Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3178/19.6T8AVR-D.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANABELA DIAS DA SILVA
Descritores: INCIDENTE DE QUALIFICAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
PARECER
Nº do Documento: RP202302073178/19.6T8AVR-D.P1
Data do Acordão: 02/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO PROCEDENTE; DECISÃO ANULADA
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Actualmente e como decorre das alterações introduzidas ao CIRE pela Lei n.º 16/2012, de 20.04, modificou-se profundamente o carácter do incidente de qualificação da insolvência.
II - Hoje existem dois momentos, ambos facultativos, para se proferir uma decisão de abertura do incidente de qualificação da insolvência:
i) - na sentença de declaração de insolvência, oficiosa e fundamentadamente pelo juiz e, no caso de dispor de elementos que justifiquem a abertura do incidente;
ii) - a requerimento do AI (pela junção de parecer sobre a qualificação da insolvência como culposa) ou de qualquer interessado, fundamentadamente deduzido até 15 dias após a assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de dispensa da realização desta, até 15 dias após a junção aos autos do relatório a que se refere o art.º 155.º, cabendo depois ao juiz, conhecer dos factos assim alegados e, se o considerar oportuno, nos 10 dias subsequentes, declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência.
III - Após a decisão de abertura do incidente de qualificação o AI dispõe do prazo de, no mínimo, 20 dias para apresentar parecer de qualificação, excepto se foi ele quem requereu a abertura do incidente
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação
Processo n.º 3178/19.6 T8AVR-D.P1
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro - Juízo de Comércio de Aveiro - Juiz 3

Recorrentes – AA e BB
Recorrida – Massa insolvente

Relatora – Anabela Dias da Silva
Adjuntos – Desemb. Ana Lucinda Cabral
Desemb. Rodrigues Pires




Acordam no Tribunal da Relação do Porto (1.ªsecção cível)


I – Por apenso aos autos que correm termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro - Juízo de Comércio de Aveiro, onde foi declarada, por sentença de 1.10.2020, devidamente transitada em julgado, a insolvência de AA e de BB a pedido de Banco 1..., SA, com sede em Lisboa e na qualidade de credor dos mesmos, corre o presente incidente de qualificação da insolvência.
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Onde em 19.04.2021 foi proferido o seguinte despacho:
No relatório a que alude o artigo 155º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), a Sr.ª administradora da insolvência veio dar conta da venda de um imóvel por parte dos insolventes, ocorrida em 30/06/2017.
Foi proferido despacho determinando que a Sr.ª administradora da insolvência juntasse aos autos certidão da escritura e de registo predial do imóvel alienado e informasse se apurou quaisquer factos susceptíveis de relevar para efeitos do disposto na alínea e) do nº 1 do artigo 238º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
A Sr.ª administradora da insolvência veio juntar os referidos elementos e informou não ter conhecimento de quaisquer factos susceptíveis de relevar para efeitos do disposto na alínea e) do nº 1 do artigo 238º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
No entanto, posteriormente, veio informar que a venda em questão foi efectuada mediante a condição resolutiva dos compradores exonerarem os vendedores (aqui insolventes) das dívidas hipotecárias e de não existir incumprimento.
A Sr.ª administradora da insolvência acrescentou que os compradores não cumpriram o acordado e que para apreender o imóvel a favor da massa insolvente necessitará de anular a inscrição no registo predial a favor dos compradores.
Decorre da cópia dos documentos juntos aos autos que os insolventes, em 29/07/2017, outorgaram escritura pública de compra e venda, declarando vender, a terceiros, um imóvel, pelo preço de €167.299,00, imóvel esse que se encontrava hipotecado ao Banco 2..., S.A.
Tal preço, que as partes fizeram corresponder ao valor então em divida ao credor hipotecário, não foi pago aos insolventes, tendo os adquirentes sim assumido o pagamento das prestações acordadas entre os insolventes e o Banco 2..., S.A., mediante a condição resolutiva dos compradores exonerarem os vendedores (aqui insolventes) das dívidas hipotecárias e de não existir incumprimento.
O imóvel em questão havia sido adquirido pelos insolventes, em 13/05/2009, pelo preço de €180.000,00. Segundo avaliação feita, à data da descrita venda a terceiros, tal imóvel teria um valor de €203.300,00.
De harmonia com as informações prestadas pela Sr.ª. administradora da insolvência, os compradores não cumpriram o acordado no sentido de desoneraram os insolventes da divida em causa.
Resultando do apenso A que foi reconhecido ao Banco 2..., S.A. um valor de €150.122,38, embora sob condição suspensiva.
Os insolventes reconheceram que não receberam nenhum valor pela venda do imóvel, mas também sustentam que deixaram de possuir uma divida, não se verificando assim qualquer prejuízo para os demais credores.
Mais sustentam que, caso o negócio não tivesse sido feito, o imóvel estaria apreendido para a massa e o seu fim seria a venda e o resultado da sua venda seria para pagar ao crédito hipotecário e com toda a probabilidade o produto da venda da casa nem sequer chegaria para pagar a totalidade do crédito ao credor hipotecário, mas apenas um valor estimado de 70% da dívida.
Independentemente das razões apontadas pelos insolventes para a venda do imóvel, mostra-se inequívoco que os mesmos procederam à sua venda, decorridos cerca de 8 anos, por um valor inferior àquele que haviam dado para a sua compra (€180.000,00 - €167.299,00 = €12.701,00), sem que tenham sido apontadas quaisquer razões válidas para a depreciação do imóvel (sendo facto notório que, salvo condições muito excepcionais, os imóveis valorizam-se e não perdem valor).
Não existindo assim qualquer razão objectiva para que os insolventes tenham beneficiado os compradores com tal redução de preço. A qual assume foros de maior gravidade se atentarmos ao valor resultante da avaliação feita (€203.300,00 - €167.299,00 = €36.001,00).
A isto acresce que os insolventes nem sequer receberam qualquer valor. Segundo os próprios a vantagem consistiu em verem-se livres da divida ao Banco 2..., S.A. No entanto, tal não aconteceu (razão pela qual o crédito de encontra reconhecido, embora sob condição).
Mas ainda que assim fosse, facilmente se constata que, vendendo o imóvel pelo preço justo
(aproximado de mercado), os insolventes não teriam dificuldades em liquidar o empréstimo e da alienação ainda ficariam com alguma quantia.
O que fizeram foi sim transmitir a terceiros um imóvel, sem nada receberem, por um valor muito inferior e mantendo-se vinculados ao pagamento da divida ao Banco 2..., S.A., apenas mediante a condição dos adquirentes virem a diligenciar pela sua exoneração, o que não sucedeu.
Na sentença entendeu-se que não existiam elementos que justificassem a abertura do incidente de qualificação da insolvência.
No entanto, considerando o entretanto apurado e o que se expôs, afigura-se-nos efectivamente oportuno e pertinente a sua apreciação, no apenso próprio.
Pelo exposto:
a) Declaro aberto o incidente de qualificação da insolvência com carácter pleno e determino ainda que se autue ao apenso de qualificação da insolvência a constituir, cópia deste despacho do relatório e dos requerimentos e documentos juntos em 18/12/2020, 01/02/2021, 22/02/2021 e 16/03/2021;
b) Determino que se proceda no apenso de qualificação da insolvência à notificação da Sr.ª administradora da insolvência para, em 20 dias, vir apresentar o parecer a que alude o artigo 188º nº 3 do CIRE”.
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Veio em 10.05.2021, a AI apresentar o seu parecer, onde concluiu que a insolvência deveria ser qualificada como fortuita, sustentando, em síntese, que os insolventes efectuaram um negócio em 2017 relacionado com a transmissão de um imóvel, casa de morada de família, em que não existiu pagamento de qualquer preço. Sendo que, de acordo com uma avaliação, o imóvel transmitido, em 2017, teria o valor de €203.300,00. Todavia, tal imóvel foi transmitido a outrem na condição dos adquirentes desenvolverem o necessário para exonerarem os insolventes das dívidas relacionadas com o imóvel, nomeadamente a exoneração relativamente ao crédito hipotecário, bem como o pagamento do remanescente dos empréstimos cujo imóvel servia de garantia real, sob pena de resolução e o imóvel regressar aos vendedores. Acrescentou ainda que o valor dos créditos relativamente aos quais tal imóvel servia de garantia era, á data da transmissão, de €167.299,00, correspondente a 82% do valor da avaliação efectuada.
Mais alegou que o volume de crédito derivado de avais e fianças, relacionados com actividades comerciais e derivado de garantias pessoais prestadas em operações relacionadas com sociedades comerciais é avassalador quando comparado com os créditos de origem pessoal, não sendo estes suficientes para declarar a insolvência como culposa.
E alegou ainda não lhe parecer que a activação da cláusula resolutiva seja uma questão pertinente para a qualificação da insolvência, considerando que, na altura do negócio, os insolventes já estavam altamente endividados pelo facto de terem sido avalistas e fiadores de créditos relacionados com sociedades comercias, tendo colocado uma cláusula de resolução para que tal assunção se tornasse efectiva. E caso o imóvel não tivesse sido transmitido, iria ser provavelmente penhorado pelos demais credores se não ocorresse a insolvência, o que agravaria o valor do débito garantido existente sobre o imóvel. Se os insolventes tivessem conseguido a assunção da dívida pelos adquirentes do imóvel teriam conseguido a eliminação de um credor, através da transmissão de um bem, e por um valor 18% inferior ao valor desse bem (por avaliação efectuada 3 anos depois).
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No entanto, na sequência de pedido de esclarecimentos adicionais, a Sr.ª administrador da insolvência alterou, em 20.07.2021, o seu parecer, no sentido de a insolvência vir a ser qualificada como culposa, alegando, em aditamento, ter apurado que a insolvente mulher é irmã do comprador marido. E tendo confrontado o insolvente marido para informar se existia alguma relação entre os insolventes e os compradores, o mesmo respondeu que não.
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O Ministério Público junto do Tribunal recorrido pronunciou-se igualmente no sentido da insolvência dever ser qualificada como culposa, devendo por ela serem afectados ambos os insolventes.
Para o que, em síntese, defendeu que os insolventes, com a celebração do negócio identificado pela administradora da insolvência, contribuíram com culpa grave para o agravamento da respectiva situação de insolvência, pois que, desse modo, diminuíram a garantia patrimonial geral comum a todos os credores. Tendo beneficiado terceiros – o irmão e cunhada da insolvente mulher e cunhados do insolvente marido – em detrimento dos restantes credores. Isto porque dispuseram do prédio a favor daqueles, cerca de 2 anos antes de ser requerida a respectiva insolvência, não obstante já se encontrarem em situação económica bastante difícil, pois que já não conseguiam cumprir pontualmente com as obrigações resultantes das dívidas entretanto contraídas e que ultrapassavam, na data da insolvência, o montante de €11.800.000,00. Ao que acresce que dispuserem do imóvel, por um preço bem inferior ao valor real do mesmo, ocultando-o dos seus credores, bem sabendo que haviam contraído diversas dívidas/ /empréstimos, junto de várias entidades bancárias e/ou financeiras, que não lograram pagar integralmente e que, com a transmissão do aludido bem que tinham no respectivo património, impossibilitavam ou prejudicavam definitivamente tais pagamentos. Sendo que a circunstância de o negócio em causa ter tido como objectivo o pagamento da dívida inerente à aquisição do mesmo (que aliás, na realidade, não se veio a verificar), não pode ser razão para afastar a responsabilização dos insolventes, no que concerne à descapitalização do seu património, por via da transmissão do referido bem a favor de pessoas especialmente relacionadas com os mesmos (familiares), por um valor substancialmente inferior ao real, mostrando-se preenchidos os requisitos das als. a) e d) do n.º 2 do art.º 186.º do CIRE.
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Oportunamente os insolventes deduziram oposição, pugnando pela qualificação fortuita da sua insolvência.
Como questão prévia, vieram defender que o prazo a partir do qual se considera que existe o processo de insolvência corresponde ao da nomeação da administradora da insolvência, que ocorreu em 02.10.2020, isto porque, já no regulamento 1346/2000 se define como decisão de abertura do processo, a decisão judicial de nomeação de um síndico (correspondente à figura do administrador judicial). Acrescentam ainda que, no domínio do Regulamento da UE n.º 2015/848, fixaram-se igualmente os momentos do início do processo, como sendo coincidentes e contemporâneos com a produção de efeitos (nomeação do administrador judicial, independentemente de ser ou não uma decisão final) – art.º 2.º n.º 4, n.º 7 e nº 8 e art.º 7.º do regulamento 848/2015. Sendo que o art.º 4.º n.º 1 do CIRE, passa a distinguir claramente o pedido de insolvência pelo devedor ou credor da decisão de um tribunal em aceder a esse pedido. Daí terem concluído que tendo a AI sido nomeada em 02.10.2020, a transmissão do imóvel ocorreu 4 anos e 4 meses antes do início do processo, ou seja, fora do período legal consagrado no art.º 186.º n.º 1 do CIRE.
Mais defenderam que o seu comportamento em nada prejudicou os credores, nem por acção, nem por omissão, tendo actuado com a maior lisura, honestidade e probidade, sempre no sentido de minorar qualquer efeito que a insolvência da A... (que esteve na origem da sua própria insolvência) teve sobre os credores.
Quanto à venda em questão, alegaram que tiveram necessidade de vender a sua casa de habitação, para se mudarem para uma casa com mais um quarto, até porque a mãe da insolvente também passou a viver com o casal. E tendo encontrada à data (2017) uma casa adequada, porque necessitavam também de se desonerarem do pagamento da prestação bancária da casa anterior, que era elevado, superior a €500,00/mês e, por isso venderam-na. Mais alegaram os insolventes que, com o nascimento da filha e outras circunstâncias da vida (crise económica e problemas financeiros na A...), designadamente o facto do insolvente AA ser funcionário da A..., depender do valor do seu vencimento para sobreviver e não ter recebido créditos salariais de elevado valor durante largos meses, as dificuldades financeiras do casal agravaram-se, designadamente pelo pagamento que tinham de fazer da prestação da casa de que eram proprietários. Todavia, não pretendiam entrar em mora com o Banco 2..., o que sempre aconteceu até aos dias de hoje, já que nunca deixaram de pagar o seu crédito hipotecário até 30.06.2017, nem os compradores até aos dias de hoje.
E mais alegaram que, na altura da venda, após terem consultado várias pessoas, as únicas que mostraram interesse em ficar responsáveis pelo pagamento do empréstimo e em adquirir a habitação foi de facto o irmão da insolvente BB e aceitaram comprar a casa e substituírem-se aos insolventes no contrato de mútuo que existia celebrado com o Banco 2..., tendo efectivamente sido celebrada uma assunção de dívida para além da compra da casa, onde fizeram prever uma condição resolutiva dos compradores exonerarem os vendedores das dívidas hipotecárias e de não existir incumprimento. Sendo que a referida condição resolutiva não ficou sujeita a qualquer prazo, podendo vir a verificar-se a todo o tempo.
E ainda que, em vida, o comprador CC, contactou o Banco 2... a quem transmitiu a situação e a necessidade de ratificação pelo mesmo da assunção de dívida celebrada, tendo obtido por resposta que nada obstaria a que a mesma acontecesse a breve trecho, mas por ter ficado gravemente doente, falecendo em 27.02.2019, o que deixou muito abalada a sua viúva, impedindo-a de diligenciar no sentido da exoneração da responsabilidade dos requeridos, sem prejuízo de se encontrar a diligenciar já nesse sentido.
Finalmente defenderam que não existiu prejuízo para os credores, na medida em que o credor Banco 2... é um credor hipotecário, tendo o seu crédito garantido pelo imóvel, esteja este em nome de quem estiver, além de ter recebido até hoje todas as prestações que se foram vencendo, por outro lado, o preço de €67.299,00, importou um encargo para os compradores superior, isto porque não se limitaram a fazer a compra, mas assumiram a divida perante o Banco 2..., divida essa que depois de liquidada importaria um custo total final de €229.000,00 (de capital e juros), pelo que, na prática, não se poderá dizer que o valor da transacção foi mais baixo do que o valor do imóvel no mercado, ou do valor da aquisição 8 anos antes pelos vendedores.
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Foi proferido despacho saneador, identificado o objecto do litígio e enunciados os temas de prova.
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Realizou-se a audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença de onde consta: “Pelo exposto, qualifico a insolvência de AA e de BB como culposa, declarando os próprios por ela afectado e em consequência:
a) Decreto a inibição de AA e de BB para administrar patrimónios de terceiros, por um período de cinco (5) anos;
b) Declaro AA e de BB inibidos para o exercício do comércio durante um período de cinco (5) anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa;
c) Condeno os requeridos a pagar as custas do incidente, com taxa de justiça que se fixa em 3 UC para cada um.
Registe e notifique, dando cumprimento ao disposto no artigo 189.º n.º 3 do CIRE”.


Inconformados com tal decisão, dela recorreram aos insolventes/requeridos de apelação pedindo a revogação da mesma e a sua substituição por outra que julgue “declare como nulo e sem qualquer efeito todo o processado a partir do despacho que declara aberto o incidente datado de 19.04.21, inclusive; que declare que o incidente da qualificação da insolvência não podia ter sido aberto, muito menos julgado e decidido, em virtude de não terem sido cumpridos prazos peremptórios, quer nos termos do CIRE, quer nos Regulamentos Europeus, no próprio CPC e até na CRP e subsidiariamente, que se fixe o grau de culpa individualmente, porque é obrigatório fazê-lo, e do processo constam dados suficientes para o avaliar, no caso da recorrente BB, a sua culpa, a existir é mínima”.
Os apelantes juntaram aos autos as suas alegações onde formulam as seguintes e prolixas conclusões:
1) Entendem os recorrentes que para mais fácil compreensão do presente recurso é necessário referir desde logo determinadas datas porque determinantes para a boa decisão da causa.
Assim,
2) Os insolventes foram considerados como tal por sentença de 01.10.20, do CITIUS consta uma data de 02.10.19 como se de uma citação aos insolventes se tratasse, quando na verdade não foram citados nesta data, mas em 17.09.20, através de AE.
3) Importante também referir que a Senhora AJ foi como tal nomeada em 02.10.20.
4) Na sentença de 01.10.20 o Meritíssimo Juiz “a quo” decidiu “Declaro prescindir da realização da reunião da assembleia de credores a que alude o artigo 156.º do CIRE e determino que a Senhora Administradora da insolvência, caso nenhum interessado venha apresentar o inventário, a lista provisória de credores e o relatório previsto nos artigos 153.º a 155.º - do mesmo código, no prazo de 45 dias;
5) O relatório a que alude o artigo 155.º do CIRE foi apresentado pela Senhora AJ nos autos em 16.11.20.
6) Nos termos do artigo 188.º n.º1 a Senhora AJ ou qualquer interessado poderiam ter fundadamente, por escrito, no prazo peremptório de 15 dias, o que tivessem por conveniente, no sentido da qualificação ou não e, nesse caso, poderia ou não o MM. Juiz, nos 10 dias subsequentes se o considerasse oportuno decidir pela abertura do incidente.
7) Não foi realizada Assembleia de Credores pelo que aquele prazo peremptório de 15 dias se conta a partir da apresentação do relatório da AJ, nos termos do artigo 155.º do CIRE.
No caso,
8) A Senhora AJ apresentou nos autos em 16.11.20 o dito relatório, quando o prazo para fundamentar o pedido de qualificação como culposa terminou em 01.12.20 e decorrido tal prazo nada aconteceu.
9) Não existe no processo qualquer requerimento a fundamentar um pedido de insolvência culposa, de quem quer que seja.
10) A Senhora AJ apresentou 2 pareceres - um como fortuita (o 1.º) outro como culposa embora não fundamentado, e já apresentado após a abertura do incidente de qualificação, pelo Senhor Juiz “a quo”.
11) O incidente de qualificação foi determinado por despacho de 19.04.21 e o parecer da AJ foi apresentado em 20.07.21.
12) O Senhor Juiz “a quo”, só após conhecer os factos e se o considerar oportuno, é que nos 10 dias subsequentes poderia declarar aberto o incidente.
13) Não foram observados os prazos, isto é, não houve qualquer requerimento ou abertura de incidente nos 15 dias após a apresentação do relatório a que alude o artigo 155.º do CIRE.
14) Sendo por isso nulo, e de nenhum efeito, todo o processado a partir do despacho que declara aberto o incidente datado de 19.04.21.
15) Ainda que tivesse havido um pedido de deferimento de prorrogação de prazo, o dos 90 dias após a publicação mesmo não poderia ser atendido porque a Lei n.º a 9/2022 de 08 de Janeiro que alterou essa disposição legal (artigo 188.º n.º 3 do CIRE) só teve aplicação a partir de 08.04.22.
16) Ao caso aplica-se a jurisprudência do Acórdão n.º 1857/14.3TBGMR-DG1 de 25.02.16 do Tribunal da Relação de Guimarães, sendo o seu sumário revelador da razão que assiste aos recorrentes.
17) (…)
I) - No actual quadro legal – após as alterações introduzidas pela Lei n.º 16/2012 de 20/04 – apenas há lugar à abertura do incidente de qualificação da insolvência em duas situações e momentos: na sentença em que se declara a insolvência (situação em que é aberto oficiosamente pelo juiz, caso disponha, nesse momento, de elementos que o justifiquem); ou num momento posterior, se o juiz o considerar oportuno em face das alegações que, a propósito dessa matéria e ao abrigo do disposto no art.º 188.º, n.º 1 do CIRE, sejam efectuadas pelo Administrador da Insolvência ou por qualquer interessado, dentro do prazo aí assinalado.
II) - O requerimento/alegações a que alude o n.º 1 do art.º 188.º do CIRE, através do qual se pretende desencadear a abertura do incidente de qualificação da insolvência, apenas pode ser apresentado dentro do prazo fixado na lei, não podendo ser atendido, para esse efeito, o requerimento (alegações) apresentado pelo Administrador da Insolvência – ou por qualquer interessado – após o decurso desse prazo.
III) - São pressupostos da insolvência culposa nos termos do n.º 1 do art.º 186.º do CIRE, a actuação (Acão ou omissão), com culpa (dolo ou culpa grave), do devedor ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo que conduziu à insolvência, e o nexo causal entre a actuação e a criação ou agravamento da situação de insolvência.
IV) - Demonstrando-se que a actuação do devedor ou dos administradores da insolvência preenche algumas das alíneas do n.º 2 do art.º 186º do CIRE, a lei considera criada, ou agravada, a situação de insolvência e funciona a presunção iuris et de iure e, assim, inilidível, de que a insolvência é culposa.
V) - Caso ocorra alguma das circunstâncias previstas no n.º 3 do art.º 186.º a situação é diferente, porquanto este normativo estabelece apenas uma presunção iuris tantum de culpa grave, em resultado da actuação dos seus administradores, de direito e de facto, mas não uma presunção de nexo causal da sua conduta em relação à situação de insolvência, exigindo-se a demonstração nos termos do art.º 186.º, n.º 1, que a insolvência foi causada ou agravada em consequência dessa mesma conduta.
VI) - Para que se considere culposa a insolvência não basta o preenchimento de algumas das alíneas do n.º 2 do art.º 186.º do CIRE, sendo também necessário o preenchimento do limite temporal dos 3 anos previsto no n.º 1 daquele dispositivo legal.
VII) - Deste modo, apenas os actos praticados nos 3 anos anteriores ao início do processo de insolvência serão relevantes para efeitos do preenchimento do n.º2 do mencionado art.º 186.º Só não será assim relativamente à hipótese prevista na alínea i) do n.º 2, que poderá respeitar a período posterior à declaração de insolvência.
18) Sempre se dirá que o próprio CIRE tem uma norma regulamentadora dos seus próprios prazos - o artigo 36.º n.º 4 que diz: “(…) Nos casos em que não é designado dia para a assembleia de apreciação do relatório nos termos da alínea n) do n.º 1, os prazos previstos neste código contados por referência à data da sua realização, contam-se com referência ao 45.º dia subsequente à data de prolação da sentença de declaração de insolvência (…)”.
19) Também este prazo não foi observado.
20) Não tendo sido cumprido um prazo que é peremptório, não podia o incidente de qualificação da insolvência ter sido aberto, muito menos julgado e decidido.
21) Tem de ser considerado por extemporâneo, deve a decisão que se lhe seguiu, ser anulada e de nenhum efeito especialmente no que aos insolventes diz respeito, o que se requer.
22) O início do processo de insolvência, é exactamente o da nomeação da Senhora AJ que ocorreu em 02.10.2020 (cfr. Edital de 02.10.2020).
23) Neste sentido o Regulamento 1346/2000 que define como decisão de abertura do processo, como sendo a decisão judicial de nomeação de um síndico (entenda-se - o AJ).
24) No domínio do Regulamento da EU n.º 2015/848, fixaram-se igualmente os momentos do início do processo, como sendo coincidentes com a produção de efeitos (nomeação do AJ, independentemente de ser ou não uma decisão final) artigo 2.º n.º 4, n.º 7 e n.º 8 do artigo 7.º do Regulamento 848/2015.
25) O artigo 4.º do CIRE passa a distinguir claramente: o pedido de insolvência pelo devedor ou credor e da decisão de um tribunal em aceder a esse pedido.
26) Nos termos do artigo 8.º da CPR o Regulamento EU 2015/848 é parte integrante do direito português com aplicação imediata. No caso a Senhora AJ foi nomeada em 02.10.20, sendo que o início do processo ocorreu nessa data, em 02.10.20.
27) Não existiu nenhuma actuação dolosa ou com culpa grave dos insolventes, ora recorrentes que tenha criado ou agravado a sua situação de insolvência nos 3 anos anteriores ao início do processo.
28) Não é suficiente o preenchimento de alguma das alíneas do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, sendo também necessário como se disse supra do limite temporal dos 3 anos previsto no n.º 1 daquela disposição legal.
29) Entendem os recorrentes, e já o disseram desde a oposição ao incidente, que o início de um processo se faz a partir da data de nomeação da Sr.ª AJ exactamente porque o artigo 8.º da CRP entra imediatamente na nossa ordem jurídica, daí a aplicabilidade imediata do Regulamento EU 2015/848.
30) Nos termos do artigo 2.º n.º 7 sob a epígrafe ”Decisão de abertura do processo de insolvência”.
A. A decisão de qualquer órgão jurisdicional de abrir um processo de insolvência ou de confirmar a abertura de um processo desta natureza.
B. A decisão de um órgão jurisdicional de nomeação de um AJ.
31) Por outro lado, e também importante é o artigo 22.º “Prova de nomeação do Administrador de Insolvência e, de acordo com este normativo a prova é efectuada mediante apresentação de uma cópia autenticada da decisão da sua nomeação ou de qualquer outro certificado emitido pelo órgão jurisdicional competente.
32) A tal propósito manifesta-se o Sr. Juiz “a quo” apenas em uma só página – a 22 da sentença recorrida, dizendo que “sendo que o momento de abertura do processo corresponde ao momento em que a decisão de abertura do processo de insolvência produz efeitos, independentemente de essa decisão ser ou não final. No entanto o momento de abertura do processo é diferente do início do processo definido no artigo 4.º do CIRE, ali se prevendo que todos os prazos que no incidente de qualificação tem como termo final o inicio do processo de insolvência abrangem igualmente o período compreendido entre essa data e a da declaração da insolvência (a significar que o inicio não corresponde à sentença).
33) PC, em concreto o artigo 259.º sem atentar a que em 1.º lugar tem aplicação obrigatória a legislação dos Estados membros.
34) Seguindo o presente normativo, o artigo 259.º do CPC se refere ao (…) “momento e, que a acção é proposta”, diz-se no seu n.º 2 que “não produz efeitos em relação ao réu senão a partir da citação” (…), desde a data da celebração da escritura pública em questão que ocorreu em 30.06.17.
35) Pelo que, também nos termos do CPC se torna claro que o prazo do início do processo coincidirá com a data de citação dos réus, no caso, 17.09.2020.
36) Tendo decorrido mais de 3 anos, não pode aplicar-se o disposto no artigo 186.º do CIRE, devendo por isso a sentença recorrida ser substituída por outra que verificando o período temporal decorrido o considere manifestamente ultrapassado face aos requisitos legais, decidindo arquivar o processo.
37) Não fixa, não gradua o Tribunal, na sentença recorrida, o eventual grau de culpa de cada um dos recorrentes, que naturalmente é diferente.
38) A insolvente BB era professora e colaborava com uma empresa de consultadoria, nunca tendo trabalhado, gerido de fato e de direito, conjuntamente com o marido, a A... empresa que esteve ligada à insolvência da recorrente BB, que sempre levou uma vida autónoma.
39) Assinou avales, por ser na altura esposa do insolvente AA, a maior parte em branco por confiar por completo no então seu marido. Teve ao longo do processo uma conduta irrepreensível, nunca prestou qualquer falsa informação, jamais tendo prejudicado qualquer credor, pelo que merece que Vossas Excelências, graduem o seu grau de culpa, analisando a sua conduta e fixado um grau de culpa manifestamente reduzido.
40) Aceita-se e entende-se que o grau de culpa do recorrente AA seja superior ao da sua ex-mulher, BB, mas não o fixado na sentença.
41) Com a venda que fez pagou a um credor reclamante o Banco 2... com hipoteca, pelo que receberia sempre o seu crédito e vai agora desistir da reclamação entretanto feita.
42) Refere o Tribunal “a quo” que insolventes não se coibiram de outorgar nova escritura para cancelar uma cláusula resolutiva da escritura de 2017 quando no caso, não dispuseram de qualquer património, tendo apenas cumprido uma condição a que se tinham obrigado e sem prazo. Esta nova escritura foi feita decorridos mais de 5 anos sobre a anterior. A cláusula a que o Tribunal se refere já não existe tendo sido cancelada e já registada.
43) Não se entende por isso, em que é que a venda (que serviu para pagar a um credor garantido, prejudicou os outros credores.


O Ministério Público junto do Tribunal recorrido juntou aos autos as suas contra-alegações onde pugna pela confirmação da decisão recorrida.


II – Da 1.ª instância chegam-nos provados os seguintes factos:
1) Através de petição inicial apresentada em 25.09.2019, o Banco 1..., S.A. veio requerer a declaração de insolvência de AA e de BB.
2) Por sentença, proferida em 01.10.2020, transitada em julgado, foi declarada a insolvência de AA e de BB, tendo ali sido nomeada como administradora da insolvência, DD.
3) Na escritura, outorgada no Cartório Notarial de Cantanhede, em 29.06.2017, AA e de BB declararam vender a CC e EE, pelo preço de cento e sessenta e sete mil euros e setenta e nove cêntimos, o prédio urbano constituído por casa de habitação de dois pisos e anexos, denominado lote quatro, situado em Estrada ..., freguesia ..., descrito na Conservatória de Registo Predial de Albergaria-a-Velha sob o n.º ... da freguesia ... e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo ..., proveniente do artigo urbano ... da extinta freguesia ..., tudo nos termos que constam da cópia da referida escritura junta aos autos em 20.04.2021, que aqui se dá por integralmente reproduzida.
4) Na referida escritura, AA e de BB declararam ainda que o pagamento do respectivo preço de venda no valor de cento e sessenta e sete mil euros e setenta e nove cêntimos era efectuado aos vendedores com a assunção da divida ao Banco 2..., no mesmo valor, pelos compradores.
5) AA e BB e CC e EE declararam na referida escritura que o prédio seria vendido com o ónus das hipotecas existentes, sendo o preço de venda igual ao valor da divida à data ao mutuante hipotecário Banco 2..., assumindo os compradores essa divida dos devedores e todos os encargos com ela relacionada, e sendo o respectivo pagamento mensalmente efectuado pelos compradores ao credor hipotecário pela liquidação pontual das prestações mensais e encargos associados referentes aos mútuos hipotecários contraídos pelos vendedores.
6) CC e EE declararam ainda na referida escritura aceitar o contrato nos termos ali exarados, tendo ainda ali ficado consignado o seguinte: “E comprometem-se a diligenciar junto do Banco 2... no sentido da exoneração da responsabilidade dos vendedores pelas descritas dividas hipotecárias, constitui condição resolutiva da presente venda caso tal exoneração não seja possível, o não cumprimento total ou parcial, pelos compradores, da assunção da descrita divida dos vendedores ao Banco 2..., pela não liquidação pontual de qualquer das prestações mensais e encargos associados, referentes aos descritos mútuos hipotecários contraídos pelos devedores.”.
7) BB é filha de FF e de GG, sendo os seus avós paternos, HH e II.
8) CC é filho de FF e de JJ, sendo os seus avós paternos, HH e II.
9) O prédio acima referido foi adquirido por AA e de BB, em 13.05.2009, pelo preço de €180.000,00, nos termos constantes da cópia do título de compra e venda e abertura de crédito juntos aos autos, em 01.06.2022, que aqui se dão por reproduzidos integralmente.
10) No processo de insolvência foram reconhecidos pela Sra. administradora da insolvência créditos, num valor total de €11.844.328,03, incluindo um crédito do Banco 2..., SA, no valor de €152.122,38, referente ao contrato de mútuo referido em 4), pese embora sob condição, tudo nos termos que resultam da lista de credores apresentada em 18.10.2021, no apenso-A, que aqui se dá integralmente por reproduzida.
11) Em 31.05.2017, encontravam-se registadas no Banco de Portugal as responsabilidades que resultam do documento junto aos autos pelos requeridos em 20.12.2021, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
12) O insolvente/requerido, em 28.05.2021, enviou à administradora da insolvência o email, com o teor constante do documento junto aos autos em 07.10.2022, que aqui se dá por reproduzido, ali declarando o seguinte:
Dra. DD.
Mais informo que não existe qualquer relação entre nós insolventes e os compradores.
Fui contactado por uma imobiliária, num sentido de venda do imóvel. Como entendemos que seria uma bom negócio vendemos.”.
13) Os insolventes continuaram a viver no imóvel referido em 3), mesmo após 29.06.2017, permanecendo a requerida BB ainda hoje a residir no mesmo, tendo o requerido AA abandonado tal residência apenas após a separação do casal, em data concretamente não apurada de 2022.
14) O prédio referido em 3) corresponde à seguinte morada: Rua ..., Albergaria-a-Velha.
15) Na sentença de declaração de insolvência referida em 2) fixou-se a residência dos insolventes na seguinte morada: “Rua ..., ..., ... Aveiro”.
16) Na oposição à insolvência, os requeridos nos autos principais indicaram a morada referida em 15) como sendo a sua residência.
17) A morada referida em 15) corresponde a um prédio que foi propriedade de CC e EE e é actualmente propriedade desta última.
18) Na escritura pública, outorgada em Cartório Notarial, em 03.10.2022, AA e de BB (como primeiros outorgantes) e EE (na qualidade de segunda outorgante), por si e na qualidade de única herdeira de CC, declararam o seguinte:
Que os primeiros outorgantes, como vendedores, e a segunda outorgante e seu marido CC, como compradores, outorgaram no dia vinte e nove de Junho de dois mil e dezassete, no Cartório Notarial de Cantanhede a cargo do Notário KK uma escritura de compra e venda, a qual ficou exarada a folhas 39 do livro ...... e teve como objecto um prédio urbano, sito na Estrada ..., freguesia e concelho ..., descrito na Conservatória do registo predial sob o número ....
Que o comprador, o mencionado CC faleceu e deixou como única herdeira sua mulher ora segunda outorgante, conforme escritura de habilitação de herdeiros outorgada no Cartório Notarial da Murtosa a cargo da Notária LL, no dia sete de Março de dois mil e dezanove, exarada a folhas 14 do Livro ….
Que o pagamento do preço de venda do referido imóvel foi feita com a assunção da divida dos então vendedores ao Banco 2..., SA, parte dos compradores.
Que os compradores se comprometeram a diligenciar junto do Banco 2..., SA, no sentido da exoneração da responsabilidade dos vendedores constituindo condição resolutiva da venda, caso tal exoneração não fosse possível, o não cumprimento total ou parcial pelos compradores, da assunção da divida, pela não liquidação pontual de qualquer das prestações mensais e encargos associados.
Que, pela presente escritura, revogam a condição resolutiva a que compra e venda entre eles efectuada e acima mencionada, por já não terem interesse na sua subsistência.”.
19) Na escritura referida em 18), AA e de BB declararam residir na seguinte morada: Rua ..., lugar de ..., freguesia ..., concelho de Aveiro.
20) O declarado em 18) foi na sequência da troca de email´s cujo teor resulta dos documentos juntos na audiência de julgamento, em 07.10.2022, que aqui se dão por reproduzidos.
21) O prédio referido em 3), em 29.06.2017, tinha um valor de mercado não inferior a €203.300,00.
22) A sociedade A..., Ld.ª apresentou-se a um processo de revitalização, que correu termos sob o n.º 2524/17.1T8AVR no Juízo de Comércio de Aveiro – J3, tendo ali sido proferido despacho de nomeação de administrador judicial provisório em 06.07.2017.
23) Em 29.01.2018 foi proferida sentença de homologação do plano de recuperação apresentado no processo referido em 22).
24) Em 16.08.2019 foi requerida a insolvência da A..., Ld.ª, no processo que corre termos sob o n.º 2524/17.1T8AVR no Juízo de Comércio de Aveiro – J3, tendo tal sociedade sido declarada insolvente, por sentença proferida no mesmo processo em 15/10/2019.
25) AA é sócio e gerente da A..., Lda.
26) A requerida trabalhou como professora.
27) Os requeridos têm dois filhos, um nascido em 30.03.2011 e outro em 28.03.2017.
28) CC faleceu em 23.02.2019, no estado de casado com EE, na sequência de doença oncológica que lhe foi diagnosticada em 2018.
29) Mesmo após 29.06.2017, os empréstimos associados à aquisição da casa referida em 3) continuaram a ser debitados na conta titulada pelos insolvente no Banco 2..., nos termos que resultam dos extractos bancários juntos aos autos em 01.06.2022, que aqui se reproduzem na íntegra.


Não se julgou provado que:
a) A venda da habitação referida em 3) deveu-se à necessidade que os insolventes tinham de mais um quarto e para acolher a mãe da insolvente.
b) Após a referida venda, os insolventes mudaram-se para uma casa com mais quartos.
c) O insolvente não recebeu o seu vencimento da A... durante meses.
d) Após 29.06.2017, as prestações referidas em 3) passaram a ser pagas pelos compradores CC e EE e após a morte daquele por esta última.
e) Em 2017, na altura da venda, após terem consultado várias pessoas, as únicas que mostraram interesse em ficar responsáveis pelo pagamento do empréstimo – questão de honra para os insolventes – e em adquirir a habitação foi de facto o irmão da insolvente BB.
f) CC e EE, dada a sua idade, para adquirirem uma casa, os bancos exigiam-lhes uma taxa de juro muito elevada e o valor com os seguros de vida era também incomportável e não dispunham da quantia total para liquidar a casa e assim, pagar de uma só vez o crédito hipotecário.
g) Em vida o comprador CC contactou o Banco 2... a quem transmitiu a situação e a necessidade de ratificação pelo mesmo da assunção de dívida celebrada, tendo obtido por resposta que nada obstaria a que a mesma acontecesse a breve trecho, o que só não aconteceu devido à doença que lhe foi diagnosticada.
h) A divida ao Banco 2..., depois de liquidada, importaria um custo total final de €229.000,00.
i) O prédio referido em 3), em 29.06.2017, não tinha um valor de mercado superior a €161.328,40


III – Como é sabido o objecto do recurso é definido pelas conclusões da recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do C.P.Civil), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
*
Ora, visto o teor das alegações da ré/apelante são questões a apreciar no presente recurso:
1.ª – Da alegada extemporaneidade da abertura do incidente da qualificação de insolvência.
2.ª – Da alegada não observância do prazo temporal previsto no n.º 1 do art.º 186.º do CIRE.
3.ª – Da alegada necessidade de graduação de culpa de cada um dos afectados pela qualificação da insolvência como culposa.
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Como se viu a 1.ª instância qualificou a insolvência como culposa e julgou afectados por tal decisão os insolventes, ora apelantes.
Para tanto, considerou-se na decisão recorrida, além do mais, que: “(…) Importa, à partida, ter presente, na delimitação da causa, que a análise da actuação do requerido se há-de circunscrever aos três anos que antecederam o início do processo de insolvência, por decorrência expressa do citado artigo 186.º n.º 1 do CIRE.
Desde logo, importa considerar que os requeridos sustentaram que o início do processo de insolvência se há-de encontrar por referência à data de nomeação do administrador da insolvência. Para concluírem que, tendo a administradora da insolvência sido nomeada em 02/10/2020, a transmissão do imóvel ocorreu 4 anos e 4 meses antes o início do processo, ou seja, fora do período legal consagrado no artigo 186.º n.º 1 do CIRE.
Para tanto, fizeram apelo ao Regulamento 1346/2000 (diploma já revogado) que define como decisão de abertura do processo, como sendo a decisão judicial de nomeação de um síndico e apelo ao Regulamento da UE n.º 2015/848, no qual se fixaram igualmente os momentos do início do processo, como sendo coincidentes e contemporâneos com a produção de efeitos “(nomeação do administrador Judicial, independentemente de ser ou não uma decisão final) artigo 2.º n.º 4, n.º 7 e n.º 8 - artigo 7.º do regulamento 848/2015”.
Mais sustentam que o artigo 4.º n.º 1 do CIRE, passa a distinguir claramente o pedido de insolvência pelo devedor ou credor da decisão de um tribunal em aceder a esse pedido.
Desde logo cumpre atentar que o Regulamento (CE) n.º 1346/2000 foi revogado pelo Regulamento 2015/848, conforme decorre do seu artigo 91º. Por outro lado, de harmonia com o disposto no artigo 2.º n.º 7 e 8 deste último regulamento, considera-se decisão de abertura do processo de insolvência», quer a decisão de qualquer órgão jurisdicional de abrir um processo de insolvência, quer a decisão de qualquer órgão jurisdicional de confirmar a abertura de um processo dessa natureza, quer a decisão de um órgão jurisdicional de nomeação de um administrador da insolvência.
Sendo que o momento de abertura do processo corresponde ao momento em que a decisão de abertura do processo de insolvência produz efeitos, independentemente de essa decisão ser ou não final.
No entanto o momento de abertura processo é diferente do início do processo definido no artigo 4.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, ali se prevendo que todos os prazos que no CIRE têm como termo final o início do processo de insolvência abrangem igualmente o período compreendido entre esta data e a da declaração de insolvência (a significar que o inicio não corresponde à sentença).
O que igualmente decorre do artigo 259.º do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do disposto no artigo 17.º do CIRE, devendo a instância considerar-se iniciada com a proposição da acção. Sem esquecer que, como decorre do artigo 7.º do Regulamento 2015/848, salvo disposição em contrário, a lei aplicável ao processo de insolvência e aos seus efeitos é a lei do Estado-Membro em cujo território é aberto o processo e é essa mesma lei que determina as condições de abertura, tramitação e encerramento do processo de insolvência.
Para concluir que não assiste razão aos requeridos nesta parte e que o negócio a que aludem se mostra compreendido no limite temporal definido no artigo 186.º n.º 1 do CIRE.
Por outro lado, impõe-se subsumir os factos que se provaram às várias alíneas previstas no citado artigo 186.º do CIRE, a fim de aferir, pelo preenchimento de alguma(s), se ocorre a imputada qualificação culposa.
(…)
a) Na escritura em causa, outorgada em 29/06/2017, os aqui requeridos e ali primeiros outorgantes/vendedores declararam vender a CC e EE, pelo €167.000,79, a casa de habitação ali descrita, que haviam adquirido, em 13/05/2009, pelo preço de €180.000,00 e que, em 29/06/2017, tinha um valor de mercado não inferior a €203.300,00;
b) Conforme foi ali declarado, os requeridos assumiram que não receberiam o preço em questão e que o pagamento do respectivo preço de venda seria efectuado pelos compradores com a assunção da divida ao Banco 2..., no mesmo valor, assumindo estes a divida e todos os encargos com ela relacionada.
c) CC e EE (ali compradores) declararam ainda na referida escritura aceitar o contrato nos termos ali exarados, tendo ainda ali ficado consignado o seguinte: “E comprometem-se a diligenciar junto do Banco 2... no sentido da exoneração da responsabilidade dos vendedores pelas descritas dívidas hipotecárias, constitui condição resolutiva da presente venda caso tal exoneração não seja possível, o não cumprimento total ou parcial, pelos compradores, da assunção da descrita divida dos vendedores ao Banco 2..., pela não liquidação pontual de qualquer das prestações mensais e encargos associados, referentes aos descritos mútuos hipotecários contraídos pelos devedores.”;
d) BB é irmã de CC;
e) Em 31/05/2017, encontravam-se registadas no Banco de Portugal as responsabilidades que resultam do documento junto aos autos pelos requeridos em 20/12/2021;
f) O insolvente/requerido, em 28/05/2021, enviou à administradora da insolvência o email, com o teor constante do documento junto aos autos em 07/10/2022, que aqui se dá por reproduzido, ali declarando o seguinte: (…)
g) Os insolventes continuaram a viver no imóvel vendido, mesmo após 29/06/2017, permanecendo a requerida BB ainda hoje a residir no mesmo, tendo o requerido AA abandonado tal residência apenas após a separação do casal, em data concretamente não apurada de 2022.
h) Não obstante ainda residirem no referido imóvel, os requeridos indicaram no processo de insolvência e mesmo na escritura realizada em 03/10/2022, outra morada, que corresponde a que foi propriedade de CC e EE e é actualmente propriedade desta última.
i) Na escritura pública, outorgada em Cartório Notarial, em 03/10/2022, AA
e de BB (como primeiros outorgantes) e EE (na qualidade de segunda outorgante), por si e na qualidade de única herdeira de CC, declararam o seguinte:
(…)
j) Aquando da venda, a sociedade A..., Lda. – da qual o requerido era sócio gerente e relativamente à qual os requeridos haviam avalizado vários negócios (conforme resulta do que se provou em 10) e 11) dos factos provados e os próprios requeridos referiram na oposição) – encontrava-se já em dificuldades económicas, as quais redundaram na sua declaração de insolvência (conforme resulta do que se provou em 22) a 24) dos factos provados);
k) Mesmo após 29/06/2017, os empréstimos associados à aquisição da casa continuaram a ser debitados na conta titulada pelos insolventes no Banco 2..., nos termos que resultam dos extractos bancários juntos aos autos em 01/06/2022;
l) Não se provou que, a partir de 29/06/2017, os compradores tivessem liquidado todas as prestações vencidas no âmbito dos empréstimos referidos.
Afigura-se nos que tais factos, devidamente conjugados entre si e com as regras da experiência comum e normalidade do acontecer, são de molde a concluir que os requeridos, através do negócio em causa, ocultaram o referido imóvel, sem que este deixe de poder constituir parte considerável do seu património.
Tendo os insolventes alienado o imóvel a pessoas especialmente com eles relacionados (artigo 49.º n.º 1 alínea c) do CIRE), continuando a deter o poder de facto sobre o mesmo (porque ali continuaram a morar e a frui-lo), além do mais sem que tenha existido o correspectivo pagamento do preço e tudo fazendo para que não se apurasse tal facto (o que se mostra indiciado pelo facto de o requerido ter negado a ligação aos comparadores no email que enviou e pelo facto de os requeridos terem indicado sempre uma outra morada que não aquela onde viviam, morada essa correspondente a um outro prédio dos próprios compradores).
Ao que acresce que os próprios requeridos, mesmo após a sua declaração de insolvência, não se coibiram de outorgar nova escritura, revogando a cláusula resolutiva, sem terem legitimidade para tanto (artigo 81.º do CIRE), mas acima de tudo, sem nada receberem em troca (na medida em que não ficaram concomitantemente desobrigados do pagamento das prestações).
(…)
Para concluir que se mostra preenchida a presunção legal inilidível prevista na alínea a) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, o que determinará a qualificação da insolvência como culposa.
Mas independentemente disso também se conclui pelo preenchimento da alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, não sendo tais alíneas excludentes como se referiu.
Não podendo deixar de se afirmar que o negócio em análise se consubstanciou numa disposição de bens em proveito de terceiros, seja porque não existiu efectivo pagamento do preço (continuando os vendedores igualmente vinculados ao pagamento das prestações), seja porque o preço fixado foi muito inferior ao valor de mercado.
Aliás, analisada a cláusula resolutiva declarada na escritura constata-se o seguinte. Desde logo não foi fixado qualquer prazo para que os compradores desonerassem os vendedores, sujeitando-se estes a continuarem vinculados ao pagamento dos empréstimos indefinidamente (o que é ainda mais incompreensível quando os próprios até alegaram que procuravam desonerar-se dos empréstimos para não incorrerem em incumprimento e como ponto de honra).
(…)
A cláusula em causa tem o seguinte teor: “E comprometem-se a diligenciar junto do Banco 2... no sentido da exoneração da responsabilidade dos vendedores pelas descritas dívidas hipotecárias, constitui condição resolutiva da presente venda caso tal exoneração não seja possível, o não cumprimento total ou parcial, pelos compradores, da assunção da descrita dívida dos vendedores ao Banco 2..., pela não liquidação pontual de qualquer das prestações mensais e encargos associados, referentes aos descritos mútuos hipotecários contraídos pelos devedores.”.
Ou seja, o que ficou consignado como constituindo condição resolutiva da venda não foi a não exclusão de responsabilidade dos vendedores (insolventes) no pagamento das prestações ainda em dívida, mas sim apenas a não liquidação pontual de qualquer das prestações mensais e encargos associados, referentes aos descritos mútuos hipotecários. Donde, nem a própria cláusula conferiu aos vendedores qualquer protecção quanto a ficarem onerados com as dividas indefinidamente (o que, aliás, ainda persiste), embora tenham ficado formalmente desapropriados do bem vendido.
Tudo para concluir que a insolvência terá de ser qualificada como culposa, por ela devendo ser afectados ambos os requeridos.
(…)
No entanto, afigura-se-nos que a norma em causa deverá ser objecto da devida adaptação, nos casos em que a qualificação da insolvência afecte o próprio insolvente, pessoa singular.
Com efeito, não farão já qualquer sentido as injunções e a condenação previstas nas alíneas d) e e) do referido preceito legal, já que, por um lado, independentemente de qualquer condenação, o insolvente responderá sempre pelos créditos reconhecidos aos credores no processo de insolvência e até se mostrar exaurido todo o seu património. Perdurando aliás tal responsabilidade até para além do encerramento do processo de insolvência, considerando que a qualificação culposa da insolvência obstará sempre à concessão do benefício da exoneração do passivo restante (artigos 238.º n.º 1 alínea e), 243.º n.º 1 alínea c) e 244.º n.º 2 do CIRE) e que, após o encerramento, os credores da insolvência poderão exercer os seus direitos contra o devedor, constituindo para o efeito título executivo, a sentença de verificação de créditos ou a decisão proferida em acção de verificação ulterior (artigo 233.º n.º 1 alínea c) do CIRE).
Não fazendo sequer sentido determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos. Mostrando-se na verdade tais disposições previstas para os casos em que as pessoas afectadas são distintas do próprio insolvente, tendo como especiais destinatários os administradores, de direito ou de facto, de pessoas colectivas. Justificando-se aqui, precisamente, a ressalva a que o legislador aludiu no artigo 186.º n.º 4 do CIRE.
Aqui chegados, importa ponderar a culpa dos requeridos/insolventes, por referência às condutas que se provaram, quer pela ponderação do desvalor de tais acções, quer pelo desvalor do resultado das mesmas, em especial para a satisfação dos créditos reconhecidos.
Neste quadro, não deixa de se relevar que os factos relacionados com a venda do imóvel, bem como o contexto em que correu e as intenções que lhes estiveram subjacentes, são demonstrativos de uma actuação particularmente desvaliosa. Além do mais por afectarem a credibilidade que é devida a todo aquele que contrata com terceiros, em especial no tráfico comercial. Sem esquecer que o instituto em causa visa defender o interesse dos credores, mas tem igualmente uma vertente preventiva e de tutela geral, atendendo ao inerente prejuízo que sempre resultará de qualquer insolvência para a estabilidade da economia e segurança do comércio jurídico.
(…)
Donde, sopesando tudo o que se expôs, afigura-se-nos que as inibições acima referidas, atendendo à culpa e ilicitude das condutas, afastar-se-ão do limite mínimo legal previsto, para se firmarem mais próximo do ponto médio da aludida moldura (…)”.
*
*
1.ªquestão – Da alegada extemporaneidade da abertura do incidente da qualificação de insolvência.
Actualmente e, no que respeita ao momento da abertura do incidente de qualificação da insolvência, preceitua-se na al. i) do n.º1 do art.º 36.º do CIRE que “Na sentença que declarar a insolvência, o juiz: Caso disponha de elementos que justifiquem a abertura do incidente de qualificação da insolvência, declara aberto o incidente de qualificação, com carácter pleno ou limitado, sem prejuízo do disposto no artigo 187.º”.
E no art.º 187.º do mesmo CIRE que: “1 - Até 15 dias após a assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de dispensa da realização desta, após a junção aos autos do relatório a que se refere o artigo 155.º, o administrador da insolvência ou qualquer interessado pode alegar, fundamentadamente, por escrito, em requerimento autuado por apenso, o que tiver por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa e indicar as pessoas que devem ser afectadas por tal qualificação, cabendo ao juiz conhecer dos factos alegados e, se o considerar oportuno, declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência, nos 10 dias subsequentes.
2 – (…)
3 - Declarado aberto o incidente, o administrador da insolvência, quando não tenha proposto a qualificação da insolvência como culposa nos termos do n.º 1, apresenta, no prazo de 20 dias, se não for fixado prazo mais longo pelo juiz, parecer, devidamente fundamentado e documentado, sobre os factos relevantes, que termina com a formulação de uma proposta, identificando, se for caso disso, as pessoas que devem ser afectadas pela qualificação da insolvência como culposa.
4 - O parecer e as alegações referidos nos números anteriores vão com vista ao Ministério Público, para que este se pronuncie, no prazo de 10 dias.
5 - Se tanto o administrador da insolvência como o Ministério Público propuserem a qualificação da insolvência como fortuita, o juiz pode proferir de imediato decisão nesse sentido, a qual é insusceptível de recurso.
6 - Caso não exerça a faculdade que lhe confere o número anterior, o juiz manda notificar o devedor e citar pessoalmente aqueles que em seu entender devam ser afectados pela qualificação da insolvência como culposa para se oporem, querendo, no prazo de 15 dias; a notificação e as citações são acompanhadas dos pareceres do administrador da insolvência e do Ministério Público e dos documentos que os instruam.
7 – (…)”. (sublinhados nossos).
Como é sabido o CIRE teve a sua versão original com a publicação o DL n.º 53/2004, de 18.03 e desde então já sofreu algumas alterações relevantes, outras meramente alterações pontuais a determinadas normas, através dos DL n.º 200/2004, de 18.08, DL n.º 76-A/2006, de 20.03, DL n.º 282/2007, de 7.08, DL n.º 116/2008, de 4.06, DL n.º 185/2009, de 12.08, Lei n.º16/2012, de 20.04, Lei n.º 66-B/2012, de 31.12, DL n.º 79/2017, de 30.06, Lei n.º 114/2017, de 29.12 e DL n.º 84/2019, de 28.06.
*
Escreveu-se no preâmbulo do DL n.º 53/2004, de 18.03 a propósitos do incidente de qualificação da insolvência, além do mais, que: “(…) Um objectivo da reforma introduzida pelo presente diploma reside na obtenção de uma maior e mais eficaz responsabilização dos titulares de empresa e dos administradores de pessoas colectivas.
É essa a finalidade do novo ‘incidente de qualificação da insolvência’
As finalidades do processo de insolvência e, antes ainda, o próprio propósito de evitar insolvências fraudulentas ou dolosas, seriam seriamente prejudicados se aos administradores das empresas, de direito ou de facto, não sobreviessem quaisquer consequências sempre que estes hajam contribuído para tais situações. A coberto do expediente técnico da personalidade jurídica colectiva, seria possível praticar incolumemente os mais variados actos prejudiciais para os credores.
(…)
O tratamento dispensado ao tema pelo novo Código (inspirado, quanto a certos aspectos, na recente Ley Concursal espanhola), que se crê mais equânime - ainda que mais severo em certos casos -, consiste, no essencial, na criação do ‘incidente de qualificação da insolvência’, o qual é aberto oficiosamente em todos os processos de insolvência, qualquer que seja o sujeito passivo, e não deixa de realizar-se mesmo em caso de encerramento do processo por insuficiência da massa insolvente (assumindo nessa hipótese, todavia, a designação de ‘incidente limitado de qualificação da insolvência’, com uma tramitação e alcance mitigados)
O incidente destina-se a apurar (sem efeitos quanto ao processo penal ou à apreciação da responsabilidade civil) se a insolvência é fortuita ou culposa, entendendo-se que esta última se verifica quando a situação tenha sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave (presumindo-se a segunda em certos casos), do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, e indicando-se que a falência é sempre considerada culposa em caso da prática de certos actos necessariamente desvantajosos para a empresa
A qualificação da insolvência como culposa implica sérias consequências para as pessoas afectadas que podem ir da inabilitação por um período determinado, a inibição temporária para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de determinados cargos, a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência e a condenação a restituir os bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos (…)”.
O que quer dizer que então, ressalvando a situação prevista no art.º 187.º do CIRE (que se mantém actualmente), o incidente de qualificação de insolvência era sempre aberto oficiosamente pelo juiz logo aquando da declaração da insolvência. E ainda, decorria do n.º1 do art.º 188.º do CIRE que, até 15 dias depois da realização da assembleia de apreciação do relatório, qualquer interessado poderia alegar, por escrito, o que tivesse por conveniente para efeito de qualificação da insolvência como culposa e, preceituava o nº 2 desse preceito que, nos 15 dias subsequentes, deveria o administrador da insolvência apresentar parecer sobre os factos relevantes, formulando uma proposta de qualificação e identificando, se fosse o caso, as pessoas que deveriam ser afectadas pela qualificação. Nessa conformidade, entendia-se maioritariamente na jurisprudência que o prazo para o administrador da insolvência apresentar o seu parecer era meramente ordenador, cabendo ao mesmo cumpri-lo, se possível nesse prazo, dentro dos seus deveres de actuação zelosa e disciplinada. Entendendo-se então, (nós incluídos) que mesmo a falta do parecer, ressalvada a vertente funcional, não tinha repercussões processuais, pois mesmo perante a eventual omissão de junção de parecer, o juiz deveria diligenciar pela sua apresentação, instando o AI a fazê-lo, por forma a cumprir esse seu dever funcional, sem se olvidar que nesse caso, o incidente de qualificação da insolvência já havia sido oficiosamente declaro aberto pelo juiz na sentença declaratória da insolvência.
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Mas actualmente e como resulta dos preceitos legais acima transcritos, decorre que com a alteração introduzida ao CIRE pela Lei n.º 16/2012, de 20.04, modificou-se profundamente o carácter do incidente de qualificação da insolvência.
Pois que hoje existem dois momentos, ambos facultativos, para a haver uma decisão de abertura do incidente de qualificação da insolvência:
- na sentença de declaração de insolvência, oficiosa e fundamentadamente pelo juiz e, no caso de dispor de elementos que justifiquem a abertura do incidente;
- a requerimento do administrador da insolvência (pela junção de parecer sobre a qualificação da insolvência como culposa) ou de qualquer interessado, fundamentadamente deduzido até 15 dias após a assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de dispensa da realização desta, até 15 dias após a junção aos autos do relatório a que se refere o art.º 155.º, cabendo depois ao juiz, conhecer dos factos assim alegados e, se o considerar oportuno, nos 10 dias subsequentes, declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência. Após a abertura do incidente de qualificação o Administrador da Insolvência dispõe do prazo de, no mínimo, 20 dias para apresentar parecer de qualificação, excepto se foi ele quem requereu a abertura do incidente.

Sem se olvidar que, uma vez aberto o incidente – seja oficiosamente aquando da declaração da insolvência, seja na sequência da iniciativa do administrador ou de qualquer interessado – o administrador da insolvência (caso não tenha sido dele a iniciativa de propor a qualificação da insolvência como culposa) deverá apresentar parecer sobre os factos relevantes no prazo de vinte dias, se não for fixado prazo mais longo pelo juiz, como preceitua o n.º 3 do art.º 188.º do CIRE, entendendo nós que este ultimo prazo conferido ao administrador da insolvência não tem natureza peremptória, mas tão só regulador/ordenador da sua actividade funcional. Contrariamente ao que sucede quanto prazo conferido pela lei para o mesmo juntar aos autos o relatório a que alude o art.º 155.º do CIRE, uma vez que deste actualmente decorrem efeitos processuais importantes que extravasam a mera natureza funcional e afectam directamente interesses de terceiros, mormente potenciando a abertura ou não do incidente de qualificação da insolvência, pois decorre naturalmente da sua actuação funcional a recolha de elementos determinantes desse evento positivo ou negativo.
Sempre se dirá ainda que é evidente a vontade do legislado, já que o mesmo expressou na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 39/XII aprovada em Conselho de Ministros de 30.12.2011, que deu origem à Lei 16/2012, de 20.04, além do mais que: “(…)Outra das novidades consiste na transformação do actual incidente de qualificação da insolvência de carácter obrigatório num incidente cuja tramitação só terá de ser iniciada nas situações em que haja indícios carreados para o processos de que a insolvência foi criada de forma culposa pelo devedor ou pelos seus administradores de direito ou de facto, quando se trate de pessoa colectiva (artigos 36.º, 39.º, 188.º, 232.º e 233.º) (…)”.
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Vejamos o caso dos autos.
Na sentença que declarou a insolvência dos ora apelantes, proferida em 1.10.2020, o juiz não declarou aberto o incidente de qualificação da insolvência, de harmonia com o preceituado na al. i) do n.º1 do art.º 36.º do CIRE e, mais “Declaro prescindir da realização da reunião da assembleia de credores a que alude o artigo 156º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) e determino que a Sr.ª administradora da insolvência, caso nenhum interessado requeira a sua convocação, venha apresentar o inventário, a lista provisória de credores e o relatório previstos nos artigos 153.º a 155.º do mesmo código, no prazo de 45 dias”.
A Sr. AI juntou aos autos o seu relatório a que alude o art.º 155.º do CIRE em 16.11.2020 e, nele nada referiu quanto à eventual qualificação da insolvência como culposa, tendo apenas, indirectamente, referido que “Não são do conhecimento da Administradora Judicial quaisquer motivos para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante nos termos estipulados pelo artigo 238.º n.º1 do CIRE”.
Ora até 15 dias após a data da junção aos autos do referido relatório, ou seja, até 1.12.2020, nem a Sr.ª Administradora da Insolvência, nem nenhum dos credores, sabedores do teor do mesmo e, mesmo podendo e devendo ter feito as averiguações necessárias para o efeito, vieram aos autos ou juntar parecer, devidamente fundamentado, no sentido da insolvência ser qualificada como culposa ou requerer, alegando os necessários factos para o efeito, dessa mesma qualificação.
Aqui chegados, temos de concluir que ficou precludido o direito de se requerer e consequentemente de ser declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência como culposa, cfr. al. i) do art.º 36.º e art.º 188.º n.º1, ambos do CIRE.
E mais se tem de concluir que a decisão proferida em 1.ª instância em 19.04.2021, e acima transcrita - abertura oficiosa do incidente de qualificação da insolvência, não só foi proferida muito para além do momento permitido por lei para tal, ou seja, a sentença de declaração de insolvência, daí a sua manifesta extemporaneidade, como consubstancia ainda a prática de um acto que lei não admite/permite e que teve manifesta influência no exame e decisão da causa, e dada a sua irrecorribilidade prevista no n.º2 do art.º 188.º do CIRE, constitui a prática de uma nulidade processual, passível de fundamentar o recurso da decisão de qualificação da insolvência como culposa. Na verdade, perante o regime legal actualmente vigente, e atento o que acima se deixou consignado, dúvidas não restam de que o juiz apenas poderá, oficiosamente, declarar aberto o incidente na sentença que declara a insolvência se dispuser, então, de elementos relevantes; fora desse momento apenas poderá fazê-lo na sequência de iniciativa formulada pelo administrador da insolvência ou por qualquer interessado dentro do prazo assinalado na lei.
E não obstante as diligências inquisitórias levadas a cabo pela 1.ª instância, permitidas à luz do preceituado no art.º 11.º do CIRE, certo é que, não estando consagrada legalmente a possibilidade de o juiz actuar oficiosamente ao nível da abertura do incidente de qualificação da insolvência, para lá do momento em que é proferida a sentença, impõe-se concluir que, tais diligências se revelaram inócuas, pois que até se levaram a cabo em data posterior a qualquer actuação legalmente possível por parte da Sr.ª AI ou de qualquer credor (mormente ao credor Banco 2..., directamente relacionado com o negócio em referência), no sentido de requerem a abertura do incidente de qualificação da insolvência.
Destarte e sem necessidade de outros considerandos há que se decidir como nula a decisão que declarou a abertura do incidente de qualificação da insolvência nos autos, e consequente, julgar-se, nulo e de nenhum efeito, todo o processado posterior a ela, incluindo, obviamente a sentença proferida em tal incidente.
Consequentemente fica prejudicado o conhecimento das demais questões colocadas no presente recurso.
Procedem as conclusões dos insolventes/apelante.
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Sumário
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IV – Pelo exposto acordam os Juízes desta secção cível em julgar a presente apelação procedente e consequentemente declara-se nula e de nenhum efeito a decisão proferida a 19.04.2021 que declarou aberto o incidente de qualificação da insolvência, e consequentemente, julga-se também nulo todo o processado dela decorrente, incluindo a sentença sob recurso.

Custas pela massa insolvente.



Porto, 2023.02.07
Anabela Dias da Silva
Ana Lucinda Cabral
Rodrigues Pires