Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2941/11.0TBVFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA AMÁLIA SANTOS
Descritores: PATRIMÓNIO CONJUGAL COMUM
DÍVIDAS COMUNS DO CASAL
PARTILHA ADICIONAL
RENÚNCIA
Nº do Documento: RP201301312941/11.0TBVFR.P1
Data do Acordão: 01/31/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Não está vedado a um ex-cônjuge reclamar nos meios comuns direitos que não lhe foram reconhecidos na partilha dos bens do casal, desde que não tenha renunciado aos mesmos.
II - Tal direito já não lhe assistirá se os actos por ele praticados no respectivo inventário permitirem concluir que esses direitos foram ali assegurados.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 2941/11.0TBVFR.P1- Apelação 2ª
Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira
Relatora: Maria Amália Santos
1º Adjunto: Desembargador Aristides de Almeida
2º Adjunto: Desembargador José Amaral
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
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B… instaurou a presente acção, com processo sumário, contra C…, pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia de 15.112,40 euros, acrescida de juros de mora vincendos, à taxa legal, a contar da citação até integral pagamento.
Fundamentou a sua pretensão no facto de, por sentença transitada em julgado ter sido decretado o divórcio entre si e a ré e, nessa sequência, terem sido partilhados os bens comuns, partilha já homologada por sentença transitada em julgado, sucedendo que o autor entre Junho de 2002 e 17 de Junho de 2008 procedeu ao pagamento das prestações de dois créditos bancários contraídos pelo casal, nos montantes globais de 5.998,08 euros e de 15.617,52 euros, bem como procedeu ao pagamento da quantia de 4.000,00 euros relativa às prestações em falta à data de 30 de Julho de 2002.
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A ré contestou, por impugnação e alegando que as contas entre ambos ficaram acertadas no processo de inventário, no âmbito do qual o autor recebeu o montante de 60.000,00 euros a título de tornas e se considerou dessa forma completamente ressarcido dos pagamentos realizados.
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Foi proferida Decisão que julgou a acção improcedente e, em consequência, absolveu a ré do pedido.
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Não se conformando com a decisão recorrida, veio o A. dela interpor recurso de Apelação, apresentando as suas alegações e formulando as seguintes conclusões:
1. As despesas peticionadas pelo autor serão também da responsabilidade da Ré, uma vez que foram geradas por bens que integravam o património comum, após a data da propositura da acção de divórcio e foram pagas exclusivamente pelo Autor, designadamente, por terem a ver com a administração de bens do ex casal, levado a cabo pelo apelante.
2. Ora, não tendo sido considerado, no processo de inventário, o crédito do apelante que resultou do facto de ter pago a totalidade, quando era apenas responsável na proporção de metade, sob pena de ficar por dirimir – a questão do crédito - tem o mesmo a exigir através do recurso aos meios comuns, daí o recurso ao presente meio processual.
3. Face ao supra exposto, e pelo facto do alegado crédito do recorrente sobre a recorrida configurar uma compensação – decidiu, o tribunal a quo, a nosso ver, mal ao considerar que, e passa-se a citar: “O Autor deveria ter actuado o crédito que alega no inventário a que se procedeu para partilha do património conjugal comum, o que não ocorreu”.
4. E por via disso absolvendo a Ré do pedido.
5. Pelo que deve ser revogada a decisão recorrida, substituindo-se por outra que ordene se prossiga a ulterior tramitação, designadamente seleccionando a matéria assente e a controvertida e designação da data de discussão e julgamento.
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Pela recorrida foram apresentadas contra-alegações nas quais pugna pela manutenção da decisão recorrida.
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Cumpre decidir, sendo certo que o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões do recorrente, acima transcritas, no qual se apreciam apenas as questões invocadas e relacionadas com o conteúdo do acto recorrido e não sobre matéria nova, excepção feita para o que for do conhecimento oficioso.
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Nessa linha de orientação, a questão a apreciar, suscitada pelo recorrente na presente apelação é apenas a de saber se a decisão proferida deveria ser a ordenar o prosseguimento dos autos, para apuramento da matéria de facto controvertida, ou se, ainda que por outro fundamento, deveria decidir a questão, como decidiu, logo no saneador.
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Factos dados como provados na 1ª Instância:
a) Por sentença transitada em julgado a 29 de Abril de 2004 proferida no processo n.º 998/2002 que correu seus termos pelo 1º Juízo Cível deste Tribunal, foi decretada a dissolução do casamento entre o autor B… e a ré C… contraído a 24 de Dezembro de 1978, por divórcio por mútuo consentimento;
b) A acção de divórcio deu entrada em juízo a 3 de Setembro de 2002;
c) Por apenso à acção de divórcio correu termos o processo de inventário para partilha dos bens comuns, onde foi apresentada a relação de bens de fls. 28, cujo teor se dá aqui por reproduzido;
d) Na conferência de interessados estes chegaram a acordo quanto à composição dos respectivos quinhões, nos termos que da acta junta a fls. 41 constam;
e) Foi elaborado o mapa da partilha e proferida sentença de homologação a 28 de Setembro de 2009, transitada em julgado a 12 de Outubro de 2009.
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Da questão do Inventário para partilha dos bens do casal:
Resulta da matéria de facto provada que por sentença transitada em julgado a 29 de Abril de 2004 proferida no processo n.º 998/2002 que correu seus termos pelo 1º Juízo Cível deste Tribunal, foi decretada a dissolução do casamento entre o autor B… e a ré C… contraído a 24 de Dezembro de 1978, por divórcio por mútuo consentimento, tendo a acção de divórcio dado entrada em juízo a 3 de Setembro de 2002.
Mais resultou provado que por apenso à acção de divórcio correu termos o processo de inventário para partilha dos bens comuns.
Dispõe o artº 1404º do Código de Processo Civil (ainda em vigor à data dos factos) que, decretado o divórcio, pode qualquer dos cônjuges requerer inventário para partilha dos bens, sendo o regime o da comunhão geral ou o de comunhão de adquiridos, incumbindo as funções de cabeça-de-casal ao cônjuge mais velho, correndo o processo por apenso ao processo de divórcio.
Aplicam-se-lhe as disposições previstas no Capitulo XVI, secções 1 a 8 do Código de Processo Civil.
Entre essas disposições constam as do artº 1345º do Código de Processo Civil, o qual dispõe, no seu nº 1, que “Os bens que integram a herança são especificados na relação por meio de verbas, sujeitas a uma só numeração, pela ordem seguinte: direitos de crédito, títulos de crédito, dinheiro, moedas estrangeiras, objectos de ouro, prata e pedras preciosas e semelhantes, outras coisas móveis e bens imóveis”, acrescentando o nº 2 que “as dívidas são relacionadas em separado, sujeitas a numeração própria”.
O artº 1346º nº 1 do Código de Processo Civil especifica a obrigatoriedade de indicação do valor dos bens relacionados, estatuindo o nº 2 a forma de indicação do valor dos prédios inscritos na matriz e dispondo o nº 3 sobre quais os bens que devem ser relacionados como bens ilíquidos.
Por sua vez o artº 1348º nº 1 do Código de Processo Civil refere que, “apresentada a relação de bens, são os interessados notificados de que podem reclamar contra ela no prazo de 10 dias, acusando a falta de bens que devam ser relacionados, requerendo a exclusão de bens indevidamente relacionados, por não fazerem parte do acervo a dividir, ou arguindo qualquer inexactidão na descrição de bens, que releve para a partilha”.
As normas processuais transcritas vêm dar corpo, na prática, à realidade substantiva do regime de bens do casamento e da liquidação do património após o fim da comunhão conjugal.
Como é por demais sabido, o património comum dos cônjuges constitui uma massa patrimonial a que, em vista da sua especial afectação, a lei concede certo grau de autonomia – embora limitada e incompleta – mas que pertence aos dois cônjuges, em bloco, sendo ambos titulares de um único direito sobre ela (cf. Pereira Coelho, Curso de Direito da Família, pág. 397).
Os bens comuns dos cônjuges constituem, assim, objecto, não de uma relação de compropriedade, mas de uma propriedade colectiva ou de mão comum (cf. Antunes Varela, Direito da Família, pág. 436).
Cada um dos cônjuges tem, assim, uma posição jurídica em face do património comum, no qual participam por metade, posição que a lei tutela (art. 1730º do Código Civil). Ou seja, cada um dos cônjuges tem um direito à meação, um verdadeiro direito de quota que exprime a medida de divisão e que virá a realizar-se no momento em que esta deva ter lugar (cf. Pires de Lima, Enciclopédia Verbo, comunhão, e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19 de Abril de 1983, CJ VII, II, pág. 259).
As relações patrimoniais entre os cônjuges cessam, no entanto, pela dissolução do casamento ou pela separação judicial de pessoa e bens (arts. 1688º e 1795º-A do Código Civil).
Cessadas as relações patrimoniais entre os cônjuges, procede-se à partilha dos bens do casal (art. 1689º, n.º 1, do Código Civil).
Cada cônjuge receberá na partilha os bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo previamente o que dever a esse património (art. 1689º, n.º 1, do Código Civil).
A lei faz retroagir, no entanto, os efeitos do divórcio, no tocante às relações patrimoniais entre os cônjuges, à data da proposição da acção de divórcio ou à data da cessação da coabitação entre ambos, embora, neste último caso, nos termos do n.º 2 do art. 1789º do Código Civil.
Com a retroacção – que significa que a composição da comunhão se deve considerar fixada no dia da proposição da acção e não no dia do trânsito em julgado da decisão e que a partilha deve ser feita como se a comunhão tivesse sido dissolvida no dia da instauração da acção ou na data em que cessou a coabitação – quer-se evitar o prejuízo de um dos cônjuges pelos actos de insensatez, prodigalidade ou de pura vingança que o outro venha a praticar desde a propositura da acção sobre os valores do património comum (cf. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. IV, pág. 561).
Dispõe por sua vez o artº 1689º nº 3 do Código Civil, referente ao pagamento de dívidas aquando da partilha do casal, que “os créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum; mas não existindo bens comuns, ou sendo estes insuficientes, respondem os bens próprios do cônjuge devedor”.
E, no tocante ao pagamento de dívidas do casal, o artº 1697º nº1 do Código Civil estatui a compensação nos seguintes termos: “Quando por dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges tenham respondido bens de um só deles, este torna-se credor do outro pelo que haja satisfeito além do que lhe competia satisfazer; mas este crédito só é exigível no momento da partilha dos bens do casal, a não ser que vigore o regime de separação”.
E o nº 2 refere que “Sempre que por dívidas da exclusiva responsabilidade de um só dos cônjuges tenham respondido bens comuns, é a respectiva importância levada a crédito do património comum no momento da partilha”.
De acordo com tais regras, existe a preocupação legal de que na liquidação e na partilha do património comum deve haver equilíbrio no rateio final, de forma a que o património individual de cada um dos cônjuges não fique nem beneficiado nem prejudicado em relação ao outro (cfr. arts.º 1689º nº 1 e 1730º nº 1 do Código Civil).
Como se verifica, existem especificidades na liquidação e partilha do património comum dos cônjuges que não encontramos na liquidação e partilha da herança, e essas especificidades têm a ver com a circunstância de naquele tipo de inventários, ao longo da vigência da comunhão conjugal, se verificarem transferências de valores entre o património comum e os patrimónios próprios dos cônjuges.
Ou seja, nos regimes de comunhão, seja da comunhão de adquiridos, seja da comunhão geral, a massa dos bens comuns dos cônjuges pode coexistir com outras massas patrimoniais: a dos bens próprios de cada um dos cônjuges. Nos regimes de comunhão podem, portanto, existir patrimónios separados que pertençam ao mesmo cônjuge.
A extinção do casamento importa a cessação da generalidade das relações patrimoniais entre os cônjuges, a extinção da comunhão entre eles e a sua substituição por uma situação de indivisão a que se põe fim com a liquidação do património conjugal comum e com a sua partilha.
Contudo, antes de se proceder à partilha desse património, depois da separação dos bens próprios de cada um dos cônjuges, caso existam, importa proceder à liquidação da comunhão.
E é no momento dessa liquidação que se deverá proceder às compensações entre os patrimónios próprios e comuns.
Com efeito, a partilha do casal não se limita à partilha do património comum, antes se desdobra em várias operações distintas: entrega dos bens próprios; liquidação da comunhão, na qual se inclui o apuramento e o pagamento das dívidas; avaliação e cálculo das compensações e, por fim, a partilha dos bens comuns (art. 1689º do Código Civil).
Na fase da liquidação da comunhão, cada um dos cônjuges deve conferir ao património comum tudo o que lhe deve.
O cônjuge devedor deverá compensar nesse momento o património comum pelo enriquecimento obtido no seu património próprio à custa do património comum. Uma vez apurada a existência de compensação a efectuar à comunhão, procede-se ao seu pagamento através da imputação do seu valor actualizado na meação do cônjuge devedor, que assim receberá menos nos bens comuns, ou na falta destes, mediante bens próprios do cônjuge devedor de forma a completar a massa comum.
Admite-se, pois, um princípio geral que obriga às compensações entre os patrimónios próprios dos cônjuges e a massa patrimonial comum sempre que um deles, no momento da partilha, se encontre enriquecido em detrimento do outro. Caso contrário, verificar-se-ia um enriquecimento injusto da comunhão à custa do património de um dos cônjuges ou de um dos cônjuges à custa do património comum (cf. Menezes de Leitão, Enriquecimento sem Causa no Direito Civil, CEF, 1996, págs. 513 a 516).
No tocante à responsabilidade por dívidas, nos termos gerais, pode dizer-se que são devidas compensações quando as dívidas comuns dos cônjuges forem pagas com bens próprios de um dos cônjuges ou quando as dívidas de um só dos cônjuges sejam pagas com bens comuns (art. 1697º, n.º 2, do Código Civil).
Estas compensações só são exigíveis, no entanto, como acima se disse, no momento da partilha dos bens do casal (art. 1697º, n.º 1, do Código Civil).
As razões que explicam que as compensações apenas sejam exigíveis no momento da partilha dos bens do casal prendem-se, por um lado, ser de toda a vantagem adiar para esse momento a exigibilidade das dívidas entre cônjuges, por poder ser fonte de desentendimentos conjugais quando admitida antes disso; e prendem-se por outro lado com o facto de a atribuição imediata de exigibilidade a essas dívidas entre os cônjuges equivaler a atribuir-lhes uma exigibilidade a todo o tempo, já que entre os cônjuges não pode ocorrer a prescrição (art. 318º, alínea a), do Código Civil) e dessa maneira colocar-se-ia nas mãos do cônjuge credor um meio fácil de tutelar economicamente a actividade do cônjuge devedor (cf. Braga da Cruz, BMJ n.º 69, pág. 413).
Há, porém, que fazer uma distinção entre as verdadeiras compensações e os créditos entre os cônjuges: as compensações verificam-se entre o património comum e o património próprio de cada um dos cônjuges e, assim, só têm lugar nos regimes de comunhão; os créditos entre cônjuges são os que existem entre os patrimónios próprios de cada um dos cônjuges, sem intervenção do património comum, admissíveis em qualquer regime de bens e exigíveis a todo o tempo.
Deste modo, da relação de bens têm de constar não só as posições activa e passiva do património comum em relação a terceiros, como também as compensações entre património comum e próprios, bem como as dívidas recíprocas dos cônjuges se não tiverem sido saldadas ao longo da vida conjugal, isto pela simples razão de que não tendo ocorrido esse pagamento, é no momento da partilha do património comum que tal deve ocorrer.
Saliente-se que, como acima se deixou dito, seguindo o inventário em consequência do divórcio o processamento previsto nos arts 1326º e seguintes do CPC – nº 3 do artº 1326º e nº 3 do art. 1404º, ambos do CPC – os arts 1345º e 1346º determinam que o cabeça de casal elaborará uma relação de bens indicando o valor atribuído a cada um deles e relacionará em separado as dívidas.
No que concerne ao pagamento de dívidas a matéria está dividida por duas disposições legais – os arts 1689º e 1697º.
Torna-se necessário, antes de mais, determinar o volume do património que responde pelas dívidas; daí cada cônjuge dever conferir o que deve ao património comum em virtude de pagamentos de dívidas da sua exclusiva responsabilidade, consoante resulta do nº 1 do artº 1689º e do nº 2 do artº1697º do CC.
Será também esse o momento de os cônjuges se exigirem reciprocamente o pagamento das dívidas entre si, quando por dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges tenham respondido bens de um só deles o qual se torna credor do outro pelo que haja satisfeito além do que lhe competia satisfazer (nº 1 do artº 1697º do CC); tal crédito só é exigível no momento da partilha dos bens do casal (a não ser que vigore o regime da separação).
Por fim, haverá que referir o pagamento de dívidas a terceiros. Atento o disposto no nº 2 do artº 1689º e no artº 1695º do CC, os credores comuns são pagos com preferência pelos bens comuns do casal; quando haja dívidas a solver serão pagas as dívidas comunicáveis, à custa da massa dos bens comuns e saldadas estas poderão ser pagas, então as restantes.
Os credores comuns, em acção comum, poderão sempre demandar os cônjuges pelas respectivas dívidas, respondendo pelas dívidas que são da responsabilidade de ambos os cônjuges, na falta de bens comuns, «solidariamente, os bens próprios de qualquer dos cônjuges» (nº 1 do artº 1695º do CC).
Tal como o cônjuge que satisfaça com bens próprios dívidas comuns poderá demandar o outro cônjuge com vista a obter ressarcimento, também através de acção comum.
Refere, a propósito, João António Lopes Cardoso (obra citada, vol. III, 3ª edição, págs. 391-392), que no decurso da sociedade conjugal algumas vezes os cônjuges se tornam reciprocamente devedores entre si, situação que se verifica, designadamente, sempre que por bens próprios de um deles se dá pagamento a dívidas da exclusiva responsabilidade do outro, ou quando tratando-se de dívida da responsabilidade solidária de ambos um deles satisfaz voluntariamente maior quantia que o outro. Nesses casos, «pendente o matrimónio persiste a inexigibilidade dos créditos, passando estes a ser exigíveis tão somente após a sua dissolução ou, melhor dizendo, na subsequente partilha, a não ser que vigore o regime de separação». Defende, ainda, que tais créditos «não deverão ser objecto de relacionação isto mau grado deverem ser considerados no momento da partilha para serem satisfeitos na conformidade do disposto no art. 1689º-3 do Código Civil» (devendo ser levados à conferência de interessados).
Uma questão a colocar aqui – e que também foi levantada na decisão recorrida – é a questão de saber qual a natureza jurídica dessa comunhão no período temporal compreendido entre a dissolução do regime de bens resultante da extinção da relação matrimonial e a partilha.
Como se deixou dito, as relações patrimoniais e pessoais entre os cônjuges cessam com o divórcio, mas mantém-se, até à partilha, a comunhão de bens.
Aderindo ao que consta da decisão recorrida, “alguma doutrina e jurisprudência sustentam que a natureza do património conjugal comum só termina com a partilha dos bens comuns (cf. Cristina M. Araújo Dias, Processo de inventário, administração e disposição de bens (conta bancária) e compensações no momento da partilha dos bens do casal – comentário ao Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 21 de Janeiro de 2002, Lex Familiae – Revista Portuguesa de Direito da Família, ano I, n.º 2, 2004, pág. 117, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Dezembro de 1998 e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12 de Julho de 2001, in www.dgsi.pt).
Há quem sustente, no entanto, a transformação da comunhão conjugal em compropriedade e, consequentemente, a aplicação àquela das normas desta (cf. Vaz Serra, RLJ Ano 105º, pág. 159, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30 de Novembro de 2000, in www.dgsi.pt, e Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 2 de Fevereiro de 1984, CJ, I, pág. 288).
A indivisão que permanece entre a dissolução do regime de bens e a partilha do património conjugal comum tem, decerto, uma natureza e regime distintos da comunhão conjugal.
Todavia, ao passo que alguma doutrina sustenta que se passa de uma comunhão colectivística para uma comunhão individualística, onde cada um dos cônjuges detém uma quota abstracta de 50% sobre a totalidade do património comum, ainda que não concreta sobre os bens que a integram (Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. I, pág. 225), outra aproxima-a da comunhão hereditária (Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, vol. I, pág. 689): cada ex-cônjuge pode dispor da sua meação, bem como pode pedir a separação de meações, mas isso não significa que os bens comuns deixem de ser um património comum e passem a pertencer aos dois cônjuges em compropriedade”.
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Volvendo ao caso dos autos, temos como adquirido que o casamento do autor e da ré considera-se contraído segundo o regime da comunhão de adquiridos.
Acresce que vistas as disposições legais citadas (substantivas e processuais supletivamente aplicáveis ao inventário para separação de meações, e tendo ainda em mente o regime substantivo (artºs. 1689º e 1697º do Código Civil), verificamos que foi dado cumprimento às mesmas, no caso dos autos.
Efectivamente, por apenso à acção de divórcio, correu termos o processo de inventário para partilha dos bens comuns, onde foi apresentada pelo A., na qualidade de cabeça de casal, a relação de bens de fls. 28, cujo teor se dá aqui por reproduzido, sem que da mesma tenha havido reclamação.
Ora, na presente acção o autor pretende obter da ré o pagamento das prestações que alega ter pago relativas a dois contratos de empréstimo desde a data da separação, desde Junho de 2002 e até 17 de Junho de 2008, incluindo as prestações em dívida à data de 30 de Julho de 2002.
Ou seja, de acordo com as alegações do A., ele terá efectuado o pagamento das prestações ao banco, relacionadas com dois créditos contraídos pelo casal, durante a constância do matrimónio, tendo, por isso, direito, no momento da partilha, a exigir que esse seu crédito seja compensado com a meação da ré nos bens comuns.
Trata-se de dívidas contraídas por ambos os cônjuges, depois da celebração do casamento, logo, trata-se de uma dívida que responsabiliza ambos os cônjuges, nos termos do estipulado no artº 1691° nº 1, al. a), do Código Civil.
Ora, parte do pagamento da dívida teria sido feito ainda na pendência do casamento – até 3.9.2002, data da instauração da acção do divórcio - e outra posterior ao divórcio.
A data a ter em conta “in casu” é apenas a de 3.9.2002 (data da propositura da acção de divórcio), à qual retroagem os efeitos patrimoniais do divórcio (cf. artº 1789° n° 1, do Código Civil).
O pagamento efectuado até essa data, como bem se decidiu na sentença recorrida, não está sujeito à compensação entre o património comum e o património próprio do cabeça-de-casal, uma vez que só haveria lugar à compensação prevista no artº 1697° n° 1 do Código Civil, se o pagamento da dívida, até essa altura, tivesse sido feito com dinheiro proveniente de bens próprios do cônjuge não beneficiário (o que não foi sequer alegado).
Daí que na decisão recorrida se tenha feito a restrição a tal data, atendendo-se apenas aos montantes pagos posteriormente a 3.9.2002.
Ou seja, o cabeça-de-casal nunca poderia reclamar o pagamento da dívida pelo valor total reclamado.
Quanto ao valor correspondente ao das prestações pagas após aquela data, assistia ao cabeça-de-casal (recorrente) o direito de ser reembolsado de metade do mesmo pela meação da ré no património comum, como foi, de acordo com os documentos existentes nos autos.
Da decisão recorrida consta o seguinte:
“No caso em apreço, trata-se de uma dívida comum, contraída pelo casal na constância do matrimónio. Alega o autor que procedeu ao pagamento das prestações relativas aos contratos de empréstimo entre Junho de 2002 e 17 de Junho de 2008.
Em primeiro lugar, considerando a data da propositura da acção de divórcio, cumpre referir que o pagamento invocado até essa data não confere ao autor qualquer crédito relativamente à ré.
De facto, os efeitos patrimoniais do divórcio retrotraem-se ao momento da propositura da acção – 3 de Setembro de 2002 –, uma vez que não foi fixada a data da cessação da coabitação entre ambos, e o autor não alega que o pagamento tenha sido efectuado com bens próprios.
Em segundo lugar, o pagamento invocado após aquela data configuraria uma compensação, resultante da satisfação, apenas pelo autor, de dívida contraída no decurso da comunhão, que deveria integrar o passivo comum, como dívida da comunhão a um dos cônjuges. No entanto, tal não sucedeu no caso em apreço, como resulta, desde logo, da relação de bens e da conferência de interessados (cf. alíneas c) e d) dos factos provados).
Isto é, a compensação em causa não foi exigível no momento da partilha.
O autor deveria ter actuado o crédito que alega no inventário a que se procedeu para partilha do património conjugal comum, o que não ocorreu.
Não lhe assiste, nestes termos, o direito a reclamar da ré a prestação invocada. Não lhe assiste, pois, o direito que se arroga, pelo que a presente acção deve ser julgada improcedente”.
Ora, de acordo com o que fica exposto, não podemos concordar com o que ficou decidido na sentença recorrida.
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Antes de mais, parece resultar do teor da decisão recorrida que a partilha efectuada entre o casal teria o efeito de obstar a que outros bens (designadamente, créditos ou débitos) pudessem ser posteriormente considerados ou que fosse reaberta a discussão sobre a repartição desses outros bens.
Ou seja, ao firmar o acordo na partilha haveria como que uma renúncia dos ex-cônjuges a um eventual direito a quaisquer outros bens ou valores ali não considerados.
Mas não resulta da lei tal entendimento.
Em princípio, a realização de uma partilha (mesmo extra-judicial) não terá o significado de uma renúncia a outros bens. Convém ter aqui presente o disposto no artº 2122º do C.Civil, em que se diz que «a omissão de bens da herança não determina a nulidade da partilha, mas apenas a partilha adicional dos bens omitidos», e a norma instrumental daquela, o artº 1395º, nº 1, do CPC, segundo o qual «quando se reconheça, depois de feita a partilha judicial, que houve omissão de alguns bens, proceder-se-á no mesmo processo a partilha adicional», sendo certo que estas disposições, directamente dirigidas à partilha por morte, se aplicam também à partilha em caso de divórcio, como evidencia a remissão do artº 1404º, nº 3, do CPC para os termos da partilha por morte (sobre este ponto, cfr. CAPELO DE SOUSA, Lições de Direito das Sucessões, II, Coimbra Editora, Coimbra, 1980, pp. 374-375).
Nada obsta, pois, a que se proceda a uma «partilha adicional» em caso de divórcio, não tendo os artos 1689º e 1697º do C.Civil o alcance que a decisão lhe pretende conferir.
Admite-se, porém, que, em concreto, possa haver essa renúncia, o que dependerá dos termos exactos em que for celebrado o acordo de partilha (judicial ou extra-judicial).
No entanto, no presente caso, não foram integrados na matéria de facto elementos mais específicos sobre o teor do acordo na partilha, de modo a ter a exacta percepção acerca da posição das partes sobre essa partilha: não sabemos se, ao acordarem a partilha nos termos em que o fizeram, as partes pretenderam resolver definitivamente a questão, renunciando a quaisquer outros bens ou valores ali não considerados.
Se é certo que essa atitude seria normal, no contexto da cessação da comunhão de vida inerente ao vínculo conjugal, sempre haveria que colher elementos seguros sobre a ocorrência dessa atitude.
Ora, no caso sub judice são omissos esses elementos.
Havendo, pois, que considerar apenas a matéria de facto assente, não se afigura possível admitir que houve uma tal renúncia, pelo que parece nada obstar a que, em sede geral, o A. pudesse exigir da ré uma «partilha adicional» de outros bens ou valores não considerados na partilha anteriormente celebrada.
Também não vemos que fique arredada a possibilidade, em abstracto, do recurso aos meios comuns, para efectivação dos direitos de alguma das partes, não acautelados na partilha.
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Mas mais importante do que isso, contrariamente ao que ficou decidido na sentença recorrida, o autor actuou o crédito que alega nesta acção, no inventário a que se procedeu para partilha do património conjugal comum.
E esse crédito foi atendido na partilha dos bens.
Como consta dos autos, na relação de bens de fls. 28, apresentada pelo cabeça de casal (documentos juntos aos autos pelo próprio A.), consta na rubrica “Activo” a verba única “Prédio urbano composto por casa de rés-do-chão e 1º andar, destinada a habitação (…) com o valor patrimonial de € 45.900,00”.
E na rubrica “Passivo” consta a verba nº 1 “Dívida do casal ao Banco “D…” referente ao crédito para habitação nº ..............., do montante de € 27.069,23”; a verba nº 2 “Dívida do casal ao Banco “D…” referente ao crédito multifunções, número ……………, no montante de € 7.943,23”; a verba nº 3 “Dívida ao cabeça de casal, referente às prestações por este liquidadas ao “D…” relativas ao empréstimo nº ..............., do montante de € 9.110,22”; a verba nº 4 “Dívida ao cabeça de casal referente às prestações por este liquidadas ao “D…” relativas ao empréstimo multifunções, número ……………, do montante de € 3.360,36”; e a verba nº 5 “Dívida ao cabeça de casal referente à quota parte que este detinha na conta nº ................., do banco “D…”, indevidamente levantado pela requerente em 30.07.02, de € 2.500,00”.
Consta ainda uma relação adicional de bens composta por bens móveis.
Na conferência de interessados a ré comprometeu-se a pagar o passivo constante das verbas nº 1 e 2, assim como o passivo não relacionado a um Banco Alemão (ali designado).
O imóvel foi-lhe adjudicado, assim como alguns bens móveis.
Assumiu ainda a requerente, na mesma conferência de interessados, pagar tornas ao A., no valor de € 60.000,00, declarando o A. que se considerava ressarcido das mesmas.
Como consta também dos autos, foi elaborado o mapa da partilha no qual se fixou o valor do activo a partilhar (€ 46.275,00), o valor do passivo do casal a terceiros (€ 35.012,72), fixando-se o valor das meações (€ 23.137,50).
Como a ré recebeu bens no valor de € 45.980,00, ou seja, mais € 22.842,50 do que lhe era devido, deveria dar esse valor de tornas ao A., que era a quantia que no mapa da partilha ficou a menos para aquele.
No entanto, como assumiu sozinha a totalidade do passivo – de € 35.012,72 – sendo responsável apenas por metade (€ 17.506,36), deveria dar de tornas ao A. apenas a quantia de € 5.346,14.
Ora, a ré, segundo o que ficou a constar da conferência de interessados, pagou de tornas ao A. a quantia de € 60.000,00, por acordo.
É certo que nada ficou a consta da conferência quanto às “dívidas ao cabeça de casal”, por ele reclamadas, no valor global de € 14.970,58, mas pode deduzir-se das operações efectuadas que o A fez a compensação do seu crédito com a assunção da totalidade do passivo a terceiros por parte da ré, e ainda com o recebimento de tornas daquela, no valor de € 60.000,00, sem que nada o justificasse, além do valor dos créditos reclamados.
Aliás, tendo sido os documentos analisados, juntos aos autos pelo A., dos quais se extrai a leitura que acabamos de fazer, competia-lhe e ele esclarecer o tribunal sobre o motivo pelo qual recebeu aquele valor de tornas, que não têm, processualmente, qualquer justificação, a não ser para compensar o seu crédito com a meação da ré.
Ou seja, resulta do que fica exposto que contrariamente ao que é referido na decisão recorrida, o A., cabeça de casal no Inventário que correu termos para partilha dos bens do casal, relacionou naquele inventário dívidas por ele pagas que eram da responsabilidade do casal.
E embora não seja discriminado – como é feito na acção – o período de tempo em que foram pagas as prestações (para aferir se há correspondência entre as prestações ali reclamadas e as reclamadas nesta acção), temos como certo que se reportam a dívidas relacionadas com os créditos do casal ao D…, para aquisição do prédio comum, objecto da partilha.
Aliás, os valores reclamados no processo de inventário e os ora reclamados são sensivelmente os mesmos.
Acresce que na presente acção o A. alega ter pago as prestações do imóvel desde Junho de 2002 até 17.6.2008, numa altura em que já tinha havido acordo sobre a adjudicação do imóvel, e em que a ré tinha assumido o pagamento do passivo.
Como pode o A., em data anterior a Janeiro de 2008, aquando da apresentação da relação de bens, ter relacionado, como crédito seu, o pagamento de prestações ao Banco, e vir novamente, nesta acção, reclamar tais prestações desde Junho de 2002 até 17.6.2008?
Quando muito poderia reclamar prestações desde Janeiro de 2008 a Junho de 2008.
Acresce que, sendo a relação de bens apresentada pelo cabeça de casal, que era o A., e tendo ele relacionado créditos seus sobre os bens comuns, mostra-se inverosímel que não tenha feito o relacionamento dos créditos reclamados nesta acção naquele inventário.
Donde se conclui que a decisão recorrida decidiu bem quanto à improcedência da acção, mas não pelos fundamentos invocados – de que o A. deveria ter reclamado o seu crédito no inventário e não o fez, concluindo daí que precludiu o seu direito a reclamar o alegado crédito nesta acção, por o dever fazer no inventário.
A improcedência da acção decorre é da falta de fundamento do A. para vir reclamar nesta acção créditos que já foram considerados no inventário que correu termos para partilha dos bens do casal, por apenso à acção de divórcio.
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Sumário do Acórdão:
I - Não está, em princípio, vedado ao A. reclamar nos meios comuns direitos que não lhe foram concedidos na partilha dos bens do casal, desde que não tenha renunciado aos mesmos;
II- Não lhe assistirá, no entanto, esse direito, se, analisados os actos por ele praticados no Inventário para partilha de bens, se concluir que esses direitos foram ali assegurados.
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Decisão:
Pelo exposto, acorda-se em julgar a Apelação Improcedente, mantendo-se (embora com outros fundamentos) a decisão recorrida.
Custas (da Apelação) a cargo do recorrente.

Porto, 31.1.2013
Maria Amália Pereira dos Santos Rocha
Aristides Manuel da silva Rodrigues de Almeida
José Fernando Cardoso Amaral