uma dúvida legal: uma dúvida que deve surgir em determinadas circunstâncias e constitui também matéria de direito, não só a questão de saber se a dúvida surgida na apreciação da prova foi resolvida favoravelmente ao arguido – caso em que se está perante a verificação do respeito do princípio in dubio pro reo –, mas também se, em face da prova produzida, a dúvida surgiu quando devia, ou, noutra perspetiva, se o juízo de certeza foi bem fundado. Nesse caso, o princípio cujo respeito se avalia é, não já o in dubio pro reo, mas, mais rigorosamente, o princípio da presunção de inocência.
O princípio da presunção de inocência distingue-se, assim, do princípio in dubio pro reo, não só pela sua relevância no tratamento do arguido ao longo de todo o processo e pelo seu reflexo extraprocessual como critério dirigido ao legislador ordinário, mas também, em sede de prova, impondo que a dúvida surja em determinadas circunstâncias, assim possibilitando, em momento lógico posterior, a aplicação do princípio in dubio pro reo».
[…]
Ora, na prova por utilização de presunção judicial, a qual pode sempre ser infirmada por contraprova, na passagem do facto conhecido para a prova do facto desconhecido, intervêm juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais que permitem fundadamente afirmar, segundo as regras da normalidade, que determinado facto, que não está diretamente provado é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido. Quando o valor da credibilidade do id quod e a consistência da conexão causal entre o que se conhece e o que não se apurou de uma forma direta atinge um determinado grau que permite ao julgador inferir este último elemento, com o grau de probabilidade exigível em processo penal, a presunção de inocência resulta ilidida por uma presunção de significado contrário, pelo que não é possível dizer que a utilização deste meio de prova atenta contra a presunção de inocência ou contra o princípio in dubio pro reo. O que sucede é que a presunção de inocência é superada por uma presunção de sinal oposto prevalecente, não havendo lugar a uma situação de dúvida que deva ser resolvida a favor do Réu.
Se, no caso concreto, houve lugar à utilização de presunções sem a necessária credibilidade ou consistência é uma questão que o Tribunal Constitucional não tem competência para avaliar.
Mas, no entender do Recorrente, a norma do artigo 127.º do Código de Processo Penal, na interpretação que lhe foi dada pela decisão recorrida, seria ainda inconstitucional, por violação “dos princípios do Estado de direito democrático, da vinculação à Lei e da fundamentação das decisões dos tribunais, consagrados respetivamente nos artigos 2.º, 203.º e 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa”.
O que está em causa na questão de constitucionalidade suscitada no presente recurso é, essencialmente, a alegada violação da exigência constitucional de fundamentação das decisões judiciais, consagrada no art. 205.º, n.º 1, da Constituição, o qual determina que “as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.
[Como anteriormente referido], constitucionalmente é exigível que na fundamentação seja visível uma racionalização dos motivos da decisão, revelando-se às partes e à comunidade o conhecimento das razões que subjazem ao concreto juízo decisório, devendo, para isso, a fundamentação revelar uma aptidão comunicativa na exteriorização das premissas que presidem à sua conclusão, assim como o respetivo juízo de valoração, de modo a transmitir, como condição de inteligibilidade, a intrínseca validade substancial do decidido.
Ora, tendo em consideração as características acima apontadas à utilização de presunções judiciais, verifica-se que a prova indireta ou por presunções assenta num processo lógico de inferência que não pode ser entendido como uma operação puramente subjetiva, emocional e imotivável, mas sim como uma valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita ao julgador objetivar a apreciação dos factos e proceder a uma efetiva motivação da decisão. Daí que a utilização de presunções judiciais não seja incompatível com o dever de fundamentação das decisões judiciais, antes exigindo uma explicação mais rigorosa que seja claramente explicitadora do processo lógico que lhe é inerente.
Se no caso concreto o rigor exigível foi ou não observado já é uma questão que excede as competências do Tribunal Constitucional.
Por estas razões se conclui que a interpretação da norma constante do artigo 127.º do Código de Processo Penal, na interpretação de que a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador permite o recurso a presunções judiciais em processo penal não viola qualquer parâmetro constitucional.».
*
Improcede, pois, in totum, o recurso interposto pela recorrente.
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III.2.2
Recurso do arguido BB

III.2.2.1
Do erro de julgamento
Afirma o arguido terem sido incorretamente julgados os pontos 1, 2, 5, 6, 7, 11, 12, 13, 14 e 15 da factualidade provada, na parte em que o incluem na ação desenvolvida pela coarguida.
No entender do recorrente as declarações prestadas pelos arguidos em audiência e, bem assim, o depoimento da ofendida, não permitem, quanto ao impetrante, afirmar a sua comparticipação nos factos.
A ofendida nunca contactou com o arguido, sendo que a queixa que deu origem aos presentes autos foi apresentada exclusivamente contra a arguida.
A arguida, nas poucas referências que fez em audiência à atuação do arguido, fê-lo a jusante de questões capciosas, sendo que sem prejuízo das reservas que tais declarações merecem, em face das questões sugestivas e capciosas formuladas, o seu depoimento não contém substrato material e factual suscetível de demonstrar o que foi considerado provado, ou sequer suscetível de formar a convicção do Tribunal nos moldes descritos na sentença.
Apreciando.
Repristina-se aqui tudo o que referimos supra, em III.2.1.1 relativamente ao âmbito da impugnação alargada.
Como é consabido, o julgamento da matéria de facto, em primeira instância, é efetuado segundo o princípio da imediação – possibilitando o contacto direto e pessoal entre o julgador e a prova, tangível ao e próprio do juiz a quo – sendo “(…) as provas apreciadas por quem assistiu à sua produção, sob a impressão viva colhida nesse momento e formada através de certos elementos ou coeficientes imponderáveis, mas altamente valiosos, que não podem conservar-se num relato escrito das mesmas provas” [Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português – Do Procedimento, Univ. Católica Ed., pág. 212]. Além disso, o julgamento da matéria de facto far-se-á segundo o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art.º 127.º do C.P.P., interpretado, não num sentido que desonere o julgador de justificar o seu raciocínio e percurso interior para chegar à afirmação do facto ou à sua desconsideração – caso em que, como adianta o recorrente, falaríamos de arbítrio - mas, apenas, no sentido de que o valor a atribuir a determinado meio de prova não é tarifado ou vinculado (salvo as exceções consignadas na lei), orientando-se o julgador de acordo com os ditames da lógica e da experiência, podendo, por exemplo, atribuir relevância a um depoimento em detrimento de vários e mais numerosos de sinal contrário, desde que o justifique, já que, na esteira do afirmado por Bacon, os depoimentos não se contam, pesam-se.
A convicção do Tribunal é, reforça-se, formada livremente, de acordo com as regras da experiência, enquanto postulados decorrentes da observação social e dos conhecimentos da técnica e da ciência. A afirmação positiva dos factos deverá fazer-se, não por razões ou argumentos puramente subjetivos e insindicáveis, mas sim concluindo-se através de uma “(…) valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, permitindo “objetivar a apreciação” [Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, Verbo 1993, pág. 111 a propósito da definição do conceito de livre apreciação da prova.].
Destarte, se a decisão do Tribunal recorrido se ancorar numa fundamentação compreensível, com as naturais opções próprias efetuadas com permissão da razão e das regras da experiência comum e a coberto da caraterizada livre apreciação, cumprir-se-á o necessário dever de fundamentação.
No caso em apreço a afirmada comparticipação do recorrente adveio das declarações prestadas pela arguida, concatenadas com os elementos documentais elencados. O iter interno seguido pela julgadora teve como elementos-guia as declarações prestadas pela arguida e os elementos documentais corroborantes.
Quanto ao arguido, invocando o mesmo desconhecimento da atuação da coarguida, demarcando-se da elaboração ou execução de qualquer plano, aquelas declarações foram desconsideradas por se entender que “(…) o alegado desconhecimento de tal actividade resulta contrariado pelas declarações do próprio que, posteriormente, referiu terem sido ambos detidos no aeroporto ..., quando regressavam do Canadá, por factos de igual natureza.
Acresce que tal versão é frontalmente desmentida pelo teor dos certificados de registo criminal dos arguidos devidamente conjugado com o teor da cópia por certidão da sentença de fls. 312 a 328. Da conjugação dos referidos documentos resulta que os arguidos sofreram uma condenação pela prática, em 2019, e em co-autoria, de um crime de burla no âmbito do processo comum n.º 1326/19.5PBVCT, do Juízo Local Criminal de Viana do Castelo – Juiz 1, não podendo o arguido desconhecer tal facto.
No que se refere ao alegado desconhecimento dos movimentos da conta bancária aludida em 5), o arguido explicou que, face às mencionadas dificuldades de leitura e escrita, não sabe utilizar e consultar quaisquer contas bancárias.
Desde logo, se o arguido consegue explicar e entender a natureza e necessidade de abertura de uma conta-ordenado, razão que avançou para a abertura da conta referida em 5), não se afigura verosímil que o mesmo não saiba efectuar quaisquer movimentos ou levantamentos no multibanco. Posteriormente, o arguido acabou por admitir que efectivamente aprendeu a fazer tais movimentos, reconhecendo que efectuou movimentos e levantamentos da referida conta, referindo-se aos movimentos decorrentes da actividade descrita na acusação como sendo “de baixo valor”.
Ainda quanto à inconsistência das declarações do arguido, não pode deixar de se atender à circunstância de aquele ter começado por referir que teve a necessidade de abrir a conta referida em 5) como uma conta-ordenado, onde receberia o seu vencimento, para depois dizer que o seu ordenado era pago em dinheiro, tentando, assim, justificar a alegação de desconhecimento dos movimentos efectuados na sua conta.
De acordo com as regras da experiência comum e a normalidade do acontecer, as pessoas que são titulares de uma conta bancária, na qual recebem montantes cuja proveniência não é do seu trabalho ou de qualquer outro rendimento ou ganho, quantias essas que são posteriormente movimentadas, fazem-no conhecendo a origem de tais montantes.
Importa ainda referir que dos extractos bancários do Banco 1..., S.A., do período compreendido entre 24/03/2021 e 05/05/2021 de fls. 68 a 71, referentes à conta aludida em 5), constam 45 movimentos de crédito através de mbway e transferência bancária de valores que oscilam entre os 8,00€ (oito euros) e os 430,20€ (quatrocentos e trinta euros e vinte cêntimos). Face ao número de movimentos, resulta muito pouco verosímil, para não dizer impossível, que o seu titular, o arguido, não conhecesse ou não se apercebesse das referidas transferências.
Finalmente, sendo certo que é possível sustentar as despesas inerentes a uma habitação e 3 filhos menores com os proventos do trabalho lícito de ambos os arguidos, a verdade é que, das regras da experiência resulta que tal só é possível com uma gestão criteriosa de recursos. Assim, não podia o arguido ignorar alguns sinais exteriores desse acréscimo patrimonial como fosse a aquisição de serviços de beleza e de peças de vestuário pela arguida, como esta afirmou que ocorreu por diversas vezes.
Face às evidentes inconsistências nas declarações do arguido, as mesmas não se afiguraram credíveis, sendo mesmo contrárias às regras da experiência, pelo que não lograram convencer o tribunal.
A proximidade física e afectiva dos arguidos (casados há vários anos) e a ausência de qualquer reacção do arguido na sequência da recepção das referidas quantias na sua conta, designadamente rejeitando qualquer responsabilidade ou recusando a recepção de tais valores perante a sua mulher, leva-nos a concluir, com segurança, que este comportamento foi precedido de um plano elaborado necessariamente por ambos, correspondendo o comportamento de ambos ao que haviam planificado.
O conhecimento e vontade dos arguidos relativamente aos factos praticados resultam da forma de actuação dos mesmos evidenciada nos factos que lhe são objectivamente imputados, atenta a respectiva dinâmica (criação de páginas na internet anunciando a venda de objectos que sabiam não ter, respondendo às questões colocadas pelas pessoas que ali acedessem, criando uma aparência de genuinidade e de predisposição para concretizar a venda, o que é demonstrativo de uma conduta praticada com dolo directo).
O conhecimento da ilicitude da conduta é do conhecimento da generalidade dos cidadãos, onde se inserem os arguidos.”.
Quanto a nós, a descrita argumentação é perfeitamente legítima e consentânea com as regras da lógica e da experiência, pelo que a subscrevemos nos seus traços essenciais.
Contrapõe o recorrente afirmando que as declarações prestadas pela coarguida não permitem concluir pela sua comparticipação nos eventos.
Vejamos.
Ouvidos os respetivos ficheiros áudio atinentes às declarações da arguida, no caso 20230606110543_16348498_2871553.wma e 20230606112454_16348498_2871553.wma, a arguida começou por admitir tudo, acrescentando posteriormente a referência de que essa admissão se reportava à sua parte e com a exclusão, várias vezes vincada (com pretenso reflexo na qualificativa) de que a sua atuação se destinasse a prover “às despesas da casa”.
Admitida genericamente essa participação e procurando algumas concretizações e a medida e extensão da participação de cada um a arguida disse, além do mais:
Sr.ª Procuradora: Olhe e qual era aqui a intervenção, então, do senhor do senhor BB?
Arguida: É assim isto, ele tinha as contas.
Sr.ª Procuradora: Isto foi combinado com ele?
Arguida: Ele sabia de algumas coisas, não lhe vou dizer que ele sabia de tudo tudo, porque muita coisa não sabia, mas a conta era dele.
Sr.ª Procuradora: E relativamente a esta situação qual foi aqui, esta situação em concreto qual foi aqui a intervenção dele? Ele teve conhecimento disto… não teve… [argumentando-se a formulação de questões sugestivas e capciosas, note-se que, pela inflexão de voz, a Sra. Procuradora-Adjunta não afirmou que o coarguido “tinha conhecimento disto não teve?”, procurando apenas a afirmação “sim” ou a confirmação do já afirmado mas, antes, colocou a questão aberta e com a interrogativa abrangendo ambas as alternativas, se tinha ou se não tinha conhecimento]
Arguida: Teve porque ele também gastava o dinheiro, não era só eu.
Sr.ª Procuradora: Ambos gastavam o dinheiro?
Arguida: Sim.
(…)
Sr.ª Procuradora: Pronto. A participação deste senhor BB era de que forma, era a conta, combinaram entre vocês?
Arguida: Sim, ele foi abrir a conta para esse efeito até.
Sr.ª Procuradora: Quando é que abriu a conta?
Arguida: Foi em dois mil e, eu não tenho a certeza mas dois mil e vinte porque ele tinha também uma no Banco 1....
Sr.ª Procuradora: Pronto e ele tinha acesso a esta conta?
Arguida: Sim.
Sr.ª Procuradora: E os dois gastavam?
Arguida: Sim.
Sr.ª Procuradora: E tinham gastos supérfluos, que gastos supérfluos eram esses eram destinados para as despesas correntes da família, era para gastos supérfluos e que gastos supérfluos eram esses?
Arguida: Era cabelos, unhas, era roupas que não era necessário.
Sr.ª Procuradora: E o senhor BB como é que gastava? Isso era a senhora não é?
Arguida: Era cafés.
Sr.ª Procuradora: Ele também levantava dinheiro daqui?
Arguida: Sim.
Sr.ª Procuradora: …e gastava em cafés é isso?
Testemunha: Sim.
Sr.ª Procuradora: Mais alguma coisa?
Arguida: Não.
(…)
Sr.ª Procuradora: E vocês estabeleceram entre vocês que a sua tarefa era contactar as pessoas e ele disponibilizava a conta, foi assim que acordaram, é isso?
Arguida: Sim.
Sr.ª Procuradora: E os anúncios na internet eram só feitos por si, era pelos dois, como é que era?
Arguida: Eram feitos por mim.
(…)
Advogado: Quem é que contactava com as pessoas, quando as pessoas entravam em contacto quem é que dialogava com elas?
Arguida: Era eu.
Advogado: Era sempre a senhora?
Arguida: Sim.
(…)
Advogado: Era mensagens escritas?
Arguida: Tinha algumas que eram por voz.
Advogado: Também estas conversas telefónicas era sempre a senhora que as atendia?
Arguida: Não eram conversas telefónicas, eram de mensagens, mas através de voz.
Advogado: Eram mensagens através de voz.
Arguida: Sim.
(…)
Enquadrando estas declarações importa também referir que a valoração das prestadas por arguido, por si ou em casos de coarguição formal ou material, não ocorre como se de prova testemunhal se tratasse uma vez que a qualidade de testemunha constituiria um agravamento da posição processual de arguido pois que, enquanto tal (e ao contrário da testemunha), dispõe do direito ao silêncio (art.º 61º n.º 1 al. c) do C.P.P.), não está obrigado a responder às questões, pelo que a sua recusa não configura a prática de um crime de desobediência, p. e p. pelo art.º 348º do C.P., não lhe é exigível responder com verdade, não incorrendo na prática de um crime de falsas declarações, p. e p. pelo art.º 359º do C.P. sendo-lhe aplicável o princípio nemo tenetur se ipsum accusare (privilégio contra a auto-incriminação).
Não obstante, nada impede que um arguido preste declarações sobre factos de que possua conhecimento direto, mesmo abrangendo os comparticipantes. Não se trata de prova proibida, como emerge da análise dos art.ºs 125º e 126º do C.P.P., sendo admissíveis todas as provas que não forem proibidas por lei, pelo que as declarações do arguido, se validamente prestadas, constituem meio de prova a apreciar livremente pelo tribunal.
O arguido, pelo facto de o ser, não implica uma espécie de capitis diminutio quanto à suscetibilidade de contribuição para o apuramento dos factos. A única questão que se coloca é a da credibilidade, o que na verdade sucede relativamente a todos os meios de prova e que só casuisticamente poderá ser apreciada. Com isto não se pretende dizer que não são necessárias cautelas especiais naquela apreciação, como também poderá suceder no que tange à apreciação do depoimento da vítima, sendo relevante e importante que forneça elementos externos que permitam uma aferição objetiva da credibilidade do depoimento.
Como refere o Conselheiro Santos Cabral, na esteira de Carlos Clement Duran, “a credibilidade do depoimento incriminatório do coarguido está na razão direta da ausência de motivos de incredibilidade subjetiva o que, na maioria dos casos, se reconduz à inexistência de motivos espúrios e à existência de uma auto inclulpação”. Não há, em resumo, qualquer impedimento legal a que as declarações dos arguidos ou dos coarguidos possam ser valoradas como meio de prova. Os arguidos podem prestar declarações no exercício de um direito, sobre factos que constituam objeto de prova, digam ou não respeito exclusivamente a si e à sua (com)participação ou possam abranger a atuação dos demais. A única limitação decorre do disposto no art.º 345º n.º 4 do C.P.P. nos termos da qual as declarações de um coarguido, em prejuízo de outro, só podem ser valoradas quanto a este quando, a instâncias do coarguido não declarante, aquele não se remeter ao silêncio, assim se permitindo o exercício do contraditório.
Dito isto o Tribunal valorou as declarações prestadas pela arguida, mesmo na parte atinente à (com)participação do coarguido, explicando a razão pela qual lhes atribuiu a dita credibilidade e que adveio, não só do teor objetivo do seu depoimento, reputado de verosímil e concordante com os demais elementos valorados mas, também, da ausência de razões de incredibilidade porquanto, e como se escreve no texto da decisão recorrida, “Atento o relato que a arguida fez, assumindo a sua responsabilidade e descrevendo uma participação que, em extensão, se afigura maior que a do seu co-arguido, não se vislumbra qualquer razão para se concluir que a arguida pretendia prejudicar a posição processual do último, pelo que logrou convencer o tribunal.”.
Refere o recorrente que as questões colocadas à arguida foram sugestivas e capciosas, ao arrepio do estatuído no art.º 138.º, n.º 2 do C.P.P.. A ser verdade – o que não se concede – a inconformidade ao comando legal constituiria mera irregularidade, por força do princípio da legalidade (art.ºs 118.º, n.ºs 1 e 2 e 123.º do C.P.P.), não arguida no próprio ato. Ademais e mesmo com os contornos que o recorrente lhes assinala, as declarações prestadas pela coarguida nunca deixariam de ser atendíveis porquanto desprovidas da mácula da não utilizabilidade decorrente de putativa proibição de prova (art.º 126.º do C.P.P.) uma vez que as ditas questões nunca configurariam uma forma de coação ou engano, entorpecedoras da liberdade e autodeterminação da declarante.
Aqui chegados e tendo em conta os fatores indiciadores da coautoria, são geralmente identificados como requisitos desta forma de comparticipação, nos termos do art.º. 26º do C.P., a existência de um acordo, expresso ou tácito, visando um resultado que preenche um tipo legal de crime e em que todos participam na execução. Essa participação deve, contudo, assumir um cariz especial que a distinga da cumplicidade – e várias foram as tentativas ensaiadas ao longo dos tempos no escopo de proceder a tal distinção. De entre todas, assume particular destaque a chamada teoria do domínio do facto, ou critério final-objectivo que depois de Welzel, e principalmente de Klaus Roxin, tem vindo a reunir consensos.
Assim, para além da realização comum e por acordo do facto punível, são coautores aqueles que detêm o domínio do facto: - "aquelas pessoas que no fundo tenham nas mãos a possibilidade de fazer o processo ir até ao fim, ou de em certo momento o fazerem parar" [Teresa Pizarro Beleza "Direito Penal", II vol., pág. 440, A.A.F.D.L, 1983]. Cada coautor domina o sucesso total em união com outras pessoas, gerando-se uma espécie de "divisão de tarefas" no propósito do êxito final ou diminuição do risco da operação: - "a conduta de cada co-autor deve alcançar uma determinada importância funcional, de modo a que a cooperação de cada qual, no seu papel, constitua uma peça essencial na realização do plano conjunto (domínio funcional)" [Hans-Heinrich Jescheck, Tratado de Derecho Penal – Parte General, 4ª ed., pág. 614, Ed. Comares, Granada, 1993 – a tradução do castelhano é da responsabilidade do relator].
No caso vertente o raciocínio do Tribunal é enquadrado pelas regras da lógica e da experiência e desvelado na fundamentação do decidido. O arguido, não obstante não ser o responsável pelas publicações on-line ou contatos com os “clientes”, criou a conta bancária para onde eram transferidos os proventos da atuação ilícita (facto que não é de somenos importância para o sucesso da operação), movimentava tal conta (apenas titulada por si), beneficiava dos proventos, vivia em economia comum com a coarguida, tudo razões para se afirmar o envolvimento no plano comum e a existência de coautoria.
Assim e analisada a prova produzida, a convicção alcançada pelo tribunal recorrido, motivada em sede própria, sem entorses lógicos e em completude aqui escrutinada não merece, no contexto dos poderes de conformação deste Tribunal de recurso, censura, porquanto se mostra sustentada nos legítimos meios probatórios por aquele valorados e mencionados na motivação da decisão de facto, os quais, no seu conjunto, analisados criticamente, sedimentaram, à luz do princípio da livre apreciação da prova, a convicção que o tribunal recorrido alcançou ao dar como provados os factos com os quais o recorrente não se conforma. Como observa o Prof. Germano Marques da Silva, «Num primeiro aspeto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação e aqui intervêm elementos não racionalmente (v.g., a credibilidade que se concede a um certo meio de prova). Num segundo nível referente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e agora já as inferências não dependem essencialmente da imediação, mas hão de basear-se na correção do raciocínio, que há de fundar-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência.». [Curso de Processo Penal, Vol. II, Verbo, 5.ª edição, pág.186.]. Revertendo ao caso concreto, retendo as palavras do Ilustre professor, lida a motivação e considerando que é na audiência de julgamento que o princípio da livre apreciação da prova assume especial relevância, nada temos a apontar ao decidido e da forma como o foi, logicamente que envolvendo a conjugação dialética de dados objetivos fornecidos por documentos e outras provas constituídas, com as declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento que o Tribunal valorou de forma distinta daquela que o recorrente pretendia e que oferece em alternativa mas que não afasta a primeira e, certamente, não impõe decisão diversa.
Assim e em epítome, não se detetando omissões relevantes, factos inconciliáveis, juízos na sua construção que sejam incompatíveis, ilógicos ou estribados em premissas que derroguem ou sejam estranhas às regras da experiência comum, não se surpreendendo, também, qualquer violação dos momentos vinculados da prova ou à consideração de provas proibidas e estando a decisão recorrida fundamentada, considera-se definitivamente fixado o acervo factual constante da sentença e improcede, por esta via, a impugnação alargada.
*
III.2.2.2
Da violação do princípio in dubio pro reo
Como defluência complementar da argumentação anterior, refere o recorrente que o Tribunal, ao decidir como decidiu, violou o princípio do in dubio pro reo.
Na conclusão XIII refere concretamente o recorrente que: - “A condenação do Recorrente não constituiu o corolário ou consequência lógica da apreciação e valoração de qualquer provas concretas, antes resultando da falta de credibilidade que o Tribunal “a quo” conferiu às declarações prestadas pelo Recorrente (que negou os factos), em conjugação com os seus antecedentes criminais, tendo sido violado o princípio in dubio pro reo, bem como o princípio da livre apreciação da prova na medida em que da (ausência) de prova produzida não é possível extrair a conclusão de se terem demonstrado os factos provados e impugnados no que respeita à atuação do Recorrente.”.
Discordamos.
O Tribunal recorrido entendeu como pouco credíveis as declarações prestadas pelo recorrente, aqui juntando o préstimo único das perceções, dos gestos, as interjeições, os silêncios que fazem parte do património da imediação e da oralidade.
O arguido, enquanto sujeito processual, não tem obviamente que provar que não burlou ou comparticipou, como nos parece de meridiana clareza, nem esse ónus lhe foi imposto na decisão recorrida. O arguido goza do direito ao silêncio, como decorrência da presunção de inocência e concretização do princípio nemo tenetur se ipsum accusare. A possibilidade de se remeter ao silêncio e a qualidade de arguido não convocam, porém, a existência de um direito à mentira. Esta, a ocorrer, será apenas a concretização de uma estratégia de defesa ou a demonstração de um traço de carácter cuja diferença, perante os restantes intervenientes processuais, passa pela impossibilidade de responsabilização criminal pela falta de verdade.
Podendo o arguido exercer o direito ao silêncio, ou até exercê-lo de forma seletiva, não necessita, em bom rigor, de mentir. Basta que se remeta ao silêncio. Se contribui ativamente e avança com uma contraversão, essa narrativa alternativa será, obviamente, sujeita a escrutínio e livre valoração, como no caso sucedeu e na concatenação com a demais prova produzida. O Tribunal não atribuiu credibilidade ao afirmado desconhecimento porque afirmou, a partir das declarações da coarguida e dos demais elementos de prova, interpretados de acordo com as regras da lógica, que aquele não podia deixar de conhecer aquela atuação da arguida e com a mesma estava evidentemente comprometido.
Decidir assim não é afirmar a positividade dos factos a partir de preconceito ou prejuízo pelos antecedentes do arguido ou pela negação preconizada. A consideração dos factos, como provados, partiu de elementos de prova concretos, endógenos à “negação” do arguido e que já analisámos, valoração que as declarações do recorrente, por motivos também escalpelizados, não constituíram contra-motivação suficiente para a infirmar aquele resultado nem este subverte o princípio do in dubio pro reo em questão.
O princípio in dubio pro reo é um princípio estruturante do processo penal, decorrência da presunção de inocência, consagrada constitucionalmente e que, na aplicação prática, constitui limite exógeno à liberdade de apreciação da prova.
Com efeito, o princípio da presunção de inocência destina-se a proteger as pessoas que são objeto de uma acusação, garantindo que não serão condenadas enquanto não se demonstrarem os factos da imputação, através de uma atividade probatória inequívoca. Significa tal princípio constitucional que toda a decisão condenatória deve ser sempre precedida de uma mínima e suficiente atividade probatória, impedindo a condenação sem provas seguras.
Sendo esse princípio uma norma diretamente vinculante e constituindo um direito fundamental dos cidadãos (cfr. art.ºs 32.º, n.º 2 e 18º, n.º 1 da C.R.P.), reconhecido no direito internacional (cfr. art.º 11º da Declaração Universal dos Direitos Humanos e art.º 6º, n.º 2 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos), impõe-se, quando não for demonstrada e provada a culpabilidade do arguido, a sua absolvição.
Embora frequente, a dúvida não pode obstar ao ato de julgar. Sendo proibido o non liquet fundado na insuficiência de provas, em caso de dúvida insanável o facto deve resolver-se em desfavor da acusação, porquanto o arguido se presume inocente. Se o Tribunal não lograr obter a certeza dos factos, permanecendo em dúvida razoável, deve absolver o arguido por falta de provas.
Note-se, em todo o caso, que a dúvida que legitima a invocação do princípio in dubio pro reo deve ser, além do mais, insanável, pressupondo que houve, a montante, todo o empenho e diligência no esclarecimento dos factos, sem que tenha sido possível, a final, ultrapassar o estado de incerteza que funda a ativação do princípio.
Ora, no caso em apreço e entroncando na improcedência, já decidida, da parte atinente à impugnação alargada, não se verifica qualquer violação do proclamado princípio.
Efetivamente e lida a fundamentação exarada pelo Tribunal a quo, não foi a entidade decisora assaltada, no percurso, por qualquer dúvida e, muito menos, que esta fosse razoável ou insanável. O Tribunal obteve a certeza dos factos que afirmou, em raciocínio motivado, pelo que não subsistindo quaisquer dúvidas, inexistia, outrossim, qualquer razão, porque desprovida de objeto, para resolvê-las a favor do recorrente. O que na prática se verifica é que o arguido recorrente, em face da valoração que subjetivamente fez da prova, entende que, ante o seu próprio convencimento, o Tribunal deveria ter tido dúvidas. Mas não teve, nem se notaram supra razões para que se questionasse a valoração que efetuou.
O princípio in dubio pro reo, decorrente da presunção de inocência, “parte da dúvida, supõe a dúvida e destina-se a permitir uma decisão judicial que veja ameaçada a concretização por carência de uma firme certeza do julgador.” [Cfr. Cristina Líbano Monteiro, In Dúbio Pro Reo, Coimbra, 1997], dúvida positiva que, in casu, não existe.
*
III.2.2.3
Do preenchimento da qualificativa do crime de burla
Dão-se aqui por reproduzidas, mutatis mutandis, as considerações exaradas no ponto III.2.1.1 a propósito da qualificativa em causa e dos elementos necessários ao seu preenchimento.
No caso específico do recorrente e atendo o provado em 1) e 13), também quanto a este a qualificação jurídica operada se mostra correta.
Foi condenado em abril de 2018 (por factos de janeiro de 2016), em abril de 2021 (por factos de junho de 2020), em janeiro de 2022 (por factos de junho de 2020) e em novembro de 2022 (por factos de janeiro de 2021), sempre pela prática de crimes de burla.
Para além da habitualidade que a sua atuação pregressa revela (habitualidade que não é suficiente para o preenchimento do conceito de “modo de vida”, como já vimos) a atividade criminosa anunciada prolongou-se em hiato razoável, executada de forma reiterada e homogénea, através de condutas que, na sua individualidade, constituiriam crimes de burla “simples”, na realização de um plano previamente definido, concluindo-se que a repetição, associada à finalidade de obtenção de proventos para munir as suas despesas, ainda que de carater mais supérfluo mas inerentes à vivência normal, permitem o preenchimento do elemento da burla qualificada através do «modo de vida», circunstância a que é estranho o valor do benefício obtido. Ademais e como já se disse, ante a fungibilidade do dinheiro, a organização da economia doméstica faz-se perante determinado pecúlio, recursos que vão municiar as despesas, umas mais essenciais do que outras. Pese embora o referido em 13) – e mesmo que a atividade ilícita permitisse a criação de folga para despesas mais sumptuárias ou menos essenciais, tal pecúlio, agregado ao de proveniência lícita, é presença constante no “modo de vida” e no sustento, aqui visto em grande angular, abrangendo bem mais do que o necessário para sobreviver mas que, ainda assim, é componente de uma vida normal.
Note-se, por fim, que mesmo que não se isolasse, quanto a este recorrente, a circunstância qualificativa – modo de via – e fosse esta evidente, tão só, na recorrente (o que não se concede), também ao primeiro aquela circunstância se aplicaria, por força do estatuído no art.º 28.º, n.º 1 do C.P. [cfr., neste sentido, Henrique Salinas, Miguez Garcia e Castela Rio, mencionados por Paulo Pinto de Albuquerque, op. cit., pág. 211, nota 5 ao art.º 28.].
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III.2.2.4
Da adequação da pena aplicada
Também aqui se reproduzem as considerações expendidas em III.2.1.2 quanto ao princípio de intervenção mínima no que tange à modificabilidade do decidido, no que às penas concerne, devendo a atividade corretiva ater-se aos casos de incumprimento das regras legais de determinação da pena ou manifesta desproporção da pena individualizada.
No caso específico do recorrente o Tribunal valorou:
Em desfavor
- as elevadas necessidades de prevenção geral;
- as necessidades de prevenção especial, que se afiguram muito elevadas, atentos os antecedentes criminais do arguido, o quais compreendem crimes de diversa natureza, sem que as referidas condenações tenham servido de advertência suficiente;
- ter praticado os factos com dolo directo;
- a ausência de juízo crítico quanto à sua conduta.
A favor:
- a circunstância de ter uma participação nos factos que, em extensão, se afigura menor que a da co-arguida;
- a sua inserção familiar e profissional.
Ponderadas todas as circunstância o Tribunal considerou adequada a pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses, numa moldura abstratamente aplicável que se inicia nos 2 anos e não sendo caso de atenuação especial, dado que a reparação não ocorreu até ao início da audiência de julgamento em primeira instância (cfr. art.º 206.º, n.º 2, ex vi art.º 218.º, n.º 3 do C.P.).
Tendo em conta a moldura abstratamente aplicável e a pena concretamente aplicada, também aqui não se alcança, pelo que já se deixou referido anteriormente a propósito de igual pretensão da recorrente, a existência de manifesta desproporção ou excesso que importe corrigir.
*

IV.
Decisão:
Por todo o exposto, acordam os Juízes Desembargadores que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente improcedente os recursos interpostos pelos arguidos AA e BB, confirmando totalmente a decisão recorrida.
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Custas pelos recorrentes, fixando a taxa de justiça em 4 UC (art.º 513.º, n.º 1, do C.P.P. e art.º 8.º, n.º 9, do R.C.P., com referência à Tabela III).
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Porto, 7 de fevereiro de 2024
José Quaresma (Relator)
Pedro M. Menezes (1.º Adjunto)
Maria Rosário Silva Martins (2.ª Adjunta)