Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
299/10.4TMMTS-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA CECÍLIA AGANTE
Descritores: PRESTAÇÃO DE CONTAS
PATRIMÓNIO COMUM
EFEITOS
CONTRATO PROMESSA
PARTILHA
Nº do Documento: RP20161011299/10.4TMMTS-A.P1
Data do Acordão: 10/11/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 734, FLS. 123-130)
Área Temática: .
Sumário: I - O normativizado de que os cônjuges participam por metade no ativo e no passivo da comunhão, sendo nula qualquer estipulação em sentido diverso, visa fixar a quota parte a que cada um deles terá direito no momento da dissolução e partilha do património comum.
II - O acordo alcançado sobre a partilha dos bens comuns do casal não pode limitar os cônjuges no domínio da partilha posterior, mormente realizada mediante inventário. O contrato-promessa de partilha não corresponde a um negócio jurídico abdicativo ou renunciativo da subsequente partilha judicial nem transporta para ela o que nele foi clausulado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 299/10.4TMMTS-A
Tribunal da Comarca do Porto
Matosinhos, instância central, 3ª Secção de família e menores, J1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório
B…, residente no Largo …, .., …, instaurou ação especial de prestação de contas contra C…, residente na Rua …, .., …, pedindo a condenação desta a reembolsá-lo da quantia de 6.105,09 euros, correspondente a metade do montante global dos pagamentos por si efetuados, após a cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges, por conta das dívidas contraídas por ambos na constância do matrimónio, acrescida dos juros vencidos e vincendos até integral pagamento.
Alegou, em síntese, que contraíram casamento civil em 14-09-2002, sob o regime de bens de comunhão de adquiridos, o qual veio a ser dissolvido mediante divórcio decretado por decisão de 25-03-2008. Tendo corrido inventário para partilha dos bens comuns, chegaram a acordo na conferência de interessados e foi proferida sentença homologatória da partilha em 20-02-2013. Porém, as dívidas comuns do casal continuaram a vencer-se após a cessação das relações patrimoniais e têm sido exclusivamente pagas por si, recusando-se a ré a suportar a parte que lhe corresponde. Tais dívidas totalizam o valor de 12.210,18 euros.

A ré contestou, impugnando alguns dos valores reclamados, rejeitando a sua responsabilidade quanto a outros e pugnando pela especificação das receitas.

Produzida a prova testemunhal, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Por tudo o exposto, vistas as normas jurídicas e os princípios indicados, decide-se condenar a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 4.064,73, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa supletiva legal, sobre metade de cada uma das prestações referidas em 5.º a 8.º dos factos provados, desde a data da respectiva liquidação à entidade credora até integral pagamento.».

O autor requereu reforma da sentença, alegando, em síntese, que a mesma enferma de lapso de interpretação ao considerar que, na conferência de interessados, os ex-cônjuges acordaram que seria o autor a liquidar o valor em dívida ao Banco e único responsável pelo seu pagamento, quando a assunção de pagamento só ocorreu relativamente ao credor D….
Em simultâneo, interpôs recurso da sentença.

Por despacho de 02-05-2016, foi deferida a reforma da sentença nos seguintes termos: «Por tudo o exposto, decide-se reformar a sentença proferida a fls. 250 e ss e, consequência, condenar a Ré no pagamento ao Autor da quantia de € 6.105,09, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal, calculados sobre metade de cada uma das prestações vencidas e liquidadas pelo Autor até integral pagamento».

Face à reforma da sentença, o autor desistiu do recurso. Desistência que foi admitida por despacho de 05-07-2016.

A ré recorreu da sentença, apresentando, em síntese, as seguintes conclusões alegatórias:
1. Na sentença recorrida o tribunal a quo deu como não provado «1. O Autor fruiu exclusivamente o imóvel descrito em 7.º desde a data do decretamento do divórcio até à data em que teve lugar a conferência de interessados no âmbito do processo principal.”
“2. Após o decretamento do divórcio, o Autor deu de arrendamento o imóvel descrito em 7.º dos factos provados.».
2. Considerando a prova documental, por confissão de uma das partes e testemunhal, o tribunal a quo desconsiderou a toda a panóplia de documentação junta aos autos bem como dos depoimentos gravados já retro reproduzidos, consequentemente, deveria ter dado como provado que “1. O Autor fruiu exclusivamente o imóvel descrito em 7.º desde a data do decretamento do divórcio até à data em que teve lugar a conferência de interessados no âmbito do processo principal. Após o decretamento do divórcio, o Autor deu de arrendamento o imóvel descrito em 7.º dos factos provados.”.
3. Ora, as partes ao celebraram o contrato-promessa de partilha acordaram numa forma de preencher a sua parte, num contrato que é válido.
4. Contudo, o autor, após a celebração do contrato-promessa, fez o que quis, vendeu ou prometeu vender à então sua Advogada Dra. E…, subscreveu de forma isolada procuração para a mesma tratar de toda a documentação camarária licenças e demais documentos para a realização de obras, autorizou terceiros (a Dra. E…) a usar e fruir como bem entendesse aos fins-de-semana o imóvel, fez ou mandou fazer obras à revelia da aqui recorrente, sem que a mesma soubesse ou autorizasse.
5. Ainda assim, o tribunal a quo vem admitir como certo que a recorrente usou e fruiu do imóvel após o divórcio.
6. O único imóvel relacionado não está em ruína (conforme o então requerido vinha alegando no processo) antes totalmente reconstruido (facto que desconhecia).
7. Após a celebração do contrato-promessa organizou a sua vida de forma a não integrar nas suas responsabilidades de crédito este imóvel.
8. Desta feita, há erro pelo tribunal a quo na apreciação da prova bem como erro no julgamento quanto à questão de direito, mostrando-se violados os artigos 607º, n.os 4 e 5, e 615º, n.º 1, al. c), ambos do CPC, impondo desta feita a nulidade da sentença.
9. Foi dado como provado os factos 5 a 8, que foram erradamente reclamados.
10. O autor reclama duplamente estas quantias, uma vez que, conforme ata de conferência de interessados realizada a 27-10-2011, aquelas dívidas foram relacionadas no passivo, e por acordo das partes, aprovaram-nas “no montante atualmente em dívida, apresentado pelo credor aqui presente que à data de hoje é no montante de 28.706,97€”.
11. Mal andou o tribunal a quo ao condenar a aqui recorrida no pagamento de tais quantias, porquanto não pode nem a lei consente que o autor reclame agora o pagamento de uma dívida que já foi suportada/integrada/deduzida na meação da outrora requerente, sob pena de enriquecimento sem causa a favor do autor.
Nestes termos e nos melhores de direito deve ser dado provimento ao presente recurso, e em consequência, ser totalmente revogada a decisão recorrida.

O recurso foi admitido como apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

O autor não apresentou resposta.

II. Delimitação do objeto do recurso
Nada há que obste ao conhecimento do mérito do recurso.
Sendo o objeto do recurso balizado pelas conclusões da alegação da recorrente (artigo 635º do CPC) cabe-nos apreciar e decidir:
1. Impugnação da matéria de facto;
2. Operação de partilha do património comum;
3. Efeitos do contrato-promessa de partilha.

III. Fundamentação
1. Impugnação da matéria de facto
Pugna a recorrente pela demonstração dos seguintes factos por si alegados na contestação:
1. O Autor fruiu exclusivamente o imóvel descrito em 7.º desde a data do decretamento do divórcio até à data em que teve lugar a conferência de interessados no âmbito do processo principal.
“2. Após o decretamento do divórcio, o Autor deu de arrendamento o imóvel descrito em 7.º dos factos provados.”
Apela, para tanto, aos documentos juntos ao processo de inventário, ao depoimento de parte do autor e ao depoimento da testemunha F…. A motivação probatória da convicção do tribunal quanto à ausência de prova de tais dados factuais vem assim expressa na sentença: «De resto, nenhuma das testemunhas ouvidas comprovou a existência de uma ocupação/fruição exclusiva por parte do Autor anteriormente àquela data, nem demonstrou ter conhecimento da celebração de um qualquer contrato de arrendamento tendo por objeto aquele imóvel.».
Auditando a prova produzida, verificamos que do depoimento de parte do autor não resulta a confissão dos factos em causa. O seu depoimento é prestado em torno de um contrato-promessa de partilha que não chegou a confluir na partilha definitiva. Ao invés, os interessados parecem ter prescindido do que haviam acordado e recorreram ao processo de inventário para realizar a partilha. Daí que não tenha sustentáculo jurídico – o que melhor se explanará em sede de fundamentação jurídica a evocação de uma promessa definitivamente incumprida.
O depoimento da parte B… decorreu, no que ao caso importa, do modo que passamos a transcrever. Instado pela Meritíssima Juíza sobre a outorga do contrato-promessa de partilha disse que, na pendência do casamento, compraram uma casa em ruínas, sita no concelho de …, com o objetivo de a reconstruir, mas não tinham pedido sequer o licenciamento, apenas tendo requerido a colocação de água. Sobre a utilização da casa após a separação, referiu que a casa não tinha quaisquer condições de habitabilidade, dizendo: «Só tinha umas paredes e mais nada. Nem teto tinha. Na altura, a D. C… pediu 6.000,00 euros a um amigo e pusemos uma placa na casa».
Perguntado se essa casa foi dada de arrendamento, respondeu: «Nunca. Era uma casa em ruínas; nunca poderia celebrar um contrato de arrendamento». Instado sobre o eventual arrendamento do logradouro, asseverou que nunca houve qualquer arrendamento. E se, no início de 2008, a casa tinha sofrido algumas obras, respondeu «Não».
Sobre o contrato-promessa de compra e venda dessa casa, afirmou: «Sim fiz um contrato- promessa com a Dra. E…. Depois, entretanto, a Dra. E… pediu à D. C… para assinar uns documentos e ela disse que só assinava quando tivesse metade do valor». Resposta que sugere que o incumprimento do contrato-promessa de partilha se ficou a dever a conduta da ré, que não cumpriu o que nele estava acordado.
Confrontado com umas fotografias com a casa já com placa, foi perguntado quando fez aquelas obras, ao que respondeu que fez as obras com ré, cerca de dois anos antes da separação. Sob a instância da ilustre advogada que patrocina a ré, perguntado sobre os consumos de água e eletricidade relativas à casa, no período após a separação, referiu: «Foi a Dr.ª E…»; em explicações laterais foi dito que a Dr.ª E… foi a compradora da casa. Instado «Quem pagava?» disse «Era a Dr.ª E…», acabando por esclarecer que autorizou a Dr.ª E… a usar a casa ainda antes da celebração do contrato-promessa.
Também a testemunha F…, irmão do autor, nada adiantou a propósito daqueles factos. Afirmou que reside a 1 Km. do prédio urbano partilhado e, sob a instância da ilustre advogada que patrocina o autor, perguntado acerca do empréstimo e sua finalidade, esclareceu que teve em vista a aquisição da casa de …, pensando que o valor da compra andou pelos 30.000,00 euros. Antes e depois da separação foi o irmão que pagou o empréstimo ao banco, bem como umas obras. Disse: «Aquilo era uma casa com silvas. Puseram umas placas, pelo menos». Referiu que foi ainda durante o casamento, mas a casa não ficou pronta a habitar, faltando telhado, tijoleira… Depois do divórcio clarificou que o irmão não fez quaisquer obras na casa, respondendo «Sim não fez mais nada». E instado sobre eventual arrendamento da casa, asseverou: «Não tinha hipótese de arrendar, porque não tinha condições. Quando vendeu a casa, a casa não tinha móveis, não tinha casa de banho, não tinha cozinha. Não tinha licença…»
Confrontado com as fotografias de fevereiro de 2012, referiu que a compradora, a Dr.ª E…, recuperou a casa, segundo lhe disse, despendendo 200.000,00 euros. Não soube precisar a data da venda da casa, mas afirmou que o irmão a vendeu depois do divórcio. Referiu que as fotografias exibem a casa já pronta pela Dr.ª E…, que «demorou um ano ou dois a fazer e um ano ou dois a tratar das burocracias da Câmara».
Perguntado sobre a circunstância de os requerimentos apresentados na Câmara Municipal de … evidenciarem que a Dra. E… formulava os pedidos em nome do autor, esclareceu: «Se eram obras, era em nome do meu irmão, mas já era a Dra. E… que ia fazê-las (…) A Senhora Dra. E…, quando comprou a casa, começou a fazer obras logo à conta dela. Agora não sei se era quando estava vendida porque as pessoas muitas vezes fazem negócios de boca ou contratos-promessa e, entretanto, já vão começando; agora esses pormenores eu não sei».
Este depoimento não confirma um eventual arrendamento do imóvel, antes denotando que o mesmo não tinha condições físicas bastantes. Dá conta que, em 2011, já a sua compradora se encontrava a avançar com as obras que realizou no imóvel, que finalizou e no que despendeu 200.000,00 euros.
A testemunha G…, que vive em união de facto com autor desde há cerca de 7 anos, limitou-se a explicar a inserção rural da casa e asseverou que a mesma nunca foi arrendada.
A testemunha H…, irmão da ré, disse conhecer a casa em questão e que chegou a lá ir. Viu que a casa era velha, estava em ruínas. Chegou a ver a casa com uma placa de piso, numa altura em que a sua irmã e cunhado ainda viviam juntos. Uns anos depois foi lá, a pedido da irmã, e viu que a casa estava restaurada – era uma casa de luxo. A irmã pediu-lhe para levar uma máquina fotográfica e para tirar fotografias, o que fez no início de 2012, em fevereiro, confirmando que as fotografias correspondem às que estão juntas aos autos e que exibem a casa já pronta.
A testemunha I…, irmã do autor, disse conhecer a casa de …, que estava em ruínas. Disse que o irmão pediu dinheiro, mas não sabe o valor nem o banco mutuante: «Quem pagava o empréstimo foi sempre o meu irmão que pagou. A D. C… dizia que não queria casa em …. O meu irmão sempre pagou, depois não conseguiu, vendeu». À pergunta se a casa este arrendada, disse: «Não podia arrendar, porque a casa estava em ruínas». E sobre o estado da casa quando se separaram «Acho que na altura tinha duas placas».
Depoimentos que não sustentam a pretensão da ré de ver demonstrado qualquer rendimento que a casa possa ter conferido ao autor. Mesmo o irmão da ré, H…, disse conhecer a casa e ter verificado que era velha e estava em ruínas, assim confirmando o depoimento das demais testemunhas e a ausência de condições de habitabilidade para a sua ocupação. As obras nela levadas a cabo pelo extinto casal reduziram-se à colocação de duas placas de piso e todas as demais obras de recuperação foram executadas pela compradora. Nem a circunstância de os requerimentos dirigidos à Câmara Municipal de … terem sido tratados e apresentados pela Dr.ª E…, compradora da casa, em nome do autor tem o significado da obtenção de qualquer rendimento por parte do autor. Os mesmos datam de 2011 e a casa foi-lhe atribuída em inventário, por acordo obtido na conferência de interessados realizada em outubro de 2011, pelo que se não vislumbra que o mesmo estivesse a fruir e a usar a casa em detrimento dos direitos do ex-cônjuge. Tudo a confirmar a convicção probatória do tribunal a quo e a consequente falta de prova dos factos em causa.

2. Fundamentação de facto
1. Autor e ré contraíram casamento em 14 de setembro de 2002, sob o regime de comunhão de adquiridos.
2. O casamento foi dissolvido por divórcio decretado por decisão da 1ª Conservatória do Registo Civil do Porto, proferida em 25 de Março de 2008.
3. No âmbito do processo principal a que os presentes autos se encontram apensos (proc. nº 299/10.4TMMTS), foi efetuada a partilha do património comum do casal, tendo sido decidido remeter as partes para os meios comuns quanto a “todas as verbas relacionadas e referentes a pagamentos efetuados por um dos ex-cônjuges relativamente a dívidas de responsabilidade comum, pagamentos esses efetuados após a data de 25 de Março de 2008 (…) porque não consubstanciam qualquer crédito sobre o património comum, mas sim créditos de um dos ex-cônjuges sobre o outro” (despacho proferido a fls. 178/179).
4. Em 9 de Fevereiro de 2005, autor e ré celebraram com o Banco J…, SA dois contratos de empréstimo bancário, nos termos do qual o Banco lhes emprestou € 30.000,00 e € 10.000,00, com a condição de estes restituírem os referidos montantes em prestações mensais, englobando capital e juros, tendo em vista a aquisição do bem imóvel descrito na relação de bens junta ao processo principal.
5. Após o decretamento do divórcio, o autor liquidou integralmente a quantia de € 8.661,61 a título de prestações mensais vencidas no âmbito do Empréstimo nº………......, do Banco J… (Prestação nº 38 a 95, referentes ao período de 09 de Abril de 2008 a 09 de janeiro 2013), conforme discriminação feita no art. 19.º da petição inicial cujo teor se dá por reproduzido.
6. Após o decretamento do divórcio, o autor liquidou integralmente a quantia de € 1.614,40 a título de prestações mensais vencidas no âmbito do empréstimo nº …….........., do Banco J… (Prestação nº 14 a 71) referentes ao período de 09 de Abril de 2008 a 09 de janeiro 2013), conforme discriminação feita no art. 19.º da petição inicial cujo teor se dá por reproduzido.
7. Após o decretamento do divórcio, o Autor liquidou integralmente a quantia de € 1.670,15 a título de Seguro de Vida e Multi-riscos referentes aos Empréstimos nº ………...... e nº ………...... do Banco J…, no período de Março de 2008 a Janeiro de 2013, conforme discriminação feita no art. 19.º da petição inicial cujo teor se dá por reproduzido.
8. Após o decretamento do divórcio, o Autor liquidou integralmente a quantia de € 264,02 a título de IMI referente ao bem imóvel descrito sob a verba única de bens imóveis da relação de bens junta a fls. 93 e ss do processo principal, conforme discriminação feita no art. 19.º da petição inicial cujo teor se dá por reproduzido.
9. Em 25 de janeiro de 2008, autor e ré celebraram o contrato promessa de partilha por divórcio junto a fls. 32 e ss dos autos principais, nos termos do qual prometem adjudicar ao promitente marido o imóvel descrito sob a verba nº 1 (prédio urbano referido em 7.º), declarando o rutor assumir o pagamento dos empréstimos referidos em 4.º e 5.º.
10. O contrato definitivo de partilha a que se refere o acordo descrito em 8.º não chegou a ser celebrado, tendo a ré intentado o processo especial de inventário referido em 3.º.
11. No dia 27 de outubro de 2011 teve lugar a conferência de interessados no âmbito do processo principal, no qual foi acordado:
«1º - Aprovam o passivo ao J… no montante actualmente em dívida, apresentado pelo credor aqui presente, que à data de hoje é no montante de 28.706,97 €;
2º - Aprovam ainda a verba n.º 2 do passivo, no montante relacionado de 4.464,00 €.
2º a) - O cabeça de casal assume integralmente o pagamento de tal dívida.
2º b) - Pelo credor aqui presente (Dr. D…), foi dito que desde já desonera da responsabilidade do aludido montante, a requerente C…».
12. Na conferência os interessados acordaram na composição dos quinhões da seguinte forma:
«Relativamente aos montantes constantes da relação adicional de bens, a fls. 157, acordam em que cada uma das verbas seja dividida em parte iguais, integrando a meação de cada um.
Mais acordam que a meação do cabeça de casal será ainda constituída pelos bens móveis relacionados a fls. 93, pelo valor indicado e ainda pelo imóvel igualmente relacionado a fls. 93, acordando ambos em que ao mesmo seja atribuído o valor de 21.010,00€»
13. O inventário foi instaurado em 09-06-2010 e a sentença homologatória da partilha transitou em julgado em 20-02-2013 (os factos 12 e 13 foram aditados por esta Relação com base nas cópias das peças processuais extraídas do processo de inventário).

3. Fundamentação de direito
3.1. Operação de partilha do património comum
Esta ação supõe a prestação de contas da administração de um bem do casal que foi constituído por autor e ré, cujo casamento foi dissolvido por decisão transitada em julgado em 25-03-2008. Divórcio que dissolve o casamento e tem juridicamente os mesmos efeitos da dissolução por morte, salvas as exceções consagradas na lei (artigo 1788º do Código Civil[1]).
Os efeitos produzem-se a partir do trânsito em julgado da respetiva decisão, mas retrotraem-se à data da proposição da ação quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges (artigo 1789º). Tendo cessado as suas relações patrimoniais, os cônjuges procederam à partilha dos bens comuns em processo de inventário, no âmbito do qual foi decidido remeter as partes para os meios comuns quanto a “todas as verbas relacionadas e referentes a pagamentos efetuados por um dos ex-cônjuges relativamente a dívidas de responsabilidade comum, pagamentos esses efetuados após a data de 25 de Março de 2008 (…) porque não consubstanciam qualquer crédito sobre o património comum, mas sim créditos de um dos ex-cônjuges sobre o outro” (despacho proferido a fls. 178/179 desses autos de inventário). É na concretização dessa decisão que o autor instaura este processo especial de prestação de contas para reaver da ré metade do valor por si despendido na amortização dos empréstimos bancários que o casal contraiu na pendência do casamento e que ele continuou a pagar integralmente após o decretamento do divórcio.
A prestação de contas prende-se com a obrigação do demandado ser sujeito de prestar contas a outrem. Por isso, na sequência da decisão proferida no inventário para partilha subsequente ao divórcio, o autor vem discriminar os valores pecuniários que despendeu na administração do único bem imóvel comum do casal, de cujo saldo pretende ser reembolsado em metade. De facto, sendo a dívida em causa da responsabilidade de ambos os cônjuges [artigo 1691º, 1, a)], tem o mesmo direito à restituição de metade, o que a ré não questiona. Limita-se a opor uma “receita”, cujo montante não concretiza, e que derivaria do uso exclusivo do imóvel pelo autor, designadamente do seu arrendamento, o que não logrou demonstrar. Estando em causa um facto modificativo do direito do demandante, competia à ré a sua prova (artigo 342º, 2). «O significado essencial do ónus da prova não está tanto em saber a quem incumbe fazer a prova do facto como em determinar o sentido em que deve o tribunal decidir no caso de se não fazer essa prova.»[2]. Desta feita, a prestação de contas não contemplará quaisquer receitas.
Não vem comprovada a data da separação de facto do casal ou cessação da coabitação dos cônjuges e, por isso, não é de observar, no caso dos autos, o estatuído no nº 2 do predito artigo 1789º. Como a decisão de divórcio transitou em julgado em 25-03-2008, os efeitos patrimoniais são reportados a essa data e a responsabilidade da ré pela dívida reclamada cessa com o trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha. Não obstante o acordo ter sido alcançado na conferência de interessados, que teve lugar em 27-10-2011, a verdade é que não foi feita qualquer prova de que ré ficasse, desde então, efetivamente privada do acesso ao imóvel ou que o autor dele tivesse fruído de modo excludente.
Demonstrado que esta dívida (os dois empréstimos outorgados junto do J…) foi contraída pelos dois cônjuges durante a vigência do casamento, é inequívoca a responsabilidade de autor e ré, comunicabilidade que ocorreria ainda que tivesse sido contraída antes do casamento (artigo 1691º, 1, a)]. É certo que os valores em causa se reportam a montantes pagos depois do divórcio, mas tendo esse valor sido pago exclusivamente pelo autor, com os seus bens próprios, o crédito correspondente era exigível no momento da partilha dos bens do casal. Daí que o autor tenha reclamado metade desse valor no inventário requerido pela ré na sequência do divórcio, a fim de ser atendido na partilha. Como os interessados foram remetidos para os meios comuns, foi-lhe permitido o direito de o fazer valer ulteriormente, o que faz nesta sede, pedindo o reembolso do seu crédito sobre a ré, derivado da administração do imóvel comum partilhado, cuja corresponsabilidade se mantém até à sua adjudicação ao autor, isto é, até ao trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha, em 20-02-2013.
Assim o prescreve o artigo 1730º, 1: «[Os cônjug]es participam por metade no activo e no passivo da comunhão, sendo nula qualquer estipulação em sentido diverso». Normativizado que tem especialmente em vista fixar a quota parte a que cada um deles terá direito no momento da dissolução e partilha do património comum, a significar que, relativamente aos bens integrados na comunhão, quaisquer que eles sejam no caso concreto, os cônjuges não poderão desviar-se da regra da metade[3]. Regra que o legislador previu para evitar que um dos cônjuges tente obter do outro um acordo injusto de uma partilha desigual, usando algum ascendente psicológico sobre o outro”[4].
Carece, pois, de fundamento a alusão da ré a já ter sido onerada com esta dívida, tal como clarifica o despacho de retificação da sentença proferido pela Senhora Juíza em 02-05-2016, ao referir que a contabilização, no mapa de partilha, da dívida ao J… apenas releva para o apuramento de tornas, mas autor e réu continuam solidariamente responsáveis pelo pagamento dos valores vencidos até ao trânsito em julgado da partilha e, tendo o autor suportado a parte que competia à ré, está legitimado a exigir-lhe o valor correspetivo.
Pormenorizando.
O casamento, porque não houve convenção antenupcial, considera-se celebrado segundo o regime da comunhão de adquiridos, no qual existem duas massas patrimoniais: a dos bens próprios de cada um dos cônjuges e a dos bens comuns (artigos 1717º, 1722º, 1723º e 1726º). O património comum constitui uma massa patrimonial autónoma, que pertence aos dois cônjuges, em bloco, sendo ambos titulares de um único direito sobre ela, o que significa, como antecipámos, que cada um dos cônjuges tem um direito à meação, um verdadeiro direito de quota, que exprime a medida de divisão e que virá a realizar-se no momento em que esta deva ter lugar [5].
Cessadas as relações patrimoniais entre os cônjuges com o divórcio, procede-se à partilha dos bens do casal e cada cônjuge receberá os bens próprios e a sua meação no património comum, previamente conferindo o que dever a esse património (artigo 1689º). A partilha constitui, pois, uma operação que visa a liquidação do património comum, apurando-se o valor do ativo comum líquido, através do cálculo das compensações e da contabilização das dívidas a terceiros e entre os cônjuges[6].
No caso, a partilha incidiu apenas sobre bens comuns e, na fase da liquidação da comunhão, cada um dos cônjuges deveria conferir ao património comum tudo o que devia ao outro, por forma a que o cônjuge devedor compensasse o património comum pelo enriquecimento obtido no seu património próprio à custa do património comum. Feita essa compensação à comunhão, o seu pagamento seria imputado ao valor da meação do cônjuge devedor, que assim receberia a menos o valor correspondente ao seu débito. Essa é a situação delineada nestes autos com a satisfação do crédito do autor, que só não ocorreu no inventário porque a ré impugnou a existência desse crédito e os interessados foram remetidos para os meios comuns. Na verdade, os créditos de um dos cônjuges sobre o outro são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum e, se não existirem bens comuns ou estes forem insuficientes, respondem os bens próprios do cônjuge devedor (artigo 1689º, 3). Destarte, feita a liquidação do património comum, considerando o valor da dívida da responsabilidade de ambos os cônjuges ao J…, que foi deduzida no valor do ativo da meação, para efeitos de aferir o valor líquido a partilhar, foram os dois paritariamente responsabilizados pela dívida comum. Resta a satisfação do crédito do autor sobre a ré, ulterior à cessação das suas relações patrimoniais, relativo aos encargos suportados com a administração do bem comum do dissolvido casal, porque a comunhão de bens mantém-se até à partilha. Efetivamente, «[A]té à partilha o património comum apresenta-se como um património separado colectivo que pertence aos dois cônjuges, mas em bloco, sendo os dois titulares de um único direito sobre ele»[7].
Destarte, cabendo também à ré tais encargos, nos termos sobreditos, e como os mesmos foram pagos através dos bens próprios do autor, tem o mesmo direito a reaver metade das correlativas quantias.

3.2. Efeitos do contrato-promessa de partilha
Em sede recursiva, a ré discorre sobre o contrato-promessa de partilha que os cônjuges haviam celebrado e as suas consequências nos efeitos patrimoniais do divórcio, não obstante o mesmo não ter sido cumprido, ou seja, não foi outorgado o contrato definitivo e as partes acabaram por partilhar os bens comuns através do processo de inventário. Donde a irrelevância do acordado nessa sede, ao invés do pugnado pela recorrente. O acordo então alcançado sobre a partilha dos bens comuns do casal não os poderia limitar no domínio da partilha posterior, mormente realizada mediante inventário. Apesar de estar em causa um contrato-promessa cuja validade sempre poderia ser discutida, ele não correspondeu a um negócio jurídico abdicativo ou renunciativo da subsequente partilha judicial nem transportou para ela o que nele foi clausulado. Desse modo, a circunstância de os interessados terem, então, acordado que o autor ficaria responsável pelo pagamento do débito ao J… não traz para o inventário quaisquer consequências e não arrasta qualquer iniquidade para a partilha alcançada no inventário. No contrato-promessa acordaram também as partes que o imóvel seria adjudicado ao autor e que este assumiria o embolso dos mútuos do J…. Porém, não tendo sido celebrado o contrato definitivo, não pode a ré transpor os seus efeitos para a partilha judicial que veio a operar. Só a escritura prometida realizar poderia pôr termo definitivo à comunhão dos bens do casal e produzir os efeitos estabelecidos na respetiva promessa[8].
Em boa verdade, um contrato-promessa é um contrato preliminar que vincula as partes a uma prestação de um facto a celebração do contrato definitivo , ou seja, a obrigação de emitir, no futuro, as declarações de vontade integrantes do contrato definitivo prometido. Isso mesmo resulta do configurado no artigo 410°, que o define como uma convenção por força da qual alguém se obriga a celebrar certo e determinado contrato que lhe é posterior. Por conseguinte, a prestação devida pela outorga do contrato-promessa de partilha consiste somente na emissão da posterior correspondente declaração negocial[9]. Não tendo sido celebrada a partilha extrajudicial correspondente, é agora ininvocável em sede de partilha judicial.
Do expendido resulta, tal como declarado pela sentença recorrida, após retificação, que o reembolso a cargo da ré se cifra em 6.105,09 euros, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal, calculados sobre metade de cada uma das prestações vencidas e liquidadas pelo autor até integral pagamento.

Decaindo no recurso, são as respetivas custas suportadas pela ré, embora sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia (artigo 527º, 1, do NCPC).

IV. Dispositivo
Face ao descrito, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação interposta pela ré C…, assim confirmando a sentença recorrida.
Custas do recurso a cargo da recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
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Porto, 11 de Outubro de 2016.
Maria Cecília Agante
José Carvalho
Rodrigues Pires
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[1] Diploma a que pertencerão todas as normas que indicarmos sem menção de proveniência. Norma que a lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro, não modificou.
[2] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil”, Anotado, Volume I, 4.ª ed. revista e atualizada, pág. 306.
[3] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil”, Anotado, Volume IV, 2.ª ed. revista e atualizada, págs. 436 e 437.
[4] Guilherme Oliveira, in RLJ, ano 129.º, pág. 286; in www.dgsi.pt: Ac. do STJ de 15-12-2011, processo 2049/06.0TBVCT.G1.S1.
[5] Pereira Coelho, “Curso de Direito da Família”, pág. 397; in www.dgsi.pt: Ac. da RC de 08-11-2001, processo 4931/10.1TBLRA.C1.
[6] Tomé d'Almeida Ramião, “O Divórcio e Questões Conexas - Regime Jurídico Actual”, 3.ª edição, 2011, Quid Juris, pág. 124.
[7] Cristina Manuela Araújo Dias, “Alteração do Estatuto Patrimonial dos Cônjuges e a Responsabilidade por Dívidas”, 2014, pág. 122.
[8] In www.dsgi.pt; Acs. do STJ de 20-01-2000, processo 99B978; RG de 14-02-2013, processo 3818/10.2TBGMR-A.G1.
[9] Calvão Silva, João, “Sinal e Contrato-Promessa”, 2010, 13.ª edição, pág. 19; Antunes Varela, “Das Obrigações em geral”, 9a ed., vol. I, pág. 317; Abel Pereira Delgado, “Do Contrato Promessa”, 1978, págs. 29 e 30; in www.dgsi.pt: Ac. do STJ de 05-03-2013, processo 839/11.1TBVNG.P1.S1.