Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0842772
Nº Convencional: JTRP00041498
Relator: JOSÉ PIEDADE
Descritores: MAUS TRATOS A MENORES
Nº do Documento: RP200807020842772
Data do Acordão: 07/02/2008
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 323 - FLS. 284.
Área Temática: .
Sumário: O crime de maus tratos do art. 152º, nº 1, alínea a), do Código Penal, na versão anterior à resultante da Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, pressupõe uma repetição frequente de condutas.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. Nº 2772/08.4
…..º Juízo do T.J. de Vila Nova de Gaia, Proc. nº ……./07.3PAVNG

Acordam, em Conferência, os Juízes desta 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:


No ….º Juízo do T.J. de Vila Nova de Gaia, processo supra referenciado, foi julgado B………………., acusado da prática, em autoria material, de um crime de maus-tratos a menor dependente, previsto e punido pelo artigo 152º nº 1, alínea a) do Código Penal de 95, e actualmente, p. e p., pelo artigo 152º-A, alínea a) do novo Código Penal, tendo sido proferida Sentença com o seguinte dispositivo:
- absolver o arguido B…………….. da prática, em autoria material, de um crime de maus tratos a menor dependente, previsto e punido pelo artigo 152º nº 1, alínea a) do Código Penal de 95, e actualmente, p. e p., pelo artigo 152º-A, alínea a) do CP na redacção introduzida pela Lei nº 59/2007, de 04/09.
- condenar o arguido B………………… pela prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º, nº 1 do CP, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros), perfazendo a quantia total de €900,00 (novecentos euros).
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Desta Sentença recorreu o MºPº, formulando as seguintes conclusões:
1- Nos presentes autos foi o arguido condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143º, nº 1 do CP e o absolveu pela prática do crime de maus-tratos, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, al. a) do Código Penal de 95, actualmente punido pelo artigo 152-A, al. a) do CP na redacção introduzida pela Lei nº 59/2007 de 4/09, após se ter efectuado a alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, considerando que os mesmos integram, apenas e somente, aquele crime de ofensa à integridade física simples.
2 - Afigura-se-nos, porém, que sempre teria o arguido de ser condenado pela prática do crime de maus-tratos por que vinha acusado ou, em última instância, caso se considerasse que esse tipo de ilícito pressupunha, à luz do artigo 152º do CP antes da entrada em vigor da Lei nº 59/2007 de 4/09, a reiteração das agressões, pelo crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelo artigo 146º, nº 1 e nº 2 do C.P., por referência à al. a) do número 2 do artigo 132º do mesmo diploma legal.
3 - Conforme resulta da motivação da decisão sobre a matéria de facto, o arguido confessou os factos, apenas negando aqueles que se deram como não provados sob o número 2, ou seja, o episódio que se alegava na acusação como tendo ocorrido quando a menor tinha três anos de idade.
4 - A MMa. Juiz a quo, na motivação da decisão sobre a matéria de facto dada como não provada, concluiu assim: “Conclui-se que relativamente à matéria de facto não provada, tal ficou a dever-se à circunstância de nenhuma prova se ter produzido acerca da mesma. Com efeito, a menor Inês remeteu-se ao silêncio, o arguido negou a sua prática e as demais testemunhas familiares referiram que tal episódio nunca ocorreu.”.
5-Quanto aos demais factos descritos na acusação, tendo o arguido os confessado na integra, não se percebe como a MMa. Juiz a quo os dá como não provados, sendo que, para além disso estar claramente em contradição com a fundamentação da decisão da matéria de facto no que se refere aos factos provados, além do mais, não consta dessa mesma fundamentação, qualquer menção aos fundamentos que a levaram a concluir pela não prova dos mesmos.
6- A douta Sentença ao não fundamentar os factos que considerou não provados sob os números 1 e 3 e que estão em completa contradição com a fundamentação da decisão de facto quanto aos factos provados, concretamente, no que se refere à confissão do arguido, padece da nulidade a que se refere o art. 379º, al. a), com referência ao art. 374º, nº 2, ambos do CPP, o que determina a nulidade da Sentença.
7 - Trata-se de uma nulidade não insanável, que importa colmatar com a anulação parcial da respectiva Sentença e determinação de o Tribunal recorrido proceder em conformidade;
8 - As nulidades da Sentença são nulidades dependentes de arguição, que podem ser arguidas na motivação dos recursos, e portanto dentro do prazo da motivação.
9 – Pelo exposto, por falta de fundamentação da Sentença, deverá a mesma ser declarada nula, por violação do disposto nos artigos 379º, 1, a) e 374º, nºs. 2 e 3, al. b), ambos do CPP.
10 – É contraditório afirmar-se que “do arguido, o qual, em síntese, admitiu que a generalidade dos factos descritos na acusação são verdadeiros, com excepção do facto que lhe imputa uma agressão à filha C…………. quando esta tinha três anos de idade” – o que significa, necessariamente, que assumiu os factos que lhe eram imputados (tal como lhe eram imputados), à excepção daquele episódio concreto – e, depois, contraditoriamente, se considera como não provados os restantes factos que lhe eram imputados.
11 - De facto, muito embora não tenha havido uma confissão integral e sem reservas dos factos, face à confissão do arguido nos termos supra expostos e que são aqueles que constam da fundamentação da Sentença ora em crise, resulta que a fundamentação da convicção do Tribunal está em contradição com a matéria de facto dada como provada e não provada.
12 - Analisada a decisão recorrida, do texto da mesma resulta, assim, por um lado, uma incompatibilidade entre a fundamentação da convicção do Tribunal e os factos não provados acima descritos sob os números 1 e 3 – com aquela fundamentação não podiam aqueles factos ser dados como não provados, sendo que dando-se os mesmos como não provados a fundamentação teria que ser necessariamente outra.
13 - Por ter o arguido confessado, na íntegra, os factos ocorridos no dia 16 de Abril de 2007, não podia a MMa. Juiz a quo dar como não provado que “a bofetada desferida pelo arguido à filha C………… foi forte” e que “o arguido sabia que ao bater na C……………. da forma em que o fez lhe causava sofrimento físico agudo e actuou querendo assim proceder” por tais factos se encontrarem em contradição com aquela confissão, plasmada na fundamentação da decisão de facto.
14 - Por outro lado, dela resulta também uma incompatibilidade entre os factos (provados) acima descritos sob os números 3, 7 e 8 e o facto não provado sob o número 3.
15 – Não podia, assim, o Tribunal a quo, sob pena de contradição, dar como não provado que “o arguido sabia que ao bater na C…………. da forma em que o fez lhe causava sofrimento físico agudo e actuou querendo assim proceder, pois entre aqueles e este verifica-se uma incompatibilidade lógica, eles são logicamente inconciliáveis, pelo que os mesmos não podem ter ocorrido como da Sentença consta.
16 - Encontramo-nos, assim, perante o vício a que alude o art. 410º nº 2 al. b) do CPP.
17 – Quanto ao crime de maus-tratos consideramos, pois, que o artigo 152º do Código Penal (na anterior redacção à introduzida pela Lei nº 59/2007 de 4/09 por ser mais favorável ao arguido) abarca qualquer conduta, de quem tenha a seu cargo pessoa menor, que pela sua gravidade ponha em causa a dignidade humana do menor ofendido e que por via dela fique ostensivamente desprotegido na sua individualidade própria de pessoa humana, ou dito de outra forma, as ofensas, ainda que praticadas por uma só vez, mas que revistam uma certa gravidade, ou seja que traduzam crueldade, insensibilidade ou até vingança desnecessária por parte do agente, cabem na previsão daquele artigo.
18 - Face à factualidade apurada em sede de audiência de julgamento e aos elementos médicos e periciais juntos aos autos, afigura-se-nos estar comprovada a gravidade e crueldade da agressão perpetrada pelo arguido na sua filha menor de apenas 11 anos de idade, atendendo, nomeadamente, a que o arguido, munido de um cinto de pele, agrediu violentamente a menor, desferindo-lhe várias pancadas no corpo, fazendo com que esta ficasse com várias marcas por todo o corpo, agressão essa motivada por esta lhe ter retirado € 20 da carteira para comprar doces…
19 – Deveria, assim, o arguido ser condenado pelo crime pelo qual vinha acusado.
20- De todo modo, caso assim não se entendesse, sempre seria de imputar ao arguido o crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelo artigo 146º, n.º 1 e 2, por referência à al. a), nº 2 do artigo 132º, ambos do Código penal (na anterior redacção à introduzida pela Lei nº 59/2007 de 4/09 por ser mais favorável ao arguido).
21 - Como facilmente resulta da prova produzida, a agressão perpetrada pelo arguido na pessoa da menor C………….., sua filha, assumiu uma gravidade tal, não só atendendo à tenra idade da mesma, como também, atendendo ao motivo que despoletou a referida agressão – o facto da menor ter retirado da carteira do seu pai € 20 para comprar doces – e ainda face às lesões verificadas no corpo da menor.
22 - Como resulta da motivação de facto, depois de ser agredida a menor saiu de casa e ainda tentou recuperar o dinheiro no quiosque onde havia adquirido as guloseimas, o que não conseguiu em virtude deste quiosque se encontrar fechado e, de seguida, foi bater à porta de um vizinho, a chorar e cheia de medo por não querer voltar para casa. Todas as pessoas inquiridas viram as marcas que a menor tinha por todo o corpo e que foram provocadas, como o próprio arguido admitiu, por várias pancadas com um cinto de calfe.
23 - Considerando a relação de parentesco entre o arguido e a ofendida – relação pai/filha –, o dever de protecção que incide sobre o arguido relativamente à menor, a manifesta desproporção de estatura e força física de ambos, a violência utilizada e o motivo que a determinou, não temos qualquer dúvida em afirmar que o arguido agiu de forma particularmente repugnante e censurável.
24 - Assim, a decisão recorrida deveria - ao alterar a qualificação jurídica dos factos -, qualificá-los como crime de ofensa à integridade física qualificada, o que não fez, nem tão-pouco ponderou, mas nunca como ofensa à integridade física simples.
Termina pedindo que deve Sentença recorrida ser declarada nula ou, caso assim não se entenda, deve ser revogada e substituída por outra que condene o arguido pela prática do crime de maus-tratos de que vinha acusado ou, pelo menos, pelo crime de ofensa à integridade física qualificada.
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A este recurso respondeu o arguido condenado B…………….., pugnando no sentido de ser mantida a decisão recorrida.
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Nesta Relação, o Sr. Procurador-Geral Adjunto limitou-se a apor o seu Visto.
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Com interesse para a decisão a proferir, é o seguinte o teor da Sentença recorrida.
Factos provados:
“1 - O arguido B…………….. é pai da C…………., nascida em 22 de Março de 1996, vivendo os dois, juntamente com a mãe da menor e mulher daquele e uma outra irmã, na Rua …….., nº ……, rés-do-chão, direito, em ………., nesta cidade de Gaia.
2 - No dia 16 de Abril de 2007, por volta das 19.30 horas, no interior da residência conjugal e depois de se ter apercebido de que a C………….. lhe havia subtraído 20 euros da carteira e que os gastara na compra de guloseimas, o B………….. bateu na filha.
3 - Primeiramente, deu-lhe uma bofetada no rosto e depois, com o cinto das calças em calfe, desferiu-lhes várias pancadas pelo corpo.
4 - Como consequência directa e necessária das agressões, sofreu a menor C…………. eritema e ligeiro edema da hemiface esquerda sob a região malar, lesão eritematosa e equimótica na face anterior do tórax direito na região supra mamária, equimose extensa com rebordos salientes no braço esquerdo, no dorso e região sob a crista ilíaca, lesões várias equimóticas até à região nadegueira, com predomínio na coxa anterior e em menor número na face anterior do terço superior e lateral da coxa direita e dor no polegar direito, que demandaram 8 dias de doença, sem afectação da capacidade para o trabalho.
5 - Pelo menos por uma vez a C…………….tirou dinheiro da carteira do pai e por outra à avó.
6 - O agregado familiar tem limitações económicas.
7 - O arguido actuou com a intenção alcançada de molestar fisicamente a sua filha C………….. e lhe provocar ferimentos do tipo dos verificados, bem sabendo que a sua conduta era adequada a tal resultado.
8 - O arguido agiu livre, consciente e voluntariamente bem sabendo que a sua conduta era punida por lei.
9 – O arguido é profissional de estores, auferindo com tal actividade mensalmente €800,00.
10 – O arguido vive com a esposa e 2 filhas de 11 e 8 anos de idade em casa adquirida com crédito bancário, suportando uma prestação mensal de €600,00.
11 – A esposa do arguido encontra-se desempregada e não aufere qualquer rendimento.
12 – O arguido possui o 9º ano de escolaridade.
13 – O arguido confessou os factos que o Tribunal considerou provados.
14 – O arguido mostra-se arrependido.
15 - Do certificado de registo criminal do arguido nada consta.”
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Factos não provados:
“1 – Que a bofetada desferida pelo arguido à filha C…………… foi forte.
2 – Que esta já não era a primeira vez que o arguido havia batido na filha de maneira tão violenta, pois que, quando a menor tinha ainda três anos de idade e por ter feito birra, o arguido bateu-lhe com uma trela de cão, tendo também nessa altura lhe causado ferimentos visíveis no corpo.
3 – Que o arguido sabia que ao bater na Inês da forma em que o fez lhe causava sofrimento físico agudo e actuou querendo assim proceder.”
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Motivação da convicção do Tribunal:
“A decisão da matéria de facto tem por base a análise crítico-reflexiva do conjunto dos meios de prova produzidos em sede de Audiência de Julgamento, tendo tido em consideração, face ao silêncio da ofendida menor:
As declarações do arguido, o qual, em síntese, admitiu que a generalidade dos factos descritos na acusação são verdadeiros, com excepção do facto que lhe imputa uma agressão à filha C…………. quando esta tinha três anos de idade. Justificou o seu comportamento por a filha lhe ter retirado €20,00 da carteira, sem o seu conhecimento e não ter admitido tal, algo que já tinha ocorrido mais vezes e que o deixou perturbado. Referiu que está arrependido e que não devia ter agredido a C…………. da forma como o fez. Declarou que à data dos factos a sua filha C…………… tinha 11 anos de idade.
Mais esclareceu o Tribunal sobre a sua situação pessoal, nomeadamente, económica.
Os depoimentos das testemunhas de acusação D……………, E…………… e F……………….
A testemunha D……………., esposa do arguido e mãe da ofendida, declarou, em síntese, que não estava presente quando ocorreram as agressões ocorridas no ano passado. Quando chegou a casa a filha C…………… não estava em casa e encontrou o arguido/pai transtornado. A C…………. tinha ido levar os doces ao quiosque onde os havia comprado. O arguido contou-lhe o que se passou. Foi ao encontro da filha e não a encontrou, estando o quiosque encerrado. Nessa altura, apareceu o carro da patrulha (PSP) que transportava a C……………. Esta não estava a chorar e estava com medo. Viu as marcas do cinto nas costas e nas pernas da C……………. Acompanhou a filha ao hospital, tendo ficado internada mas não por razões de saúde. Foi a primeira vez que o arguido bateu à C…………. A situação descrita na acusação que imputa ao arguido uma agressão quando a filha C………… tinha três anos de idade não aconteceu. O que despoletou a situação foi o facto de a C……….. ter retirado dinheiro ao pai, o que já aconteceu mais vezes. A filha refugiou-se em casa do vizinho G…………….. A sua mãe (avó da C…………..) já se queixou que a C………… já lhe tirou dinheiro da carteira dela. Depois do que se passou a relação entre pai e filha melhorou muito. A C…………….. é uma criança com problemas que está a ter acompanhamento adequado. Nos últimos tempos a C………… não tem retirado dinheiro a ninguém.
A testemunha E……………, agente da PSP declarou, em síntese, o seguinte: Foi chamado à ………….. e aí apresentou-se-lhe o Sr. G…………… e a menor C…………. O Sr. G…………. relatou-lhe que a menor tinha ido para casa dele. Esta estava calma, não estava a chorar, mas estava com medo de voltar para casa, apresentando hematomas no corpo e marcas de mão e de um cinto. Entretanto, encontraram a mãe da menor e dirigiram-se ao hospital.
A testemunha F……………, vizinha do arguido, filha do aludido G……………., declarou, em síntese, que não assistiu a qualquer agressão. Viu a C………… chorar e a dizer que o pai lhe tinha batido e negava-se a ir para casa. Mostrou-lhe marcas no braço, no fundo das costas e disse-lhe que o pai lhe tinha batido com um cinto. O seu pai (G…………..) ligou à polícia.
O depoimento da testemunha de defesa H………….., sogra do arguido e avó da menor, a qual, em síntese, além do mais, referiu que os factos descritos na acusação respeitante à alegada agressão que aconteceu quando a menor C……….. tinha três anos não passa de uma história e que nunca aconteceu.
O teor do exame pericial de fls. 88, 89 e 90.
O teor dos documentos juntos aos autos, designadamente, os de fls. 50, 53 a 68 e o certificado de registo criminal do arguido junto a fls. 108.
Sobre a situação sócio económica do arguido, atendeu-se às suas declarações que se apresentaram sinceras.
Conclui-se que relativamente à matéria de facto não provada, tal ficou a dever-se à circunstância de nenhuma prova se ter produzido acerca da mesma. Com efeito, a menor C………. remeteu-se ao silêncio, o arguido negou a sua prática e as demais testemunhas familiares referiram que tal episódio nunca ocorreu.”
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Enquadramento Jurídico-Penal:
“Analisemos, agora, a matéria de facto apurada, por forma a avaliarmos se a mesma é susceptível de integrar a prática pelo arguido de um crime de maus tratos a menor dependente, previsto e punido pelo artigo 152º nº 1, alínea a) do Código Penal de 95, e actualmente, p. e p., pelo artigo 152º-A, alínea a) do novo Código Penal.
Dispõe o artigo 152º, nº 1, al. a) do Código Penal na redacção em vigor à data dos factos, anterior à Lei nº 59/2007, de 04/09: "Quem tendo ao seu cuidado à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direcção ou educação, ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez, e: (...) lhe infligir maus-tratos físicos ou psíquicos ou a tratar cruelmente, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos, se o facto não for punível pelo artigo 144º".
Com a nova redacção introduzida pela Lei nº 59/2007, de 04/09, a situação em apreço mostra-se plasmada no artigo 152º A, al. a), que dispõe o seguinte:
“1- Quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direcção ou educação ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez, e:
a) Lhe infligir de modo reiterado ou não, maus-tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, ou a tratar cruelmente;
(...);
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”.
No que respeita ao bem jurídico, sistematicamente, este tipo de ilícito está inserido no Título “crimes contra as pessoas”, no capítulo “crimes contra a integridade física”. Em causa está a protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana (o âmbito de protecção desta norma abrange os comportamentos que, de modo reiterado, lesam a dignidade do ser humano).
Este âmbito de protecção vai além dos maus-tratos físicos, compreendendo, também, os maus-tratos psicológicos (v.g., humilhações, provocações, ameaças, curtas privações de liberdade de movimentos, etc.) – cfr. Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, PE, Tomo I, Artigos 131º a 201º, dirigido por Figueiredo Dias, Coimbra Editora – 1999, p. 332 e seguintes.
O bem jurídico protegido é, pois, a saúde (a saúde física, psíquica e mental).
O crime de maus-tratos pressupõe um agente que se encontre em determinada relação para com o sujeito passivo desses comportamentos. Este crime é, portanto, um crime específico. É um crime próprio ou impróprio consoante a natureza das condutas em si mesmas consideradas já constituam ou não crime.
No que diz respeito ao sujeito passivo, este só pode ser a pessoa que se encontre em relação para com o agente de coabitação conjugal ou análoga.
As condutas previstas neste tipo de ilícito revestem várias espécies, os maus-tratos físicos, os maus-tratos psíquicos, o tratamento cruel, a utilização do subordinado em actividades perigosas desumanas ou proibidas.
Actualmente, contrariamente, ao que resultava do citado artigo 152º, em vigor à data dos factos, este tipo de crime não pressupõe a reiteração das condutas em causa, já que prevê expressamente a conduta não reiterada, mostrando-se, por isso, o regime em vigor à data dos factos mais favorável ao arguido, sendo este o aplicável.
No que diz respeito ao elemento subjectivo do tipo, este é um crime fundamentalmente doloso em uma qualquer das suas formas, directo, necessário e eventual.
Da factualidade provada da audiência de julgamento, resulta, além do mais, o seguinte:
O arguido é pai da C…………., nascida em 22 de Março de 1996, vivendo os dois, juntamente com a mãe da menor e mulher daquele e uma outra irmã, na Rua ………, nº …….., rés-do-chão, direito, em …………., nesta cidade de Gaia.
No dia 16 de Abril de 2007, por volta das 19.30 horas, no interior da residência conjugal e depois de se ter apercebido de que a C…………. lhe havia subtraído 20 euros da carteira e que os gastara na compra de guloseimas, o B………….. bateu na filha.
Primeiramente, o arguido deu-lhe uma bofetada no rosto e depois, com o cinto das calças em calfe, desferiu-lhes várias pancadas pelo corpo.
Como consequência directa e necessária das agressões, sofreu a menor C………… eritema e ligeiro edema da hemiface esquerda sob a região malar, lesão eritematosa e equimótica na face anterior do tórax direito na região supra mamária, equimose extensa com rebordos salientes no braço esquerdo, no dorso e região sob a crista ilíaca, lesões várias equimóticas até à região nadegueira, com predomínio na coxa anterior e em menor número na face anterior do terço superior e lateral da coxa direita e dor no polegar direito, que demandaram 8 dias de doença, sem afectação da capacidade para o trabalho.
O arguido actuou com a intenção alcançada de molestar fisicamente a sua filha Inês e lhe provocar ferimentos do tipo dos verificados, bem sabendo que a sua conduta era adequada a tal resultado.
O arguido agiu livre, consciente e voluntariamente bem sabendo que a sua conduta era punida por lei.
Por outro lado, não ficou demonstrado o seguinte: que a bofetada desferida pelo arguido à filha C…………. foi forte; que esta já não era a primeira vez que o arguido havia batido na filha de maneira tão violenta, pois que, quando a menor tinha ainda três anos de idade e por ter feito birra, o arguido bateu-lhe com uma trela de cão, tendo também nessa altura lhe causado ferimentos visíveis no corpo; e que o arguido sabia que ao bater na Inês da forma em que o fez lhe causava sofrimento físico agudo e actuou querendo assim proceder.
Da análise da matéria de facto dada como provada, conclui-se que a conduta do arguido não preenche a tipicidade exigida no preceito legal em análise.
Com efeito, de tal factualidade dada como assente não resulta que o arguido violou, reiteradamente a integridade física da ofendida, sua filha, nem que a agressão perpetrada assuma a gravidade suficiente para ser enquadrada no tipo legal de maus tratos, impondo-se, assim, quanto a este ilícito a absolvição do arguido.
Importa, agora, ponderar se a conduta do arguido preenche a tipicidade de qualquer outro crime, designadamente, o crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo artigo 143º, nº 1 do Código Penal.
Nos termos do disposto no artigo 143º, nº 1 do Código Penal "quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.
Da análise desta norma resulta que o tipo incriminador configura um crime material ou de resultado e de dano, o qual é constituído por elementos de natureza objectiva e subjectiva.
Ao nível do tipo objectivo, torna-se necessária a verificação de uma agressão no corpo ou na saúde de outrem, ainda que a mesma não se materialize numa concreta lesão anatómica ou fisiológica, somática ou psíquica. Sobrevindo, porém, qualquer resultado dessa agressão, necessário se torna que o mesmo esteja numa relação de causalidade adequada com aquela, devendo apresentar-se como uma consequência normal ou, pelo menos, não de verificação rara ou anómala.
Ao nível do tipo subjectivo, este ilícito apresenta-se como um crime doloso, na medida em que pressupõe uma conduta intencional dirigida à lesão do corpo ou da saúde de outrem.
Da factualidade dada como provada, resulta estarem preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo-de-ilícito ora em apreço, incorrendo, o arguido na prática, em autoria material, e na forma consumada de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º do Código Penal.
Atendendo a que resulta da factualidade provada que o arguido bateu na filha depois de se ter apercebido de que esta lhe havia subtraído 20 euros da carteira e que os gastara na compra de guloseimas, importa tecer algumas considerações sobre se o arguido terá agido ao abrigo do chamado “direito de correcção”, por forma a podermos ou não concluir pela existência ou não de uma causa de justificação da sua actuação nos termos do artigo 31º, nºs 1 e 2 do Código Penal:
Nos termos do disposto no artigo 31º, nºs 1 e 2, al. b), o facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade, nomeadamente, no exercício de um direito.
Cabe no âmbito da citada norma, nomeadamente, o designado “direito de correcção”.
A este propósito, tal como se salienta in “Comentário Conimbricense ao Código Penal – parte Especial”, Tomo I, pág. 214 e segs., assume-se como discutível a natureza do direito ao castigo dos pais e educadores quando se traduza, em concreto, em lesões da integridade física do educando, como é o caso. Tratando-se de direito de correcção, assumem-se como controvertidos não só a sua admissibilidade como os seus limites. Tem-se entendido que a ofensa da integridade física será justificada quando se mostre adequada a atingir um determinado fim educativo e seja aplicada pelo encarregado de educação com essa intenção. Colocam-se a este nível dúvidas sobre a proporcionalidade pedagógica dos castigos físicos e da sua compatibilidade com a dignidade humana do ser humano em desenvolvimento. Faz-se normalmente uma distinção dentro do direito de castigo consoante este seja exercido sobre crianças próprias ou de outrem. Os pais estarão em princípio legitimados ao castigo por força do poder paternal. Dado que o direito de correcção resulta da relação familiar entre pais e filhos, a transferência desse direito apenas poderá ocorrer relativamente a pessoas próximas da criança ou que gozem da confiança pessoal dos encarregados de educação. Considera-se, ainda, que o direito ao castigo nunca será exercido na presença dos verdadeiros encarregados de educação, uma vez que o direito destes últimos prevalece.
Embora se tenha que ter em consideração o comportamento da menor, as circunstâncias em concreto em que os factos ocorreram, o meio utilizado (cinto), bem como, os factos que estiveram na base das agressões (furto de €20,00, embora, não fosse caso único) o que consideramos ter pouco significado para o tipo de castigo infligido, impede-nos de formar tal conclusão. Com efeito, o arguido podia e devia face ao comportamento da ofendida menor, já característico nela, tendo em consideração a sua personalidade, ter agido de uma outra maneira, mediante a imposição de um outro castigo que não pusesse em causa a integridade física da menor. Isto leva-nos a concluir que a actuação do arguido já não se insere no âmbito do poder-dever ou direito de correcção, por não ser adequada a atingir um fim educativo, sendo a conduta do arguido intencionalmente dirigida à lesão do corpo ou da saúde da ofendida.
Concluímos, assim, que se mostram preenchidos quer os elementos objectivos, quer os elementos subjectivos do crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º, nº 1 do Código Penal e que inexistem quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, nomeadamente, a prevista no artigo 31º, nºs 1, 2, al. b) do Código Penal.”
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Colhidos os Vistos, efectuada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.
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Das conclusões, delimitadoras do respectivo objecto, extrai-se que o MºPº pretende suscitar as seguintes questões, em síntese:
– nulidade da Sentença por falta de fundamentação dos «factos que considerou não provados»;
– contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, vício previsto no art. 410º, nº 2, al. b) do CPP;
- prática do crime de maus-tratos, p. e p. pelo art. 152º do CP, na redacção vigente à data dos factos ou, caso assim se não entenda, do crime de ofensas à integridade física qualificada, p. e p. pelo art. 146º, nºs 1 e 2, com referência à al. a) do nº 2, do art. 132º do CP.
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O agente do MºPº recorrente impugna a Sentença na sua forma e na sua substância.
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Quanto à forma, atribui-lhe a nulidade prevista no art. 379º, al. a), com referência ao art. 374º, nº 2, do CPP, por falta de fundamentação dos «factos que considerou não provados».
Segundo o recorrente, faltaria na Sentença «qualquer menção aos fundamentos que levaram o Julgador a concluir pela não prova dos mesmos».
É evidente a sua falta de razão.
Da análise da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, verifica-se que o Julgador explicitou, de forma cabal, a sua convicção positiva, referenciando os meios de prova que analisou, comparou e conjugou para a formular; no que respeita aos meios de prova oral, essa explicitação foi efectuada através da indicação da sua razão de ciência e da razão por que lhe foi atribuída credibilidade; quanto à prova pericial e documental, essa explicitação foi concretizada através da referenciação do tipo do documento, e onde o mesmo se encontra nos autos.
Também em relação aos factos considerados não provados, é fornecida uma curta, clara e lógica justificação para a formulação dessa convicção negativa do Tribunal: “nenhuma prova foi produzida acerca da mesma”.
A formulada explicitação da convicção do Tribunal, permite uma apreensão fácil e consistente do cariz da prova produzida e da convicção que o Tribunal formou, acerca da mesma, quer no seu conjunto, quer no que toca a cada um dos específicos meios de prova, sendo assim inteiramente cumprida a finalidade da exigência de “exame crítico da prova”.
Exigir-se uma detalhada referência crítica aos meios de prova produzidos para não dar como provados determinados factos, representa um contra-senso (para além de representar uma exigência de fundamentação, claramente desrazoável e excessiva).
Meios de prova são os diversos meios (legalmente admissíveis), destinados a fornecer a demonstração de um facto; ou seja, que tal facto ocorreu, e não o contrário.
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Quanto à substância, em matéria de facto, invoca uma contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, vício previsto no art. 410º, nº 2, al. b) do CPP.
Escreve ser contraditório afirmar-se que o arguido, “em síntese, admitiu que a generalidade dos factos descritos na acusação são verdadeiros, com excepção do facto que lhe imputa uma agressão à filha Inês quando esta tinha três anos de idade” e considerar, depois, como não provados, «os restantes factos que lhe eram imputados».
Mas não há qualquer oposição, ou incompatibilidade lógica, entre o que ficou não provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada.
A confissão não foi considerada integral e sem reservas, nem deu origem à renúncia à produção da prova.
O que resulta da fundamentação é que a assunção parcial dos factos, por parte do arguido, foi conjugada com os restantes meios de prova oral e documental produzidos, e que, dessa apreciação conjugada e análise comparativa, resultaram provados os factos que na Sentença se indicam, não tendo resultado provados quaisquer outros, entre eles os restantes que na acusação lhe eram imputados, e surgem indicados.
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Em matéria de Direito, pretende o recorrente que a matéria de facto provada integre a prática do crime de maus-tratos, p. e p. pelo art. 152º do CP, na redacção vigente à data dos factos ou, caso assim se não entenda, do crime de ofensas à integridade física qualificada, p. e p. pelo art. 146º, nºs 1 e 2, com referência à al. a) do nº 2, do art. 132º do CP.
Verifica-se, assim, que o recorrente aceita que o regime vigente à data da prática dos factos – objecto de alterações típicas, no respeitante ao crime de maus-tratos, com a entrada em vigor da Lei 59/2007, de 04/09 – é o aplicável, visto que as alterações operadas conformam um regime mais desfavorável ao arguido.
Restringe-se, pois, o reexame do decidido, ao Direito vigente à data da prática dos factos.
Em síntese, é considerado provado que o arguido, depois de se ter apercebido que a filha, de 11 anos de idade, lhe tinha tirado 20 Euros da carteira, não sendo a primeira vez que o fazia, lhe deu uma bofetada e, depois bateu-lhe com um cinto, causando-lhe as seguintes lesões corporais: “eritema e ligeiro edema da hemiface esquerda sob a região malar, lesão eritematosa e equimótica na face anterior do tórax direito na região supra mamária, equimose extensa com rebordos salientes no braço esquerdo, no dorso e região sob a crista ilíaca, lesões várias equimóticas até à região nadegueira, com predomínio na coxa anterior e em menor número na face anterior do terço superior e lateral da coxa direita e dor no polegar direito, que demandaram 8 dias de doença, sem afectação da capacidade para o trabalho”.
Na fundamentação de Direito considera-se não se verificar uma violação reiterada da integridade física da filha do arguido, nem a agressão perpetrada assumir gravidade suficiente para ser enquadrada no tipo legal de maus-tratos.
Entende-se, porém, que os factos provados integram a prática, pelo arguido, de um crime de ofensa à integridade física simples, pois o arguido excedeu o seu poder-dever de correcção, não sendo a sua conduta “adequada a atingir um fim educativo”, mas “intencionalmente dirigida à lesão do corpo e da saúde da filha”.
Efectivamente, o que se encontra provado é uma actuação do arguido, gerada por um comportamento censurável da filha – ter-lhe tirado dinheiro da carteira – comportamento esse que não tinha pela primeira vez.
Tal afasta a prática do crime de maus-tratos, tipificado no art. 152º, nº 1, al. a), do CP (na versão vigente à data dos factos), que pressupõe uma repetição frequente de condutas, de forma a conferir-lhe um carácter de habitualidade.
Por outro lado, a conduta da menor (que se mostrava recorrente) impunha o exercício do poder-dever de correcção, no exercício das responsabilidades parentais.
O arguido excedeu, porém, esse poder-dever de correcção/educação, agindo de forma desproporcionada e com uma brutalidade desnecessária.
Neste enquadramento, a intervenção do Direito Penal mostra-se justificada, e a qualificação da conduta como integrante da prática de um crime de ofensas corporais simples, mostra-se ajustada, pois sendo o comportamento de reprovar, não merece, porém, aquele acrescido e especial juízo de reprovação indispensável para o qualificar como ofensa à integridade física agravada.
Em conclusão, também neste ponto o recorrente não tem razão.
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Nos termos relatados, decide-se julgar totalmente improcedente o recurso, mantendo-se a Sentença recorrida.
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Sem custas.
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Porto, 02/07/2008
José Joaquim Aniceto Piedade
Maria Elisa da Silva Marques Matos Silva ( voto vencida, como relatora inicial e conforme voto que segue)
Arlindo Manuel Teixeira Pinto
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Voto de vencida

Votei vencida por entender que a motivação da decisão de facto constante da sentença recorrida, revela insuficiências que põem em dúvida a racionalidade e a coerência do juízo ou do processo lógico que conduziu à convicção do tribunal a quo no tocante à verdade dos factos.
Apesar de, em principio, o preenchimento do tipo do tipo de crime de maus tratos pressupor uma reiteração das respectivas condutas (como considerou a Mma Juíza), tanto a jurisprudência como a doutrina vem defendendo que existem casos em que uma só conduta, especialmente intensa – intensidade do desvalor, da acção e do resultado – basta para ver preenchida a previsão do tipo.
Da análise da exposição dos motivos probatórios exarada na sentença recorrida, verifica-se que não se consegue saber qual foi o raciocínio lógico que levou a considerar não provado que a bofetada desferida pelo arguido à filha C……………… foi forte nem que o arguido sabia que ao bater na Inês da forma em que o fez lhe causava sofrimento agudo….
Com efeito, no capítulo relativo à matéria de facto dada como não provada, apenas é dito que “(…) tal ficou a dever-se à circunstância de nenhuma prova se ter produzido acerca da mesma. Com efeito, a menor C……………. remeteu-se ao silêncio, o arguido negou a sua prática e as demais testemunhas familiares referiram que tal episódio nunca ocorreu”.
Mas, como alega a Ilustre recorrente “facilmente se depreende que a Mma. Juiz se está a referir apenas ao facto dado como não provado sob o número 2, pois foi apenas este que o arguido negou e que as demais testemunhes familiares referiram nunca ter sucedido”.
Na verdade, como se vê da parte da fundamentação relativa à matéria de facto dada como provada aí se deixou exarado que o arguido “ admitiu que a generalidade dos factos descritos na acusação são verdadeiros, com excepção do facto que lhe imputa uma agressão á filha C………….. quando esta tinha três anos de idade…). Tendo admitido como verdadeiros a generalidade dos factos com excepção daquele episódio, não se percebe porque razão tais factos não são dados como provados.
Note-se ainda que a conduta do arguido, vista na perspectiva - objectiva - das concretas ofensas que a integram, não são, de molde a afastar, sem mais, sem necessidade de explicitação minimamente fundada, a tal especial intensidade exigida para integrar o conceito de maus tratos.
Tratam-se, pois, de aspectos relevantes, dada a importância que revestem para a integração penal da conduta do arguido e a que a decisão recorrida não dá resposta
E por outro lado, há que ter em conta o disposto no art. 146 nº 1 do Código Penal, como igualmente sustenta a recorrente.
Por via disso, tendo em conta as disposições conjugadas dos arts. 379.º, n.º 1, al. a) e 374.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal, entendo que a sentença recorrida é nula, por falta de fundamentação, nos preditos termos, na parte supra referida.

Porto, 2 de Julho de 2008
Maria Elisa da Silva Marques Matos Silva