Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
15598/20.9T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FÁTIMA ANDRADE
Descritores: INDEFERIMENTO LIMINAR DA PETIÇÃO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DECISÃO SURPRESA
Nº do Documento: RP2022052315598/20.9T8PRT.P1
Data do Acordão: 05/23/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Não viola o princípio do contraditório e como tal não fere de nulidade a decisão que indefere liminarmente a petição inicial por manifesta contradição entre o pedido e causa de pedir, sem prévia audição do autor.
II - Precisamente por esse indeferimento liminar ter como pressuposto que o fundamento decisório foi considerado ou não poderia ser ignorado pelas partes, fica afastado o argumento da decisão surpresa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº. 15598/20.9T8PRT.P1
3ª Secção Cível
Apelação em separado
Relatora – Juíza Desembargadora M. Fátima Andrade
Adjunta – Juíza Desembargadora Eugénia Cunha
Adjunta – Juíza Desembargadora Fernanda Almeida
Tribunal de Origem do Recurso - Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Jz. Central Cível do Porto
Apelante/AA
Apelados/ BB e outros

Sumário (artigo 663º nº 7 do CPC):
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I- Relatório
AA, instaurou a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra BB, CC e “V..., S.A.”[1], peticionando pela procedência da ação a condenação dos RR. “a reconhecer a simulação absoluta da dação em cumprimento, celebrada a 24 de Agosto e, na sequência daquela seja integrada na propriedade da A. os prédios:
a) Prédio Rústico denominado “...”, composto de cultura arvense de sequeiro, pinhal e mato, com a área de quarenta e dois mil e sessenta e um metros quadrados, inscrito na matriz predial da União das Freguesia ... sob o artigo ......, com o valor patrimonial de 87,99 e VPT de €2.059,74, descrito na Conservatória dos Registos Civil, Predial, Comercial e Automóveis de Peso da Régua sob o numero ....
b) Prédio Rústico denominado “...”, composto de mato e oliveiras, com a área de quarenta e um mil e quinhentos e sessenta e dois metros quadrados, inscrito na matriz predial da União das Freguesia ... sob o artigo ......, com o valor patrimonial de €16,60 e VPT de 388,16, descrito na Conservatória dos Registos Civil, Predial, Comercial e Automóveis de Peso da Régua sob o numero ....
c) Prédio Rústico denominado “...”, composto de cultura arvense de sequeiro e terreno estéril, com a área de trezentos e doze metros quadrados, inscrito na matriz predial da União das Freguesia ... sob o artigo ......, com o valor patrimonial de 1,51 e VPT de €25,53, descrito na Conservatória dos Registos Civil, Predial, Comercial e Automóveis de Peso da Régua sob o numero ....
d) Prédio Rústico denominado “...”, composto de mato, com a área de trinta e nove mil, oitocentos e setenta e cinco metros quadrados, inscrito na matriz predial da União das Freguesia ... sob o artigo ......, com o valor patrimonial de €11,57 e VPT de 31,01, descrito na Conservatória dos Registos Civil, Predial, Comercial e Automóveis de Peso da Régua sob o numero quatrocentos e noventa e um.
Sem prescindir
Seja declarada a responsabilidade dos RR pelos danos causados à A. no exercício dos mandatos, por violação dos deveres de diligencia e lealdade, entre outros, danos esses de valor não interior a quinhentos mil euros, se for julgada procedente a simulação absoluta da dação em cumprimento;
Subsidiariamente;
Na hipótese, meramente académica, de ser julgada improcedente a simulação absoluta da dação em cumprimento, seja declarada a responsabilidade dos RR pelos dados causados à A. no exercício dos mandatos, por violação dos deveres de diligência e lealdade, entre outros, danos esses de valor não interior a milhão e meio de euros;”

Para tanto e em suma alegou a A. entre o mais:
- Ser acionista da sociedade (3ª R.) “V... S.A.”, sociedade anónima com sede na Praça ..., ... Porto e nipc ... (doc. 1 – CRC), com uma participação social inscrita no livro de registo de ações de €75 000,00 (doc. 2 – livro de registo de ações), embora entenda que lhe cabe uma participação social de 47,258%, equivalente a 73 250 ações;
- A real titularidade das ações da sociedade “V...” encontra-se em apreciação no âmbito do processo 23077/17.5T8PRT que corre termos Tribunal da Comarca de Porto Juízo Local Cível do Porto - Juiz 5;
- O 1º R. exerceu a administração de facto e de direito da sociedade desde setembro/outubro de 2017, até agosto de 2018, altura em que nomeou o 2º R. para o cargo de Administrador Único.
E assume-se detentor de 80 mil ações na sociedade “V...”;
- Em 1 de Agosto de 2018, o 1º R elege, com o alegado voto representativo de 51,61% do capital social, um novo administrador, o 2º R (doc. 15 – ata 12);
- O 1º R usa e, o 2º R deixa-se usar, eventualmente por força da sua debilidade física, económico financeira e das “gratificações” que receberá pelo papel a que se presta.
Mas Administrador da sociedade “V...”, o 2º R não é, nem de facto, nem para tal serve.
O Administrador de facto da sociedade “V...” é o 1º R., pois só este beneficia dos atos praticados e todo o pensamento lógico à mesma conclusão levará.
- O 2º R. representou a sociedade a 24 de agosto de 2018, no ato de dação em cumprimento pelo qual, 4 terrenos rústicos da sociedade foram entregues ao administrador demissionário por conta dos suprimentos vencidos (doc. 3).
O negócio assim celebrado é simulado, pois “o Administrador em funções nunca pretendeu entregar os prédios rústicos em dação em cumprimento.
(…) E não pretendeu porque nunca se assumiu como administrador de facto da sociedade anónima, em pleno cumprimento das regras de governance.”;
- Sendo o exercício administração simulado, também o são todos os atos praticados pelo administrador de direito;
- O 2º R. limita-se a assinar o quanto necessário para colocar uma quinta no Douro vinhateiro pertença da sociedade em nome do 1º R.[2], seu nomeador para o cargo e, assim a manter, em prejuízo dos interesses da sociedade e dos sócios, em negócios claramente simulados, sem qualquer componente de decisão de administração ou gerência, razoabilidade de preço ou oportunidade;
- O 1º R. impôs e o 2º R. assinou o pagamento dos “suprimentos” sem qualquer compensação da dívida existente à sociedade;
- A perda dos imóveis alvo da dação constitui um gigantesco dano provocado na atividade comercial da sociedade.
Os RR. transformaram a sociedade numa unidade económica vazia e sem qualquer viabilidade económica.
Incumpriram os RR. com as suas obrigações para com a sociedade, os sócios e até para com os credores sociais.
Particularmente por via da violação do dever de cuidado e lealdade, especialmente do 1º R. que servindo-se da pessoa do 2º R. pretende retirar da sociedade os prédios alvo da dação para os potenciar a título individual ou no âmbito de sociedade por si controlada e desta feita causar avultado dano no património da autora;
- A sociedade perdeu as vindimas e stocks mencionados em 102 e 103 da p.i..
Para além do quanto ficou afetado o bom nome da A., o bom nome da sua propriedade e a boa cotação das suas marcas.
Tudo perdas imputáveis aos RR. que se estima de valor superior a 1,5 milhão de euros e que poderá ser reduzido para metade se a simulação absoluta da dação em cumprimento for considerada procedente, pois permite à sociedade recuperar as terras, tratar das vinhas e retomar as suas marcas nos próximos anos.
Termos em que terminou a A. formulando o pedido inicialmente e supra transcrito.
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Apreciando liminarmente a pretensão formulada pela requerente, proferiu o tribunal a quo a seguinte decisão:
“Alega a autora ser sócia da terceira ré, V... S.A..
Alega que a sociedade era proprietária de quatro prédios rústicos.
Alega que o segundo réu, enquanto administrador da terceira ré, deu em pagamento estes quatro prédios ao primeiro réu.
Alega que a dação em pagamento é um ato simulado.
Alega que os dois primeiros réus, enquanto administradores “de direito” e de facto”, “incumpriram com as suas obrigações para com a sociedade, para com os sócios e até para com os credores sociais”, causando dano à sócia autora.
Conclui pedindo que:
– “sejam os réus condenados a reconhecer a simulação absoluta da dação em cumprimento, celebrada a 24 de agosto e, na sequência daquela seja integrada na propriedade da autora os prédios (…)”;
– “seja declarada a responsabilidade dos réus pelos dados causados à autora no exercício dos mandatos, por violação dos deveres de diligencia e lealdade, entre outros, danos esses de valor não interior a quinhentos mil euros, se for julgada procedente a simulação absoluta da dação em cumprimento”;
– subsidiariamente, “seja declarada a responsabilidade dos réus pelos dados causados à A. no exercício dos mandatos, por violação dos deveres de diligencia e lealdade, entre outros, danos esses de valor não interior a milhão e meio de euros”.
Alegando a autora que os bens simuladamente transferidos para terceiro pertenciam à terceira ré, é desprovido de sentido pedir que “seja integrada na propriedade da autora os prédios (…)”. Quando muito, deixando de lado a impropriedade do pedido – devendo este ser a declaração de nulidade do ato impugnado –, seria congruente pedir que “seja integrada na propriedade da terceira ré os prédios (…)”
Constata-se que o pedido este está em ostensiva contradição com a causa de pedir. A petição inicial é inepta (art. 186.º, n.º 2, al. b), do CPC).
Os restantes pedidos são dependentes do conhecimento do primeiro. De todo o modo, sempre se dira que, invocando a autora o seu direito enquanto sócia, formulando tais pedidos contra os dois primeiros réus enquanto administradores, deverá entender-se que a ação, quanto a estes pedidos, se reporta a direitos sociais, integrando-se na previsão da alínea c) do n.º 1 do art. 121.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto) – cfr. o Ac. do TRC de 22-09-2015 (5542/13.5TBLRA.C1). É este tribunal absolutamente incompetente para o seu conhecimento, o que sempre conduziria ao indeferimento liminar.
Em face do exposto, por ser inepta (o que gera a nulidade de todo o processo), indefiro liminarmente a petição inicial (arts. 186.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, al. b), e 590.º, n.º 1, do CPC).”
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Notificada da decisão assim proferida e com a mesma se não conformando, interpôs a autora recurso, pugnando pela revogação desta decisão, para tanto apresentando as seguintes:
Conclusões:
O tribunal a quo sentenciou o indeferimento liminar da petição inicial com fundamento na ostensiva contradição do pedido com a causa do pedir.
Sentença com a qual a Apelante não se conforma por entender que o Tribunal a quo está obrigado ao princípio da cooperação, impondo-se o convite da A. ao aperfeiçoamento do pedido – especialmente perante lapso tão evidente e até porque não teve a Apelante oportunidade de se pronunciar pela falha, o que constitui violação do principio do contraditório.
Assim, a sentença em crise padece de vício de nulidade por violação do princípio do contraditório e do vício de falta de observação do princípio da cooperação.
É nitidamente notório que quando a Apelante redigiu os termos do seu pedido, introduzindo a letra “A.” quando se imponha fosse a “R.”
“Nestes termos e nos demais de direito que V. excelência doutamente suprirá se requer sejam os RR condenados a reconhecer a simulação absoluta da dação em cumprimento, celebrada a 24 de agosto e, na sequência daquela seja integrada na propriedade da A. os prédios:
...” bold a vermelho nosso para melhor identificação do lapso.

Já quando ao argumento do Tribunal a quo de que o pedido deveria “ser a declaração de nulidade do ato impugnado”, entende a Apelante, salvo melhor entendimento, que quando apresenta pedido para ver declarada judicialmente a simulação de um ato, que reputa de simulado e em consequência de qual declaração, pretende obter a restituição dos bens envolvidos no negócio,
Nada de substancialmente diferente está a pedir, do que se o pedido fosse apresentado na versão de: ver deferida a declaração de nulidade do ato impugnado, por força do uso de simulação no negócio em causa, como indicado na sentença
O primeiro apela ao tribunal que declara o vício, para produção das consequências daqui decorrentes;
O segundo apela ao tribunal que declare os efeitos, atendendo a invocação do vício.
Nada separa os pedidos, são apenas formas alternativas de apresentação,
Assim se conclui que com uma simples correção de letra no pedido, determinando que onde se redigiu, por lapso, a letra “A.” se deverá ler “R.”, conseguia-se o aproveitamento de quanto até ao momento foi produzido, privilegiando a celeridade e economia processual, sem qualquer ataque à sua certeza e segurança.
NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO, DEVERÁ O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE, SENDO A SENTENÇA RECORRIDA REVOGADA E SUBSTITUÍDA POR OUTRA QUE DETERMINE A OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO E DA COOPERAÇÃO, COM TODAS AS LEGAIS CONSEQUÊNCIAS, NOMEADAMENTE O CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO DO PEDIDO, COM VISTA A SUPRIR A LETRA EM EVIDENTE ERRO.
FAZENDO ASSIM A ACOSTUMADA, JUSTIÇA!”
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Admitido o recurso como de apelação, com efeito meramente devolutivo foi ordenada a citação dos RR. nos termos do artigo 641º nº 7 do CPC.
Estes não deduziram qualquer oposição nem ofereceram contra-alegações.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II- Âmbito do recurso.
Delimitado como está o recurso pelas conclusões das alegações, sem prejuízo de e em relação às mesmas não estar o tribunal sujeito à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito nem limitado ao conhecimento das questões de que cumpra oficiosamente conhecer – vide artigos 5º n.º 3, 608º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4 e 639º n.ºs 1 e 3 do CPC – resulta das formuladas pela apelante ser questão a apreciar: se viola o princípio do contraditório e fere a decisão proferida com o vício da nulidade, o indeferimento liminar da petição apresentada pela autora por julgada ostensiva contradição entre o pedido e causa de pedir, sem prévia audição da autora nomeadamente com vista ao aperfeiçoamento do pedido que a recorrente alega padecer de lapso.

III. FUNDAMENTAÇÃO
Para apreciação do assim decidido, importa considerar as vicissitudes processuais acima elencadas.
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Apreciando e conhecendo.
Invoca a recorrente a nulidade da decisão recorrida por não ter existido prévio despacho para exercício do contraditório nos termos do artigo 3º nº 3 do CPC e nomeadamente convite ao aperfeiçoamento do pedido, porquanto em causa está um notório lapso nos termos em que redigiu o pedido, bastando que onde consta a letra “A” passasse a constar a letra “R”.
Dispõe o artigo 3º nº 3 do CPC «O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem».
Por sua vez, de acordo com o preceituado no artigo 590º nº 1 do CPC, sendo a petição apresentada a despacho liminar ao juiz, indefere o mesmo liminarmente a petição quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente.
Ou seja, é o próprio legislador a impor o dever de indeferimento liminar da petição quando esta lhe é apresentada a despacho liminar e verifique uma das duas situações acima mencionadas.
O princípio da contradição ou do contraditório, consagrado no artigo 3º nº 3 do CPC é um dos princípios gerais estruturantes do processo civil, intimamente ligado ao princípio da igualdade das partes e com uma matriz constitucional, assente nos princípios de acesso ao direito e aos tribunais e da igualdade.
Não obstante, e conforme consta deste mesmo artigo 3º nº 3, está o juiz dispensado de previamente ouvir as partes em caso de manifesta desnecessidade.
Sendo os autos conclusos ao juiz e concluindo o mesmo pela verificação de uma exceção dilatória insuprível de conhecimento oficioso ou pela manifesta improcedência do pedido, recai sobre o mesmo o dever de indeferir liminarmente a petição inicial
Embora na jurisprudência se encontrem decisões que seguem o entendimento de mesmo no caso de indeferimento liminar dever este ser precedido de prévio despacho de audição da parte [neste sentido, entre outros, vide Acs. RC 05/12/2017 – Relator Arlindo Oliveira e de 29/01/2018 – Relator Luís Cravo; ainda da RL de 09/03/2017, Relatora Maria Teresa Albuquerque todos in www.dgsi.pt ],ainda aqui se salvaguardam os casos de manifesta desnecessidade.
Entendemos ser de seguir a corrente que defende ser admissível o indeferimento liminar sem que a inexistência de despacho prévio para exercício do contraditório configure nulidade por violação do princípio do contraditório. Precisamente por esse indeferimento liminar ter como pressuposto que o fundamento decisório foi considerado ou não poderia ser ignorado pelas partes – nessa medida afastando o argumento da decisão surpresa.
Tal como afirmado no Ac. STJ de 12/07/2018, nº de processo 177/15.0T8CPV-A.P1.S1 in www.dgsi.pt “A decisão surpresa que a lei pretende afastar com a observância do princípio do contraditório, contende com a solução jurídica que as partes não tinham a obrigação de prever, para evitar que sejam confrontadas com decisões com que não poderiam contar, e não com os fundamentos que não perspetivavam de decisões que já eram esperadas.
Perfilam-se como argumentos válidos para este entendimento:
i- desde logo e em primeiro lugar a própria natureza deste despacho fundado no indeferimento liminar, ao qual parece ser contrária – verificados os seus requisitos de aplicabilidade previstos na lei (artigo 590º do CPC) conjugado com o disposto no próprio artigo 3º nº 3 quanto ao afastamento da necessidade de contradição em casos de manifesta desnecessidade – a exigência de um prévio despacho a notificar a parte para o exercício do contraditório [vide nesse sentido Ac. STJ de 24/02/2015, Relatora Ana Paula Boularot e Ac. TRL de 11/05/2021 nº de processo 82020/19.9YIPRT.L1-7 (e jurisprudência e doutrina neste último citados), ambos in www.dgsi.pt ];
ii- em segundo lugar, estando em causa situação em que a parte contrária não foi ainda citada [estamos na fase inicial do processo], o contraditório a ser aqui exercido não assumiria então toda a sua plenitude porquanto a parte contrária, quando e se citada poderia vir de novo a discutir o que o despacho prévio visaria garantir só ao autor;
iii- em terceiro lugar e precisamente porque na situação de indeferimento liminar ainda se não fez intervir nos autos a parte contrária, uma vez proferida decisão de indeferimento liminar está então salvaguardada não só a hipótese de a parte sempre recorrer independentemente do valor e sucumbência [629º nº 3 al. c) do CPC], como também e então se exige a citação da parte contrária para os termos da ação e do recurso (vide 641º nº 7 do CPC).
Assim se garantindo então o efetivo exercício do contraditório por todas as partes, permitindo uma definitiva resolução da questão fundamento de divergência;
iv- em quarto e último lugar, na medida em que na lei está prevista a hipótese de indeferimento liminar no estrito circunstancialismo elencado, in casu, no artigo 590º do CPC, não se pode falar propriamente em decisão surpresa, na medida em que as partes não deveriam ignorar o fundamento invocado na decisão de indeferimento liminar.

Pelo exposto entende-se que a decisão recorrida não padece do arguido vício de nulidade por violação do princípio do contraditório.

Questão diferente é saber se ocorreu erro de julgamento por parte do tribunal a quo.
Tendo a este propósito a recorrente alegado que o juízo formulado pelo tribunal a quo de “ostensiva contradição” entre o pedido e causa de pedir – que na verdade e quanto aos seus fundamentos em si não questiona – se funda em notório erro de redação do pedido.
Alegando que para afastar o juízo formulado, bastaria trocar a letra “A” pela letra “R”.
Não se nos afigura que à recorrente assista razão.
A súmula da alegação da A. constante da p.i. e que no relatório formulámos, visou precisamente evidenciar que a autora definiu o objeto do processo – conformado pelo pedido e causa de pedir – afirmando a sua qualidade de sócia e desta qualidade partindo afirmando o prejuízo que para si derivou da atuação dos 1º e 2º RR..
É certo que nos artigos 102 e 103 a A. identificou/alegou a existência de prejuízo da sociedade (sendo a 3ª R. a única sociedade parte nos autos).
Mas no artigo 101 é o avultado dano no seu (da A.) património que invoca ter sido causado pela conduta dos 1º e 2º RR..
E efetivamente termina peticionando a integração na sua propriedade dos prédios objeto da dação em cumprimento à qual imputa o vício da simulação absoluta.
Em momento algum da sua petição a A. convoca a 3ª sociedade R. e alega ser para esta que pretende ver ordenada a restituição dos prédios alvo do mencionado negócio.
É claro que tal pretensão assim formulada não poderia proceder, mas precisamente da mesma e no confronto com a alegação factual constante na p.i. resultou a pelo tribunal a quo declarada ostensiva contradição entre o pedido e causa de pedir.
Juízo que nos termos analisados não merece censura.
Não estando verificada uma qualquer situação de manifesto lapso, percetível no contexto da declaração (vide artigo 249º do CC) que justificasse um qualquer convite ao aperfeiçoamento, ao contrário do alegado pela recorrente.
Do assim analisado e exposto resulta prejudicada a apreciação da correção do pedido formulado por dever ser o mesmo o da “declaração da nulidade do ato impugnado”.
Improcede nestes termos in totum o recurso apresentado.
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IV. Decisão.
Pelo exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente improcedente o recurso interposto, consequentemente se mantendo a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
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Porto, 2022-05-23.
Fátima Andrade
Eugénia Cunha
Fernanda Almeida
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[1] Cfr. correção da petição observada por requerimento de 06/10/2020, na sequência do convite formulado por despacho de 29/09/2020.
[2] A menção a 2º R. neste ponto resulta – no contexto da demais alegação - de evidente lapso de escrita que como tal se tem por corrigido.