Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2538/15.6T8AVR-D.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO DIOGO RODRIGUES
Descritores: INSOLVÊNCIA CULPOSA
INIBIÇÃO
CULPA
Nº do Documento: RP201903082538/15.6T8AVR-D.P1
Data do Acordão: 03/08/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 879, FLS 15-24
Área Temática: .
Sumário: I - Considera-se sempre culposa, ou seja, de modo inilidível, a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular, quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham, para além do mais criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, devido, nomeadamente, à celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas e/ou disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros.
II - A inibição decorrente da insolvência culposa deve ser dimensionada em função da culpa dos afetados por essa qualificação.
III - Por sua vez, a culpa deve ser aferida em função dos contornos do caso concreto; designadamente, a natureza e gravidade objetiva dos factos praticados, o intuito com que foram realizados e as consequências patrimoniais que tiveram para a insolvente e para os respetivos credores.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2538/15.6T8AVR-D.P1
*
Sumário
……………………….
……………………….
……………………….
*
Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I- Relatório
1- Declarada a insolvência de B…, veio a C…, requerer que tal insolvência seja declarada culposa.
2- Em igual sentido se pronunciaram o Administrador de Insolvência e o Ministério Público.
3- A Requerida pugnou pela solução contrária, defendendo a declaração da sua insolvência como fortuita.
4- Instruída e julgada a causa, foi proferida sentença na qual se qualificou a “insolvência como culposa, sendo por ela afetado a insolvente I…, que se declara inibida para o exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação, fundação, empresa pública ou cooperativa durante um período de sete (sete) anos”.
5- Inconformada com esta decisão, dela recorre a insolvente, que termina as suas alegações com as seguintes conclusões, já sintetizadas:
……………………………
……………………………
……………………………
6- O Ministério Público respondeu pugnando pela confirmação do julgado.
7- Recebido o recurso e preparada a deliberação, importa tomá-la.
*
II- Mérito do recurso
A- Definição do seu objeto
Inexistindo, no caso presente, questões de conhecimento oficioso[1], o objeto deste recurso, delimitado, como é regra, pelas conclusões das alegações da recorrente (artigos 608º, nº 2, “in fine”, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, todos do Código de Processo Civil), resume-se a saber se:
1) A sentença recorrida é nula e violadora das disposições e princípios legais e constitucionais indicados pela Apelante;
2) Não estão verificados os pressupostos para a qualificação desta insolvência como culposa;
3) Mantendo-se a qualificação desta insolvência como culposa, se o período de inibição decretado na sentença recorrida deve ser reduzido.
*
B- Fundamentação de facto
a) Na instância recorrida julgaram-se provados os seguintes factos:
1- Através de documento epigrafado de contrato de arrendamento com opção de compra datado de 26/11/2014 e subscrito pela insolvente e pelo credor nas qualidades de senhoria e arrendatário, aquela declarou dar de arrendamento ao segundo e para fins habitacionais o prédio urbano destinado a habitação e o prédio rústico destinado a cultura sitos em …, freguesia …, Ovar, inscritos sob os artigos 1477.º e 2739.º e descritos sob os nºs 1657 da Conservatória do Registo Predial de Ovar, pelo prazo de cinco anos com início no dia 01/12/2014 e prorrogável por períodos iguais e sucessivos de um ano, mediante a renda mensal de 450,00€.
2- Pelo dito documento mais declararam que no ato da assinatura do mesmo o credor D… liquida já a quantia de 10.800,00€ correspondente a 24 meses de renda, ou seja até 30 de Novembro de 2016, e do qual se dá a respetiva quitação pela insolvente, que ao arrendatário é permitido fazer obras sem prévia autorização escrita da senhoria, que ficam a pertencer ao prédio mas pelas quais aquele pode alegar retenção pedir por elas qualquer indemnização.
3- Sob a cláusula 11ª mais declararam que:
1) Até ao final do 5º ano de duração do contrato o segundo contraente poderá optar pela aquisição do imóvel, caso em que a primeira contraente lhe concederá um desconto equivalente a 100% da soma de todas as rendas liquidadas até à data do exercício do direito de opção de compra.
2) Tendo em conta que o valor comercial do imóvel aceite pelas partes é de 230.000,00€, o valor a pagar pelo segundo a primeira contraente, pela aquisição do imóvel, será o resultante da seguinte operação matemática: 230.000,00€ – [(nº de rendas pagas x 450,00€)-(valor de obras ou benfeitorias].
3) A opção de compra por parte do segundo contraente deverá ser exercida por meio de carta registada com A.R. a enviar a primeira outorgante com uma antecedência mínima de 15 dias (…).
4) Este acordo consubstancia por parte da primeira outorgante uma promessa de venda do imóvel pelo preço e condições definidas nos números anteriores.
5) Uma vez exercida a opção de compra o segundo contraente passará a deter todos os direitos reservados ao promitente comprador, nomeadamente o direito à execução específica ou à restituição do sinal em dobro, com garantia real de direito de retenção, considerando sinal e reforço de sinal todas as quantias referidas no ponto 1 e 2 da presente cláusula, bem como podendo conferir a respetiva posse do imóvel aqui objeto.
6) A marcação de escritura pública de compra e venda caberá ao segundo contraente, devendo notificar a primeira contraente, por carta registada com AR com uma antecedência mínima de 15 dias.
(…).
4- Sob a cláusula 12ª mais declararam que A título de cláusula penal, o incumprimento de qualquer cláusula do presente documento, confere a parte não faltosa o direito a uma indemnização da parte faltosa, no montante de 50.000,00€.
5- Através de requerimento de 14.01.2015 instruído, entre outros, com documento subscrito por E… nos termos e para os efeitos do art. 17º-C, nº 1 do CIRE declarando na qualidade de credor no montante de 1.500,00€ da devedora B… (…) interessado em participar nas negociações conducentes à revitalização do contribuinte supra identificado, a insolvente requereu Procedimento Especial de Revitalização e nele indicou como morada o prédio misto supra descrito, que através das certidões matriciais que juntou identificou como sendo o respetivo património (prédio urbano destinado a habitação e prédio rústico destinado a cultura sitos em …, freguesia …, Ovar, inscritos sob os artigos 1477 e 2739 e descritos sob os nºs 1657 da Conservatória do Registo Predial de Ovar).
6- Com o dito requerimento para apresentação a procedimento especial de revitalização a insolvente mais juntou relação de execuções, na qual identificou a contra si instaurada pela C… com o nº 1566/10.2T2AVR para cobrança da quantia de 198.161,00€, e relação de credores na qual indicou dever: a F…, 5.000,00€, a C…, 198.161,00€, a G…, 37.000,00€, às Finanças 9.000,00€, a E…, 1.500,00€, a H…, € 20.000,00, a I…, SA, € 16.573,00, a J…, 13.000,00€, a Segurança Social, 16.000,00€; para além dos referidos não indicaram outros credores, designadamente, D… nem fez referência a qualquer contrato de arrendamento o outro tendo por objeto os prédios que relacionou.
7- O PER foi declarado encerrado em 14/07/2015 na sequência de requerimento do Sr. Administrador da Insolvência ali nomeado informando da impossibilidade de chegar a acordo com os credores.
8- Na sequência do parecer do Sr. Administrador Judicial Provisório, que não mereceu a oposição da devedora, esta foi declarada insolvente por sentença proferida em 07/10/2015.
9- No âmbito da insolvência o credor D… reclamou crédito no montante de 218.600,00€ e direito de retenção sobre os prédios da insolvente com fundamento no supra referido contrato, correspondendo aquele à soma das seguintes parcelas:
i) quantia de 10.800,00€ que alegadamente pagou à insolvente a título de adiantamento de rendas e que esta recebeu a título de sinal;
ii) o dobro da quantia de 78.900,00€, a título de obras que alegadamente realizou no locado;
iii) 50.000,00€ por incumprimento contratual conforme cláusula 12º do contrato.
10- No âmbito da execução nº 1566/10.2T2OVR que o credor C… instaurou contra a insolvente foi realizada penhora do prédio misto supra descrito inscrito no registo em 15/06/2010 para garantia da quantia exequenda de 248.938,97€ emergente de contrato de mútuo com hipoteca que celebrou com a insolvente em 30/10/2003, e ali designada venda por propostas em carta fechada para o dia 06.02.2015, que foi suspensa na sequência da comunicação nos autos de execução da nomeação de AJP, por despacho proferido em 19/01/2015, no âmbito do PER requerido pela insolvente.
*
b) Usando da faculdade prevista no artigo 11.º do CIRE e artigo 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, adita-se ainda o seguinte facto, que resulta da certidão junta aos autos a fls. 119 a 133:
- Ao credor, D…, foi reconhecido um crédito sobre a insolvente no valor de 78.900,00€, que foi qualificado como crédito comum e graduado para ser pago pelo produto da venda dos bens que constituem o acervo da massa insolvente, após os créditos garantidos por hipoteca, em que se inclui o crédito reclamado pela C….
*
c) Na mesma sentença não se julgaram provados os factos seguintes:
i) em 2014 a insolvente tentou vender o prédio supra descrito com o objetivo de proceder ao pagamento integral da dívida ao credor C… e restantes dívidas;
ii) as declarações contidas no documento descrito em 1. correspondem à vontade real da insolvente – de dar de arrendamento e prometer vender o prédio de que era proprietária a D… – e deste – de tomar de arrendamento o referido prédio e de até ao termo do prazo de cinco anos exercer opção de compra do mesmo pelo valor de 230.000,00€ ou qualquer outro;
iii) D… passou a habitar naquele prédio;
iv) a insolvente subscreveu o dito contrato com o propósito de liquidar a dívida bancária à C… após a concretização da venda prometida;
v) D… interpelou pessoalmente a insolvente com o objetivo de marcar uma data para a celebração da escritura de compra e venda e que aquele e a insolvente propuseram ao credor C… o pagamento do crédito hipotecário desta para que esta procedesse então ao distrate da hipoteca;
vi) até setembro de 2014 estavam cumpridas/pagas as prestações emergentes do contrato de mútuo supra descrito sob o ponto 10.
*
C- Fundamentação jurídica
Começa por estar em causa neste recurso a questão de saber se a sentença recorrida é nula e violadora dos princípios e disposições legais e constitucionais indicados pela Apelante. Mais concretamente, se essa sentença viola:
- “os direitos fundamentais do direito ao direito, do direito a uma decisão justa e do direito a um processo equitativo”;
- “o princípio da segurança jurídica, imanente ao princípio do Estado de direito, ambos consagrados nos artigos 2º, 18º e 205º, nº 1 da Constituição”;
- “o dever de fundamentar a decisão, elencando os factos, enunciando a norma ou princípio normativo que sustenta a decisão - neste caso a decisão por “moeda ao ar” - e a demonstração crítico-analítica de que os factos são os que dão corpo ao caso e não outros, e o direito do caso é esse e não outro, violando assim o princípio lógico da identidade”;
- E, nessa medida, “o disposto no art.ºs. 2º, 18º e 205º, 1, da Constituição, bem como o disposto nos art.ºs 154º, 607º nºs 3 e 4, 615º, 1, b) e c) do C.P.C, aplicáveis ex vi artº 17º do CIRE”.
Pois bem, do nosso ponto de vista, a resposta só pode ser negativa.
O trecho da sentença recorrida em que a Apelante baseia todas estas alegadas violações é, fundamentalmente, aquele em que se conclui “pela efetiva concretização da insolvência culposa pelo pretendido agravamento da mesma através dos efeitos visados produzir com a subscrição do documento epigrafado de contrato de arrendamento com opção de compra que a insolvente celebrou tendo como objeto prédio que era objeto de hipoteca e de penhora realizada em execução contra si pendente desde 2010, e o que fez cerca de 45 dias antes de se apresentar a Procedimento Especial de Revitalização, e nos termos em que foi celebrado, aptos a preencher quer os pressupostos gerais previstos pelo art. 186º nº 1 do CIRE, quer qualquer um dos pressupostos previstos pelas als. b) ou d) do nº 2 do art 186º dos quais o legislador faz decorrer presunção inilidível de insolvência culposa”.
A Apelante o que sustenta, no fundo, é que não se pode decidir, como decidiu, em alternativa; isto é, na sua interpretação do citado trecho, não se pode decidir que a insolvente incorreu na prática das condutas descritas na al. b) ou da al. d), ambos do n.º 2 do artigo 186.º, do CIRE.
Sucede que pela simples leitura da passagem transcrita, facilmente se conclui que na sentença recorrida não se concluiu de modo alternativo. O que se afirmou lapidarmente é que a conduta da Apelante aí analisada é apta “a preencher quer os pressupostos gerais previstos pelo art. 186º nº 1 do CIRE, quer qualquer um dos pressupostos previstos pelas als. b) ou d) do nº 2 do art 186º…”. Ou seja, o “ou” em questão, neste contexto, é cumulativo e não alternativo. Por isso se diz “qualquer um dos pressupostos previstos” nessas alíneas.
Não se pode, assim, aceitar que a sentença recorrida não esteja, por este motivo, fundamentada ou que seja violadora de qualquer um dos princípios e normas constitucionais indicados pela Apelante. Pelo contrário, ao afirmar que qualquer um dos citados pressupostos está preenchido, a referida sentença é clara e inequívoca no sentido das condutas ilícitas que imputa à Apelante e, nessa medida, cumpre não só a lei, mas também a Constituição, na parte em que a mesma regula a atividade jurisdicional e os princípios que a devem nortear.
Daí que não se julguem procedentes as referidas criticas.
Passemos, agora, à análise da questão substantiva; ou seja, saber se a matéria de facto provada é, como sustenta a Apelante, insuficiente para qualificar a sua insolvência como culposa.
Em rigor, a Apelante não explica de onde resulta essa insuficiência.
Alega “que a prova produzida, bem como a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida – factos 1.a 10. -, é manifestamente insuficiente para fundamentar a qualificação da insolvência como culposa. Não operando, pois deste modo, e salvo sempre m.o.c., as presunções, inilidíveis das alíneas b) e d) do nº 2 do artº 186º, de culpa do devedor na criação e agravamento da insolvência, contrariamente ao que decidiu o Tribunal a quo”, mas não explica porquê.
Ora, a sentença recorrida, a nosso ver, é exuberante nessas explicações.
Assim, depois de referir que a insolvente, no pretenso contrato de arrendamento com opção de compra, datado de 26/11/20014, “declarou: obrigar-se a ceder a fruição do único bem existente no seu património a título de arrendamento, autorizar o alegado arrendatário a realizar obras – as que entendesse, quando entendesse e pelo valor que entendesse – e, (como se não bastasse a ‘carta branca’ concedida), reconhecer ao credor o direito a reclamar indemnização pelo valor das obras que realizasse sem necessidade de prévia autorização e sem qualquer limitação quanto à natureza e valor das obras”, aceitaram as partes “atribuir ao imóvel o valor comercial de € 230.000,00 e mais declarou a insolvente reconhecer ao credor a opção de aquisição do imóvel a exercer até ao termo do 5º ano de duração inicial do contrato, pelo preço de € 230.000,00, preço ao qual, sendo aquela opção exercida, seriam deduzidas todas as rendas liquidadas até à data do exercício do direito de opção e (pasme-se!) o valor das obras que, sem autorização prévia da senhoria o arrendatário entendesse realizar no imóvel”.
Ora - continua a mesma sentença-, para além de “subtrair o prédio à ação dos verdadeiros credores da insolvente, desde logo, do credor hipotecário - por referência aos declarados direitos e obrigações emergentes do documento em questão, (fora do contexto de uma ação executiva, singular ou universal) a respetiva cláusula 8ª consubstancia verdadeira ‘via verde’ para a possibilidade de o arrendatário manter o direito a reter/permanecer no imóvel sem que se visse obrigado ao pagamento das rendas devidas pela dita ocupação, bastando-lhe para o efeito fazer obras, denunciar o contrato ou ser denunciado pelo senhorio (com consequente cessação do dever de pagar renda) e invocar direito de retenção para garantia do crédito correspondente ao valor das obras/benfeitorias realizadas no imóvel…e assim permanecer no imóvel até que o seu valor fosse pago pelo senhorio”.
Mais: “Ainda por referência às declarações emitidas, e considerando a promessa unilateral de venda do imóvel declarada pela insolvente – enquanto corolário obrigacional da faculdade ou opção de compra reconhecida ao alegado arrendatário – o teor da cláusula 11ª apresenta-se perfeitamente draconiana para a insolvente pelo evidente e ostensivo desequilibro que geraria nas prestações a cargo de cada uma das partes posto que, apesar do valor de mercado do imóvel por elas reconhecido de €230.000,00, a insolvente, para além da dedução das rendas pagas pelo credor (mas que encontra sinalagma no ingresso do correspondente valor no património da insolvente/vendedora), por aquele documento declarou aceitar e obrigar-se a vender o imóvel abaixo do seu preço de mercado, sem qualquer contrapartida ou sinalagma em seu benefício, por nisso se traduzir a dedução do valor das obras, qualquer que ele fosse (!), que o credor tivesse realizado no imóvel; no caso, e considerando o valor que o credor alega a título de obras, apesar do imóvel ter o valor de €230.000,00, para além do valor das rendas alegadamente recebidas pela insolvente, esta obrigava-se a vendê-lo por menos € 78.900,00, ou seja, aceitava vendê-lo por € 151.100,00, apesar de o mesmo valer € 230.000,00 e apesar de as obras serem feitas em único e exclusivo interesse e proveito patrimonial do comprador por incorporadas no imóvel que assim passava a integrar o respetivo património; ou seja, a dita dedução mais não corresponderia que a compensação entre parte do preço devido pagar pelo credor e o valor das obras por ele realizadas apesar de a insolvente/vendedora não ter qualquer obrigação de por elas o reembolsar ou indemnizar posto que o imóvel não lhe era restituído no termo do contrato de arrendamento, ao mesmo tempo que este deixava de enriquecer o seu património porque dele dispunha em benefício do credor, o que, enfim, vale por dizer, que não há limites para a imaginação e para as decência e ética jurídico-judiciárias”.
Deste modo, “se a realidade correspondesse ao declarado e aos efeitos assim visados produzir, o alegado contrato de arrendamento com opção de venda integraria disposição do único bem da insolvente através da oneração do mesmo com direito de retenção em benefício e ostensivo favorecimento de quem assim se apresentou como credor (D…) e em detrimento de outros que na altura eram credores de longa data – a C… -, e quando já era sobejamente conhecido da requerida a respetiva situação de insolvência; com efeito, de acordo com a pretensão que por aquele contrato manifestou, investiria o alegado arrendatário no direito de retenção sobre o imóvel objeto da declaração de arrendamento e da declaração de promessa de venda, para garantia da restituição em dobro das rendas alegadamente pagas e do valor de quaisquer obras alegadamente realizadas em caso de incumprimento do contrato a que, de acordo com os seus termos, acresceria € 50.000,00 a título de cláusula penal e, assim, sempre a somar....”.
Conclui-se, assim, na mesma sentença que se mostram concretizadas as condutas previstas no n.º 2., als. b) e d), do CIRE, pelo que cumpre qualificar esta sentença como culposa, uma vez que estamos perante uma presunção inilidível nesse sentido.
E a tal “não obsta o facto de o crédito que o alegado arrendatário e beneficiário da declaração de promessa de venda reclamou como garantido por direito de retenção ter sido reconhecido pelo sr. Administrador da Insolvência como comum, nem o facto de aquele ter desistido da impugnação que deduziu (apesar de ter alegado realização de obras no prédio no valor de € 78.900,00) na sequência da persistente e assertiva reação que a dita impugnação mereceu do credor hipotecário, nem tão pouco o facto de o crédito que reclamou no montante de € 218.600,00 ter sido oficiosamente reduzido e reconhecido apenas pelo montante das alegadas obras e qualificado como comum; e não releva porque o que releva é a intenção, o dolo, o propósito visado pela insolvente, apesar da ausência de capacidade ou de aptidão legal do instrumento jurídico para o efeito arquitectado.
Mas, apesar de pelo menos parcialmente inapto para o efeito, o prejuízo com aquele visado produzir à massa insolvente resulta óbvio, pois que nos termos em que foi celebrado o seu cumprimento conduziria a direta descapitalização do património da devedora em proveito exclusivo do credor por aquele documento originariamente constituído, mediante a substituição de um imóvel ao qual atribuíram o valor de €230.000,00 por quantia correspondente a pouco mais de metade daquele valor, sendo certo que, dependendo do valor das obras, poderia ser totalmente esmagado e reduzido a zero aquando da celebração da venda, prejudicando gravemente as garantias de pagamento dos demais credores, designadamente, do credor hipotecário. De resto, na construção arquitectada, e confirmada pelas declarações da insolvente em audiência, esta poderia nada mais ter a receber, em total incoerência com o propósito alegado na oposição de liquidar as suas dívidas através da venda do imóvel posto que não se traduziria em liquidez/receita na esfera patrimonial da insolvente, e muito menos em um qualquer esforço para tentar liquidar dívidas de outros credores, pois que aquele acordo era inapto para o dito efeito; para além de não ter resultado em qualquer acréscimo ou incremento de liquidez na esfera patrimonial da insolvente, a procederem, os efeitos pretendidos conduziriam a uma inexorável diminuição das garantias patrimoniais dos restantes credores da insolvente. De resto, se a insolvente tinha em vista liquidez para pagar dívidas a seu cargo, coerentemente não teria supervenientemente onerado aquele imóvel com um arrendamento armadilhado com sujeições sobre a insolvente sem sinalagma para o alegado arrendatário e com a previsão de direito de retenção antes de se apresentar a procedimento especial de revitalização; e muito menos caminharia para a sua própria declaração de insolvência antes do total cumprimento daquele contrato, incluindo o pagamento pelo autor da parte do preço ‘não compensado’ pelo valor das rendas e das obras; compra e venda que a insolvente jamais teve a intenção de consumar antes da declaração da sua declaração de insolvência pois, caso contrário, fora do contexto de liquidação falimentar tinham perfeita consciência que iriam alienar um imóvel onerado com hipoteca e penhora que, por força do princípio da sequela dos direitos reais, se manteria não obstante a venda para garantir o pagamento de crédito hipotecário”.
Concordamos, na íntegra, com esta fundamentação.
Efetivamente, começando por ter presente o enquadramento legal, verificamos que a insolvência deve ser qualificada como culposa “quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência” (n.º1 do artigo 186.º, do CIRE).
Mas, acrescenta o n.º 2, als. b) e d), do mesmo artigo 186.º, que se considera “sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular, quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham”, entre outras coisas, “criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas” e/ou “disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros”.
O legislador nestas hipóteses “prescinde de uma autónoma apreciação judicial acerca da existência de culpa como requisito da adopção das medidas restritivas previstas no artigo 189.º do CIRE contra os administradores julgados responsáveis pela insolvência”. E assim, uma vez verificado o facto típico previsto na lei (nas várias alíneas deste nº 2), “fica, desde logo, estabelecido o juízo normativo de culpa do administrador, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das diversas alíneas do n.º 2 e a situação de insolvência ou o seu agravamento”[4].
Mas não só os administradores de pessoas coletivas.
Também este regime “é aplicável, com as necessárias adaptações, à actuação de pessoa singular insolvente e seus administradores, onde a isso não se opuser a diversidade das situações” (n.º 4).
Diversidade que não ocorre no caso presente.
Efetivamente, e ao contrário do sustentado pelo Apelante, as alíneas transcritas não se aplicam só às entidades que exerçam uma atividade lucrativa.
Como referem Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda[5], por força do referido n.º4, “as presunções fixadas nos n.ºs 2 e 3, não sendo diretamente aplicáveis aos devedores que sejam pessoas singulares, acabam por os atingir em larga medida. Com efeito, a norma em anotação (artigo 186.º) manda aplicar o disposto nos nºs 2 e 3 ao devedor pessoa singular e seus administradores (nos termos do n.º 6), embora com as adaptações que a sua natureza e diversidade das situações imponham”
E, acrescentam: “Das várias alíneas dos nºs 2 e 3, um caso flagrante de não aplicação às pessoas singulares é o da al. e) do n.º 2. Para além disso, e da ressalva do n.º 5 (…), a generalidade das situações previstas nas demais alíneas pode verificar-se por referência aos administradores do insolvente pessoa singular ou mesmo a este”[6].
O que manifestamente é o caso, pois que nenhuma razão justifica a exceção pretendida pela Apelante.
Em resumo, considerando a argumentação expendida na sentença recorrida, à qual aderimos, julga-se que as condutas apuradas integram a previsão contida no artigo 186.º, n.ºs 1, 2, als. b) e d), e 4, do CIRE e, nessa medida, só pode concluir-se que a insolvência da Apelante deve ser qualificada como culposa.
Resta a medida da inibição.
Essa medida foi fixada na sentença recorrida em 7 anos “para o exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação, fundação, empresa pública ou cooperativa”.
A Apelante, no entanto, acha este período exagerado. E defende que o mesmo deve ser reduzido “atendendo a juízos de equidade”.
Efetivamente, a aludida inibição é variável.
Estipula-se no n.º 2 do art. 189.º do CIRE, que na sentença que qualifique a insolvência como culposa o juiz deve, para além do mais:
“a) Identificar as pessoas, nomeadamente administradores, de direito ou de facto, técnicos oficiais de contas e revisores oficiais de contas, afetadas pela qualificação, fixando, sendo o caso, o seu grau de culpa;
b) Decretar a inibição das pessoas afetadas para administrarem património de terceiros, por um período de 2 a 10 anos;
c) Declarar essas pessoas inibidas para o exercício do comércio durante um período de 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa”.
A dimensão de qualquer um destes efeitos, pois, deve ser encontrada em função da culpa das pessoas afetadas pela qualificação da insolvência[7]. Culpa que deve ser aferida à luz dos contornos do caso concreto; designadamente, a natureza e gravidade objetiva dos factos praticados, o intuito com que foram realizados e as consequências patrimoniais que tiveram para a insolvente e para os respetivos credores[8].
Ora, analisando o caso concreto, parece-nos, na verdade, excessivo o período de inibição. Sobretudo, tendo em conta o impacto concreto que o acordo em questão teve nos direitos dos credores da insolvente.
Como se provou, ao credor com quem foi estabelecido esse acordo só foi reconhecido um crédito sobre a insolvente no valor de 78.900,00€, que foi qualificado como crédito comum e graduado para ser pago pelo produto da venda dos bens que constituem o acervo da massa insolvente, após os créditos garantidos por hipoteca, em que se inclui o crédito reclamado pela C….
Deste modo, o impacto do aludido acordo ficou substancialmente mitigado.
Isto não significa, obviamente, que a insolvente não deva ser objeto de censura pelos fins que com esse acordo pretendia alcançar e que, no fundo, estão na origem da sua insolvência por ausência de outro património relevante na sua titularidade. Mas, repetimos, os efeitos patrimoniais dessa insolvência para os credores hipotecários está, nalguma medida, atenuados.
Deste modo, ponderando todo o circunstancialismo apurado, decide-se reduzir o período de inibição decretado na sentença recorrida para 5 anos.
Resumindo: este recurso é de julgar procedente nessa parte, mas, no mais, é de julgar improcedente, com as inerentes consequências na sentença recorrida.
*
III – DECISÃO
Pelas razões expostas:
1.º) Concede-se parcial provimento ao presente recurso e, consequentemente, revoga-se parcialmente a sentença recorrida e reduz-se o período de inibição na mesma fixado para 5 (cinco) anos.
2.º Quanto ao mais, nega-se provimento ao presente recurso e confirma-se, nessa medida, a sentença recorrida.
*
- Em função deste resultado, a Apelante pagará metade do valor das custas inerentes a este recurso e, no mais, não há lugar a custas, por o Ministério Público delas estar isento – artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil e artigo 4.º, n.º 1, al. a), do RCP.

Porto, 08/03/2019
João Diogo Rodrigues
Anabela Tenreiro
Lina Baptista
____________
[1] A questão da inadmissibilidade do recurso por as conclusões coincidirem com a motivação já foi decidida pelo ora relator em despacho prévio, com o convite à síntese dessas conclusões, o que foi cumprido pela Apelante.
[2] Este sublinhado é da nossa responsabilidade.
[3] Este sublinhado também é da nossa responsabilidade.
[4] Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 570/2008, Processo n.º 217/08, de 26/11/2008, consultável em www.tribunalconstitucional.pt.
[5] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª Edição atualizada, Quid Juris, págs. 720.
[6] No mesmo sentido se pronunciam os mesmos Autores, na Colectânea de Estudos sobre a Insolvência, Quid Juris, pág.261 e 262, quando afirmam que as presunções estabelecidas nos nºs 2 e 3 do artigo 186.º do CIRE “valem diretamente pra os devedores que não sejam pessoas singulares, mas são aplicáveis, correspondentemente, aos restantes insolventes por força do n.º 4 do mesmo artigo”.
[7] Neste sentido, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pág. 734.
[8] Neste sentido, Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 3.ª edição, pág. 131, Ac. RC de 05/02/2013, Processo n.º 380/09.2TBAVR-B.C1 e Ac. RG de 25/06/2015, processo n.º 293/12.0TBVCT-A.G1, consultáveis em www.dgsi.pt.