Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1990/20.2T8OVR-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANABELA DIAS DA SILVA
Descritores: LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
MÁ FÉ OBJETIVA E MÁ FÉ SUBJETIVA
Nº do Documento: RP202209271990/20.2T8OVR-A.P1
Data do Acordão: 09/27/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Não se pode ignorar que a concretização das situações de litigância de má-fé exige alguma flexibilidade por parte do intérprete, o qual deverá estar atento a que está em causa o exercício do direito fundamental de acesso ao direito, cfr. art.º 20.º da C.R.Portuguesa.
II - A infracção do “dever honeste procedere” pode resultar de uma má-fé subjectiva, se ela é aferida pelo conhecimento ou não ignorância da parte, ou objectiva, se resulta da violação dos padrões de comportamento exigíveis.
III - A conduta do embargante nos presentes autos foi, além do mais já acima referido, grave do ponto de vista ético e assim manifestamente reprovável pelo que tem de ser, correspectivamente, sancionada por litigância de má-fé substancial.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação
Processo n.º 1990/20.2 T8OVR-A.P1
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo de Execução de Ovar

Recorrente – AA
Recorrida – BB

Relatora – Anabela Dias da Silva
Adjuntos – Desemb. Ana Lucinda Cabral
Desemb. Rodrigues Pires



Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I – Por apenso aos autos de execução que BB intentou no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo de Execução de Ovar contra CC veio AA deduzir os presentes embargos de terceiro, opondo-se à penhora dos bens móveis melhor descritos no auto de penhora datado de 13.01.2021, alegando que aqueles bens lhe pertencem, pelo que a penhora ofende o seu direito de propriedade e posse sobre aqueles bens.
Não juntou qualquer documento contendo evidência que os bens penhorados tenham por si sido adquiridos a qualquer título.
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Foi de seguida proferido o seguinte despacho: “Determino a suspensão dos ulteriores termos da execução no que se refere aos bens móveis melhor descritos no auto de penhora datado de 18.01.2020 (art.º 347.º do Cód. Proc. Civil).
Notifique, sendo as partes primitivas, exequente e executado, para contestarem no prazo de 30 (trinta) dias (art.ºs 348.º, n.º 1 e 569.º, n.º 1, ambos do Cód. Proc. Civil, na redacção da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho).
Dê conhecimento ao Agente de Execução”.
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Apenas a embargada contestou o pedido, pedindo a sua improcedência e peticionou a condenação do embargante como litigante de má-fé, bem como a pagar-lhe indemnização não inferior a €1.000,00.
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O embargante respondeu e terminou pugnando também pela condenação da embargada como litigante de má-fé.
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Foi dispensada a audiência prévia e proferido despacho saneador, onde se identificou o objecto do litígio e se enunciaram os temas de prova.
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Realizou-se a audiência de julgamento e de imediato foi proferida sentença de onde consta: Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, julgo improcedentes os embargos de terceiro, por não provados, devendo a execução prosseguir com os bens penhorados.
Condeno o embargante como litigante de má-fé na multa de 5 UC, e na indemnização que será posteriormente fixada.
Não condeno o embargante em custas de parte porque beneficia apoio judiciário nem reconheço o direito a reembolso das mesmas pela embargante uma vez que também beneficia de apoio judiciário.
Notifique, incluindo o AE, e registe”.


Inconformado com a tal decisão, dela veio o embargante recorrer de apelação pedindo a sua revogação e substituída por outra que o não condene como litigante de má-fé.
O apelante juntou aos autos as suas alegações que terminam com as seguintes conclusões:
I. Vem o presente recurso interposto da douta sentença, que condenou o embargante em litigante de má-fé numa multa de 5 UC e na indemnização que será posteriormente fixada.
II. Ora o meritíssimo juiz considerando que os embargos tinham por fundamento a posse jurídica dos bens penhorados e não tendo ficado demonstrados os factos que substanciam essa posse, não resta senão julgar improcedentes os embargos, por falta de prova.
III. Cabe, todavia, apreciar a conduta processual do embargante que, tendo alegado na sua peça que todos os bens lhe pertenciam, acabou por afirmar na audiência final que nenhum dos bens lhe pertence. Trata-se de uma conduta censurável que o embargante não podia deixar de ignorar pois não pode submeter à pronúncia do tribunal uma pretensão infundada que o próprio sabe que não é verdade.
IV. Esta conduta de má-fé material subsume-se a al. a) n.º2 do art.º 542.º CPC. Tendo em conta a moldura da multa aplicável à litigância de má-fé (cfr. art.º 27.º, n.º 3, RCP) e considerando que aos costumes o embargante referiu ser empresário do ramo da panificação e equipamento hoteleiro, reputo adequado fixar em 5 UC a multa por litigância de má-fé.
V. Não dispondo o Tribunal de elementos para fixação da indemnização a que alude o art.º 543.º do mesmo código, ao abrigo disposto no n.º 3 daquele preceito legal ficam as partes notificadas para, no prazo de 10 dias, se pronunciarem sobre o montante daquela indemnização, nomeadamente a embargada, que deverá junta documentos que suportem a sua pretensão.
VI. É contra esta decisão que o embargante se opõe, senão vejamos,
VII. A litigância de má-fé não se basta com a dedução de pretensão/oposição sem fundamento, ou com a afirmação de factos de forma distinta, sendo ainda exigível a actuação dolosa, ou com negligência grave, da parte, ou seja, é necessário que a parte conheça a falta de fundamento da sua pretensão - vd. Ac. do STJ de 18.02.2015, proc. n.º 1120/11.1TBPFR.P1.S1.
VIII. A litigância de má-fé envolve um juízo de censura assente na violação dos elementares deveres de probidade, cooperação e de boa-fé entre as partes - vd. Ac. TR Guimarães de 28.05.2019, proc. n.º 3303/11.5TBLRA-A.C1.
IX. A conduta processual do recorrente é desprovida de qualquer actuação dolosa, ou gravemente negligente, não sendo possível formular um qualquer juízo de censura sobre a mesma.
X. O recorrente estava legitimamente convicto dos fundamentos legais que entendeu serem aplicáveis ao caso, tendo-se empenhado diligentemente na elaboração da sua defesa.
XI. Ainda que se considere que a interpretação dos preceitos normativos com base nos quais o recorrente fundou a sua pretensão não sejam aplicáveis ao caso concreto, daí nunca se poderá concluir pela actuação dolosa ou gravemente negligente do recorrente - vd. a contrario sensu n.º 2, art.º 542.º CPC.
XII. O recorrente tem direito a actuar em juízo, obtendo em prazo razoável, uma decisão de mérito que aprecie a sua pretensão e a defesa dos seus direitos e interesses não poderá ser confundida com litigância de má-fé - vd. art.º 2.º CPC e art.º 20.º CRP.
XIII. A interpretação e aplicação dos preceitos normativos em causa, ainda que feita de forma errónea, não equivalerá a uma conduta dolosa ou gravemente negligente do recorrente, ou, sequer, a um expediente dilatório alegadamente utilizado por forma a prejudicar a recorrida.
XIV. O recorrente nunca actuou com a consciência da ilicitude do seu comportamento, nem demonstrou a intenção de conseguir um objectivo ilegítimo ou ilegal, pelo que, não é possível formular um juízo de censurabilidade sobre a sua actuação - vd. Ac. TR Coimbra de 28.05.2019, proc. n.º 3303/11.5TBLRA-A.C1, disponível em www.dgsi.pt,
XV. Conforme consta dos autos, designadamente do depoimento parte da ré, a própria demonstrou que os bens em causa faziam parte da habitação dos pais do executado.
XVI. Mais no seu depoimento e conforme consta do dos factos designados no item c) e d), a própria embargada assume que do conhecimento que tem que o executado residia com os seus pais durante dois anos (durante o relacionamento), nada mais.
XVII. Pelo que, não se encontram preenchidos, no caso dos presentes autos, os requisitos do n.º 2, do artigo 542.º do CPC e, por tal efeito, nunca poderia a conduta do recorrente ser integradora do conceito jurídico da litigância de má-fé.
XVIII. A lide ousada/temerária, ou a sustentação de teses doutrinárias controvertidas ou de interpretações legais sem grande acolhimento jurídico não configuram uma situação de litigância de má-fé - vd. Ac. TR Lisboa de 30.04.2009, proc. n.º 233/08.1TBRMRA.L1-8.
XIX. A defesa de teses doutrinárias e a interpretação legal, ainda que feitas de modo ilusório, não integram o conceito de litigância de má-fé - vd. Ac. Tribunal Constitucional n.º 442/91 de 20.11.1991 - vd. Ac. STJ de 20.07.1982, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 319, págs. 301 e ss; Ac. Tribunal Constitucional n.º 376/91, in DR, 2.ª Série, de 02.04.1992 - vd. Ac. Tribunal Constitucional n.º 200/94, de 01.03.1994; Abílio Neto, “Novo Código de Processo Civil Anotado”, 2.ª Edição Revista e Ampliada, 2014, pág. 579; Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, 2.º Vol., pág. 263.
XX. A sentença recorrida procedeu a uma incorrecta subsunção dos factos ao direito e, em consequência interpretou e aplicou incorrectamente a lei, pelo que, não poderá o recorrente ser condenado em qualquer multa ou indemnização - vd. al. a), n.º 1, art.º 674.º CPC; a contrario sensu, n.ºs 1 e 2, art.º 542.º CPC e art.º 543.º CPC.

Não há contra-alegações.


II – Da 1.ª instância chegam-nos assentes os seguintes factos:
A) No âmbito dos autos principais de execução, a Agente Execução ali designada, em 13.01.2021, procedeu à apreensão e penhora dos bens móveis melhor descritos no auto de penhora com a mesma data, tendo constituído depositário dos mesmos o embargante.
B) Durante o tempo em que namorou com o executado CC, a embargada nunca residiu com o embargante.
C) Durante os anos de 2020 e 2021, o executado CC recebia a sua correspondência no local onde mora o embargante.
D) O executado CC trabalhou com o seu pai (embargante), na empresa deste, designada C... Unipessoal Ld.ª e durante esse período residiu com ele (embargante), durante cerca de dois anos.
E) Posteriormente, e depois de sair da empresa do embargante, o executado trabalhou na empresa A... Ld.ª com sede em Aveiro, mantendo-se a residir com o embargante até por altura da diligência de penhora.
F) O executado CC tem como morada fiscal a morada do aqui embargante sita na Rua ..., ..., ... ... Aveiro.


Não se julgaram provados os seguintes factos:
1. Que a referida habitação é do embargante e sua esposa, pelo que todo o recheio que compõe a fracção é propriedade do embargante.
2. Que o executado nunca viveu com os pais.
3. Que os bens móveis foram adquiridos pelo mesmo (embargante).
4. Que os bens foram na sua totalidade adquiridos pelo embargante.
5. Que os bens foram adquiridos onerosamente pelo embargante aquando passou a viver no prédio supra referido.


III – Como é sabido o objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do C.P.Civil), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
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Ora, visto o teor das alegações do apelante é questão a apreciar no presente recurso:
- Da condenação do embargante/apelante como litigante de má-fé, e montante da respectiva multa e em indemnização a fixar posteriormente.
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A 1.ª instância decidiu julgar procedente o pedido formulado pela embargada, e em consequência condenou o embargante, como litigante de má-fé, na multa de 5 UC e na indemnização a pagar à embargada, a fixar posteriormente.
Para tanto, considerou o Tribunal recorrido que: “Considerando que os embargos tinham por fundamento a posse jurídica dos bens penhorados e não tendo ficado demonstrados os factos que substanciam essa posse, não resta senão julgar improcedentes os embargos, por falta de prova.
Cabe, todavia, apreciar a conduta processual do embargante que, tendo alegado na sua peça que todos os bens lhe pertenciam, acabou por afirmar na audiência final que nenhum dos bens lhe pertence. Trata-se de uma conduta censurável que o embargante não podia deixar de ignorar pois não pode submeter à pronúncia do tribunal uma pretensão infundada que o próprio sabe que não é verdade.
Esta conduta de má-fé material subsume-se a al. a) n.º2 do art.º 542.º CPC.
Tendo em conta a moldura da multa aplicável à litigância de má-fé (cf. art.º 27.º, n.º3, RCP) e considerando que aos costumes o embargante referiu ser empresário do ramo da panificação e equipamento hoteleiro, reputo adequado fixar em 5UC a multa por litigância de má-fé.
Não dispondo o tribunal de elementos para fixação da indemnização a que alude o art.º 543.º do mesmo código, ao abrigo disposto no n.º 3 daquele preceito legal ficam as partes notificadas para, no prazo de 10 dias, se pronunciarem sobre o montante daquela indemnização, nomeadamente a embargada, que deverá junta documentos que suportem a sua pretensão”.
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O embargante/apelante insurge-se contra o assim decidido, dizendo que não há litigância de má-fé, quando muito, a tal ser entendido, poderia ter havido apenas uma lide ousada/temerária.
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Vejamos.
Preceitua o n.º1 do art.º 542.º do C.P.Civil, que tendo litigado de má-fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta o pedir.
E como dispõe o n.º 2 do mesmo artigo, “Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;

d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão”.
Como se sabe, foi no intuito de moralizar a actividade judiciária que o art.º 542.º n.º2 do C.P.Civil contém hoje um conceito de má-fé que abrange a negligência grave, sendo pois hoje é sancionável a título de má-fé, não apenas a lide dolosa, mas também a lide temerária, como dela se diz quando as regras de conduta processual conformes com a boa-fé são violadas com culpa grave ou erro grosseiro.
Com efeito, a má-fé substancial ou material directa, quer dolosa, quer com culpa grave ou erro grosseiro, esta última designada por lide temerária, diz respeito ao fundo da causa, à relação substancial deduzida em juízo, não acontecendo, frequentemente, desacompanhada da outra modalidade, a que alude a al. b) do n.º 2 do art.º 542.º do C.P.Civil, ou seja, da má-fé substancial indirecta, que se verifica, quando se “tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa”, cfr. Prof. Manuel de Andrade, in “Noções Elementares de Processo Civil”, págs. 355 a 358 e Prof. Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. II, pág. 258 e segs.
Por sua vez, o Ac. do STJ de 2001.12.06, in www.dgsi.pt, diz que a negligência grave é caracterizada como a imprudência grosseira, sem aquele mínimo de diligência que lhe teria permitido facilmente dar-se conta da desrazão do seu comportamento, que é manifesta aos olhos de qualquer um.
Dizendo mais adiante que “Conforme tem vindo a ser entendido pela Jurisprudência, a conclusão no sentido da litigância de má-fé não pode ser extraída mecanicamente da verificação de comportamento processual recondutível à tipicidade das várias alíneas do n.º 2 do art.º 456.º do Código de Processo Civil (hoje n.º2 do art.º 542.º). Com efeito, a condenação nesse sentido, isto é, a delimitação dessa responsabilização impõe uma apreciação casuística, e onde deverá caber pelo que respeita à previsão da al. b), a extensão da alteração da verdade dos factos ou da omissão dos factos relevantes”.
Da análise do n.º2 do art.º 542.º do C.P.Civil verifica-se que poderá caber no conceito de litigância de má-fé os casos de negligência grave. Trata-se de um postulado do “princípio da cooperação” previsto, nomeadamente, nos art.ºs 7.º e 8.ºdo C.P.Civil onde se diz que “as partes devem agir de boa-fé e observar os deveres de cooperação resultantes do preceituado no artigo anterior”.
Em resumo e conclusão, pode dizer-se que a má-fé traduz-se na violação do dever de probidade que os art.ºs 7.º e 8.º do C.P.Civil impõem às partes: dever de não formular pedidos injustos, não articular factos contrários à verdade, pois que tal instituto visa sancionar os deveres impostos às partes de cooperação, de probidade, de lisura processual, em suma, de boa-fé processual, cfr. art.ºs 7.º e 8.º do C.P.Civil.
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In casu” depois de compulsados os autos principais e para além dos factos que acima se deixaram consignado, verificamos que BB intentou a presente execução para pagamento de quantia certa contra CC, indicando-o como residente na Rua .... ... Aveiro, e para haver dele o pagamento coercivo da quantia de €29.899,40, alegando para tanto que “Por documento particular autenticado denominado “Confissão de Divida”, o executado declarou-se devedor à exequente da quantia de €29.000,00 (vinte e nove mil euros). (conforme doc. n.º 1 que se junta para todos os efeitos legais). Declarou ainda o executado comprometer-se a liquidar a totalidade da quantia referida em 1. até 31 de Janeiro de 2020, ou, não o fazendo, a liquidar a mesma quantia em prestações mensais e sucessivas no valor de €250,00 (duzentos e cinquenta euros) cada uma delas, vencendo-se a primeira até final de Fevereiro de 2020. O Executado não pagou a totalidade da sua divida até 31.01.2020, nem liquidou qualquer das prestações acordadas por conta da referida divida, vencendo-se assim, de imediato, a totalidade da mesma, como é de lei, e conforme consta do parágrafo 2., última parte, do doc. n.º 1 atrás referido.. Assim, o executado é responsável pelo pagamento do montante titulado pelo título de divida, ou seja, €29.000,00, bem como pelo pagamento dos juros de mora vencidos, que na presente data, calculados à taxa de juro em vigor, ascendem a €899,40, e ainda os juros que se vencerem até efectivo e integral pagamento”.
Em 18.01.2020 a Sr. Agente de Execução procedeu à penhora de 14 bens móveis existentes na Rua ...., em Aveiro e dos quais o embargante, ora apelante ficou fiel depositário.
Ordenada, em Janeiro de 2021, a citação do executado, foi este citado pessoalmente no 13.01.2021 na morada indicada, ou seja, na Rua ...., em Aveiro.
Na petição dos presentes embargos de terceiro, o embargante afirma, além do mais, que: “O embargante é pai do executado CC, sendo que nada sabe do seu filho já há mais de oito anos a esta parte, pelo que o mesmo não faz parte integrante do agregado familiar deste para os devidos efeitos legais efeitos”; “Na execução em que os presentes embargos são pendência foi realizada uma penhora incidente sobre bens do aqui embargante”; “Conforme se alcança do respectivo auto de penhora, a mesma recai sobre bens móveis existentes na habitação familiar do aqui embargante, nada pertencendo ao executado CC”; “Aliás, o mesmo tem como morada fiscal a morada do aqui embargante sito na Rua ..., ..., ... ... Aveiro, e que o embargante desconhecia visto que o executado não reside efectivamente com este”; “Sucede que, o embargante teve conhecimento que foram penhorados bens pertencentes ao recheio da habitação do mesmo”; “Os bens penhorados são propriedade do embargante, que exerce sobre os mesmos uma posse real efectiva” e ”Pois que, a referida habitação é do embargante e sua esposa, pelo que todo o recheio que compõe a fracção é propriedade do embargante (…)”.
No âmbito do julgamento dos presentes autos, o embargante foi ouvido em depoimento e declarações de parte, tendo sido elaborada a devida Assentada, que o mesmo confirmou e de onde consta:
“a) O embargante confessa que durante os anos 2020 e 2021, o executado CC recebia a sua correspondência na sua morada (embargante);
b) O executado CC trabalhou com o seu pai (embargante), na empresa deste, designada C... Unipessoal Ld.ª e durante esse período residiu com ele (embargante), durante cerca de dois anos.
c) Posteriormente, e depois de sair da empresa do embargante o executado trabalhou na empresa A... Ld.ª com sede em Aveiro, mantendo-se a residir com o embargante até por altura da diligência de penhora”.
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Não se cuida aqui averiguar da real propriedade e posse dos bens penhorados nos autos de que este é um apenso, mas sim face ao que resultou provado e não provado nos autos, da actuação processual do embargante.
A 1.ª instância analisou essa conduta processual dizendo, em síntese, que tendo o embargante “alegado na sua peça que todos os bens lhe pertenciam, acabou por afirmar na audiência final que nenhum dos bens lhe pertence. Trata-se de uma conduta censurável que o embargante não podia deixar de ignorar pois não pode submeter à pronúncia do tribunal uma pretensão infundada que o próprio sabe que não é verdade.
Esta conduta de má-fé material subsume-se a al. a) n.º2 do art.º 542.º CPC (…)”.
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Não se pode olvidar que a concretização das situações de litigância de má-fé exige alguma flexibilidade por parte do intérprete, o qual deverá estar atento a que está em causa o exercício do direito fundamental de acesso ao direito, cfr. art.º 20.º da C.R.Portuguesa, não podendo aquele instituto traduzir-se numa restrição injustificada e desproporcionada daquele direito fundamental, cfr. n.ºs 2 e 3, do art.º 18.º da C.R.Portuguesa.
Como refere Menezes Cordeiro, in “Litigância de Má-Fé abuso do Direito de Acção e Culpa”, pág. 26 e in “Da Boa-Fé no Direito Civil”, pág. 380., alargou-se a litigância de má-fé à hipótese de negligência grave, equiparada, para o efeito, ao dolo. Dolo, esse, que supõe o conhecimento da falta de fundamento da pretensão ou oposição deduzida - dolo substancial directo - ou a consciente alteração da verdade dos factos ou omissão de um elemento essencial - dolo substancial indirecto, podendo ainda traduzir-se no uso manifestamente reprovável dos meios e poderes processuais.
Também Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudos sobre o Novo Processo Civil”, LEX, pág. 62, diz que que a infracção do “dever honeste procedere” pode resultar de uma má-fé subjectiva, se ela é aferida pelo conhecimento ou não ignorância da parte, ou objectiva, se resulta da violação dos padrões de comportamento exigíveis.
A nossa Jurisprudência tem entendido que a negligência grave é caracterizada como a imprudência grosseira, sem aquele mínimo de diligência que lhe teria permitido facilmente dar-se conta da desrazão do seu comportamento, que é manifesta aos olhos de qualquer um, cfr. Ac do STJ de 8.12.2001, in www.dgsi.pt.
No caso em apreço nos autos, e atentos os factos provados e não provados, é manifesto que o embargante, ora apelante, ao intentar os presentes embargos de terceiro, com os fundamentos e imputações que fez - deduziu pretensão cuja falta de fundamento não podia ignorar; alterou a verdade dos factos e usou os presentes autos de forma manifestamente reprovável com o fim de conseguir objectivo ilegal – e ainda quis, conscientemente, litigar de modo desconforme ao respeito devido não só ao tribunal, como também à exequente. Ora, não restam quaisquer dúvidas que o embargante/apelante actuou senão dolosamente, pelo menos, com negligência muito grave. Logo, afastada fica a alegação do mesmo de que se estaria perante uma mera lide temerária ou ousada!!!.
Destarte e sem necessidade de outros considerandos a conduta do embargante nos presentes autos foi, além do mais já acima referido, grave do ponto de vista ético e assim manifestamente reprovável pelo que tem de ser, correspectivamente, sancionada por litigância de má-fé substancial.
O montante da multa, de harmonia com o disposto no art.º 27.º n.º3 do RCProcessuais, é fixado entre duas unidades de conta a cem unidades de conta. Sendo que “O montante da multa ou penalidade é sempre fixado pelo juiz, tendo em consideração os reflexos da lei na regular tramitação do processo e na correta decisão da causa, a situação económica do agente e a repercussão da condenação no património deste”, cfr. n.º4 do citado art.º 27.º.
Por fim dir-se-á ainda que a existência de litigância de má-fé determina a condenação numa indemnização à parte contrária, desde que exista pedido, cfr. art.º 542.º n.º 1 do C.P.Civil. Tal pedido deve ser formulado antes da prolação de decisão final, sob pena de preclusão.
O quantitativo da indemnização é delimitado pelo art.º 543.º n.º 1 do C.P.Civil. São previstos dois tipos de indemnização, a saber: danos emergentes directamente causados – alínea a); todos os prejuízos, incluindo lucros cessantes, em consequência directa ou indirecta da má-fé – alínea b).
A opção entre um e outro tipo de indemnização deve ser realizada em função da gravidade da conduta do litigante.
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O Tribunal “a quo” condenou o embargante/apelante na multa de 5 UC’s.
No que concerne ao montante da indemnização em que o mesmo foi condenado, tendo em consideração, o tempo de pendência destes autos e as suas vicissitudes, sem olvidar a difícil situação económica que o mundo, o país e cada cidadão enfrenta, mas ainda assim, importa fixar um valor que não seja desprezível, pois o comportamento do embargante é censurável e as situações de litigância de má-fé devem ser eficazmente punidas, por razões de prevenção geral, associadas à própria eficácia do sistema judicial, consequentemente julgamos que será mais justo e adequado, sancionar o embargante/apelante e que litigou de má-fé com o pagamento de uma multa no montante de apenas 3 UCs, cfr. art.º 102.º do CCJ.
Destarte, nenhuma censura nos merece a condenação do embargante/apelante como litigante de má-fé feita em 1.ª instância e a cuja fundamentação aderimos, todavia entendemos reduzir a respectiva multa a 3 UCs.
E no que respeita à indemnização devida à parte contrária ela é devida e será oportunamente, como está decidido, fixada em 1.ª instância.
Procedem, pois, parcialmente as respectivas conclusões do apelante.

Sumário:
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IV – Pelo exposto acordam os Juízes desta secção cível em julgar a presente apelação parcialmente procedente e consequentemente altera-se a decisão recorrida, de forma que vai o embargante condenado como litigante de má-fé na multa de 3 UCs, e na indemnização que será posteriormente fixada.


Porto, 2022.09.27
Anabela Dias da silva
Ana Lucinda Cabral
Rodigues Pires