Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4533/22.0T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: INTERVENÇÃO PRINCIPAL PROVOCADA
LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO
CIRE
RESOLUÇÃO EM BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE
TERCEIRO ADQUIRENTE
MÁ FÉ
Nº do Documento: RP202304204533/22.0T8PRT-A.P1
Data do Acordão: 04/20/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A intervenção principal provocada por iniciativa do Autor só pode ocorrer nos casos de preterição de litisconsórcio necessário. Respeitando à legitimidade para a ação, o litisconsórcio necessário pode ocorrer (i) sempre que a lei ou o negócio assim o exigir (litisconsórcio legal ou convencional); (ii) quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal (litisconsórcio natural).
II - No tocante à resolução dos negócios, o regime do CIRE diverge do regime geral do CC, na medida em que a resolução tem eficácia retroativa face a terceiros, sendo oponível aos transmissários posteriores, independentemente do número de transmissões, desde que se verifique o requisito da má fé do adquirente (art.º 124º CIRE).
III - É ao Administrador da Insolvência que compete a prova do requisito de má fé do terceiro adquirente.
IV - Numa situação em que um Autor pretende anular uma corrente de transmissões de contratos de compra e venda, com fundamento em simulação, tendo o 1º transmitente sido declarado insolvente e existindo já sentença com trânsito em julgado a declarar resolvido esse negócio em benefício da Massa Insolvente, é de entender que o Autor pode suscitar a intervenção principal provocada dessa Massa Insolvente, para que a ação produza o seu efeito útil normal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 4533/22.0T8PRT-A.P1

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

I – Resenha histórica do processo
1. Banco 1..., instaurou ação contra
· AA,
· A..., SA,
· B..., SA,
· Incertos
pedindo o seguinte:
- reconhecer-se que autora é credora da ré AA nos termos descritos no ponto a.1) da presente petição, i. e., em quantia que em 21.02.2022 ascendia a € 1.182.696,40 (art. 31.º desta petição), acrescida dos juros vincendos, tal como descrito nos arts. 30.º e 32.º desta petição, até ao seu efetivo e integral pagamento
- declarar-se nula, por vício de simulação, a transmissão de ações declarada entre as rés AA e “A... -..” no “contrato de compra e venda” referido no artigo 64.º desta petição
- declarar-se nula, por efeito da resolução referida no ponto c.2) desta petição, a transmissão de ações declarada entre as rés “A... -..” e “B... -..” (declarada no “contrato de compra e venda” referido no artigo 158.º desta petição) tendo por objeto as 59.998 ações que era/é titular BB na sociedade “Quinta -..” ou, se assim não se entender, declarar-se nula essa mesma transmissão por vício de simulação
- declarar-se nula, por efeito da nulidade referida no ponto c.3 desta petição a transmissão de ações declarada entre as rés “A... -..” e “B... -..” no “contrato de compra e venda” referido no artigo 158.º desta petição, tendo por objeto as 59.998 ações que era/é titular AA na sociedade “Quinta -..” ou, se assim não se entender, declarar-se nula essa mesma transmissão por vício de simulação.
Na sua PI, a Autora ainda suscitou a intervenção principal provocada da Massa Insolvente de BB, com a seguinte argumentação:
> a autora pretende que seja declarado, entre o mais, a nulidade do contrato de compra e venda declarado entre as rés “A... -..” e “B... -..” tendo por objeto as ações da “Quinta -..” de que era titular BB.
> Essa nulidade é arguida por efeito da simulação que a autora invoca, mas também na sequência da resolução judicial já operada do contrato anterior declarado entre BB e a ré “A... -..”.
> em caso de procedência da presente ação e na decorrência da declaração de nulidade desse negócio, a que acresce a resolução do negócio anterior, será ordenada a devolução de tudo quanto foi prestado entre as partes, restituindo-se a situação que existiria se esses negócios não tivessem sido declarados.
> considerando que BB foi declarado insolvente, as ações deverão ser restituídas não ao seu património pessoal, mas ao património da Massa Insolvente.
> - isto significa então que a pretensão da autora tem implicações na esfera jurídica da Massa Insolvente de BB.
> afetando assim a procedência da ação os seus interesses.
Notificados os Réus para se pronunciarem sobre o incidente, apenas o fizeram:
─ A Ré B..., considerando não ser possível a pretendida intervenção já que, do lado ativo, o Autor apenas pode chamar à ação alguém como seu associado se ocorrer preterição de litisconsórcio necessário, o que não é o caso, por não se verificar o litisconsórcio necessário. Quanto às ações que pertenciam ao Insolvente BB, a legitimidade pertence em exclusivo ao Administrador de Insolvência. Acresce que o pedido de intervenção principal não pode ser usado para substituir processualmente uma parte que não tem legitimidade.
─ As Rés AA e A... referiram apenas que o pedido de intervenção provocada não tem cobertura legal, por não ocorrer aqui preterição de litisconsórcio necessário.

2. A M.mª Juíza proferiu então decisão, nos seguintes termos:
«Ouvidas as contrapartes cumpre apreciar a admissibilidade do incidente de intervenção principal provado deduzido pela autora.
A intervenção principal provocada constitui o meio adequado para chamar ou acolher subsequentemente na instância um terceiro que é titular de uma relação material controvertida paralela à alegada pelo autor ou pelo réu.
Esta modalidade de intervenção de terceiros tem o seu âmbito de aplicação definido no art. 316º do CPC.
E uma primeira conclusão a retirar da análise desta norma é a de que a intervenção principal só tem cabimento no quadro da figura do litisconsórcio (necessário e voluntário).
Assim, em caso de litisconsórcio necessário, activo ou passivo, pode o incidente ser despoletado por iniciativa de qualquer das partes, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária (art. 316º, nº 1).
Em caso de litisconsórcio voluntário, por via de regra, apenas o autor pode provocar a intervenção de algum litisconsorte do réu que não haja demandado inicialmente (art. 316º, nº 2, 1ª parte).
No entanto, o nº 3 do art. 316º prevê ainda a possibilidade do incidente de intervenção principal provocada ser desencadeado por iniciativa do réu, nas situações elencadas nas suas duas alíneas, isto é, desde que mostre interesse atendível em chamar a intervir outros litisconsortes voluntários, sujeitos passivos da relação material controvertida (al. a)), ou se pretender provocar a intervenção de possíveis contitulares do direito invocado pelo autor (al. b)).
De acordo com António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “(…) o próprio réu pode promover o chamamento de terceiros para a lide, em duas situações. A primeira ocorre quando haja outros sujeitos passivos da relação material controvertida objeto dos autos e pretenda fazer intervir, em regime de litisconsórcio e a si associados, os demais sujeitos.
Para tal, exige-se que o réu revele “interesse atendível” na intervenção” – Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2020, Almedina, anotação ao art. 316.º.
Revertendo ao caso em apreço, a autora pretende que seja declarado, entre o mais, a nulidade, por simulação, do contrato de compra e venda A..., S.A. B..., S.A. objecto as acções - de que era titular BB. Ora, relativamente ao pedido deduzido pela A. quanto às acções que pertenciam ao Insolvente BB, não estamos perante um caso de litisconsórcio necessário tanto mais que o Administrador de Insolvência, só por si, tinha legitimidade para o pedido.
Nestes termos, não se defere pedido de intervenção principal provocada formulado pela autora.»

3. Inconformada com tal decisão, dela apelou a Autora, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
«1.ª - O tribunal a quo não esteve bem ao indeferir o incidente de intervenção principal provocada da massa insolvente de BB deduzido pela recorrente com fundamento na inexistência de litisconsórcio - vd. art. 316.º do CPC
2.ª - Por um lado porque estamos perante uma situação de litisconsórcio necessário, já que a produção dos efeitos úteis normais da ação depende da participação da massa insolvente de BB - vd. art. 33.º, n.º 2 do CPC
3.ª - Por outro porque, mesmo que assim não se entendesse, deveria sempre assegurar-se a participação da massa insolvente na ação porque a sua procedência terá efeitos patrimoniais na sua esfera jurídica e não tem acolhimento algum que uma parte não intervenha numa causa quando esta possa afetar a sua esfera jurídica - vd. art. 30.º, n.ºs 1 e 2 do CPC
4.ª - Acresce ainda que não se mostra previsto nenhum outro incidente de intervenção de terceiros que melhor se coadune com a situação em apreço.
De harmonia com as razões expostas deve conceder-se provimento ao recurso e, por tal efeito, revogar-se o despacho impugnado, deferindo-se o incidente de intervenção principal provocado da massa insolvente de BB, assim se fará justiça.»

4. Não houve contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO
5. Apreciando o mérito do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art.º 615º nº 1 al. d) e e), ex vi do art.º 666º, 635º nº 4 e 639º nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC).
No caso, trata-se de apurar se deve ser admitido o incidente de intervenção principal suscitado pela Autora.

5.1. Incidente de intervenção principal
A matriz do incidente de intervenção principal é o de chamar à ação terceiros que tenham interesse na causa [1], «(…) um terceiro que é titular (activo ou passivo) de uma situação subjetiva própria, mas paralela à alegada pelo autor ou pelo réu.) [2]
Em especial quanto à intervenção provocada, regula o art.º 316º do CPC e, como dele resulta, a intervenção por iniciativa do autor só pode ocorrer (nº 1) nos casos de preterição de litisconsórcio necessário.
O litisconsórcio necessário respeita à legitimidade para a ação. E, como decorre dos arts.º 33º a 35º do CPC, impõe-se a intervenção de todos:
(i) sempre que a lei ou o negócio assim o exigir;
(ii) quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal.
No caso, não se trata de litisconsórcio necessário legal ou convencional, pelo que a intervenção aqui suscitada deve ser apreciada pela via do litisconsórcio necessário natural.
Para o efeito, há que dilucidar a relação jurídica aqui em causa, pois só assim se pode concluir se a intervenção da chamada Massa Insolvente é necessária para que a sentença produza o seu efeito útil normal.
Sobre tal conceito, referem os autores processualistas:
«Não se trata de impor o litisconsórcio para evitar decisões contraditórias nos seus fundamentos, mas de evitar sentenças ¯ou outras providências ¯inúteis por, por um lado, não vincularem os terceiros interessados e, por outro, não poderem produzir o seu efeito típico em face apenas das partes processuais.» [3]
Na mesma senda, e dilucidando sobre o conceito, Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora [4] exemplificam o caso duma ação de divisão de coisa comum como uma questão de efeito útil (no sentido de que os comproprietários não acionados na ação poderiam depois propor nova ação de divisão, e a sentença a proferir não teria de respeitar a primeira) e o caso das servidões de passagem como questão de efeito normal (na medida em que o comproprietário não demandado poderia continuar a negar a servidão, dado a sentença não o vincular).
Anselmo de Castro [5]: «Na interpretação restritiva (…) a sentença produzirá o seu efeito útil normal quando defina uma situação jurídica que não só não possa mais ser contestada por qualquer das partes, como ainda seja de molde a poder subsistir inalterada não obstante ser ineficaz em confronto dos outros cointeressados (…). Releva, pois, tão somente a contradição prática: se não vale entre todos, também entre as partes não resolverá a controvérsia.
Já para a interpretação lata as coisas se passariam de modo diverso: a expressão «efeito útil normal» abrangeria, além do caso indicado, aqueles em que a decisão, embora susceptível de aplicação restrita às partes, ficasse em contradição (lógica, ou teórica ou técnica) com outra divergente que sobre a mesma relação viessem a obter os restantes sujeitos.»
Por seu turno, para Rodrigues Bastos, a decisão produz o «efeito útil normal» quando regule definitivamente a situação concreta sujeita à apreciação judicial. Sempre que, por não intervirem certas pessoas, seja abalada essa estabilidade que se procura e se deseja, deixando a porta aberta à possibilidade de outros interessados na mesma relação jurídica suscitar nova demanda, em que poderão obter decisão diferente, o litisconsórcio impõe-se como obrigação.» [6]

5.2. A relação jurídico-processual aqui em causa
Face ao que se disse, descartada a hipótese de litisconsórcio necessário legal ou convencional, resta apurar da possibilidade dum litisconsórcio necessário natural.
Para o efeito, na procura do efeito útil normal, impõe-se uma breve incursão no regime jurídico da resolução em benefício da Massa Insolvente.
O quadro factual alegado (em resumo):
A Autora é credora de AA e BB, na qualidade de fiadores da sociedade anónima “Quinta ...” (à qual a Autora concedeu um crédito em conta corrente), e da qual eles são titulares de ações representativas de 92,498% do seu capital. São também membros do Conselho de Administração.
Nos termos contratuais, as obrigações decorrentes desse crédito encontram-se vencidas.
Essa sociedade é proprietária de 58 imóveis.
Em 2018, AA e BB venderam as suas ações à A....
Por sua vez, em 2019, a A... vendeu à B... as ações que havia adquirido de AA e BB.
Em 2019, BB foi declarado insolvente. O Administrador da Insolvência (AI) procedeu à resolução em benefício da Massa Insolvente. A A... impugnou essa resolução, mas essa impugnação foi julgada improcedente, por decisão transitada em julgado, que reconheceu a eficácia da resolução em benefício da Massa Insolvente.
Com a presente ação, a Autora pretende obter a anulação de 3 desses negócios de compra e venda de ações, sequenciais, com fundamento em vício de simulação:
a) da AA para a A...;
b) da A... para a B..., no tocante às ações adquiridas ao BB. [7]
c) da A... para a B..., no tocante às ações adquiridas à AA (neste caso, por efeito da resolução, ou por simulação).
Com a resolução operada em benefício da Massa Insolvente, tudo se passa, do ponto de vista prático, como se a venda das ações de BB à A... nunca tivesse ocorrido; as ações voltariam à esfera de BB e, por esse efeito, passariam a fazer parte do “património autónomo Massa Insolvente de BB”.
Nessa medida, poder-se-ia dizer que a Massa Insolvente já não teriam qualquer interesse nesta ação, dado que já obteve o reingresso das ações no seu património.
Nos termos do nº 1 do art.º 126º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), a resolução tem efeitos retroativos, devendo reconstituir-se a situação que existiria se o ato não tivesse sido praticado ou omitido, consoante o caso.
Trata-se, portanto, de solução idêntica à do Código Civil (CC), mas não absolutamente idêntica. O regime do CIRE já diverge do regime geral no tocante à eficácia retroativa face a terceiros: «O art.º 126º CIRE consagra um regime oposto. Na verdade, a resolução em benefício da massa insolvente opera mesmo em relação a terceiros, salvaguardada a inoponibilidade por parte destes, desde que se encontrem de boa fé e apenas quanto a determinados actos. Tal é permitido pelo art.º 124º CIRE a contrario sensu.» pág. 182
Porém, resulta do art.º 124º do CIRE que a resolução só é oponível a transmissários posteriores no caso de má fé destes. «A oponibilidade da resolução aos transmissários posteriores é possível, independentemente do número de transmissões, desde que se verifique em relação a todas elas o requisito da má fé do adquirente, (…).» [8]
«(…), terceiro transmissário, para efeito de oponibilidade da resolução, é um qualquer transmissário da contraparte do devedor insolvente, ou ainda um qualquer ulterior transmissário, para quem foram transferidos, definitiva ou temporariamente, bens ou constituídos direitos sobre esses mesmos bens.» [9]
Portanto, por força da sentença proferida na impugnação da resolução, a A... deveria ter restituído as ações. Sucede que, à data, a A... já não era sua proprietária, estando estas no património da B.... Não tendo a B... intervindo na referida ação, ela não faz caso julgado contra ela. Por seu turno, o AI, para lograr opor-lhe a sentença, teria de ter já demonstrada a má fé da B..., o que não acontece.
No mesmo sentido, o acórdão do STJ:
«I Sendo a Autora uma terceira transmissária do bem objecto de transmissão anterior pela Insolvente, cuja resolução foi efectuada pelo Administrador da Insolvência, a oponibilidade desta em relação àquela Autora só é operante quando esteja apurada a sua má fé.
II Estas duas situações, embora interligadas, não se constituem em vasos comunicantes entre si, porquanto a licitude e eficácia da declaração resolutiva da transmissão havida, não acarreta automaticamente a sua oponibilidade a terceiros posteriores adquirentes dos bens dela objecto, como decorre aliás do preceituado no artigo 124º, nº1 do CIRE, onde se predispõe que «A oponibilidade da resolução do acto a transmissários posteriores pressupõe a má fé destes, salvo tratando-se de sucessores a titulo universal ou se a nova transmissão tiver ocorrido a titulo gratuito.».
III A má fé do terceiro adquirente constitui na espécie uma condição sine qua non, aproximando-se este regime do da impugnação pauliana prevenido no artigo 613º do CCivil.» [10]
Questão importante ainda, será a de saber a quem compete a prova dessa má fé.
Neste particular, remetemo-nos para os ensinamentos de Fernando de Gravato Morais, analisando o art.º 124º do CIRE: «Da expressão usada não pode concluir-se que a má fé se presume. Aliás, do confronto com o art.º 120º, nº 4 CIRE consagra-se a mesma locução, seguida de uma presunção dessa mesma má fé em relação a dados actos. (…)
Respondendo negativamente à questão suscitada, entendemos que cabe àquele que pretende prevalecer-se da oponibilidade fazer essa demonstração. Desta sorte, é o administrador da insolvência que tem o ónus de provar a má fé do(s) terceiro(s) transmissário(s).» [11]
Os Autores que vimos citando estão de acordo que se verifica aqui uma situação idêntica à prevista no art.º 612º do CC para a impugnação pauliana: em primeiro lugar, as transmissões posteriores estão dependentes da verificação dos requisitos da primeira transmissão; as demais ficam sujeitas aos mesmos requisitos da impugnabilidade da primeira alienação, designadamente a má fé quanto a transmissão tiver sido a título oneroso. Ou seja, o credor tem de, por via de ação, suscitar a impugnação de todas as transmissões.
«Mas a má fé ou a gratuitidade têm de estar presentes em todos os atos de transmissão ocorridos, não podendo a impugnação pauliana operar per saltum. Não estando presente um destes requisitos numa transmissão, quebra-se a corrente que vai permitindo a extensão do alcance da impugnação pauliana.» [12]
Visto isto, e voltando à situação aqui em causa: na perspetiva do efeito útil da (eventual) procedência desta ação, ela interessa também à Massa Insolvente, no sentido que ficará vinculada ao caso julgado, evitando a necessidade de ter de propor nova ação contra a B..., para lhe tornar oponível a resolução decretada contra a A... face à necessidade de demonstração da má fé; na perspetiva do efeito normal, a apreciação da (eventual) má fé da B... fica definitivamente resolvida perante todos os interessados.

6. Sumariando (art.º 663º nº 7 do CPC)
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III. DECISÃO
7. Pelo que fica exposto, julga-se procedente a apelação. Em consequência, revoga-se a decisão recorrida, admitindo-se agora o incidente de intervenção principal suscitado pela Autora, seguindo-se os demais termos.
Sem custas do recurso, face ao provimento e à ausência de contra-alegações.

Porto, 20 de abril de 2023
Isabel Silva
João Venade
Paulo Duarte Teixeira
______________
[1] O âmbito do incidente de intervenção principal encontra-se alargado no atual CPC, abrangendo os anteriores incidentes de nomeação à ação e do chamamento à demanda. Cf. Salvador da Costa, “Os Incidentes da instância”, 11ª edição atualizada e ampliada, Almedina, pág. 84.
[2] Teixeira de Sousa, “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, 2ª edição, Lex, 1997, pág. 181.
[3] Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 1º, 2ª edição, Coimbra Editora, anotação ao art.º 28º (correspondente ao atual art.º 33º).
[4] In “Manual de Processo Civil”, 2ª edição revista e atualizada, 1985, Coimbra Editora, pág. 167-168.
[5] In “Direito Processual Civil Declaratório”, vol. II, Almedina, 1982, pág. 203-204.
[6] In “Código de Processo Civil”, vol. I, pág. 118.
[7] Sobre este negócio, a Autora invoca, além da causa de pedir “simulação”, ainda a nulidade decorrente da resolução do negócio entre BB e a A.... A nosso ver, a resolução em benefício da massa insolvente não tem por efeito a nulidade dos negócios posteriores. Apesar de essa questão extravasar o âmbito deste recurso, deixa-se aqui assinalado apenas para se perceber que tudo o que se disser de seguida tem por pressuposto que atenderemos apenas à simulação.
[8] Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, “Direito da Insolvência”, 4ª edição, 2012, Almedina, pág. 223. No mesmo sentido, Alexandre Soveral Martins, “Um Curso de Direito da Insolvência”, 2ª edição revista e atualizada, 2016, Almedina, pág. 223.
[9] Fernando de Gravato Morais, “Resolução em Benefício da Massa Insolvente”, Almedina, 2008, pág. 178.
[10] Acórdão do STJ, de 05/05/2015, processo nº 919/09.3TJPRT-F.P3.S1, Relatora Ana Paula Boularot, disponível em www.dgsi.pt/, sítio a atender nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem.
[11] Obra citada, pág. 177-178.
[12] Cura Mariano, “Impugnação Pauliana”, Almedina, 3ª edição revista e aumentada, pág. 203.