Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6/21.6TXPRT-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DOLORES DA SILVA E SOUSA
Descritores: PERDÃO DA LEI 9/2021
COMPETÊNCIA DO TEP
RECORRIBILIDADE DA DECISÃO
Nº do Documento: RP202103036/21.6TXPRT-B.P1
Data do Acordão: 03/03/2021
Votação: DECISÃO SINGULAR
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: DECISÃO INDIVIDUAL
Decisão: ATENDIDA A RECLAMAÇÃO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Legislação Nacional: LEI N.º 9/2021
Sumário: I - É da competência do TEP a concessão da medida de graça prevista na Lei n.º 9/2020, de 10.04., por força do disposto no seu artigo 2º, n.º 8.
II - A decisão que denegue a concessão de tal medida é recorrível por via da aplicação do disposto nos artigos 399.° e 400º, a contrario, do CPP.
Reclamações: Reclamação n.º 6/21.6TXPRT-A.P1
Comarca do Porto
No Processo de execução de penas n.º 6/21.6TXPRT-A do Tribunal de execuções de penas, Juiz 1, foi proferido despacho a 11.01.2021 com o seguinte teor:
«Admito a procuração junta, a qual deverá ser associada ao PUR.
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Req. enviado em 07.01.2021:
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A decisão condenatória em presença não transitou em julgado em data anterior a 11.04.2020, pelo que o(a) condenado(a) não beneficia do perdão instituído pelo artigo 2.° da Lei n.º 9/2020, tal como decorre do n.º 7 dessa disposição legal.
Pelo exposto, indefiro o requerido, por falta de fundamento legal. Notifique.»
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Notificado deste despacho o recluso veio interpor recurso a 26.01.2021, centrando a questão na interpretação a dar aos n.ºs 1 e 7 do art. 2º da Lei n.º 9/2020, tendo em atenção que o contexto de emergência de saúde pública nunca esmoreceu ao ponto de ser declarado extinto e, atualmente – 26.01.2021- se encontra na fase mais agreste.
O recurso não foi admitido conforme despacho de 04.02.2021, que aqui se reproduz integralmente:
«O recluso B…, identificado nos autos, veio recorrer, tempestivamente, do despacho de fl. 13, proferido em 11.01.2021, através do qual foi denegada a aplicação do perdão instituído no artigo 2.º da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril. Cabe proferir despacho liminar nos termos do disposto no artigo 414.º do CPP, dispondo o seu n.° 2, para além do mais, que “o recurso não é admitido quando a decisão for irrecorrível (...)“.
Nos termos do artigo 235.º n.º 1, do CEPMPL, “das decisões do tribunal de execução das penas abe recurso para a Relação nos casos expressamente previstos na lei”, princípio que constitui uma especialidade em relação ao consagrado na lei processual penal geral (artigo 399.° do CPP). A este propósito, o TRC, em acórdão proferido em 28.11.2012[1]’, entendeu que, no CEPMPL, o legislador evidenciou uma ‘preocupação de completude (...) quanto à previsão das decisões recorríveis”, possuindo este diploma legal uma “estrutura recursória própria”[2].
Deste modo, carece de sentido a aplicação supletiva do disposto nos artigos 399. ° e 400. ° do CPP, código que, desde logo, no seu artigo 18.°, ressalva a existência de lei especial relativa ao TEP.
Por outra parte, também a Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, não prevê expressamente a possibilidade de interposição de recurso do despacho em presença, não podendo o legislador ignorar as regras recursórias que regem a atividade do TEP e que acima ficaram apontadas [3]. Neste sentido se pronunciou a Presidência do Tribunal da Relação do Porto, na decisão proferida em 06.07.2020 no processo n.º 1597/l0.2TXPRT-X. P1, na qual se considerou também que não tem aplicação in casu a norma do artigo 235.°, 1, alínea a), do CEPMPL, pois o despacho recorrido não se pronuncia pela extinção da pena, entendimento que foi renovado na decisão proferida em 18.11.2020, no quadro do processo n.º 10/19.4TXPRTB.Pl. Pelo exposto, nos termos do preceituado no artigo 414.°, n.º 2, do CPP, aplicável ex vi do artigo 239.°, do CEP, por se tratar de despacho irrecorrível, não admito o recurso apresentado. Condeno o recluso no pagamento da taxa de justiça de 1 (uma) UC.
Notifique. (…)»
Deste despacho veio o recluso apresentar reclamação com os seguintes fundamentos: (…)
Termina pendido a procedência da reclamação e admissão do recurso interposto pelo reclamante.
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Cumpre apreciar e decidir:
A questão decidida no despacho de 11.01.2021 contende com a aplicação ou não aplicação ao condenado do perdão – medida de graça - previsto na Lei n.º 9/2020, de 10.04.
A decisão de tal questão não está integrada no âmbito dos processos para que está talhado o CEPMPL e, portanto, não é uma questão normalmente tratada num processo de liberdade condicional ou mesmo dentro de qualquer processo previsto no CEPMPL, basta analisar a sistemática do diploma.
E tanto assim é que a própria Lei n.º 9/2020 teve necessidade de no seu artigo 2º/8, consagrar que “compete aos tribunais de execução de penas territorialmente competentes proceder à aplicação do perdão estabelecido na presente lei e emitir os respectivos mandados com carácter urgente”.
Qual a razão da Lei em causa ter uma tal necessidade?

A necessidade advém, em primeiro lugar, do facto de o artigo 138º do CEPMPL não prever a competência material do Tribunal de execução de penas para aplicação do perdão ou medida de graça, que tem um caráter muito excecional no nosso ordenamento jurídico. E, em segundo lugar, porque na falta de tal previsão iriam gerar-se inúmeros conflitos negativos de competência entre os tribunais de execução de penas e os tribunais da condenação e a celeridade que a lei pretendia imprimir ao ali
Estatuído iria sair gorada.
Assim, o argumento usado pelo Tribunal a quo de a Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, não prever expressamente a possibilidade de interposição de recurso do despacho em presença, não podendo o legislador ignorar as regras recursórias que regem a atividade do TEP, nada prova. E nada prova, porque não estando a aplicação do perdão ou medida de graça previsto no CEPMPL como competência do Tribunal de Execução de Penas, nem estando integrado em qualquer procedimento previsto naquele Código, mas ser fruto de uma medida excecional, ou excecionalíssima, o regime de recursos só pode ser o regime geral, visto que o legislador ordinário não pode ignorar o disposto no artigo 32º, n.º1, da CRP.
Depois, porque o recurso previsto artigo 4º/7, enfatizado como argumento no despacho reclamado, é um recurso para o Tribunal de Execução de Penas, da revogação pelo director-geral de Reinserção e Serviços Prisionais da licença de saída. Recurso cujo regime se situa na linha do estatuído no artigo 138º/1, nomeadamente, da competência do tribunal para se pronunciar «sobre a legalidade das decisões dos serviços prisionais nos casos e termos previstos na lei». A decisão de revogação da licença de saída pelo director-geral de Reinserção e Serviços Prisionais, por força do artigo 4º/7 da Lei n.º 9/2020, passa a ser mais um dos casos previstos na lei em que o tribunal aprecia a legalidade das decisões dos serviços prisionais.
A previsão daquele recurso visou tão só esclarecer possíveis dúvidas. Por isso, a consagração daquele recurso também nada adianta sobre a não permissibilidade de recurso do despacho que não concede o perdão. Afigura-se-nos até que se o artigo 4º/7 da lei n.º 9/2020 algo adianta é exatamente no sentido contrário ao pretendido pelo tribunal no seu argumento, pois sobre a questão dos recursos só explicitou o que podia mostrar-se duvidoso dentro do próprio regime do CEPMPL, por poder haver dúvidas se aquela decisão estava prevista na lei como passível de ser submetida à apreciação da sua legalidade pelo TEP, mas nada disse sobre o recurso em questão nestes autos por entender que o mesmo deve seguir o regime geral, o que aliás se coaduna com o facto de se tratar de uma lei temporária[4], que não visa integrar-se no regime do CEPMPL.
Acresce, que a questão que o reclamante pretende ver apreciada não é uma questão menor, mas antes uma questão de grande magnitude quanto à eventual liberdade do condenado que, claramente, o recluso tem direito a que um tribunal superior sobre ela se pronuncie em via de recurso e o legislador não pode ter pretendido retirar-lhe essa possibilidade, atento o estatuído no artigo 32º, n.º 1, da CRP.
Pelo exposto, entendemos que o despacho em reclamação é recorrível, por via da aplicação do disposto nos artigos 399.° e 400 a contrario, do CPP.
Assim, entendemos que o recurso deve ser admitido, o que tem por consequência a revogação da decisão reclamada.
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Pelo exposto revoga-se a decisão reclamada que deve ser substituída por outra que admita o recurso interposto.
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Sem custas.
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Notifique.
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Porto, dia 3 de Março de 2021
Maria Dolores da Silva e Sousa
[Vice-Presidente do Tribunal da Relação do Porto]
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[1] Publicado na CJ, tomo V.
[2] Sobre esta matéria também já se pronunciou o TRP, em decisão sumária proferida em 08.02.2016 (processo n.º 4624/10.0TXPRT-L.P1), na qual se entendeu que, "no que respeita ao CEPMPL, a regra em matéria de recursos é a de que as decisões do TEP cabe recurso para a Relação "nos casos expressamente previstos na lei" - art. 235º, n.º 1 do das decisões do TEP cabe apenas recurso para a Relação "nos casos expressamente previstos na lei" - art. 235.º, n.º 1 do CEPML".
[3] E tanto assim é que, em sentido inverso, foi expressamente prevista a possibilidade de impugnação no caso do artigo 4.º n.º 7, da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, pois, a não ser assim, também aqui teríamos um caso de inimpugnabilidade, na decorrência do principio geral consagrado no artigo 200º do CEPMPL.
[4] Tratando-se de uma lei temporária ou de emergência a sua vigência depende da própria lei quando ela fixa esse termo ou do termo implícito resultante do desaparecimento das condições que demarcam o período da sua validade. Cfr. Código Penal Anotado e Comentado, Vítor Sá Pereira, Alexandre Lafayette, Quid Juris, 2014, p. 73
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