Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
9377/21.3T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL DO TRIBUNAL
CAUSA DE PEDIR
PEDIDO
TRIBUNAL DA PROPRIEDADE INTELECTUAL
Nº do Documento: RP202112029377/21.3T8PRT.P1
Data do Acordão: 12/02/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A competência material afere-se em função da forma como o autor configura e estrutura a acção, analisando o pedido e a factualidade concreta que lhe serve de fundamento (causa de pedir).
II - A causa de pedir a que se deve atender é o facto jurídico concreto de que emerge o direito que o autor se propõe valer.
III - Para se aferir do critério de delimitação de competência do Tribunal da Propriedade Intelectual, nos termos do disposto no art.º 111.º, n.º 1, al. a), da L.O.F.T.J., deve atender-se ao acto de declaração do direito, exigida pela controvérsia em causa na acção, e não apenas na sua circunstância, não bastando a referência ou o versar sobre direito de autor e direitos conexos, sendo também necessário que esteja em causa a declaração desses direitos.
IV - Não estando em causa a declaração desses direitos, mas antes o incumprimento contratual deles emergentes, são os tribunais comuns, e não o Tribunal de Propriedade Intelectual, os materialmente competentes para a resolução de tal litígio.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 9377/21.3T8PRT.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Central Cível do Porto – Juiz 4

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.RELATÓRIO.
1. B…, C… e D… propuseram acção declarativa com processo comum contra “E…, Ldª”, pedindo que a ré seja condenada a pagar-lhes a quantia de € 75.593,69, acrescida do valor correspondente aos juros calculados à taxa legal deste a data de vencimento das facturas, até integral pagamento.
Alegam, para o efeito, que se constituíram associados da F… e cederam a esta entidade os poderes de representação para a prática de todos os contratos e actos jurídicos necessários à celebração de contratos de edição e demais formas de utilização dos direitos de autor sobre as obras de G…, de que passaram a ser os titulares após a morte da sua, respectivamente, mãe e avó.
Esta situação prolongou-se até Dezembro de 2020, data em que os autores se desvincularam da F… e retiraram a esta entidade todos os poderes de representação, sendo que nessa data a E…, Ldª era devedora da quantia de € 75.593,69 correspondentes a direitos de autor, decorrentes dos contratos de edição referidos na petição inicial.
Logo após a introdução da petição inicial em juízo foi proferida decisão que declarou a incompetência, em razão da matéria, do tribunal recorrido, com o seguinte dispositivo: “...atento o que se estabelece nos arts. 96º, 97º, 99º e 590º, nº 1, todos do Cód. Processo Civil, julga-se materialmente incompetente este tribunal para preparar e julgar a presente acção, absolvendo a Ré da Instância – artº 576º n2, 577º n1 a) do CPC.
Custas pelos autores, fixando-se o valor da presente acção em €75.593,69. (cfr. arts. 296º,297º e 306º, todos do Cód. Processo Civil).
Notifique”.

2. Não se resignando com tal decisão, dela interpuseram os autores recurso de apelação para esta Relação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:
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Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II.OBJECTO DO RECURSO.
A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelos recorrentes e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.
B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelos recorrentes, no caso dos autos cumprirá apreciar se o tribunal recorrido é materialmente competente para preparar e julgar a acção nele instaurada pelos aqui recorrentes.

III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
Os factos/incidências processuais relevantes ao conhecimento do objecto do recurso são os narrados no relatório introdutório.

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
A questão que aqui importa equacionar incide sobre a competência material, ou falta dela, do tribunal recorrido para conhecimento da acção proposta pelos recorrentes, negando essa competência o tribunal recorrido e afirmando aqueles ter o mesmo a competência que recusa.
Segundo Manuel de Andrade, “a competência, como medida de jurisdição atribuída a cada tribunal para conhecer de determinada questão a ele submetida, e enquanto pressuposto processual, determina-se pelos termos em que a acção é proposta, isto é, pela causa de pedir e pedido respectivos”[1].
A competência em razão da matéria determina-se pela natureza da relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor, independentemente do seu mérito ou demérito.
A competência material, afere-se, pois, em função da forma como o autor configura e estrutura a acção, analisando o pedido e a factualidade concreta que lhe serve de fundamento (causa de pedir).
Como lembra a decisão sob recurso, “...para decidir qual das diversas normas definidoras dos critérios que presidem à distribuição do poder de julgar entre os diferentes tribunais deve olhar-se aos termos em que a ação foi posta – seja quanto aos seus elementos objetivos seja quanto aos seus elementos subjetivos. A competência do tribunal afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, como antítese com aquele que será mais tarde o quid decisum): é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do autor. E o que está certo para os elementos objetivos da ação está certo ainda para a pessoa dos litigantes. A competência do tribunal não depende, pois, de legitimidade das partes nem da procedência da ação. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do autor (compreendidos aí os respetivos fundamentos), não importando averiguar, tal como uniformemente vem sendo salientado pela doutrina e jurisprudência1, quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão.
Portanto, a competência material do tribunal determina-se pelo pedido formulado pelo autor e pelos fundamentos que invoca como causa de pedir”.
Retira-se, com efeito, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.02.2015[2]: “Como é sabido, a competência do Tribunal em razão da matéria é determinada pela natureza da relação jurídica tal como apresentada pelo autor na petição inicial, confrontando-se o respetivo pedido com a causa de pedir e sendo tal questão, da competência ou incompetência em razão da matéria do Tribunal para o conhecimento de determinado litígio, independente, quer de outras exceções eventualmente existentes, quer do mérito ou demérito da pretensão deduzida pelas partes”.
Com efeito, como precisa o acórdão do Tribunal de Conflitos de 24.02.2021[3], “saber como se qualifica a relação invocada pela autora, e se os efeitos que a autora pretende são ou não fundamentados, são questões que respeitam ao mérito da causa e à procedência ou improcedência da acção; interpretar o contrato invocado e retirar dessa interpretação consequências quanto à identificação do tribunal competente significa inverter a relação pressupostos/questão de fundo (acórdão do Tribunal dos Conflitos”.
Refere o acórdão da Relação de Lisboa de 20.05.2021[4]: “É fora de qualquer dúvida que a repartição, entre os diversos tribunais judiciais, da competência em razão da matéria para o julgamento de uma determinada causa se faz em função da matéria de facto articulada na petição inicial integrante da causa de pedir – actos ou factos concretos – e de que emerge a concreta providência requerida ou o direito que se quer ver reconhecido.
Tal repartição de competência em razão da matéria destina-se, além do mais, a garantir, num mundo real cada vez mais complexo e diversificado, que o tribunal chamado a dirimir o conflito tem experiência na apreciação de situações de facto que convocam os mesmos ou idênticos critérios de ponderação e o conhecimento aprofundado das normas legais aplicáveis.
[...] Na arquitectura do sistema judiciário português actualmente em vigor cabe, no que se refere aos Tribunais Judiciais de primeira instância, aos Tribunais de Comarca a competência para preparar e julgar todos os processos relativos a causas não abrangidas na competência de outros tribunais.
Os Tribunais de Comarca, por sua vez, são constituídos – “desdobram-se em”, na expressão literal do artigo 81.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) – por Juízos de competência genérica ou especializada (ou de proximidade), cujas competências estão definidas em função da matéria e do valor.
Os Juízos Locais Cíveis são juízos de competência especializada (artigo 81.º n.º 3 da LOSJ) com competência residual, isto é, cabe-lhes, nos termos do artigo 130.º da LOSJ a preparação e julgamento das acções que não sejam atribuídas a outros juízos da mesma comarca ou a um Tribunal de competência territorial alargada.
[...] O Tribunal da Propriedade Intelectual é um tribunal de competência territorial alargada cuja competência material está definida no artigo 111.º da citada Lei de Organização do Sistema Judiciário que, na sua actual redacção (introduzida pela Lei n.º 55/2019, de 5 de agosto), lhe defere no seu n.º 1 alínea c) competência material para a preparação e julgamento – e no que ao caso concerne por ser a norma indicada na decisão impugnada – das “ações em que a causa de pedir verse sobre o cumprimento ou incumprimento, validade, eficácia e interpretação de contratos e atos jurídicos que tenham por objeto a constituição, transmissão, oneração, disposição, licenciamento e autorização de utilização de direitos de autor, direitos conexos e direitos de propriedade industrial, em qualquer das modalidades previstas na lei”.
A causa de pedir a que o citado preceito se refere é o acto ou facto jurídico concreto idóneo a fundamentar o direito que o autor invoca e pretende fazer valer”.
De acordo com o artigo 64.º do Código de Processo Civil, “são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem judicial”.
E segundo o artigo 65.º do mesmo Código, “as leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada”.
No âmbito dos Tribunais de competência territorial alargada, a LOFTJ, delimita deste modo, no seu artigo 111.º, a competência do Tribunal da propriedade intelectual:
“Competência
1 - Compete ao tribunal da propriedade intelectual conhecer das questões relativas a:
a) Ações em que a causa de pedir verse sobre direito de autor e direitos conexos;
b) Ações em que a causa de pedir verse sobre propriedade industrial, em qualquer das modalidades previstas na lei;
c) Ações em que a causa de pedir verse sobre o cumprimento ou incumprimento, validade, eficácia e interpretação de contratos e atos jurídicos que tenham por objeto a constituição, transmissão, oneração, disposição, licenciamento e autorização de utilização de direitos de autor, direitos conexos e direitos de propriedade industrial, em qualquer das modalidades previstas na lei;
d) Ações de nulidade e de anulação de patentes, certificados complementares de proteção, modelos de utilidade e topografias de produtos semicondutores previstas no Código da Propriedade Industrial e demais legislação aplicável, bem como os pedidos de declaração de nulidade ou de anulação de registos de desenhos ou modelos, marcas, logótipos, recompensas, denominações de origem e indicações geográficas deduzidos em reconvenção;
e) Recursos de decisões do Instituto Nacional da Propriedade Industrial, I. P. (INPI, I.P.) que concedam ou recusem qualquer direito de propriedade industrial ou sejam relativas a transmissões, licenças, declarações de caducidade ou a quaisquer outros atos que afetem, modifiquem ou extingam direitos de propriedade industrial;
f) Recurso e revisão das decisões ou de quaisquer outras medidas legalmente suscetíveis de impugnação tomadas pelo INPI, I. P., em processo de contraordenação;
g) Recursos de decisões da Inspeção-Geral das Atividades Culturais (IGAC) em matéria de registo de obras literárias e artísticas e de registo e fiscalização das entidades de gestão coletiva do direito de autor e dos direitos conexos;
h) Recurso e revisão das decisões ou de quaisquer outras medidas legalmente suscetíveis de impugnação tomadas pela IGAC em processos pela prática de contraordenações previstas no Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos e nos regimes jurídicos das entidades de gestão coletiva do direito de autor e dos direitos conexos, dos espetáculos de natureza artística e emissão dos bilhetes de ingresso nos respetivos recintos, do preço fixo do livro, do comércio eletrónico e da classificação de videogramas;
i) Ações de declaração em que a causa de pedir verse sobre nomes de domínio na Internet;
j) Recursos das decisões da Fundação para a Computação Científica Nacional, enquanto entidade competente para o registo de nomes de domínio de.PT, que registem, recusem o registo ou removam um nome de domínio de.PT;
k) Ações em que a causa de pedir verse sobre o regime jurídico da cópia privada;
l) Ações em que a causa de pedir verse sobre firmas ou denominações sociais;
m) Recursos das decisões do Instituto dos Registos e do Notariado, I. P. (IRN, I. P.) relativas à admissibilidade de firmas e denominações no âmbito do regime jurídico do Registo Nacional de Pessoas Coletivas;
n) Ações em que a causa de pedir verse sobre a prática de atos de concorrência desleal ou de infração de segredos comerciais em matéria de propriedade industrial;
o) Medidas de obtenção e preservação de prova e de prestação de informações quando requeridas no âmbito da proteção de direitos de propriedade intelectual e direitos de autor.
2 - A competência a que se refere o número anterior abrange os respetivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões”.
Os autores, na qualidade de sucessores de G…, escritora portuguesa com várias obras publicadas, falecida em 6 de Janeiro de 2006, demandaram a ré, reclamando a condenação da mesma no pagamento da quantia de 75.593,69 euros (setenta e cinco mil, quinhentos e noventa e três euros e sessenta e nove cêntimos), além de juros, alegando, para o efeito, que se constituíram associados da F… e cederam a esta entidade os poderes de representação para a prática de todos os contratos e actos jurídicos necessários à celebração de contratos de edição e demais formas de utilização dos direitos de autor sobre as obras de G…, de que passaram a ser os titulares após a morte da sua, respectivamente, mãe e avó.
Esta situação prolongou-se até Dezembro de 2020, data em que os autores se desvincularam da F… e retiraram a esta entidade todos os poderes de representação, sendo que nessa data a E…, Ldª era devedora da quantia de € 75.593,69 correspondentes a direitos de autor, decorrentes dos contratos de edição referidos na petição inicial.
Reclamam, pois, os autores, por via da acção que propuseram contra a ré, que seja esta condenada a pagar-lhes o valor em dívida - à data em que se desvincularam da F… -, emergente dos contratos de edição de obras publicadas da autoria da falecida G….
Ora, a causa de pedir a que se deve atender é o facto jurídico concreto de que emerge o direito que o autor se propõe valer[5].
E esse facto é, no caso em debate, o incumprimento de diversos contratos de edição por parte da ré, por direitos de autor da escritora falecida e que, por morte desta, se transmitiram aos seus sucessores.
Como acertadamente referem os recorrentes, “A resolução do litígio a que respeitam os presentes autos não passa pelo conhecimento de questões de existência de um direito de autor, da alegada violação e respetivas consequências, passando simplesmente declarar o incumprimento da ré da obrigação de pagar os montantes faturados de acordo com os contratos a que ambas se obrigaram”, pelo que não se configura a previsão da alínea a) do artigo 111.º da LOFTJ, convocada pela decisão recorrida para fundamentar a incompetência material nela declarada.
Por conseguinte, não é o Tribunal de Propriedade Intelectual o materialmente competente para preparar e julgar a acção proposta pelos autores contra a ré, com fundamento no invocado incumprimento contratual, mas sim o tribunal recorrido[6].
Procede, assim, o recurso, com a revogação da decisão impugnada que declarou o tribunal recorrido materialmente incompetente para preparar e julgar a açção proposta pelos ora recorrentes.
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Síntese conclusiva:
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Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação, na procedência da apelação, em revogar a decisão recorrida que declarou o tribunal recorrido incompetente para preparar e julgar a acção proposta pelos aqui apelantes, declarando-se, em consequência, o mesmo tribunal materialmente competente.
Deverá, por conseguinte, o processo prosseguir os seus termos, se outra razão a tal não obstar, no tribunal recorrido de onde subiram os presentes autos de recurso.
Custas: pela parte vencida a final.

Porto, 2.12.2021
[Acórdão elaborado pela primeira signatária com recurso a meios informáticos]
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
Francisca Mota Vieira
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[1] “Noções Elementares de Processo Civil”, pág. 91.
[2] Processo n.º 1998/12.1TBMGR.C1.S1, www.dgsi.pt.
[3] Processo n.º 03143/19.3T8GMR.S1, www.dgsi.pt.
[4] Processo 24674/19.0T8PRT.L1-6, www.dgsi.pt.
[5] Cfr. Alberto dos Reis, “Comentário ao Código de Processo Civil”, vol. II, pág. 375 e Lebre de Freitas, “Introdução ao Processo Civil”, 1996, pág. 54.
[6] Cfr. acórdãos da Relação de Lisboa de 24.03.2015, processo 448/14.3YHLSB.L1-7, de 17.01.2019, processo 116952/18.5YIPRT.L1-8, de 21.03.2019, processo 126332/18.7YIPRT.L1-8, de 20.05.2021, processo 24674/19.0T8PRT.L1-6, todos em www.dgsi.pt.