Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3682/21.6T9MAI.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LÍGIA TROVÃO
Descritores: CARTA POR PONTOS
CASSAÇÃO DA CARTA DE CONDUÇÃO
DIREITOS DE DEFESA DO ARGUIDO
INCONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RP202301113682/21.6T9MAI.P1
Data do Acordão: 01/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Sendo a perda de pontos da carta de condução resultante da condenação em proibição de condução de veículos e a cassação dessa carta por acumulação dessas perdas efeitos automáticos resultantes da lei, não estando prevista qualquer notificação desses efeitos e sendo a decisão de cassação impugnável, nos termos gerais, não se vislumbra que se verifique, nesse regime qualquer violação do direito ao contraditório ou do direito de defesa do arguido consagrados no artigo 32.º, n.º 10, da Constituição.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 3682/21.6T9MAI.P1
Comarca do Porto
Juízo Local Criminal da Maia

Acordam em conferência, os Juízes na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO
Pelo Presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR), no âmbito do processo de cassação nº 209/2021, foi ordenada a cassação do título de condução nº ..., de que é titular o arguido AA.
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Impugnada judicialmente esta decisão para o Juízo Local Criminal da Maia do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, foi tal impugnação apreciada por sentença cujo dispositivo tem o seguinte teor:
Nos termos e fundamentos expostos, decido improcedente o recurso interposto e, em consequência, mantenho a decisão administrativa sob impugnação que determinou a cassação do título de condução nº... ao arguido AA.
Custas a cargo do recorrente que se fixam em 2 UC.
Notifique.
Após trânsito, comunique à ANSR, enviando cópia da presente decisão.
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O arguido AA interpôs recurso da sentença, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
I. Vem o presente recurso da decisão que ordenou a improcedência da a presente impugnação deduzida do acto que ordenou a cassação da carta de condução ao arguido AA,
II. Contudo, não pode a argumentação expendida na decisão da qual se recorre proceder, uma vez que se constata que as sentenças proferidas nos supra referidos autos não condenam, nem ordenam qualquer comunicação para tal efeito, quanto à perda 6 (seis) pontos no Registo Individual de Condutor do aqui Recorrente, nos termos do artigo 148.º n.º 2 do Código da Estrada.
III. Assim, o aqui arguido não tinha conhecimento, nomeadamente aquando da prática do crime julgado em sede do processo que correu termos neste Tribunal sob o n.º 1/20.2PEMAI, que se encontrava apenas com 6 (seis) pontos no seu Registo Individual de Condutor, não podendo sequer recorrer de tal decisão, uma vez que tendo sido referido no libelo condenatório das sentenças aqui em causa tal consequência em virtude de condenação penal.
IV. a decisão que ordena a cassação da carta de condução ao aqui arguido mais está ferida de inconstitucionalidade, por violação do disposto no artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, uma vez que o arguido não teve conhecimento dos efeitos plenos e integrais das sua condenações nos processos enunciados naquela, e, bem assim, possibilidade de, em pleno juízo das suas consequências, ponderar recorrer de tal decisão.
V. Em face ao que fica exposto, e nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 10 do artigo 32.º, no n.º 1 do artigo 266.º da CRP, n.º 1 do artigo 205.º da CRP, e dos artigos, 41.º 43.º e 50.º do RGCO, teria – e tem forçosamente – de ser a decisão impugnada considerada nula e inconstitucional, mais devendo a sentença ora proferida ser revogada e substituída por outra nos precisos sobreditos termos.
Termos em que se requer a V. Exa. que se digne absolver o Arguido, aqui Recorrente, ordenando a nulidade do presente procedimento de cassação, bem como a sobredita inconstitucionalidade nos termos acima exposto, revogando assim a decisão proferida pelo Tribunal a quo nos presentes autos, assim se fazendo a sã e costumeira JUSTIÇA!”.
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O Ministério Público, na resposta ao recurso, pronunciou-se pela manutenção do despacho recorrido, tendo concluído (transcrição):
“1- Nenhuma crítica pode ser efetuada ao despacho judicial aqui posto em crise que manteve nos seus preciso termos a decisão administrativa sob impugnação que determinou a cassação do título de condução n.º ... ao aqui recorrente AA.
2- Entendemos não ser defensável que o despacho judicial em causa seja revogado e substituído por outro que absolva o recorrente, nem o mesmo pode ser considerado nulo e inconstitucional.
3- Compulsado o recurso apresentado por AA verifica-se que as questões agora suscitadas já o tinham sido na impugnação judicial apresentada pelo mesmo e foram devidamente apreciadas no despacho judicial de que ora recorre o recorrente.
4- Nada mais há a acrescentar para além do que consta da fundamentação de direito constante em tal despacho judicial, uma vez que a Sra. Juíza fundamentou a sua convicção de uma formam clara, concreta e precisa, sustentando a sua decisão na legislação aplicável ao caso concreto, mormente nos arts. 121º-A e 148º, ambos do Código da Estrada e arts. 282º, n.º 3 e 281º, n.º 3, ambos do C. P. Penal, tendo também analisado a questão da alegada inconstitucionalidade por violação do disposto no art. 32º da C.R.P.
5- Por uma questão de economia processual e porque se concorda com todos os argumentos constantes no despacho judicial proferido nestes autos em 03.07.2022, entende-se ser de manter o decidido.
6- O despacho judicial recorrido não violou qualquer preceito legal ou constitucional, antes tendo efetuado uma correta aplicação do direito aos factos”.
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Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer desfavorável ao provimento do recurso.
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Efetuado o exame preliminar foi considerado não haver razões para a rejeição do recurso.
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Foram colhidos os vistos legais e realizada a conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
Questão a resolver
Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respetiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.
No caso presente, face ao que consta das conclusões do recorrente a questão a decidir resume-se a saber se a decisão que ordena a cassação da carta de condução ao arguido, enferma de nulidade e inconstitucionalidade por violação do disposto no art. 32º nºs 1 e 10º, 266º nº 1 e 205º nº 1 da CRP e 41º, 43º e 50º do RGCO, visto que o arguido não teve conhecimento dos efeitos plenos e integrais das suas condenações nos processos enunciados naquela e da possibilidade de ponderar recorrer de tal decisão.
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É do seguinte teor a sentença recorrida (transcrição parcial):
1. Por sentença proferida em 10.09.2018, transitada em julgado em 10.10.2018, no âmbito do processo nº79/18.9PDMAI do J3 (extinto) do Juízo Local Criminal da Maia do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, o arguido/recorrente AA foi condenado pela prática, em 20.08.2018, de um crime de condução em estado de embriaguez e p. e p. no art. 292º, nº1, do Código Penal, na pena de 30 dias de multa à taxa diária de €7,00, num total global de €210,00 e na pena acessória de inibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 meses, penas essas que já se encontram extintas pelo cumprimento, sendo que na sentença se ordenou a comunicação da condenação à ANSR (como consta de fls. 7/16), o que foi devidamente cumprido (cfr. fls. 8/16)
2. Por sentença proferida em 07.07.2020, transitada em julgado em 22.09.2020, no âmbito do processo nº1/20.2PEMAI do J1 do Juízo Local Criminal da Maia do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, o arguido/recorrente AA foi condenado pela prática, em 11.12.2019, de um crime de condução em estado de embriaguez e p. e p. no art. 292º, nº1, do Código Penal, na pena de 110 dias de multa à taxa diária de €6,00, à qual se descontou 1 dia atenta a detenção sofrida pelo arguido, ficando uma pena de 109 dias de multa, com um total global de €654,00 e na pena acessória de inibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 10 meses, penas essa que já se encontram extintas pelo cumprimento, sendo que na sentença se ordenou a comunicação da condenação ao IMTT e à ANSR (como consta de fls. 10/16), o que foi devidamente cumprido (cfr. fls. 9/16)
3. no registo individual de condutor do arguido/recorrente AA foram inscritos todos os dados das infrações referentes às condenações supra referidas, e bem ainda a subtração de 6 pontos por cada uma delas, sendo as únicas inscrições constantes daquele registo (cfr. fls. 48 a 50);
4. o arguido/recorrente foi notificado de que foi determinada a instauração de processo de cassação do seu título de condução, e para, querendo, nos termos do art.
50º do RGCOC, apresentar defesa quanto ao projeto de cassação do seu título de condução (conforme consta de fls. 13/16 a 15/16), nada vindo dizer em sua defesa;
5. então a ANSR proferiu decisão final de cassação do título de condução nº... de que é titular o condutor AA em 30.07.2021 nos termos do disposto no art. 148º, nº1, do Código da Estrada, tendo em consideração o facto do arguido ter perdido com as infrações pelas quais foi condenado, 6 pontos em cada uma delas, totalizando a totalidade dos pontos.
O que está em causa nestes autos é a cassação da carta de condução do arguido/recorrente em virtude da perda dos pontos da sua carta de condução e a forma como foi determinada.
Cumpre, então decidir:
Com relevância, importa referir que o regime da “carta por pontos” foi introduzido pela Lei nº116/2015, de 28 de agosto, que alterou os artigos 121º e 148º do Código da Estada, pretendendo o legislador, com a sua implementação, de acordo com a Exposição de Motivos que acompanhou a proposta de Lei nº336/XII, “…promover uma atualização do regime vigente, acompanhando a maioria dos países europeus, onde o regime da carta por pontos se encontra plenamente consagrado e estabilizado. A carta por pontos constitui uma das ações chave da Estratégia Nacional de Segurança Rodoviária, aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 54/2009, de 14 de maio. Pretende-se, com a sua implementação, aumentar o grau de perceção e de responsabilização dos condutores, face aos seus comportamentos, adotando-se um sistema sancionatório mais transparente e de fácil compreensão. A análise comparada com outros países europeus demonstra que é expetável que a introdução do regime da carta por pontos venha a ter um impacto positivo significativo no comportamento dos condutores, contribuindo, assim, para a redução da sinistralidade rodoviária e melhoria da saúde pública.”
Neste âmbito, o artigo 121º-A, com a epígrafe “Atribuição de Pontos” prevê que:
1 – A cada condutor são atribuídos doze pontos.
2 – Aos pontos atribuídos nos termos do número anterior podem ser acrescido três pontos, até ao limite máximo de quinze pontos, nas situações previstas no nº5 do artigo 148º.
3 – Aos pontos atribuídos nos termos dos números anteriores pode ser acrescido um ponto, até ao limite máximo de dezasseis pontos, nas situações previstas no nº7 do artigo 148º.
Por sua vez o artigo 148º do Código da Estrada, sob a epígrafe “Sistema de pontos e cassação do título de condução”, dispõe que:
1 - A prática de contraordenação grave ou muito grave, prevista e punida nos termos do Código da Estrada e legislação complementar, determina a subtração de pontos ao condutor na data do caráter definitivo da decisão condenatória ou do trânsito em julgado da sentença, nos seguintes termos:
a) A prática de contraordenação grave implica a subtração de três pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência ou ultrapassagem efetuada imediatamente antes e nas passagens assinaladas para a travessia de peões ou velocípedes, e de dois pontos nas demais contraordenações graves;
b) A prática de contraordenação muito grave implica a subtração de cinco pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, condução sob influência de substâncias psicotrópicas ou excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência, e de quatro pontos nas demais contraordenações muito graves.
2 - A condenação em pena acessória de proibição de conduzir e o arquivamento do inquérito, nos termos do n.º 3 do artigo 282.º do Código de Processo Penal, quando tenha existido cumprimento da injunção a que alude o n.º 3 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, determinam a subtração de seis pontos ao condutor.
3 - Quando tiver lugar a condenação a que se refere o n.º 1, em cúmulo, por contraordenações graves e muito graves praticadas no mesmo dia, a subtração a efetuar não pode ultrapassar os seis pontos, exceto quando esteja em causa condenação por contraordenações relativas a condução sob influência do álcool ou sob influência de substâncias psicotrópicas, cuja subtração de pontos se verifica em qualquer circunstância.
4 - A subtração de pontos ao condutor tem os seguintes efeitos:
a) Obrigação de o infrator frequentar uma ação de formação de segurança rodoviária, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha cinco ou menos pontos, sem prejuízo do disposto nas alíneas seguintes;
b) Obrigação de o infrator realizar a prova teórica do exame de condução, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha três ou menos pontos;
c) A cassação do título de condução do infrator, sempre que se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor.
5 - No final de cada período de três anos, sem que exista registo de contraordenações graves ou muito graves ou crimes de natureza rodoviária no registo de infrações, são atribuídos três pontos ao condutor, não podendo ser ultrapassado o limite máximo de quinze pontos, nos termos do n.º 2 do artigo 121.º-A.
6 - Para efeitos do número anterior, o período temporal de referência sem registo de contraordenações graves ou muito graves no registo de infrações é de dois anos para as contraordenações cometidas por condutores de veículos de socorro ou de serviço urgente, de transportes coletivo de crianças e jovens até aos 16 anos, de táxis, de automóveis pesados de passageiros ou de mercadorias ou de transporte de mercadorias perigosas, no exercício das suas funções profissionais.
7 - A cada período correspondente à revalidação da carta de condução, sem que exista registo de crimes de natureza rodoviária, é atribuído um ponto ao condutor, não podendo ser ultrapassado o limite máximo de dezasseis pontos, sempre que o condutor de forma voluntária proceda à frequência de ação de formação, de acordo com as regras fixadas em regulamento.
8 - A falta não justificada à ação de formação de segurança rodoviária ou à prova teórica do exame de condução, bem como a sua reprovação, de acordo com as regras fixadas em regulamento, tem como efeito necessário a cassação do título de condução do condutor.
9 - Os encargos decorrentes da frequência de ações de formação e da submissão às provas teóricas do exame de condução são suportados pelo infrator.
10 - A cassação do título de condução a que se refere a alínea c) do n.º 4 é ordenada em processo autónomo, iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao título de condução.
11 - A quem tenha sido cassado o título de condução não é concedido novo título de condução de veículos a motor de qualquer categoria antes de decorridos dois anos sobre a efetivação da cassação.
12 - A efetivação da cassação do título de condução ocorre com a notificação da cassação.
13 - A decisão de cassação do título de condução é impugnável para os tribunais judiciais nos termos do regime geral das contraordenações.
(sublinhados e realçados meus)
Destes dois artigos resulta o seguinte conjunto de regras e consequências no regime de carta por pontos:
- é atribuído a cada condutor, 12 pontos (n.º 1 do artigo 121º-A), podendo estes ser acrescidos de: a) 3 pontos até ao limite máximo de 15 (se, em cada período de três anos, inexistir no registo de contraordenações graves ou muito graves ou crimes de natureza rodoviária no registo de infrações – cf. artigos 121º A, nº 2 e 148º, nº 5); 1 ponto até ao limite de 16 (se, em cada período de revalidação da carta de condução, não constarem registo de crimes de natureza rodoviária e o condutor, voluntariamente, frequentar ações de formação – cf. artigos 121º, nº 3 e 148º, nº 7);
- a subtração de pontos ao condutor ocorre, em consequência da condenação, transitada em julgado, pela prática de contraordenações graves ou muito graves referenciadas nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 148º do CE ou de crimes enunciados no n.º 2 do mesmo artigo, em pena acessória de proibição de conduzir ou em caso de suspensão provisória do processo em que seja cumprida injunção de proibição de conduzir, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 281º do CPP;
- Se na decorrência da subtração de pontos, o condutor tiver cinco ou menos pontos, fica sujeito à obrigação de frequentar uma ação de formação de segurança rodoviária (cf. al. a) do n.º 4 do artigo 148º) e se tiver três ou menos pontos fica sujeito à obrigação de realizar a prova teórica do exame de condução (cf. al. a) do n.º 4 do artigo 148º);
- finalmente, se forem subtraídos todos os pontos ao condutor, a subtração tem como efeito a cassação do título de condução (cf. al. c) do n.º 4 do artigo 148º).
Com o estabelecimento desse regime, a vigência do título que habilita conduzir veículos automóveis depende, assim, do comportamento estradal do condutor, conforme este observe ou viole as regras estradais. No primeiro caso são atribuídos pontos à sua carta de condução, no segundo são-lhe retirados pontos, de acordo com a gravidade da infração cometida. Assim, com o sistema de “pontos” o título de condução nunca se pode considerar definitivamente adquirido, pois está permanentemente sujeito a uma condição negativa atinente ao bom comportamento rodoviário do condutor.
Como é referido no acórdão do Tribunal Constitucional nº260/2020 relatado pela Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros (acessível em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20200260), o regime da carta por pontos “tem, assim, um sentido essencialmente pedagógico e de prevenção, visando sinalizar,
de uma forma facilmente percetível pelo público em geral e através de um registo centralizado, as infrações cometidas pelos condutores bem como os respetivos efeitos penais ou contraordenacionais. Deste modo, permite-se também à administração verificar se o titular da licença ou carta de condução reúne as condições legais para continuar a beneficiar da mesma. Com efeito, a atribuição de título de condução pela República Portuguesa não tem um caráter absoluto e temporalmente indeterminado. Existe, assim, como que uma avaliação permanente, através da adição ou subtração de pontos, da aptidão do condutor para conduzir veículos a motor na via pública. Ou seja, em rigor, num tal sistema, o título de condução nunca é definitivamente adquirido, antes está permanentemente sujeito a uma condição negativa referente ao comportamento rodoviário do seu titular. O direito de conduzir um veículo automobilizado não é incondicionado.
Tendo em consideração o regime da carta por pontos a que se vem fazendo referência, importa esclarecer que a cassação do título de condução a que se alude no art. 148º do Código da Estrada não se trata de uma sanção acessória e nem sequer pode ser configurada como uma medida de segurança penal, trata-se de uma medida administrativa que se prefigura como uma medida de avaliação negativa da conduta estradal dos condutores, conforme a gravidade da infração cometida e que tem na sua base a finalidade visada pelo legislador de sinalizar em termos de perigosidade determinadas condutas rodoviárias, contraordenacionais ou criminais, que põem em causa bens jurídicos fundamentais, constitucionalmente protegidos, como a segurança, a integridade física e a vida das pessoas, sobretudo em face da dimensão do risco que para esses valores um tal tipo de condutas comportam, pondo em causa a segurança rodoviária e a vida de todos os que circulam nas estradas.
E é por isso mesmo que a perda de pontos ocorre imediatamente, ope legis, no âmbito administrativo e de acordo com o pré-determinado no Código da Estrada no seu art. 148º, quando se verificam os seus pressupostos, sendo que no que ao caso importa, o nº2 do referido artigo 148º determina a subtração de 6 pontos ao condutor, logo que transite em julgado uma condenação em pena acessória de proibição de conduzir. Trata-se, portanto, de uma operação aritmética imposta pela lei, como mera consequência da condenação, com trânsito, naquela pena acessória.
Assim, quando qualquer uma das sentenças proferidas no âmbito dos processos penais com os números 79/18.9PDMAI e 1/20.2PEMAI que condenaram o arguido pela
prática de crimes de condução em estado de embriaguez previstos e punidos no art. 292º, nº1, do Código Penal em penas acessórias de proibição de conduzir veículos rodoviários transitaram em julgado, a perda dos pontos da carta do arguido foi imediata, de acordo com aquele regime da carta de condução. Não ocorreu no âmbito daquelas decisões que tinham como objeto tão somente o ilícito criminal que julgaram, mas por causa do comportamento do arguido que ali se comprovou e que deu lugar à condenação de uma pena acessória de proibição de conduzir.
A perda de pontos e a posterior cassação do título de condução nos termos do artigo 148º, nº4, al. c) do Código da Estrada não visa um novo sancionamento pela prática dos crimes que foram julgados naqueles processos e condenados naquelas sentenças (e por isso mesmo não é do âmbito da sentença penal ordenar a perda dos pontos que a lei já prevê e que o condutor tem obrigação de saber), mas, pelo contrário, o sancionamento devido a comportamentos reiterados que são graves ou muito graves que revelam a inidoneidade para o exercício da condução.
A perda de pontos, que pode levar à cassação do título de condução é um mais, que não foi nem podia ser considerado no âmbito das sentenças penais e por isso mesmo não é pelas mesmas ordenado. Incumbe apenas ao julgador, aquando da condenação em pena acessória de proibição de conduzir, determinar, como aliás foi feito em ambos os processos que foram tidos em consideração para a cassação do título de condução do arguido/recorrente, que após o trânsito em julgado da sentença se dê conhecimento à entidade administrativa – ANSR – do teor da sentença para que os dados da infração comprovadamente cometida sejam inscritos no registo individual de condutor (RIC), bem como a subtração de pontos correspondente à mesma, de acordo com o estabelecido na lei.
Neste sentido, e com interesse, veja-se o referido no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23.01.2017 disponível em www.dgsi.pt onde se lê: “Ora, a subtracção de pontos ao condutor que cometa contra-ordenação grave ou muito grave na carta de condução, ou que seja sancionado com a sanção acessória de proibição de conduzir (n.º 2 do citado art.º 148º do CE), com as consequências previstas no n.º 4 daquele normativo legal, implica a perda de 6 pontos na carta de condução do agente na data do trânsito em julgado da sentença condenatória, a constar do registo de infracções previsto no art.º 149º do mesmo diploma legal existente na Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária. Assim, o facto de a perda de pontos ser
uma consequência automática e da competência da Administração, e não dos Tribunais (e não uma sanção, que sempre implica para a sua graduação, o grau de ilicitude e de culpa verificados no caso concreto), implica que não seja admissível impugnação judicial dessa consequência, excepto quando e se vier a ser decidida a cassação do título de condução, esta sim a ser organizada em processo autónomo pela Administração, e impugnável para os tribunais judiciais (n.ºs 10 e 13 do mesmo art.º 148º).
Tal implica não existir qualquer “interferência” do tribunal da condenação, na diminuição do número de pontos ao condutor, que dessa consequência não se pode defender por ser automática e não graduável, além de apenas vir a ser averbada no registo do condutor depois do trânsito em julgado da decisão condenatória, pelo que, dela não se pode defender em sede judicial, o que implica que na notificação ao arguido dos factos praticados e das sanções em que incorre, não tenha que constar a consequência da perda de pontos, por em nada ser afectado o seu direito de defesa no não constar da notificação que lhe é feita, nos termos do n.º 2 do art.º 152º do CE, ou da acusação, que pode apenas ser feita através da leitura do auto de notícia (art.º 389º n.º 1 do CPP) a perda de pontos prevista pelo n.º 2 do art.º 148º já citado.”
O desconhecimento da lei e do regime da perda de pontos na carta de condução, que é comumente conhecido pelos cidadãos, e que deve ser bem conhecido dos titulares de carta de condução, como é óbvio, não aproveita ao arguido/recorrente, que aliás esteve assistido em ambos os processos criminais por advogado, não se vislumbrando por isso mesmo qualquer atropelo do seu direito a recurso, ou tão pouco a invocada inconstitucionalidade por violação do art. 32º da Constituição da República Portuguesa.
Dizer-se que o arguido/recorrente não teve possibilidade de ponderar recorrer da decisão proferida no âmbito do processo nº1/20.2PEMAI por desconhecer que estaria apenas com 6 pontos no seu RIC, porque não foi “avisado” pelas sentenças proferidas que “não condenam, nem ordenam a perda de pontos”, é uma clara distorção da realidade, pois vistas bem as coisas o que se retira (e conclui) da sua alegação é que desconhece a lei e o regime da sua carta de condução, assim como desconhece que pode consultar o seu registo individual de condutor, para se tiver dúvidas, saber, que depois de ter sido condenado, por sentença transitada em julgado, pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez, lhe foram retirados/subtraídos pontos à carta de condução.
Improcedem, portanto, as conclusões do arguido/recorrente.
Urge apenas sublinhar que o processo administrativo com vista à cassação da carta de condução, nos termos do artigo 148º, nº10 do Código da Estada, em causa nestes autos, visou apenas apreciar o registo de infrações do condutor, para aferir da perda de pontos decorrente da prática de contraordenações e/ou de crimes rodoviários, previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 148º, que se mostram averbados àquele registo e aquilatar se se verificava (ou não) a perda da totalidade dos pontos atribuídos ao arguido enquanto condutor e respetivo título de condução, e tendo-se verificado que o arguido perdeu 6 pontos, no âmbito de cada um dos citados processos criminais, num total de 12 pontos, como consta do seu RIC, a decisão proferir pela ANSR só podia ser a que efetivamente foi proferida no sentido de determinar a cassação do título de condução do arguido/recorrente, por perda da totalidade dos pontos da sua carta de condução. É que consumada a perda de pontos da totalidade dos pontos da carta, estão verificados os pressupostos para a cassação da carta.
Assim sendo, e como é salientado no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 20.10.2020 disponível em www.dgso.pt, não há que proceder a qualquer avaliação sobre a perigosidade ou inabilidade do condutor para o exercício da condução para que possa ser determinada a cassação do título de condução ao abrigo do disposto na al. c) do n.º 4 do artigo 148º do Código da Estrada (ao contrário do que sucede quando se trata de aplicar a medida de segurança da cassação do título de condução prevista no artigo 101º do Código Penal), dado que o legislador ao prever essa medida administrativa teve subjacente o pressuposto de que o condutor que perdeu a totalidade dos pontos atribuídos revela inaptidão para o exercício da condução
Em suma, esta cassação do título de condução não uma medida de segurança mas uma sanção administrativa, sendo uma consequência automática da perda da integralidade dos pontos, e consequentemente, não é legalmente admissível qualquer margem de discricionariedade administrativa na ponderação das circunstâncias do caso concreto, inexistindo, no caso em apreço, depois da verificação da perda total dos 12 pontos, como supra já se referiu, qualquer reparo a fazer à decisão proferida pela ANSR, que deve ser mantida, concluindo-se, por conseguinte, e sem mais considerações, por se entenderem despiciendas, pela improcedência do recurso interposto pelo arguido/recorrente”.
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Apreciação do recurso
O recorrente alega que foi condenado, por decisão transitada em julgado em 10/10/2018, por factos praticados em 20/9/2018 no processo nº 79/18.9PDMAI que correu termos no Juiz 3 do Juízo Local Criminal da Maia – Tribunal Judicial da Comarca do Porto, por crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 3 (três) meses; e que foi condenado por decisão transitada em julgado em 22/07/2020, por factos praticados em 11/9/2018, em sede do processo n.º 1/20.2PEMAI que correu termos no Juiz 1 do Juízo Local Criminal da Maia – Tribunal Judicial da Comarca do Porto, pela autoria de crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 3 (três) meses.
Porém, discorda da argumentação expendida na decisão da qual se recorre, porque as referidas sentenças não condenam, nem ordenam qualquer comunicação para tal efeito, quanto à perda de 6 (seis) pontos no Registo Individual de Condutor do aqui Recorrente, nos termos do artigo 148º nº 2 do Código da Estrada.
Assim, o recorrente não tinha conhecimento, por ocasião da prática do crime julgado no processo nº 1/20.2PEMAI, que se encontrava apenas com 6 (seis) pontos no seu Registo Individual de Condutor.
Sustenta que a decisão que ordena a cassação da carta de condução ao recorrente está ferida de inconstitucionalidade, por violação do disposto no artigo 32º da CRP, pois o arguido não teve conhecimento dos efeitos plenos e integrais das suas condenações nos processos enunciados naquela, e, bem assim, da possibilidade de, em pleno juízo das suas consequências, ponderar recorrer de tal decisão.
De modo que, não tendo o arguido sido notificado em sede de sentença ou em qualquer outra sede de que perderia 6 (seis) pontos por tal condenação, não pode agora tal perda de pontos produzir quaisquer efeitos, nomeadamente, em termos da cassação ora ordenada, devendo assim a decisão recorrida ser considerada nula e inconstitucional, por frontal violação do disposto no nºs 1 e 10 do artigo 32º no nº 1 do artigo 266º da CRP, nº 1 do art. 205º da C.R.P., e dos artigos, 41º, 43º e 50º do R.G.C.O.
Cumpre decidir.
Desde já se adianta não assistir qualquer razão ao recorrente.
Nos termos do art. 121º-A nº 1 do Cód. da Estrada, “A cada condutor são atribuídos doze pontos”.
O recorrente foi condenado por sentença transitada em julgado em 20/09/2018, como autor de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez praticado em 20/08/2018, na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 3 (três) meses no processo nº 79/18.9PDMAI; e foi novamente condenado por sentença transitada em julgado em 22/09/2020 como autor do mesmo tipo de crime praticado em 11/12/2019, na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 3 (três) meses no processo n.º 1/20.2PEMAI, que correram termos, respetivamente, pelo Juiz 3 e Juiz 1 do Juízo Local Criminal da Maia – Tribunal Judicial da Comarca do Porto.
O art. 148º nº 2 do mesmo Código prescreve que “A condenação em pena acessória de proibição de conduzir (…) determina(m) a subtração de seis pontos ao condutor”.
O nº 5 do mesmo art. 148º dispõe que “No final de cada período de três anos, sem que exista registo de (…) crimes de natureza rodoviária no registo de infrações, são atribuídos três pontos ao condutor, não podendo ser ultrapassado o limite máximo de quinze pontos, nos termos do nº 2 do artigo 121º-A”.
Resulta, pois, dos preceitos citados, que a subtração de seis pontos ao condutor, é um efeito automático da sua condenação em pena acessória da inibição de conduzir e, no caso presente, como entre a prática dos crimes rodoviários perpetrados pelo recorrente decorreram menos de 3 anos (nos quais foi condenado na sanção acessória de inibição de conduzir) não houve lugar à atribuição dos três pontos e ainda, por ter praticado dois crimes, perdeu os 12 pontos de que era titular.
Ao contrário, se tivesse mediado um lapso temporal de três anos entre a prática dos dois ilícitos criminais e se o recorrente não tivesse cometido mais nenhum ilícito contraordenacional (cfr. art. 148º nº 1 alíneas a) e b)), bastava para que, nos termos do transcrito nº 5 do art. 148º, lhe tivessem sido atribuídos três pontos.
A perda de pontos no título de condução (assim como a sua atribuição nos casos previstos no nº 5 do art. 148º), constitui um efeito automático previsto na lei, respetivamente, ora da prática de contraordenação grave ou muito grave ora da condenação transitada em julgado na sanção acessória de inibição de conduzir (cfr. art. 69º nºs 1 e 2 do Cód. Penal) pela prática de crimes rodoviários, não estando previsto na norma qualquer notificação ao condutor/ infrator, da perda de pontos.
Os arts. 292º nº 1 e 69º do Cód. Penal, não preveem como pena aplicável ao crime de condução em estado de embriaguez a pena de cassação do título de condução nem qualquer notificação/comunicação a efetuar ao Registo Individual de Condutor do condutor infrator sobre a perda de pontos no respetivo título de condução; o objeto do processo respeita apenas ao conhecimento pelo tribunal dos factos praticados pelo condutor arguido, integradores dos tipos objetivo e subjetivo do crime em questão e proferimento de decisão, resultando provado, sobre as suas consequências penais.
Por isso, nenhuma razão assiste ao recorrente quando afirma que as sentenças proferidas nos processos nºs 79/18.9PDMAI e 1/20.2PEMAI, que correram termos, respetivamente pelo Juiz 3 e Juiz 1 do Juízo Local Criminal da Maia – Tribunal Judicial da Comarca do Porto, nos quais foi condenado por sentença transitada em julgado por crime de condução de veículo em estado de embriaguez e na sanção acessória de inibição de conduzir, não condenam nem ordenam qualquer comunicação quanto à perda de 6 (seis) pontos (por cada um dos crimes em que foi condenado) ao Registo Individual de Condutor do recorrente, pois não tinham que o fazer, pelos motivos indicados.
Na verdade, nos termos do art. 149º nº 1 do Cód. da Estrada, “Do registo de infrações relativas ao exercício da condução, organizado nos termos de diploma próprio, devem constar: a) Os crimes praticados no exercício da condução de veículos a motor e respetivas penas e medidas de segurança; c) A pontuação atualizada do título de condução “.
E prevê-se no seu nº 3 que “A Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária assegura o acesso dos condutores ao registo de infrações”.
Esteve, por isso, ao alcance do recorrente, aceder ao respetivo registo individual de condutor em cada uma das ocasiões em que foi condenado por sentença transitada em julgado pela prática de crime de condução de veículo em estado de embriaguez e na sanção acessória de inibição de conduzir, para ficar a conhecer das consequências de cada uma das referidas condenações quanto à perda de pontos, atento o (curto, cfr. citado nº 5 do art. 148º a contrario sensu, do Cód. da Estrada) lapso temporal que mediou entre cada uma delas.
Se o recorrente logo após a 1ª condenação (no proc. nº 79/18.9PDMAI) não se interessou por ficar a conhecer de quantos pontos ainda dispunha – pese embora o art. 148º nº 2 do Cód. da Estrada já lhe desse um indicativo – e por causa desta sua inércia desconhecia, quando foi julgado e condenado por sentença transitada em julgado no processo nº 1/20.2PEMAI, que se encontrava apenas com 6 (seis) pontos no seu Registo Individual de Condutor, só de si próprio e do seu comportamento rodoviário se poderá queixar.
Como pode ler-se no Ac. da R.L. de 13/07/2022[1], “I – A ANSR não tem que notificar o condutor de cada um dos atos de subtração de pontos em si mesmo. II – A subtração total de pontos tem associada, como sua consequência, ope legis, a cassação da carta de condução. Não se trata, contudo, de um efeito automático da condenação: a aplicação da medida de cassação inscreve-se num sistema gradativo de consequências que comporta vários elementos de ponderação em favor e desfavor do condutor “; e no Ac. da R.C. de 13/11/2019[2] que “A declaração de cassação do título depende da perda total de pontos atribuídos mas esta, como se viu, não resulta da prática de uma única infração mas, nos termos legais, da prática de uma pluralidade de infracções. Efetivamente, a cada uma destas infrações contraordenacionais ou penais previamente verificadas, corresponde, automaticamente, a subtração de um determinado número de pontos, mas a cassação só é legalmente admissível com o esgotamento do crédito concedido, correspondente ao esvaziamento da pressuposta – com a concessão do título – aptidão para conduzir veículos com motor”.
O nº 4 do citado art. 148º do Cód. da Estrada estabelece que “A subtração de pontos ao condutor tem os seguintes efeitos: c) A cassação do título de condução do infrator, sempre que se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor”.
Decidiu-se no Ac. da R.P. de 30/04/2019[3], que “Ao estabelecer, um regime de carta “por pontos”, com a possibilidade de cassação da mesma em caso de subtração de pontos decorrente de sucessivas condenações por crimes ou contra-ordenações rodoviárias, o legislador estabelece mais uma condição negativa para a atribuição do título de condução. Também neste aspeto não estamos perante a perda de um direito adquirido, mas perante a verificação de uma condição negativa de um direito que (não sendo absoluto e incondicional) a essa condição está sujeito. No fundo, com o sistema de “carta por pontos” nunca a licença de condução pode considerar-se definitivamente adquirida, pois ela está continuamente sujeita a uma condição negativa relativa ao “bom comportamento rodoviário”. É como se o período experimental correspondente ao título de condução provisório se prolongasse continuamente (embora em termos diferentes dos desse período). Não estaremos, pois, perante a perda de um direito, mas perante a verificação de uma condição negativa a que o mesmo está, à partida e continuamente, sujeito “.
Prescreve ainda o nº 10 do art. 148º que “A cassação do título de condução a que se refere a alínea c) do nº 4 é ordenada em processo autónomo, iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao título de condução”.
O nº 4 do art. 169º (em vigor ao tempo da prática dos factos) dispunha que “O presidente da ANSR tem competência exclusiva, sem poder de delegação, para decidir sobre a verificação dos respetivos pressupostos e ordenar a cassação do título de condução”.
Também não assiste razão ao recorrente quando alega que a decisão que ordena a cassação da sua carta de condução está ferida de inconstitucionalidade, por violação do disposto no artigo 32º nºs 1 e 10, 205º (1- As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei. 2 - As decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades. 3 - A lei regula os termos da execução das decisões dos tribunais relativamente a qualquer autoridade e determina as sanções a aplicar aos responsáveis pela sua inexecução), 266º (“1 - A Administração Pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos. 2 - Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé), da CRP, 41º (1 - Sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal. 2 - No processo de aplicação da coima e das sanções acessórias, as autoridades administrativas gozam dos mesmos direitos e estão submetidas aos mesmos deveres das entidades competentes para o processo criminal, sempre que o contrário não resulte do presente diploma), 43º (O processo das contra-ordenações obedecerá ao princípio da legalidade ) e 50º (Não será permitida a aplicação de uma coima sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de se pronunciar sobre o caso) do RGCO.
Na verdade, o nº 13 do art. 148º do Cód. da Estrada dispõe que “A decisão de cassação do título de condução é impugnável para os tribunais judiciais nos termos do regime geral das contraordenações” ou seja, ao invés do alegado, encontram-se assegurados todos os direitos de audiência e de defesa do arguido aludidos no art. 32º nºs 1 e 10 da CRP e, no caso presente, o recorrente exerceu esse direito, tendo impugnado judicialmente a decisão de cassação da sua carta de condução proferida em 30/07/2021 pelo Presidente da ANSR, no processo de cassação nº 209/2021, para o Juízo Local Criminal da Maia – Juiz 1, que deu origem à instauração do presente processo nº 3682/21.6T9MAI; e ainda, nos processos criminais nºs 79/18.9PDMAI e 1/20.2PEMAI o recorrente esteve sempre assistido por advogado, não se compreendendo a alegação do recorrente quando afirma que foram violados os seus direitos de defesa.
Nesta senda, escreveu-se no Ac. da R.E. de 26/04/2022[4],que “Inexiste qualquer violação do direito ao contraditório e direito de defesa (art.º 32.º , n.º 10 da CRP4), na exacta medida da não previsão legal de qualquer notificação dos “actos administrativos” (!) de perda de pontos pela prática dos crimes pelos quais foi condenado, uma vez que, nos termos do n.º 2 do art.º 148.º do CE, a condenação em pena acessória de proibição de conduzir determina, por si só, a subtracção de seis pontos ao condutor, sendo que a cassação do título de condução constitui consequência necessária (automática) da perda de todos os pontos detidos por dado condutor, constituindo esta perda condição suficiente para aquela cassação, sendo certo que, nos termos do nº 13 da mesma disposição legal, a decisão de cassação do título de condução é impugnável para os tribunais judiciais nos termos do regime geral das contra-ordenações, ou seja, assegurando todos os direitos de audiência e defesa aludidos na mencionada norma constitucional.
Consequentemente, sendo a perda de pontos um efeito automático resultante da lei, não estando prevista qualquer notificação desse efeito e sendo a decisão de cassação impugnável, nos termos gerais, não se vislumbra que se verifique qualquer violação do direito ao contraditório ou do direito de defesa do arguido.
(…).
O esquema legal da chamada “carta por pontos” chegou ao nosso ordenamento jurídico (já havia sido adoptado por outros países) através das alterações ao Código da Estrada que foram introduzidas pela Lei n.º 116/2015, de 28.08, concretizando um dos instrumentos principais da designada Estratégia Nacional de Segurança Rodoviária e visando “aumentar o grau de perceção e de responsabilização dos condutores, face aos seus comportamentos, adotando-se um sistema sancionatório mais transparente e de fácil compreensão”, com um “impacto positivo significativo no comportamento dos condutores, contribuindo, assim, para a redução da sinistralidade rodoviária e melhoria da saúde pública”.
Em traços gerais, aquele esquema consiste na atribuição a cada condutor titular de um determinado título de condução um certo número de pontos (inicialmente 12), que poderão alterar-se caso o condutor cometa (subtraindo-se) ou se abstenha (adicionando-se) de cometer, em determinado período, ilícitos de mera ordenação social ou de natureza criminal de natureza rodoviária.
Quando o infractor perde todos os pontos, tal implica, nos termos da alínea c) do nº 4 do acima reproduzido art. 148º, a cassação do título de condução. A cassação do título que seja consequência dessa perda total dos pontos é decretada num processo administrativo autónomo, sendo a decisão judicialmente impugnável, cfr. números 10 e 13 do mesmo normativo.
In casu, o recorrente perdeu todos os pontos de que beneficiava em virtude de ter sido condenado, por sentenças transitadas em julgado, pela prática de dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. p. art.º 292.º, n.º 1 do Código Penal, em penas (para além das principais) acessórias de proibição de conduzir veículos motorizados, cfr. art.º 69.º do mesmo diploma, por (…).
(…).
Com efeito, como sublinhado no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 260/2020, de 13 de maio de 2020 (extrato publicado no Diário da República, n.º 147 2.ª Série, parte D, de 30-07-2020) e cujo texto integral se encontra disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20200260.html?impressao=1) «O regime tem, assim, um sentido essencialmente pedagógico e de prevenção, visando sinalizar, de uma forma facilmente percetível pelo público em geral e através de um registo centralizado, as infrações cometidas pelos condutores bem como os respetivos efeitos penais ou contraordenacionais. Deste modo, permite-se também à administração verificar se o titular da licença ou carta de condução reúne as condições legais para continuar a beneficiar da mesma. Com efeito, a atribuição de título de condução pela República Portuguesa não tem um caráter absoluto e temporalmente indeterminado.
Existe, assim, como que uma avaliação permanente, através da adição ou subtração de pontos, da aptidão do condutor para conduzir veículos a motor na via pública. Ou seja, em rigor, num tal sistema, o título de condução nunca é definitivamente adquirido, antes está permanentemente sujeito a uma condição negativa referente ao comportamento rodoviário do seu titular. O direito de conduzir um veículo automobilizado não é incondicionado.”
Para além das razões acima invocadas, que se subscrevem na generalidade, o Tribunal Constitucional pronunciou-se muito recentemente sobre esta questão, nos termos que a seguir se expõem:
“Como se referiu, a primeira questão tem por base a da norma do artigo 148.º, n.º 4, alínea c) e n.os 10 e 11, do Código da Estrada, e consiste em saber se a circunstância de na norma controvertida se determinar que a perda de todos os pontos detidos por determinado condutor constitui condição suficiente para a cassação do respetivo título de condução implica a violação do artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, designadamente por tal efeito ser «manifestamente sancionatório, não revestir qualquer natureza pedagógica, de satisfação de necessidades de prevenção ou ressocialização, nem qualquer limitação ao necessário, adequado e proporcional para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos».
Note-se que não está aqui em causa nenhuma vertente procedimental da decisão de cassação do título de condução. Como decorre do regime legal traçado no artigo 148º do Código da Estrada e no Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, o procedimento conducente a tal decisão é inteiramente contraditório, dispondo o visado de adequadas oportunidades processuais de participação no processo de decisão, designadamente direito de se pronunciar sobre as questões de facto e de direito relevantes, de produzir prova e de recorrer judicialmente da decisão administrativa, com a possibilidade de beneficiar de duplo grau de jurisdição.
Está antes em causa o critério substantivo da decisão de cassação. Verificados os factos geradores da perda de todos os pontos de que o condutor seja beneficiário num certo momento, a cassação do título de condução é decretada sem necessidade de ponderação de outros fatores hipoteticamente relevantes. De acordo com a norma impugnada, a cassação do título de condução constitui consequência necessária − e, por isso, automática − da perda de todos os pontos detidos por dado condutor; dito de outra forma, a perda de todos os pontos constitui condição suficiente para a cassação do título de condução. Trata-se, pois, de saber se a suficiência dessa condição, integralmente satisfeita pela perda total dos pontos, sem que relevem outros fatores de ponderação − como sejam a sua adequação às necessidades de prevenção especial que se façam sentir em concreto, o grau de culpa subjacente aos ilícitos que ditaram a perda dos pontos e a extensão das consequências que a cassação tenha nas condições de vida pessoal e profissional do visado −, é desadequada, desnecessária e desproporcional para a salvaguarda dos direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que informam a medida.
(…) da Constituição não consta expressamente nenhum direito fundamental a conduzir veículos motorizados na via pública. Mas atendendo à importância que tal atividade tem no quotidiano no cidadão comum, a sua recondução ao exercício de um direito com assento constitucional pode ser fundamentada sem dificuldades de grande monta. Com efeito, nos quadros de uma concepção principialista dos direitos fundamentais, nos termos da qual estes têm prima facie um âmbito alargado, podendo ser restringidos de plúrimas formas e com intensidades variáveis, a atividade de circulação rodoviária constitui seguramente um exercício da liberdade geral de ação compreendida no direito ao livre desenvolvimento da personalidade − esse grande direito residual consagrado no n.º 1 do artigo 26.º da Constituição −, sem prejuízo da sua relevantíssima função acessória no exercício de outros direitos fundamentais em relação ao qual se revele útil ou mesmo indispensável.
Por isso, a sujeição da atividade a uma licença administrativa que pode caducar ou ser revogada, com fundamento na prática de um conjunto de atos tidos por reveladores de inaptidão para a condução de veículos ou de desrespeito por normas de diligência e de proteção de terceiros inerentes no exercício de tal atividade, deve tomar-se como uma medida restritiva. Daí não decorre, como é bom de ver, que a mesma seja inconstitucional, por violação do direito fundamental em causa; antes implica que a sua conformidade constitucional dependa da observância dos limites vários que, em matéria de restrições a direitos, liberdades e garantias ou a direitos de «natureza análoga», decorrem do regime geral consagrado no artigo 18.º da Constituição, entre os quais se destacam as exigências de que as finalidades prosseguidas se traduzam na tutela de outros direitos ou interesses de nível constitucional e que os meios escolhidos para esse efeito respeitem a proibição do excesso, ou seja, não se mostrem inadequados, desnecessários ou desproporcionais.
(…).
O facto de a cassação do título depender somente da perda integral dos pontos, sem necessidade da ponderação de outros fatores que, pela sua natureza casuística e reserva de apreciação subjetiva, reduziriam a previsibilidade do efeito cassatório, constitui um poderoso fator de adequação da medida às finalidades de prevenção de comportamentos deletérios para a segurança rodoviária, na medida em que tal automaticidade de efeitos é uma garantia de certeza e objetividade. Ao poder calcular com precisão as consequências da sua conduta, ao saber que estas não dependem de valorações casuísticas e subjetivas, é razoável supor que aumenta significativamente a probabilidade de o agente corresponder aos incentivos que o regime se destina a produzir.
(…).
Os factos relevantes para a decisão de cassação, segundo o critério previsto no artigo 148º nº 4 alínea c), do Código da Estrada, e que são objeto de apreciação no procedimento previsto no seu nº 10, são apenas os factos geradores da perda dos pontos, isto é, a definitividade de condenações por determinadas categorias de ilícitos contraordenacionais ou criminais, com abstração dos factos que estiveram na base dessas condenações. Tais factos – os factos que se traduzem no ilícito criminal ou contraordenacional gerador da perda dos pontos – não são reapreciados nem julgados no processo de cassação, que se limita a extrair consequências de âmbito não penal dos diversos atos de condenação.
(…) a cassação do título de condução por efeito da perda dos pontos, prevista no artigo 148.º, n.º 4, alínea c), do Código da Estrada, constitui uma medida administrativa de revogação de uma licença necessária à prática de uma atividade e que constitui o efeito, não da prática de uma infração criminal e do exercício estatal do ius puniendi, mas da verificação de que o seu beneficiário deixou de reunir as condições de aptidão que estiveram na base da sua concessão.
É certo que a condenação pela prática de crimes punidos com a pena acessória prevista no artigo 69.º do Código Penal constitui um facto gerador de perda de pontos.
Contudo, essa conexão é meramente reflexa, não só porque nenhuma condenação criminal, por si só, desencadeia a cassação prevista no artigo 148º do Código da Estrada – nem o recorrente integrou tal questão no objeto do recurso –, como porque os critérios
relevantes para essa cassação não se extraem dos factos que tipificam ilícitos criminais, mas sim da reiteração das condenações criminais ou contraordenacionais e da forma como elas revelam a incapacidade do condutor para observar as normas legais que garantem a segurança rodoviária “.
No mesmo sentido, decidiram entre outros, os Acs. da R.C. de 13/11/2019[5], enunciando que “I - A cassação do título de condução não é agora uma medida de segurança, mas uma sanção administrativa. II - Os arts. 148º, nºs 1 e 2 e 149º, nºs 1, al. c), ambos do Código da Estrada, não violam os princípios constitucionais consagrados
pelos arts. 2.º, 18º, nº 2, 29º nºs 1 e 4, 30º, nº 4, e 32º, nºs 1, 5 e 10, todos da Constituição da República Portuguesa “, da R.E. de 13/09/2022[6] escrevendo-se “A cassação do título de condução é decretada pela entidade administrativa (Presidente da ANSR), sendo aplicada de forma automática face ao saldo de pontos existente, pois este é revelador da impreparação do sujeito para o exercício da atividade de condução que fica proibido de conduzir e, ainda, concomitantemente, inibido de obter novo título de condução de veículos com motor de qualquer categoria nos dois anos seguintes à efetivação da cassação (artigo 148º nº 11 do CE)”.
Improcede, pois, o recurso.
*
III - DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso do arguido e, em consequência confirmar a sentença recorrida.
Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça no montante de 3 UC – cfr. arts. 513º nº 1 do CPP e 8º nº 9 do R.C.P e Tabela III anexa ao referido diploma legal.
Notifique – cfr. art. 425º nº 6 do CPP.

Porto, 11/01/2023
Lígia Trovão
Pedro M. Menezes
Donas Botto
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[1] Publicado na C.J. Ano XLII, Tomo III, pág. 154, relatado por Cristina Almeida e Sousa.
[2] Cfr. proc. nº 186/19.0T8CTB.C1, relatado por Vasques Osório, acedido in www.dgsi.pt
[3] Cfr. proc. nº 316/18.0T8CPV.P1, relatado por Pedro Vaz Pato, acedido in www.dgsi.pt
[4] Cfr. proc. nº 2257/21.4T8ENT.E1, relatado por Edgar Valente, acedido in www.dgsi.pt
[5] Cfr. proc. nº 186/19.0T8CTB.C1, relatado por Vasques Osório, acedido in www.dgsi.pt
[6] Cfr. proc. nº 20/22.4GDPTM.E1, relatado por Beatriz Marques Borges, acedido in www.dgsi.pt