Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
358/19.8T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ IGREJA MATOS
Descritores: PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
CONHECIMENTO DE EXCEÇÃO DE CONHECIMENTO OFICIOSO
DISPENSA DA AUDIÊNCIA PRÉVIA
CAUSA DE PEDIR
INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
Nº do Documento: RP20201110358/19.8T8VNG.P1
Data do Acordão: 11/10/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Estruturante do processo civil, o princípio do contraditório confere às partes o direito a poder actuar ao longo do processo numa tríplice dimensão: factos, prova e direito.
II - Decretar a absolvição da instância do(s) réu(s) por força de uma excepção oficiosamente decretada, não arguida, nem debatida nos autos, após dispensa da realização de uma audiência prévia, deve, em regra, conduzir à nulidade da decisão (art. 195º nº 1 do C.P.C.)
III - Valem como regra de interpretação para os articulados os princípios legais de interpretação das declarações negociais no sentido de apurar se aqueles permitem a qualquer declaratário normal colocado na posição do real declaratário, ou a um diligente bom pai (ou mãe) de família, compreender o que está em causa na relação material em litígio (art° 236° do Código Civil “ex vi” art. 295º do C.C).
IV - Neste esforço interpretativo, deve ser privilegiada pelo tribunal, aquando daquele esforço interpretativo, a opção de decidir materialmente, evitando soluções de natureza formal que apenas adiam a resolução do conflito. Trata-se de prosseguir a velha máxima romana “Odiosa restringenda, favorabilia amplianda” (“restrinja-se o odioso; amplie-se o favorável”) em consonância com o disposto no nº 4 do artigo 20° da Constituição da República Portuguesa.
V - Numa acção de responsabilidade extracontratual em que estão em causa agressões físicas e o ressarcimento dos danos delas decorrentes, uma vez descritos os factos atinentes – desferir de muros, pontapés, puxões de cabelos –, as lesões decorrentes relativas aos órgãos corporais atingidos a par do medo causado, identificadas as datas desses factos e os autores de cada um das agressões, não se configura como inepta a petição inicial assim articulada.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 358/19.8T8VNG.P1

Acordam os juízes do Tribunal Colectivo da Relação do Porto

I – Relatório
B…, viúva, residente na …, n.º .., Casa ., ….-… … – Vila Nova de Gaia intentou a presente acção declarativa contra C…, residente na Rua …, n.º …., R/C, ….-… …s, Vila Nova de Gaia e D…, E…, residente na Rua …, n.º …., R/C, ….-… …, Vila Nova de Gaia, F…, residente na Rua …, n.º .., R/C Dt.º, ….-… …, Vila Nova de Gaia, onde termina peticionando que:
A) Devem os primeiro, segunda e terceiro réus ser condenados a pagar solidariamente à autora a quantia de €2.500,00 a título de indemnização pelos danos não patrimoniais causados à autora em consequência dos factos ocorridos em 18.01.2016 e alegados nos pontos 4. A 16. Da presente petição inicial, a que acrescerão juros de mora, à taxa legal em vigor, calculados desde a propositura da presente acção até efectivo e integral pagamento;
B) Devem ainda todos os réus ser condenados a pagar solidariamente à autora a quantia de €2.500,00 a título de indemnização pelos danos não patrimoniais, assim como a quantia de €33,25, a título de indemnização por danos patrimoniais, danos esses causados à autora em consequência dos factos ocorridos em 26.01.2016 e alegados nos pontos 17. A 36. Da presente petição inicial, a que acrescerão juros de mora, à taxa legal em vigor, calculados desde a propositura da presente acção até efectivo e integral pagamento.
A autora alega, em síntese breve, o que se passa a descrever, reproduzindo-se, “data venia”, o que consta do próprio relatório da douta decisão recorrida por motivos que melhor se perceberão adiante.
Assim, articula-se na sentença que a autora, o primeiro réu e a quarta ré são irmãos entre si, sendo a segunda ré, casada com o primeiro réu e o terceiro réu, filho do primeiro réu e da segunda ré.
No dia 18 de janeiro de 2016, cerca das 18h30, na garagem do imóvel sito na Rua …, n.º …, na …, em Vila Nova de Gaia, os primeiro, segunda e terceiro réus desentenderam-se com a autora; na sequência desse desentendimento, a segunda ré, munida de um objecto que não foi possível identificar, desferiu um golpe na autora, atingindo-a nas costas e no braço esquerdo. De seguida, os primeiro e terceiro réu agarraram e empurram a autora contra o portão. Como consequência directa da actuação do primeiro, segunda e terceiro réus, a autora sofreu diversas lesões que são detalhadamente descritas no relatório da sentença além de se sentir aterrorizada sempre que se encontra na casa de seu pai. Descreve ainda factos ocorridos no dia 26 de Janeiro de 2016, pelas 21h30, segundo os quais os primeiro e terceiro réus atacaram a autora e o pai desta, tendo desferido vários empurrões e murros na autora. De seguida, enquanto a autora se refugiava na cozinha da residência do seu pai, a segunda ré, seguindo-a, abeirou-se dela e, por trás, puxou-lhe os cabelos. No mesmo dia, mas já dentro da casa do pai da autora, gerou-se um desentendimento entre a segunda e a quarta ré e a autora e o pai desta tendo a quarta ré, munida de uma embalagem em spray, borrifado o respectivo conteúdo — que não se logrou identificar — para os olhos da autora e na mesma altura a segunda e quarta rés desferiu vários murros na cabeça e puxões dos cabelos, tendo a segunda ré acabado por segurar a autora para que a quarta ré lhe desferisse, como desferiu, vários murros que a atingiram na cabeça. Estas agressões de que foi alvo em 26 de Janeiro de 2016 igualmente causaram dores e lesões também discriminadas no relatório a par de um medo acrescido de que as agressões se pudessem repetir, medo esse que se mantém.
Contestaram os réus impugnando os factos e pedindo, além da absolvição do pedido, a condenação da autora como litigante de má fé.
Ficou provado nestes autos que:
“Correu termos o processo 75/16.0PIVNG no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Criminal de Vila Nova de Gaia, Juiz 4, no âmbito do qual foi proferida sentença que absolveu todos os lá arguidos (a autora e os réus destes autos) e que transitou em julgado (cfr. expediente junto em 30.01.2020).”
Perante o circunstancialismo descrito, o tribunal “a quo” proferiu a decisão recorrida, após dispensar a realização de audiência prévia, na qual considerou inepta a petição inicial por falta de alegação de factos constitutivos da causa de pedir, absolvendo os réus os réus da instância, resultando, portanto, prejudicadas as demais questões suscitadas.
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Inconformada a autora B… deduziu o presente recurso onde formula as seguintes conclusões:
I. Vem o presente recurso interposto da sentença proferida nos autos em epígrafe, por meio da qual o Tribunal a quo declarou a nulidade do processo por ineptidão da Petição Inicial, por falta de causa de pedir e, consequentemente, absolveu os Réus da instância.
II. O Tribunal a quo decidiu da excepção de nulidade do processo por ineptidão da Petição Inicial, sem, antes, assegurar à Autora o direito de se pronunciar quanto à mesma, o que se lhe impunha, nos termos dos artigos 6.º e 3.º, n.º 3 CPC.
III. Ao fazê-lo, incorreu o Tribunal a quo em violação do princípio do contraditório.
IV.A omissão das formalidades previstas no artigo 3.º do CPC, pode sempre influir – como influiu, in casu – na decisão e, nessa medida, constitui nulidade processual prevista no artigo 195.º do CPC, que desde já expressamente se argui.
V. O princípio do contraditório merece protecção constitucional, no artigo 2.º e 20.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa, pelo que a sua violação constitui ainda manifesta inconstitucionalidade, que se argui.
VI. Inexiste a apontada falta de alegação do nexo de causalidade, que pode ser encontrada nos artigos 7.º, 9.º, 26.º e 29.º da Petição inicial.
VII. Quanto à apontada falta de alegação da ilicitude da conduta dos Réus, não obstante não se conclua expressamente, na PI, pela existência de ilicitude, foram devidamente alegados os factos naturalísticos de que se poderão extrair as necessárias conclusões jurídicas quanto à ilicitude dos mesmos, podendo inclusivamente retirar-se da alegação constante dos artigos 12.º a 14.º e 32.º a 34.º da petição inicial a alegação da ilicitude de tais factos.
VIII. Quanto à apontada falta de alegação da culpa dos Réus na sua conduta, não obstante não se conclua expressamente, na PI, pela existência da mesma, foram devidamente alegados os factos naturalísticos de que se poderão extrair as necessárias conclusões jurídicas quanto à culpa, donde a sua alegação expressa seria meramente conclusiva.
IX.A causa de pedir é o facto material apontado pelo autor e produtor de efeitos jurídicos e não a qualificação jurídica ou a valoração do mesmo.
X. Apenas a falta, na PI, dos factos essenciais, determina a inviabilidade da ação por ineptidão daquela. Já os factos complementares são indispensáveis à sua procedência, não contendendo a sua falta com aquele vício, mas com a questão de mérito a dilucidar a final.
XI.O que interessa, no ponto de vista da apreciação da causa de pedir, é que o acto ou o facto de que o autor quer fazer derivar o direito em litígio esteja suficientemente individualizado na petição.
XII.A insuficiência ou incompletude do concreto factualismo consubstanciador da causa petendi, não fulmina, em termos apriorísticos e desde logo formais, a petição de inepta, apenas podendo contender, em termos substanciais, com a atendibilidade do pedido.
XIII. Só existe falta de causa de pedir quando o autor não indica o facto genético ou matricial, a causa geradora do núcleo essencial do direito ou da pretensão que aspira a fazer valer, o que não se verifica in casu.
XIV. Da interpretação concatenada das normas resultantes dos artigos 6.º e 590.º do CPC, resulta que, quando o juiz, por imposição legal ou por iniciativa própria, formule/tenha de formular, um juízo liminar sobre a possível ocorrência de exceção dilatória suprível, como seja a nulidade do processo por ineptidão da PI – cfr. artº 577º al. b) — deve providenciar pelo seu suprimento, vg. através de convite à parte para o efeito.
XV.A Autora deu a conhecer suficientemente as razões essenciais ou determinantes, ou seja, a causa petendi, da sua pretensão, pelo que a causa de pedir é perfeitamente inteligível e sindicável, o que é o suficiente para se concluir que não é taxável de inepta.
XVI.O quid essencial aduzido para a declaração de ineptidão da Petição Inicial – falta de alegação do requisito culpa - não está presente, desde logo, porque, dos factos aduzidos pela autora, devida e cabalmente interpretados — como constitui poder dever do juiz — tem de concluir-se que a demandante imputa subjetivamente aos Réus a responsabilidade, logo a culpa, pelo ocorrido.
XVII.O mesmo se pode dizer quanto à apontada falta de alegação da ilicitude dos comportamentos imputados aos Réus e descritos na petição inicial como sendo causadores dos danos verificados na esfera jurídica da Autora: dos factos aduzidos pela Autora, devida e cabalmente interpretados — como constitui poder dever do juiz —tem de concluir-se que a demandante reputa de ilícitos os factos que alega, sendo certo que basta a alegação dos mesmos para que o Tribunal esteja em condições de concluir pela sua ilicitude, uma vez que ela é manifesta quando estamos perante a alegação de factos inclusivamente integradores de crimes e violadores de direitos fundamentais, o que é alegado pela Autora.
XVIII. Não está, assim, em causa uma ausência absoluta de alegação de factos que integram o núcleo essencial da causa de pedir, sendo que só essa falta absoluta determinaria que o processo carecesse de um objecto inteligível e, nessa medida, fosse inepta a petição inicia.
XIX. Além disso, os Réus contestaram, defendendo-se por impugnação, demonstrando, muito clara e inequivocamente, ter intuído, plena e cabalmente, a pretensão da autora e os fundamentos por ela invocados para a sufragar; e nem sequer levantando, formal e expressamente, a questão da ineptidão da petição.
XX. Pelo que também por esse motivo não pode ser declarada a nulidade do processo por ineptidão da Petição Inicial que deve considerar-se sanada nos termos do n.º 3 do artigo 186.º.
XXI. Finalmente, e mesmo concedendo, por mera hipótese, que se considere que, na perspetiva do julgador, era necessária uma referência expressa à culpa dos Réus e à ilicitude das condutas que lhes são imputáveis, a petição não poderia ser taxada de inepta — pois que o núcleo factual essencial da pretensão foi invocado —, mas antes ser considerada incompleta ou deficiente.
XXII. Ora neste caso, e considerando o disposto nos citados art.ºs 6.º e 590.º n.º 4, impendia sobre o Tribunal a quo o dever de convidar a autora a completá-la e/ou aperfeiçoá-la.
XXIII.A inexistência de convite ao aperfeiçoamento da Petição Inicial, conforme previsto no artigo 590.º, n.º 4 do CPC, constitui omissão de acto prescrito pela lei apta a influir no exame e decisão da causa e, nessa medida, configura nulidade processual nos termos do artigo 195.º do CPC. Nulidade quem expressamente e para os devidos efeitos, se invoca.
XXIV.O Tribunal a quo fez uma interpretação e aplicação errónea do direito adjectivo ao caso em concreto pondo em causa o direito constitucional da Apelante de acesso aos tribunais nos termos do art.º 20.º da C.R.P.
XXV.Com a decisão recorrida, violou o Tribunal a quo as normas dos art.º 20.º da C.R.P. e dos art.ºs 2.º, n.º 1, 3.º, n.º 3, 5.º, n.ºs 1, 2 e 3, 6.º, n.º 2, 195.º,186.º n.º 1, n.º 2 al. a) e n.º 3, 590.º n.º1, n.º2, al b) e n.º 4., e 624.º, todos do C.P.C
Termina a apelante peticionando que seja concedido provimento ao recurso interposto, determinando-se, nessa conformidade, a revogação da sentença proferida, com a consequente prossecução dos autos.
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II – Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar.
O objecto do recurso é delimitado pelas alegações e decorrentes conclusões, não podendo este Tribunal de 2.ª instância conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excepcionais que aqui não relevam.
Deste modo, são duas as questões a dirimir:
A) Da violação do princípio do contraditório nos termos dos artigos 6.º e 3.º, n.º 3 do Código do Processo Civil (CPC).
B) Da verificação da excepção relativa à ineptidão da petição inicial.

III – Fundamentação de Direito
A) Invoca a apelante que o tribunal “a quo” cometeu uma nulidade processual prevista no artigo 195.º do CPC ao decidir da excepção de nulidade do processo por ineptidão da petição inicial, sem, antes, assegurar à Autora o direito de se pronunciar quanto à mesma.
Em causa, neste segmento, encontra-se um princípio estruturante do processo civil, decorrente do princípio da igualdade das partes: o contraditório.
A estatuição legal atinente é a do artigo 3º do CPC que refere não poder o tribunal resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição, cabendo ao juiz “observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”
Relativamente ao caso concreto que se subsume a uma decisão relativa a questão de direito processual - uma eventual ineptidão da petição inicial - , na valoração do que constituem as situações em relação às quais se terá de auscultar as partes para impedir decisões-surpresa, a doutrina tem indicado, com adesão consolidada da jurisprudência, a orientação que ora se resume a partir das palavras de José Lebre de Freitas, in Introdução ao Processo Civil, 3º ed., Coimbra ed., p. 133:
“(...) a proibição da chamada decisão-surpresa tem sobretudo interesse para as questões, de direito material ou de direito processual, de que o tribunal pode conhecer oficiosamente: se nenhuma das partes as tiver suscitado, com concessão à parte contrária do direito de resposta, o juiz – ou o relator do tribunal de recurso – que nelas entenda dever basear a decisão, seja mediante o conhecimento do mérito da causa, seja no plano meramente processual, deve previamente convidar ambas as partes a sobre elas tomarem posição, só estando dispensado de o fazer em casos de manifesta desnecessidade.”
Naturalmente que esta desnecessidade, ao ter que ser manifesta, deve impor-se inelutavelmente; por isso, o mesmo Lebre de Freitas refere o exemplo (página 134) de convidar a parte a pronunciar-se acerca de determinada questão que só foi suscitada no último articulado admissível se a mesma for resolvida a seu favor.
Revertendo ao caso em apreço, verificamos que a excepção de nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial não foi suscitada pelos réus na contestação e, consequentemente, não foi objecto de resposta por parte do autor. Percorremos as três contestações constantes dos autos e em nenhuma delas se articula sequer qualquer excepção, esta ou outra, que possa conduzir à absolvição da instância; apenas se pede a absolvição do pedido.
Temos ainda que foi dispensada a audiência prévia, espaço de discussão e debate na presença das partes, após proposta provinda do tribunal e que foi aceite pelas partes. No concernente despacho, ficou exarado o seguinte:
Tendo em conta que as partes já exerceram o contraditório relativamente a todas as questões levantadas (tanto mais que as contestações não apresentam matéria de excepção) e que já apresentaram os respectivos requerimentos probatórios, entende o tribunal que poderá ser dispensada a realização de audiência prévia, sem prejuízo da oposição das partes.
Notifique as partes para dizerem aos autos se se opõem a que seja dispensada a realização da audiência prévia.”
Parece decorrer desta notificação que a dispensa de realização de audiência prévia pretenderia agilizar os procedimentos em ordem à prossecução dos autos, como incute a invocação das circunstâncias de já terem sido apresentados os requerimentos probatórios e da ausência de matéria de excepção, como única concreta razão para a dispensa daquela audiência.
Julgamos, portanto, que nada permitiu às partes saber que a ineptidão do petitório seria eventualmente um tema dos autos, não surgiu como uma questão expectável, e, menos ainda, lhes foi dada a oportunidade de a debater, sabendo-se que o seu deferimento implicaria, como implicou, a absolvição dos réus e o termo da causa.
No início da decisão em que absolve os réus, o tribunal manteve a dispensa de audiência prévia (“Nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 592º, do Código de Processo Civil, dispenso a realização da audiência prévia (cfr. expediente de não oposição das partes junto em 05, 10 e 19.03.2020”), mesmo tendo em conta que veio, no mesmo despacho, a pôr termo ao processo, continuando sem auscultar as partes sobre esta decisiva matéria.
Em conclusão, entendemos verificada a pretendida nulidade uma vez que o tribunal recorrido proferiu sentença, na qual concluiu pela ineptidão da petição inicial, consequente nulidade de todo o processo e absolvição dos réus da instância, sem que, quanto a esta questão de direito processual, tenha sido cumprido, como devia, o princípio do contraditório.
A violação do contraditório, omissão de acto que a lei prescreve, conduz à nulidade uma vez que tal irregularidade pode influir no exame ou na decisão da causa; esta encontra-se, “in casu”, coberta por decisão judicial, pelo que cabe a este tribunal de recurso dela tomar conhecimento uma vez invocada, como foi, nas alegações de recurso.
Consequentemente, declara-se nula a decisão recorrida.
Porém, a questão de fundo pode, e deve, ser apreciada nesta sede recursal.
Na verdade, ao abrigo do disposto no art. 655º, nº1 do C.P.C, cumpre ao tribunal de recurso substituir-se ao tribunal recorrido na medida em que “ainda que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objeto da apelação”.
Disso cuidaremos no ponto seguinte.
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B) A sentença apelada entendeu que, estando em causa factos relativos a uma situação de responsabilidade extracontratual, conforme definida pelo artigo 483º do Código Civil, não teriam sido alegados, no petitório, quaisquer factos que “permitam a caracterização da ilicitude do facto e, muito menos o nexo de imputação do facto ao agente, a sua culpa e, no limite o nexo de causalidade.”
Cumpre apreciar e decidir. Como enquadramento genérico, cabe referir que a apreciação de uma peça processual deve partir do pressuposto que a mesma terá que ser interpretada no sentido de apurar se a mesma permite a qualquer declaratário normal colocado na posição do real declaratário (art° 236° do Código Civil “ex vi” art. 295º do C.C) ou de um diligente bom pai (ou mãe) de família, compreender o que está em causa na relação material em litígio.
Em termos constitucionais, sendo missão do poder judicial administrar a Justiça em nome do Povo (nº l do art° 202° da Constituição da República Portuguesa), aquele esforço interpretativo deve ser feito no sentido de procurar, na maximização do possível, dirimir materialmente os conflitos que lhe são colocados, evitando decisões de natureza formal. Trata-se, no fundo, de prosseguir a velha máxima romana “Odiosa restringenda, favorabilia amplianda” (“Restrinja-se o odioso; amplie-se o favorável”) em consonância com o disposto no nº 4 do artigo 20° da Constituição da República Portuguesa.
Segundo jurisprudência pacífica tal interpretação deve ter presente uma preocupação de prevalência do fundo sobre a forma de molde a procurar ir ao encontro do que é efectivamente pretendido pelas partes no processo, independentemente das incorrecções formais.
Isto posto, dispõe o art. 186º nº 2 do C.P.C.:
“Diz-se inepta a petição:
a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;
b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;
c) Quando se cumulem causas de pedir incompatíveis ou pedidos substancialmente incompatíveis.”
A causa de pedir, segundo a adoptada teoria da substanciação, traduz-se no facto jurídico material, concreto, em que se baseia a pretensão deduzida em juízo (art. 581º nº 4 do CPC). A falta de causa de pedir consiste na omissão de factos essenciais, somente estes, que servem de fundamento ao efeito jurídico pretendido.
Pois bem.
Analisando o caso em apreço a partir do que consta do próprio relatório da decisão recorrida, já acima transcrito nas partes relevantes, temos que o tribunal claramente entendeu que foram alegados factualmente um conjunto de situações ocorridas entre autora e os diferentes réus em duas datas distintas.
Destarte, o tribunal “a quo” entende que na petição foi alegado que:
No dia 18 de Janeiro de 2016:
- a segunda ré, munida de um objecto que não foi possível identificar, desferiu um golpe na autora, atingindo-a nas costas e no braço esquerdo;
- os primeiro e terceiro réu agarraram e empurram a autora contra o portão;
- como consequência direta da actuação dos primeiro, segunda e terceiro réus, a autora sofreu diversas lesões que são descritas além de ficar aterrorizada, sempre que permanece na casa de seu pai.
No dia 26 de Janeiro de 2016:
- os primeiro e terceiro réus desferiram vários empurrões e murros na autora;
- a segunda ré puxou-lhe os cabelos;
- a quarta ré, munida de uma embalagem em spray, borrifou o respectivo conteúdo — que não se logrou identificar — para os olhos da autora, que sofreu irritação e vermelhidão na zona atingida, deixando de ver;
- a segunda e quarta rés desferiram vários murros na cabeça e puxões dos cabelos na autora;
- a segunda ré segurava a autora para que a quarta ré lhe desferisse, como desferiu, vários murros que a atingiram na cabeça;
- estas agressões igualmente causaram dores e lesões a par de um medo acrescido de que as agressões se pudessem repetir, medo esse que se mantém.
Todos estes factos não só constam da petição inicial como, repita-se, são relatados no despacho recorrido como tendo sido concretamente alegados pela autora segundo o entendimento do tribunal “a quo”.
Salvo o devido respeito, face a esta enumeração factual, julgamos estarem descritos actos que consubstanciam uma violação do direito à integridade física da autora e que os mesmos foram causalmente responsáveis por um conjunto de danos - lesões físicas, dores, medo - susceptíveis de reparação.
Mesmo que, numa interpretação restritiva se possa defender que não foi expressamente alegado que os réus agiram com dolo directo, julgamos poder aferir-se tal pressuposto a partir da factologia descrita à luz da interpretação de um normal declaratário posto perante o que resulta acima narrado.
Mas ainda que o tribunal apelado assim o não entendesse, não se vislumbra como tal omissão possa desencadear a pretendida ineptidão da petição inicial. Salvo melhor opinião, teria sempre o tribunal recorrido o poder/dever de, ao abrigo do disposto no art. 590º nº 2 a) e nº 3 do CPC, convidar o autor a esclarecer esta situação.
Na verdade, uma vez identificada a causa de pedir, como o foi designadamente pelos contestantes que sobre a mesma discorreram sem dificuldades, a petição inicial será apta para o desempenho da sua função, pelo que, prosseguindo o processo, se faltar a alegação de alguns factos principais, o juiz deve convidar a parte a complementar a petição (arts. 590.º-4 e 591.º-1-c do CPC), podendo ainda, mais tarde, aquando da instrução do processo, ela vir a ser completada, se necessário (art. 5.º-2-b CPC).
Apenas se nenhum facto concreto, dos que integram a causa de pedir, haja sido alegado, hipótese descartada pela própria decisão apelada, é que a petição inicial poderia ser declarada inepta (art. 186.º CPC, n.ºs 1 e 2-a), por faltar o próprio objecto do processo (neste sentido, leia-se, por todos, Lebre de Freitas, Revista da Ordem dos Advogados, III-IV, pg. 748).
Uma nota lateral: afirma o tribunal apelado, a propósito da apreciação do pedido de condenação da autora como litigante de má-fé, ser temerária a actuação jurídica da autora na medida em que deveria ter desistido dos presentes autos uma vez transitado em julgado o processo-crime. Tal entendimento, naturalmente, nada teve a ver com a solução que foi dada à questão controvertida pela 1ª instância e, como tal, igualmente não contende com a revogação da decisão sob escrutínio que ora se decreta, com a procedência da apelação deduzida.
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Cumpre proceder à sumariação prevista no artigo 663º, nº7 do Código do Processo Civil:
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IV – Decisão
Pelo exposto, decide-se julgar procedente o recurso deduzido, revogando-se a sentença proferida e ordenando-se o prosseguimento dos autos.
Custas a fixar a final.

Porto, 10 de Novembro de 2020
José Igreja Matos
Rui Moreira
João Diogo Rodrigues