Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
216/14.2T8AMT.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS QUERIDO
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXTINÇÃO POR IMPOSSIBILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
HOMOLOGAÇÃO DE PLANO DE REVITALIZAÇÃO
Nº do Documento: RP20150601216/14.2T8AMT.P2
Data do Acordão: 06/01/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I. Antes da alteração ao processo de insolvência, introduzida pela Lei n.º 16/2012, de 20/04, que aditou as normas reguladoras do PER, o regime da insolvência privilegiava a “garantia patrimonial dos credores”, desígnio expressamente assumido pelo legislador no preâmbulo do CIRE: “[o] objectivo precípuo de qualquer processo de insolvência é a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores”.
II. A referida alteração legal constituiu uma inflexão do legislador, no que respeita ao ‘objectivo primordial’ do processo de insolvência, que passou a ser a recuperação do devedor, em detrimento da liquidação imediata do seu património para satisfação dos credores.
III. Passando o processo de insolvência a privilegiar a recuperação/revitalização da empresa, tal alteração tem, necessariamente, consequências no que respeita à posição processual dos credores, nomeadamente as que se encontram previstas no n.º 6 do artigo 17.º-E do CIRE: suspensão dos trâmites do processo de insolvência, na data de publicação no portal Citius do despacho a que se refere a alínea a) do n.º 3 do artigo 17.º-C, e em consequência desse despacho (1.ª parte do citado normativo); extinção do processo de insolvência, logo que ocorra o trânsito em julgado do despacho que homologa o plano de recuperação (2.ª parte).
IV. Com vista a garantir a unidade e a harmonia do sistema, o n.º 6 do artigo 17.º-E do CIRE deve ser interpretado de forma extensiva, englobando a sua previsão os processos de insolvência propostos durante a tramitação do PER, antes de homologado o plano.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 216/14.2T8AMT.P2

Sumário do acórdão:
I. Antes da alteração ao processo de insolvência, introduzida pela Lei n.º 16/2012, de 20/04, que aditou as normas reguladoras do PER, o regime da insolvência privilegiava a “garantia patrimonial dos credores”, desígnio expressamente assumido pelo legislador no preâmbulo do CIRE: “[o] objectivo precípuo de qualquer processo de insolvência é a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores”.
II. A referida alteração legal constituiu uma inflexão do legislador, no que respeita ao ‘objectivo primordial’ do processo de insolvência, que passou a ser a recuperação do devedor, em detrimento da liquidação imediata do seu património para satisfação dos credores.
III. Passando o processo de insolvência a privilegiar a recuperação/revitalização da empresa, tal alteração tem, necessariamente, consequências no que respeita à posição processual dos credores, nomeadamente as que se encontram previstas no n.º 6 do artigo 17.º-E do CIRE: suspensão dos trâmites do processo de insolvência, na data de publicação no portal Citius do despacho a que se refere a alínea a) do n.º 3 do artigo 17.º-C, e em consequência desse despacho (1.ª parte do citado normativo); extinção do processo de insolvência, logo que ocorra o trânsito em julgado do despacho que homologa o plano de recuperação (2.ª parte).
IV. Com vista a garantir a unidade e a harmonia do sistema, o n.º 6 do artigo 17.º-E do CIRE deve ser interpretado de forma extensiva, englobando a sua previsão os processos de insolvência propostos durante a tramitação do PER, antes de homologado o plano.

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
B… e C… requereram em 20.10.2014, na Instância Central, Secção Comércio – J1, Amarante, da Comarca do Porto Este, a declaração de insolvência de D…, S.A., alegando que foram trabalhadoras da requerida até, respectivamente, 20.01.2014 e 4.03.2014, datas em que cessaram os seus contratos de trabalho na sequência de despedimento colectivo, e que a requerida não procedeu ao pagamento dos montantes devidos, com a justificação de que corria termos no 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Marco de Canavezes, processo especial de revitalização e que os créditos das requerentes estavam contemplados no respectivo plano de pagamentos, o que não corresponde à verdade, porquanto, o plano homologado por sentença dele exclui os créditos dos trabalhadores vencidos após o trânsito da reclamação de créditos.
Em 23.10.2014, na sequência de conclusão “Com a informação de que corre nesta Secção um PER contra a devedora com o n.º 1377/13.3TBMCN, o qual se apresenta em mão”, foi proferido o seguinte despacho:
«Vi os autos que nos foram presentes.
Atento o que se informa, outra conclusão não se nos impõem que não seja declarar suspensos os presentes autos de insolvência, porquanto a ratio do preceito constante do art. 17º E do CIRE, prevendo a suspensão de processos instaurados anteriormente por forma a permitir o decurso sereno das negociações sem a pressão do processo de insolvência pendente, se aplica integralmente e por maioria de razão aos processos posteriormente intentados durante o procedimento. Devem assim por analogia ser suspensos os processos de insolvência entrados antes ou depois do PER desde que neles não tenha sido decretada a insolvência.
Em face do exposto declaro suspensos os presentes autos.»
Não se conformaram as requerentes, e interpuseram recurso de apelação para este Tribunal, onde foi proferido acórdão, em 17 de Dezembro de 2014, que confirmou a decisão recorrida, constando do referido acórdão a seguinte síntese conclusiva: O processo especial de revitalização visa assegurar a recuperação do devedor, reconhecendo-lhe a lei clara prevalência sobre o recurso à insolvência. A ratio que presidiu à criação e regulamentação do processo especial de revitalização foi dar primazia à recuperação do devedor em detrimento da liquidação imediata do seu património, para satisfação dos credores.
Foi entretanto proferida decisão homologatória do plano de revitalização da recorrida, sobre o qual foi interposto recurso, julgado improcedente por este Tribunal.
Baixaram estes autos à 1.ª instância, onde foi aberta conclusão em 17.03.2015, “Com a informação de que o PER 1377/13.3TBMCN já baixou do TRP, onde foi confirmada a decisão, que antecede, de homologação do plano de revitalização proferida em 1.ª instância. O acórdão transitou em julgado a 17-02-2015.”.
Na mesma data foi proferido o seguinte despacho:
«Face ao trânsito em julgado da decisão que homologou o plano de revitalização da devedora e a data em que a mesma ocorreu, atendendo ainda aos argumentos já esgrimidos em sede de recurso da decisão que inicialmente foi proferida nos presentes autos e a finalidade que preside ao PER, antes de mais, esclareçam as Requerentes o que tiverem por conveniente, designadamente quanto ao prosseguimento/extinção dos autos.».
Em requerimento de 3.03.2015, vieram as recorrentes requerer o prosseguimentos dos autos, com a declaração de insolvência da recorrida.
Em 7.04.2015, foi proferido o seguinte despacho:
«Tal como resulta da sentença e informação que antecedem, o PER a que se apresentou a Requerida foi homologado por sentença já transitada em julgado.
De acordo com o nº 6 do art. 17º-E do CIRE os processos de insolvência em que anteriormente haja sido requerida a insolvência do devedor suspendem-se na data da publicação no portal do Citius, desde que não tenha sido proferida sentença declaratória de insolvência, extinguindo-se logo que seja aprovado e homologada o plano de recuperação.
Assim, atendendo ao propósito do processo especial de revitalização e ao disposto no nº 6 do art. 17º E do CIRE, outra conclusão não se nos impõe que não seja declarar a extinção dos presentes autos por existir impossibilidade/inutilidade superveniente da lide.
Face ao exposto, e por impossibilidade superveniente da lide, determina-se a extinção dos presentes autos.
Custas, pelos Requerentes, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal.
Fixa-se como valor da acção o equivalente à alçada do Tribunal da Relação (€ 30.000,00) – art. 301º do CIRE.
Notifique e registe.».
Não se conformaram as requerentes e interpuseram recurso de apelação, apresentando alegações que terminam com as seguintes conclusões:
I – Os créditos emergentes na pendência do PER, ou, caso se entenda restringir, após ter findado o prazo para a reclamação de créditos, como sucede com o crédito das Rec.tes, estão fora do âmbito do PER;
II – A pendência do PER não desobriga, assim, o devedor de pagar o crédito criado nesse período, nem o credor pode ficar impedido de fazer valer os seus direitos, latu sensu, relativamente a esse crédito, nomeadamente, reclamá-lo judicialmente ou, mesmo, requerer a declaração de insolvência do devedor, visto que o crédito em causa nada tem a ver com os que determinam ou são negociados no âmbito do PER;
III - A propositura pelo credor de uma acção declarativa na pendência do PER, ou qualquer outro tipo de acção judicial, relativamente a créditos criados após a propositura do PER ou do termo da reclamação de créditos - num entendimento mais consensual - não se encontra vedada pelo n.º 1 do artigo 17.º-E do CIRE, ou por qualquer outro comando legal, nem o poderá estar, porquanto, não se enquadra no conceito de “acção para cobrança de dívidas” a que alude aquele normativo, desde logo face à sua definição constante do artigo 10.º, n.º 3, alínea b) do Código do Processo Civil;
IV – Em concreto, o pedido de insolvência foi deduzido pelas Rec.tes tendo por base créditos ulteriores ao termo do prazo para reclamação de créditos no PER, não tendo, ou não podendo, assim, estar a sua reclamação limitada pela existência daqueloutro processo de revitalização.
V – Podendo justificar-se que estes autos estivessem suspensos durante o período de tempo em que não tinha transitado em julgado a homologação do plano aprovado pelos credores em sede de PER, desde logo porque a sua não aprovação poderá implicar a declaração de insolvência no âmbito dos mesmos autos, conforme o disposto no n.º 3 do artigo 17.º-G do CIRE, já não se justifica que se extinga quando aquele findou com sucesso, desde logo porque os créditos em causa não coincidem com tratados naquela sede.
VI – O disposto no n.º 6 do artigo 17.º-E do CIRE reporta-se unicamente aos processos de insolvência propostos anteriormente à publicação no portal CITIUS do despacho a que se refere a alínea a) do n.º 3 do artigo 17.º-E daquele Código, que, por natureza, têm por base créditos igualmente anteriores ao próprio PER, não podendo, por conseguinte, ser aplicável a processos ulteriores com fundamento no não pagamento de créditos, obviamente, ulteriores.
VII – O entendimento vertido no despacho contraria, assim, sob recurso traduz uma interpretação que não se aceita daquele comando legal, e viola o disposto no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa;
VIII – O despacho sob recurso viola, entre outras que Vossas Excelências doutamente suprirão, as normas supra citadas.
Termos em que, deve ser dado provimento ao presente recurso, e, consequentemente, deve ser revogado o despacho recorrido, ordenando-se o prosseguimento dos autos, assim se fazendo justiça.
Não foi apresentada resposta às alegações de recurso.

II. Do mérito do recurso
1. Definição do objecto do recurso
O objecto do recurso, delimitado pela recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nº 3 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 608º, nº 2, in fine), consubstancia-se numa única questão: saber se, face à definitividade da decisão que homologou o plano de revitalização, deverá ser extinta a lide nos autos de insolvência.

2. Fundamentos de facto
Para além da que consta do relatório que antecede, é a seguinte a factualidade relevante:
1. Na mesma secção à qual foi distribuído o processo de insolvência instaurado pelas ora apelantes corre contra a devedora processo especial de revitalização com o n.º 1377/13.3TBMCN.
2. Por sentença de 28.04.2014 proferida no referido processo, foi homologado o plano de revitalização apresentado “com o teor contido a fls. 840 a 869, com exclusão dos créditos dos trabalhadores constituídos após o prazo de reclamação de créditos”.[1]
3. A decisão de homologação do plano de revitalização transitou em julgado em 17.02.2015 (acórdão desta Relação proferido no PER 1377/13.3TBMCN).
4. As recorrentes requereram a insolvência da recorrida nestes autos, no dia 20.10.2014.

3. Fundamentos de direito
Preceitua o n.º 2 do artigo 1.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas[2], aprovado pelo DL n.º 53/2004, de 18 de Março, com as alterações que posteriormente lhe foram introduzidas, nomeadamente as que decorrem da Lei n.º 16/2012, de 20/04: «Estando em situação económica difícil, ou em situação de insolvência meramente iminente, o devedor pode requerer ao tribunal a instauração de processo especial de revitalização, de acordo com o previsto nos artigos 17.º-A a 17.º-I.»
Nos termos do n.º 1 do artigo 17.º-C do diploma legal citado, o processo especial de revitalização inicia-se pela manifestação de vontade do devedor e de, pelo menos, um dos seus credores, por meio de declaração escrita, de encetarem negociações conducentes à revitalização daquele por meio da aprovação de um plano de recuperação, prevendo o n.º 3 os seguintes procedimentos a realizar pelo devedor: a) comunicação de que pretende dar início às negociações conducentes à sua recuperação ao juiz do tribunal competente para declarar a sua insolvência, devendo este nomear, de imediato, por despacho, administrador judicial provisório, aplicando-se o disposto nos artigos 32.º a 34.º, com as necessárias adaptações; b) remessa ao tribunal de cópias dos documentos elencados no n.º 1 do artigo 24.º, as quais ficam patentes na secretaria para consulta dos credores durante todo o processo.
Finalmente, prescreve o artigo 17.º-E:
«1 - A decisão a que se refere a alínea a) do n.º 3 do artigo 17.º-C obsta à instauração de quaisquer ações para cobrança de dívidas contra o devedor e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto ao devedor, as ações em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação.
2 - Caso o juiz nomeie administrador judicial provisório nos termos da alínea a) do n.º 3 do artigo 17.º-C, o devedor fica impedido de praticar atos de especial relevo, tal como definidos no artigo 161.º, sem que previamente obtenha autorização para a realização da operação pretendida por parte do administrador judicial provisório.
3 - A autorização a que se refere o número anterior deve ser requerida por escrito pelo devedor ao administrador judicial provisório e concedida pela mesma forma.
4 - Entre a comunicação do devedor ao administrador judicial provisório e a receção da resposta ao peticionado previstas no número anterior não podem mediar mais de cinco dias, devendo, sempre que possível, recorrer-se a comunicações eletrónicas.
5 - A falta de resposta do administrador judicial provisório ao pedido formulado pelo devedor corresponde a declaração de recusa de autorização para a realização do negócio pretendido.
6 - Os processos de insolvência em que anteriormente haja sido requerida a insolvência do devedor suspendem-se na data de publicação no portal Citius do despacho a que se refere a alínea a) do n.º 3 do artigo 17.º-C, desde que não tenha sido proferida sentença declaratória da insolvência, extinguindo-se logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação.».
A primeira questão que as ora recorrentes suscitaram e que foi definitivamente decidida por este Tribunal (acórdão proferido nos autos em 17.12.2014), reportava-se à integração na previsão da 1.ª parte do n.º 6 do artigo 17.º-E do CIRE, tendo este Tribunal concluído que se verificava a aludida previsão, aplicando, em consequência, a estatuição legal prevista.
Em suma, considerou este Tribunal, que: «… se os processos de insolvência anteriormente instaurados com vista à declaração de insolvência do devedor se suspendem, desde que neles ainda não tenha sido proferida sentença declaratória de insolvência, com a publicação no portal Citius do despacho judicial a nomear administrador judicial provisório, na sequência da comunicação do devedor de que pretende dar início às negociações com vista à sua recuperação, e se tais processos se extinguem logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, por maioria de razão não se pode aceitar que, aprovado e homologado esse plano - no caso, a 28.04.2014 - venha, menos de seis meses volvidos sobre a decisão homologatória, a ser instaurado por duas ex-trabalhadoras da devedora processo de insolvência contra esta, ainda que tendo por fundamento o não pagamento pela mesma de créditos laborais constituídos após o prazo de reclamação de créditos, e, como tal, não considerados na sentença que homologou o mencionado plano de recuperação.».
Como consta do elenco factual provado, a decisão de homologação do plano de revitalização transitou em julgado em 17.02.2015 (acórdão desta Relação proferido no PER 1377/13.3TBMCN), tendo as recorrentes requerido a insolvência da recorrida nestes autos, em data anterior ao referido trânsito [no dia 20.10.2014].
O citado acórdão, embora não fosse esse o objecto do recurso, pronunciou-se, a latere, sobre a questão que ora se suscita, considerando aplicável a estatuição da parte final do n.º 6 do artigo 17.º-E do CIRE.
Poderá, desde já, argumentar-se, que em coerência com a decisão anterior, uma vez transitada em julgado a decisão que aprovou e homologou o plano de recuperação, não resta legalmente outra solução que não seja a de imediata extinção do processo de insolvência.
Parece-nos incontornável a conclusão que se enunciou.
Incumbe-nos, no entanto, uma apreciação mais profunda do mérito jurídico da decisão recorrida.
Consta do anterior acórdão proferido nos autos:
«[…] A Lei no 16/2012, de 20/4 veio aditar um Capítulo II ao Título I do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo Decreto-Lei n° 53/2004, de 18/03 e alterado pelo Decreto-Lei n.º 200/2004, de 18 de Agosto, no qual, aglutinados nos artigos 17°-A a 17.º-I, prevê e disciplina o designado ‘Processo Especial de Revitalização’.
A sua origem emana do programa ‘Revitalizar’, criado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 11/2012, de 3 de Fevereiro, propondo-se constituir solução no âmbito da reestruturação empresarial, permitindo a revitalização de empresas que se achem em situação económica difícil, mas ainda com viabilidade.
De acordo com o n.º 1 do primeiro daqueles apontados preceitos, “o processo especial de revitalização destina-se a permitir ao devedor que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja susceptível de recuperação, estabelecer negociações com os respectivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização”.
[…]
Como a própria designação aponta, o processo especial de revitalização consiste num instrumento processual, de índole marcadamente extrajudicial e negocial, criado num contexto económico reconhecidamente problemático, para ser colocado à disposição de todos aqueles que se confrontem com uma situação económica difícil ou na iminência de situação de insolvência, mas ainda passível de recuperação, visando, com a interacção dos seus credores, uma solução negocial que, evitando a concretização da situação efectiva de insolvência do devedor, consiga promover a sua reabilitação.
Após reclamação dos créditos pelos credores, na falta de impugnação e reconhecidos os mesmos, é elaborada pelo Administrador Judicial Provisório lista definitiva dos créditos reclamados, fazendo dela constar o valor de cada crédito (capital e juros) e respectiva natureza, identificando, naturalmente, os titulares dos mesmos.
Findo o prazo para impugnações, haverão de prosseguir as negociações já encetadas, que devem estar concluídas no prazo de dois meses, apenas se admitindo prorrogação por uma vez e por um mês, estando essa prorrogação, todavia, condicionada a prévio acordo escrito entre o administrador judicial provisório e o devedor.
No termo das negociações é elaborado pelo administrador judicial provisório plano de revitalização, o qual é submetido à votação dos credores.
Em caso de aprovação unânime em acto em que intervenham todos os credores, “... este deve ser assinado por todos, sendo de imediato remetido ao processo, para homologação ou recusa da mesma pelo juiz, acompanhado da documentação que comprova a sua aprovação, atestada pelo administrador judicial provisório nomeado, produzindo tal plano de recuperação, em caso de homologação, de imediato, os seus efeitos”.
Não se verificando essa unanimidade, mas tendo o plano sido aprovado[3], o devedor remete o mesmo a tribunal, sendo o mesmo submetido à apreciação do juiz, que o homologará ou recusará essa homologação.
Tal decisão vincula os credores, mesmo que não hajam participado nas negociações, de acordo com o disposto no n.º 6, 1.ª parte do artigo l7.º-F do CIRE.
Dispõe o n.º 1 do artigo l7.º-E do CIRE que “a decisão a que se refere a alínea a) do n.º 3 do artigo 17.º-C obsta à instauração de quaisquer ações para cobrança de dívidas contra o devedor e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto ao devedor, as ações em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação”.
E segundo o n.º 6 do artigo 17.º-E do mesmo diploma legal, “os processos de insolvência em que anteriormente haja sido requerida a insolvência do devedor suspendem-se na data de publicação no portal Citius do despacho a que se refere a alínea a) do n.º 3 do artigo 17.º-C, desde que não tenha sido proferida sentença declaratória da insolvência, extinguindo-se logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação”.
Assim, se os processos de insolvência anteriormente instaurados com vista à declaração de insolvência do devedor se suspendem, desde que neles ainda não tenha sido proferida sentença declaratória de insolvência, com a publicação no portal Citius do despacho judicial a nomear administrador judicial provisório, na sequência da comunicação do devedor de que pretende dar início às negociações com vista à sua recuperação, e se tais processos se extinguem logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, por maioria de razão não se pode aceitar que, aprovado e homologado esse plano - no caso, a 28.04.2014 - venha, menos de seis meses volvidos sobre a decisão homologatória, a ser instaurado por duas ex-trabalhadoras da devedora processo de insolvência contra esta, ainda que tendo por fundamento o não pagamento pela mesma de créditos laborais constituídos após o prazo de reclamação de créditos, e, como tal, não considerados na sentença que homologou o mencionado plano de recuperação.
De facto, consentir tal possibilidade equivaleria à aniquilação das finalidades recuperatórias do devedor que o processo especial de revitalização visa assegurar, reconhecendo-lhe a lei clara prevalência sobre o recurso à insolvência, que apenas será de decretar quando se mostre inviável ou fracassado aquele mecanismo protectivo, já que o objectivo que presidiu à criação deste mecanismo procedimental “foi alterar o espírito do regime, colocando a recuperação do devedor no centro das finalidades do processo, em detrimento da liquidação imediata do seu património, para satisfação dos credores”[4]. […]».
No aresto citado e parcialmente transcrito faz-se referência à decisão singular proferida na Relação de Coimbra em 16.10.2012[5], onde se conclui: «Num CIRE cujo fim precípuo era a satisfação dos direitos dos credores, o enxerto introduzido pela referida Lei na sua sistemática, significa uma mitigação de tal finalidade e um retorno ou colagem à anterior legislação falimentar na qual se previam figuras tendentes á consecução de tais fitos. E porque a recuperação é agora elevada a fim essencial do CIRE, é evidente que se despoletado o PER ao mesmo deve ser conferida relevância e proteção, por reporte a outras ações que contendam com o património do devedor e, a fortiori, relativamente ao próprio processo de insolvência, tout court.».
A conclusão enunciada, com a qual concordamos, resulta de uma inflexão do legislador, no que respeita ao ‘objectivo primordial’ do processo de insolvência, introduzida pela Lei n.º 16/2012, de 20/04, que aditou as normas reguladoras do PER, dado que antes desta alteração legislativa, como bem refere Lebre de Freitas[6], o regime da insolvência privilegiava a “garantia patrimonial dos credores”, desígnio expressamente assumido pelo legislador no preâmbulo, nestes termos: “[o] objectivo precípuo de qualquer processo de insolvência é a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores”.
Como se conclui no acórdão desta Relação, de 18-12-2013[7], o Processo Especial de Revitalização (PER), face ao objectivo enunciado no n.º 1 do artigo 17-A, “destina-se a permitir ao devedor que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja suscetível de recuperação, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes um acordo conducente à sua revitalização” e o seu objectivo “foi alterar o espírito do regime, colocando a recuperação do devedor no centro das finalidades do processo, em detrimento da liquidação imediata do seu património, para satisfação dos credores” (Ana Prata/Jorge Morais Carvalho/Rui Simões, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Almedina, 2013, pág. 53). Neste sentido, Luís Menezes Leitão (Direito da Insolvência, 5.ª edição, Almedina, 2013, pág. 72) refere que a introdução deste novo processo especial “não vem só por si destruir a filosofia geral do Código, assente, como se referiu, no sistema de falência-liquidação, mas não há dúvida que a atenua em parte”.
A alteração de filosofia do processo de insolvência, passando a privilegiar a recuperação/revitalização de empresa, terá, necessariamente, consequências no que respeita à posição processual dos credores.
Uma dessas consequências, afirmada com trânsito em julgado por esta Relação no acórdão anteriormente proferido nos autos, traduz-se na suspensão dos trâmites do processo de insolvência, na data de publicação no portal Citius do despacho a que se refere a alínea a) do n.º 3 do artigo 17.º-C, e em consequência desse despacho (1.ª parte do n.º 6 do artigo 17.º E, do CIRE).
A outra consequência, prevista na 2.ª parte do citado normativo, consiste na extinção do processo de insolvência, logo que ocorra o trânsito em julgado do despacho que homologa o plano de recuperação.
Convém não perdermos de vista a norma em apreço, cuja imperatividade nos parece inquestionável:
«6 - Os processos de insolvência em que anteriormente haja sido requerida a insolvência do devedor suspendem-se na data de publicação no portal Citius do despacho a que se refere a alínea a) do n.º 3 do artigo 17.º-C, desde que não tenha sido proferida sentença declaratória da insolvência, extinguindo-se logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação.».
Face à inquestionável intenção do legislador, manifestada na lei, no sentido de privilegiar a revitalização da empresa, alterando a anterior orientação que visava sobretudo a garantia patrimonial dos credores, pensamos, salvo o devido respeito, que a procedência da tese das recorrentes constituiria um paradoxo: o pedido de insolvência ficou suspenso durante o período negocial da revitalização – até ao despacho que homologatório do plano de recuperação – e, após a aprovação deste, com trânsito em julgado, iria destruir todos os efeitos do processo anterior.
A suspensão do processo de insolvência, decidida no acórdão desta Relação proferido nos autos, visou garantir as condições necessárias à revitalização da recorrida, elevada agora, como se refere no acórdão, a “fim essencial do CIRE”, não podendo deixar de se traduzir num absurdo processual a automática destruição de todo o processo de revitalização, após o trânsito em julgado da decisão que homologou o plano, com base na continuidade de uma acção suspensa para viabilizar esse mesmo plano.
Como se decidiu no acórdão desta Relação anteriormente citado[8]: «Resulta claro da lei, e como, salvo melhor saber, decorre dos normativos citados que as ações destinadas à cobrança de dívidas contra o devedor: a) não podem ser instauradas, depois de proferido o despacho que nomeia o administrador judicial provisório depois; b) suspendem-se (naturalmente se já instauradas) no período negocial e c) extinguem-se com a aprovação e homologação do plano de recuperação, (c) salvo quando este plano preveja a sua continuação. De igual modo, os processos de insolvência instaurados suspendem-se (desde que não tinha sido proferida sentença declaratória da insolvência, e extinguem-se, logo que aprovado e homologado o plano de recuperação (artigo 17-E, n.º 6).»[9].
Outro caminho, como bem se refere no acórdão proferido nos autos: «equivaleria à aniquilação das finalidades recuperatórias do devedor que o processo especial de revitalização visa assegurar, reconhecendo-lhe a lei clara prevalência sobre o recurso à insolvência, que apenas será de decretar quando se mostre inviável ou fracassado aquele mecanismo protectivo, já que o objectivo que presidiu à criação deste mecanismo procedimental “foi alterar o espírito do regime, colocando a recuperação do devedor no centro das finalidades do processo, em detrimento da liquidação imediata do seu património, para satisfação dos credores”».
Alegam as recorrentes (conclusões IV e VI), que o pedido de insolvência foi deduzido tendo por base créditos ulteriores ao termo do prazo para reclamação de créditos no PER, não podendo a sua reclamação ser limitada pela existência do processo de revitalização, e que, “o disposto no n.º 6 do artigo 17.º-E do CIRE reporta-se unicamente aos processos de insolvência propostos anteriormente à publicação no portal CITIUS do despacho a que se refere a alínea a) do n.º 3 do artigo 17.º-E daquele Código, que, por natureza, têm por base créditos igualmente anteriores ao próprio PER, não podendo, por conseguinte, ser aplicável a processos ulteriores com fundamento no não pagamento de créditos, obviamente, ulteriores”.
A questão foi aflorada na fundamentação do acórdão anteriormente proferido nos autos: «Assim, se os processos de insolvência anteriormente instaurados com vista à declaração de insolvência do devedor se suspendem, desde que neles ainda não tenha sido proferida sentença declaratória de insolvência, com a publicação no portal Citius do despacho judicial a nomear administrador judicial provisório, na sequência da comunicação do devedor de que pretende dar início às negociações com vista à sua recuperação, e se tais processos se extinguem logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, por maioria de razão não se pode aceitar que, aprovado e homologado esse plano - no caso, a 28.04.2014[10] - venha, menos de seis meses volvidos sobre a decisão homologatória, a ser instaurado por duas ex-trabalhadoras da devedora processo de insolvência contra esta, ainda que tendo por fundamento o não pagamento pela mesma de créditos laborais constituídos após o prazo de reclamação de créditos, e, como tal, não considerados na sentença que homologou o mencionado plano de recuperação.».
Vejamos.
Em anotação ao n.º 6 do artigo 17.º-E do CIRE, Nuno Salazar Casanova e David Sequeira Dinis propõem uma interpretação extensiva do normativo em apreço, de forma a que a sua previsão englobe os processos de insolvência propostos durante a tramitação do PER, antes de homologado o plano, único meio de garantir a unidade e a harmonia do sistema[11].
Escrevem os referidos autores:
«Por último, o n.º 6 do artigo 17.º-E deverá ser interpretado no sentido de impedir que seja requerida a insolvência do devedor enquanto durar o PER. Com efeito, parece que o legislador disse, neste caso, efetivamente menos do que pretendia.
Assim, suspendem-se não só os processos de insolvência pendentes (como expressamente refere o n.º 6 do artigo 17.º- E do CIRE), como também se impede que sejam intentados novos processos de insolvência e que os mesmos possam prosseguir os seus termos até final.
Esta é a conclusão que resulta, por um lado, da interpretação teleológica da norma e, por outro lado, da interpretação conjugada e sistemática do n.º 6 e do n.º 1 do artigo 17.º-E.
Em última análise, a insolvência pode ser vista em sentido impróprio como uma espécie de acção para cobrança de dívida, sendo aliás tradicionalmente considerada como uma execução universal. Assim sendo, se o legislador optou por impedir que fossem iniciadas novas acções para cobrança de dívida (que, como se demonstrou, se reconduzem, para efeitos do artigo 17.º-E, n.º 1, a acções executivas) contra o devedor (cfr. n.º 1 do artigo 17.º-E), então, e por maioria de razão, é de presumir que também pretenda, embora não o tenha referido expressamente, impedir que sejam iniciados novos processos de insolvência (que são, conforme referido, execuções universais). Assim o impõe a ratio das normas, os interesses em jogo e a harmonia do sistema.».
Em suma, afigura-se-nos incontornável a imperatividade da lei, no sentido da extinção do processo de insolvência que se encontrava suspenso.
Face a tal imperatividade e às consequências daí decorrentes (extinção do processo de insolvência instaurado pelas recorrentes em momento anterior ao trânsito em julgado da decisão de homologação do plano de revitalização)[12] será legítimo questionar a constitucionalidade desta interpretação, como o fazem as recorrentes na conclusão VII: “O entendimento vertido no despacho (…) sob recurso traduz uma interpretação que não se aceita daquele comando legal, e viola o disposto no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa”.
Pensamos, salvo o devido respeito, que não se verifica qualquer violação do princípio constitucional invocado, na medida em que os créditos que se constituem após o prazo de reclamação de créditos não são atendidos mas também não são afectados pelo plano[13], podendo posteriormente intentar acções ou requerer as providências que entendam adequadas à realização dos seus créditos.
Improcede o recurso, devendo confirmar-se na íntegra a decisão recorrida.

III. Dispositivo
Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar totalmente improcedente o recurso, ao qual negam provimento, e, em consequência, em manter na íntegra a decisão recorrida.
Custas do recurso pelas recorrentes.
*
A presente decisão compõe-se de dezassete páginas e foi elaborado em processador de texto pelo relator, primeiro signatário.

Porto, 1 de Junho de 2015
Carlos Querido
Soares de Oliveira
Alberto Ruço
_________
[1] Os factos 1., e 2., constituem transcrição do elenco da factualidade provada, constante do acórdão desta Relação, proferido nos autos, de 17.12.2012.
[2] Doravante denominado CIRE.
[3] “Considera-se aprovado o plano de recuperação que reúna a maioria dos votos prevista no n.º 1 do artigo 212.º, sendo o quórum deliberativo calculado com base nos créditos relacionados contidos na lista de créditos a que se referem os n.ºs 3 e 4 do artigo 17.º -D, podendo o juiz computar os créditos que tenham sido impugnados se considerar que há probabilidade séria de tais créditos deverem ser reconhecidos, caso a questão ainda não se encontre decidida” - artigo 17.º-F, n.º 3 do CIRE
[4] Ana Prata / Jorge Morais de Carvalho / Rui Simões, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, Almedina, 2013, pág. 53. Em idêntico sentido, cfr. Luís Menezes Leitão, “Direito da Insolvência, 5.ª edição, Almedina, 2013, pág. 72.
[5] Proc. 421/12.6TBTND.C1, acessível no site da DGSI.
[6] Themis, Revista da Faculdade de Direito da UNL, Almedina, 2005, pág. 12. O autor citado, refere mesmo que “o fim da recuperação é subalternizado e a garantia patrimonial dos credores elevada a finalidade única”. No entanto, com o regime da “Revitalização” introduzido no CIRE pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril, esta crítica ficou desactualizada.
[7] Proferido no Processo n.º 7613/12.6YYPRT.P1, subscrito pelo ora relator, na qualidade de adjunto.
[8] Proferido em 18-12-2013, no Processo n.º 7613/12.6YYPRT.P1, subscrito pelo ora relator como adjunto.
[9] No mesmo sentido, veja-se o acórdão desta Relação (Secção Social), de 05-01-2015 (Processo n.º 22/13.1TTMTS.P1, acessível no site da DGSI).
[10] A decisão de homologação do plano de revitalização transitou em julgado em 17.02.2015 (acórdão desta Relação proferido no PER 1377/13.3TBMCN), tendo sido o processo de insolvência instaurado em momento anterior – 20.10.2014.
[11] PER – O Processo Especial de Revitalização – Comentários aos artigos 17.º-A a 17.º-I do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, pág. 118.
[12] Como já se referiu, a decisão de homologação do plano de revitalização transitou em julgado em 17.02.2015 (acórdão desta Relação proferido no PER 1377/13.3TBMCN), tendo as recorrentes requerido a insolvência da recorrida nestes autos, no dia 20.10.2014.
[13] Vide Nuno Salazar Casanova e David Sequeira Dinis, in PER – O Processo Especial de Revitalização – Comentários aos artigos 17.º-A a 17.º-I do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, pág. 118, pág. 57 e 150. Como referem estes autores, os credores titulares de créditos constituídos após o prazo de reclamação ficam desvinculados dos efeitos redutores do plano de revitalização.