Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
34/22.4GTAVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: NUNO PIRES SALPICO
Descritores: AMNISTIA
INTERPRETAÇÃO DA LEI
LAPSO DA LEI
EXCEÇÃO
ARGUIDO CONDENADO
ARGUIDO NÃO JULGADO
Nº do Documento: RP2024022134/22.4GTAVR.P1
Data do Acordão: 02/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL / CONFERÊNCIA
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Apesar da exceção da amnistia prevista no nº2 do art.7º da Lei nº38-A/2023, se referir a “condenado”, por crime de injúria agravado cometido contra forças de autoridade, a mesma exceção inclui os arguidos ainda não julgados, cujo procedimento criminal não poderá ser igualmente amnistiado.
II - O regime da amnistia previsto no art.128º nº2 do CP não condiciona a sua aplicação consoante o estágio do processo, diferença que conduziria a resultados anacrónicos, como, teleologicamente, não existe uma única razão que faça depender a sua aplicação à circunstância do arguido estar, ou não, julgado.
III - Criar um fundamento teleológico artificial para a distinção entre o condenado e quem ainda não foi julgado, é tornar um lapso do legislador, no uso da expressão “condenado”, numa opção sua. A interpretação jurídica tem a obrigação de detetar essas situações e operar a sua função dentro da norma.
IV - O legislador no nº3 do art.7º quis expressamente excluir da amnistia do art.4º o elenco de delitos previstos no art.7º nºs 1 e 2, não sendo ajustado amnistiar crimes previstos no art.7º, com a distinção de condenado ou não julgado, pois a única distinção não prejudicada é serem outros crimes.

[Sumário da responsabilidade do Relator]
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc.Nº34/22.4GTAVR.P1
X X X
Acordam em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

No Juízo Local Criminal de Aveiro, do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro nos autos de processo abreviado encontrando-se o arguido AA acusado da prática de um crime de injúria agravada, p. e p. pelos artigos 181º, 184º e 132º, n.º 2, al. l), do Cód. Penal, e estando audiência de julgamento designada, o Mmº Juiz proferiu despacho a julgar extinto o procedimento criminal por amnistia nos termos do art.4º da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, entendendo não ser aplicável a exclusão prevista no nº2 do art.7º da mesma lei.
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Não se conformando com o referido despacho o Digno Procurador do MP veio interpor recurso, concluindo da seguinte forma:
1 - O despacho recorrido, que considerou aplicável a amnistia prevista no art. 4º da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, ao crime de injúria agravada, p. e p. pelos artigos 181º, 184º e 132º, n.º 2, al. l), do Código Penal, pelo qual o arguido foi acusado, procedeu a incorrecta interpretação e aplicação do n.º 2 do art. 7º do referido diploma legal, ao considerar que somente é excluída a aplicação daquela medida a “condenados” por crimes cometidos contra membro das forças policiais e de segurança, das forças armadas e funcionários, no exercício das respectivas funções, não operando tal exclusão relativamente aos “não condenados”.
2 - Tal interpretação faz depender a aplicação ou exclusão da amnistia da existência ou não de condenação, o que equivale a dizer-se, no entendimento perfilhado no despacho recorrido, que aquela medida poderá ser sempre aplicada aos “arguidos”, desde que verificados os requisitos definidos pelo referido art. 4º.
3 - Optou-se neste despacho pela literalidade da norma legal ao dar-se como determinante para a aplicação/exclusão das medidas em causa (amnistia e perdão) o termo “condenados”, todavia, a interpretação e aplicação da norma legal em causa terá que ser feita para além do seu elemento literal.
4 - Tal interpretação literal colide com o espírito do legislador na criação do diploma legal em causa, espírito esse que deverá estar sempre presente aquando da sua aplicação ao caso concreto, sob pena de criar situações de desigualdade e injustiça.
5 - É certo que o legislador não terá feito uma escolha acertada ao empregar o termo “condenados”, situação que poderá levantar questões de vária índole, nomeadamente quando estejamos perante situações iguais ou idênticas e que, pela ocorrência de uma qualquer vicissitude processual, se verificam soluções diametralmente opostas e de completa injustiça material.
6 - Pelo que, na interpretação da norma legal em questão, terá que ser tomado em consideração o elemento teleológico e sistemático subjacente e considerar-se que a exclusão da amnistia e perdão abrange “condenados” e “não condenados”.
7 - Na exposição de motivos da lei em causa consta “a presente lei estabelece um perdão de um ano de prisão a todas as penas de prisão até oito anos” excluindo a criminalidade muito grave do seu âmbito de aplicação. Tal exclusão foi realizada pelo legislador justamente através do art. 7º, onde excluiu da criminalidade que considerou grave, o perdão e amnistia quanto aos crimes ali elencados, não pretendendo, todavia, distinguir entre “condenados” e “não condenados”.
8 – Entendendo-se que se pretendeu distinguir entre “condenados” e “não condenados”, como se defendeu no despacho recorrido, sempre que se esteja perante a comissão do mesmo crime, nas mesmas circunstâncias definidas como requisitos para aplicação das medidas de graça ou clemência por diferentes agentes, fazer depender a exclusão da sua aplicação da verificação da condenação, colocará em causa o princípio da igualdade previsto no art. 13º da Constituição da República Portuguesa.
9 – Em boa verdade, tal interpretação faz depender a aplicação de tais medidas em função do momento processual em que se encontrarem os autos, solução essa que não parece defensável.
10 – Pois que, por hipótese, perante dois arguidos que tenham praticado o mesmo tipo legal de crime e estando ambos nas mesmas circunstâncias temporais e subjectivas previstas na Lei em causa, e em que um foi julgado e condenado e outro não o foi, este último, pela verificação de qualquer vicissitude processual, que lhe poderá ter sido alheia ou não, com a entrada em vigor daquele diploma, será beneficiado com a aplicação da amnistia em virtude de ainda não ter ocorrido a condenação.
11 – Assim, um dos arguidos beneficia da aplicação da amnistia prevista no art. 4º da Lei em causa, ficando o outro arguido excluído de tal benefício, em virtude de se considerar que o n.º 2 do art. 7º somente se aplica a “condenados”, fazendo-se, assim, depender a aplicação daquela medida do andamento processual.
12 – Essa não terá sido, com certeza, a intenção do legislador, pois ao considerar que os crimes elencados no art. 7º, atenta a sua gravidade, deveriam ser excluídos do âmbito da aplicação das medidas de graça/clemência, independentemente de ter ocorrido condenação, aplicando-se a “condenados” e “não condenados”, assim se cumprindo e respeitando o princípio da igualdade, previsto no art. 13º da CRP, e em que a situações iguais deverá corresponder igual tratamento.
13 - Não sendo acertado fazer-se depender tal tratamento de questões formais, ou seja, da realização de audiência de julgamento e trânsito em julgado da sentença, quando o que está em causa é o tipo legal de crime e a sua gravidade.
14 - Assim, afigura-se-nos que a interpretação efectuada pelo Mm.º Juiz no despacho recorrido do art. 4º e do n.º 2 do art. 7º da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, viola o princípio da igualdade, consagrado no art. 13º do Constituição da República Portuguesa.
15 - Pelo que deverá tal despacho ser revogado, por se considerar que a amnistia não poderá ser aplicada no presente caso, atento o disposto naquele n.º 2 do supra citado art. 7º, devendo a exclusão da aplicação abranger os “condenados” e “não condenados”, substituindo-se por outro que determine o prosseguimento dos autos.
Termos em que, ao julgarem procedente o presente recurso, farão V.ªs Excelências a habitual JUSTIÇA
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O arguido não veio responder ao recurso.
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O Digno Procurador Geral Adjunto veio dar Douto Parecer, sustentando do seguinte modo:
Não se ignora a divisão existente entre estas duas posições, e bem assim a argumentação esgrimida por ambas as posições antagónicas.
A que acrescerá o facto de que, tanto quanto sabemos, a inexistência de jurisprudência firme, que aponte um dos caminhos.
Pelo que, sempre salvo o devido respeito, que é muito, por melhor opinião, entendemos que não assiste razão, à Exma. Colega junto da primeira instância, não obstante a razoabilidade da sua argumentação.
Com efeito, a Lei nº 38-A/2023, de 02.08. - Perdão de penas e amnistia de infracções - no seu artº 7º excepciona os crimes que não beneficiam quer do perdão, quer da amnistia. Não obstante, o nº 3 do mesmo artº 7º da Lei nº 38-A/2023, de 02.08. refere “A exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3.º e da amnistia prevista no artigo 4.º relativamente a outros crimes cometidos.”.
E, no artº 3º, nº 1:
Sem prejuízo do disposto no artigo 4.º, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos.
Acrescentando o nº 3 do mesmo artº 4º que “Em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única.” (Destacado e sublinhado nossos)
Ora entendemos que a Lei diz, claramente, que o desconto de 1 ano, caso o haja, será sobre a pena aplicada em cúmulo.
Como já decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, as leis de amnistia, como providências de excepção, devem ser interpretadas e aplicadas nos seus precisos termos, sem ampliações, nem restrições que nelas não venham expressas.
Sendo que o legislador definiu com precisão as regras aplicadas, nos seus precisos termos, na decisão recorrida.
Delas resulta a previsão de um perdão até 1 ano de prisão a todas as penas de prisão aplicadas, a título principal, em medida inferior ou igual a 8 anos e que as penas de prisão aplicadas em medida superior a 8 anos não beneficiam de perdão, perdão é, em caso de concurso de infracções, aplicado à pena única.
Nem sempre foi estipulado que que o perdão seria aplicado à pena única e quando o começou a ser, relativamente aos cúmulos jurídicos englobando várias penas, em que umas beneficiam do perdão e outras não, as soluções foram variando ao longo do tempo, o que foi seguramente tido em conta pelo legislador que dispôs com clareza que, havendo perdão de uma pena parcelar em concurso e não de outras, o perdão seria descontado na pena única, se esta não ultrapassasse os 8 anos de prisão, índice inultrapassável de gravidade de comportamento do agente adoptado pelo legislador.

No que diz respeito à interpretação dos preceitos normativos da Lei da Amnistia e à definição do seu âmbito, sempre se dirá que a primeira consideração de que se deve partir, nesta matéria é, a nosso ver, aquela que sinteticamente o Supremo Tribunal de Justiça exarou no seu Acórdão de 7 de Dezembro de 2000, proc. n.º 2748/00-5: “as leis de amnistia, como providências de excepção, devem ser interpretadas e aplicadas nos seus precisos termos, sem ampliações, nem restrições que nelas não venham expressas”.
Ora, o legislador definiu com precisão as regras aplicadas, nos seus precisos termos, que o perdão se aplica à pena única, no caso de concurso de crimes, o que só tem lugar se a pena a que possa ser aplicado o perdão for até 8 anos, independentemente de nem todas as infracções em concurso estarem abrangidas pela Lei da amnistia e perdão.
Dessas disposições resulta a previsão de um perdão até 1 ano de prisão a todas as penas de prisão aplicadas, a título principal, em medida inferior ou igual a 8 anos e que as penas de prisão aplicadas em medida superior a 8 anos não beneficiam de perdão.
Pelo que o perdão é, em caso de concurso de infracções, aplicado à pena única.
É que “…A partir da Lei n.º 16/86, de 11 de junho, nas várias leis de amnistia e perdão, sempre foi estipulado que, em caso de cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única e não sobre as penas parcelares. No entanto, relativamente aos cúmulos jurídicos englobando várias penas, em que umas beneficiam do perdão e outras não, as soluções foram variando ao longo do tempo. Inicialmente efetuava-se um cúmulo jurídico das penas parcelares abrangidas pelo perdão e calculava-se a respetiva pena única, a que se aplicava o perdão a que houvesse lugar e, depois, realizava-se outro cúmulo jurídico com o remanescente daquela pena única e todas as outras penas parcelares que não beneficiavam do perdão. Posteriormente, uma corrente jurisprudencial foi-se formando em sentido diferente até se tornar maioritária, senão unânime. Segundo a mesma efetuava-se um cúmulo jurídico das penas parcelares perdoáveis, segundo as regras dos arts. 77.º e 78.º do C.P. (cúmulo parcial) só para o efeito de calcular a extensão do perdão (em relação à pena encontrada) e, seguidamente, cumulavam-se juridicamente, levando sempre em conta aquelas regras, todas as penas parcelares que faziam parte do concurso de crimes, quer as perdoáveis, quer as não abrangidas pelo perdão, e determinava-se a pena única, sobre a qual incidiria o perdão. Na verdade, num cúmulo jurídico de penas, só devem ser englobadas penas parcelares e não penas que tenham sido construídas já a partir de uma operação de cúmulo, e o perdão deve incidir sobre a pena única obtida a partir do cúmulo jurídico de todas as penas parcelares.”. (cfr. Cf. Pedro José Esteves de Brito (Juiz de Direito no Juízo Central Criminal do Porto), in “Notas práticas referentes à Lei n.º 38-A/20023, de 2 de agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude” , in Julgar online, n.º 23 agosto de 2023, págs. 15 e segs., e Artur Rodrigues da Costa, in “O cúmulo jurídico na doutrina e na jurisprudência do STJ”, Julgar online, n.º 21, 2013, págs. 197 e segs.).
Ora, e considerando o caso concreto em apreciação, sufraga-se assim o entendimento adoptado no mesmo artigo.
E, nem se diga que, desta forma, se mostra violado o princípio da igualdade.
E isto porque “O princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, é um princípio estruturante do Estado de direito democrático e postula, como o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado, que se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e que se trate diferentemente o que for essencialmente diferente. Na verdade, o princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionariedade legislativa, não veda á lei a adopção de medidas que estabeleçam distinções. Todavia, proíbe a criação de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, isto é, desigualdades de tratamento materialmente não fundadas ou sem qualquer fundamentação razoável, objectiva e racional. O princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se numa ideia geral de proibição do arbítrio.”. (cfr. por todos acórdão n.º 232/2003, publicado no Diário da República, I Série-A, de 17 de Junho de 2003 e nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 56.º Vol., págs. 7 e segs.).
Considerando que a Lei n.º38-A/2023 de 2 de Agosto se reporta ao evento das Jornadas Mundiais da Juventude, realizadas em Portugal, tendo sido assumido pela organização do evento que o conceito de “juventude” para esse efeito seriam todos os jovens até aos 30 anos de idade, foi opção do legislador assumir o mesmo critério de abrangência subjectiva.
E, por natureza, as Leis da Amnistia são leis de clemência do Estado, cuja abrangência e aplicação tem inerente uma injustiça relativa que não é possível eliminar.
Em conclusão, somos de parecer que:
- foi correctamente julgado extinto o procedimento criminal que impendia contra o arguido AA;
-o recurso deve ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão ora em crise, nos seus precisos termos.
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Cumprido o preceituado no artigo 417º número 2 do Código Processo Penal, nada foi acrescentado de relevante.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.
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II. Objeto do recurso e sua apreciação.

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pela recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar (Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, nomeadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do CPP.

É assim composto pela apreciação dos pressupostos de aplicação da lei da amnistia no que tange ao disposto no art.7º nº2.
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Do enquadramento dos factos.
Do despacho recorrido consta em síntese:

Compulsados os autos, verifica-se que se encontra o aqui arguido AA acusado da prática de um crime de injúria agravada, p. e p. pelos artigos 181º, 184º e 132º, n.º 2, al. l), do Cód. Penal, encontrando-se a audiência de julgamento designada para o dia de hoje.
Os factos remontam ao dia 15 de Julho de 2022 e o arguido nasceu no dia 11 de Dezembro de 2000, o que significa que o arguido contava com 21 anos de idade à data dos factos.
Ora, no dia 1 de Setembro de 2023 entrou em vigor a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, que veio estabelecer um perdão de penas e uma amnistia de infracções por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude.
Nos termos do artigo 2º, n.º 1, de tal diploma legal, “Estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de Junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3º e 4º”.
Não há dúvida que neste caso, tanto a data dos factos como a idade do aqui arguido nessa data se encontram abrangidos por esta norma.
Por seu turno, o artigo 4º dessa mesma Lei n.º 38-A/2023 estatui que “São amnistiadas as infracções penais cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa”.
Neste caso, o crime supra aludido do qual o aqui arguido se encontra acusado é apenas punível em abstracto com pena de prisão até 4 meses e 15 dias ou com pena de multa até 180 dias, ou seja, verifica-se pelo menos uma das alternativas da norma por último acabada de referir, na medida em que a pena máxima de prisão aplicável é muito inferior a 1 ano, pelo que se entende que estão preenchidos também os respectivos requisitos.
Por seu turno, é certo que o artigo 7º, n.º 2, da mesma Lei n.º 38-A/2023, estabelece ainda que “As medidas previstas na presente lei não se aplicam a condenados por crimes cometidos contra membro das forças policiais e de segurança, das forças armadas e funcionários, no exercício das respectivas funções.” (sublinhado nosso).
No entanto, entendemos que esta norma não exclui a aplicação da amnistia que está aqui em causa, em face do emprego do termo “condenados”, o qual leva a concluir que apenas se excluem aqueles que se encontrem já formalmente “condenados” pela prática do correspondente crime, não se excluindo aqueles que não o tenham (ainda) sido, como é o caso do aqui arguido. Aliás, mesmo ao longo de todo o n.º 1 e praticamente todas as suas correspondentes alíneas desta mesma norma legal, o legislador persiste em excluir das medidas da presente lei apenas aqueles que se encontrem já “condenados” pelos tipos de crime que aí se referem, não se excluindo, portanto, aqueles que não se encontrem (ainda) como tal.
Aqui chegados, de referir ainda que, nos termos do disposto no artigo 127º, n.º 1, e 128º, n.º 1, ambos do Cód. Penal, a amnistia extingue a responsabilidade e o procedimento criminal, assim como, em caso de condenação, faz cessar a execução tanto da pena e dos seus efeitos como da medida de segurança.
Assim, por todo o exposto, e em face da amnistia que entendemos ser aqui operante, julga-se extinto o procedimento criminal que impendia contra o arguido AA por força dos presentes autos.
Em consequência, dão-se sem efeito ambas as datas designadas para a audiência de julgamento, devendo ser desconvocados os intervenientes na medida do que se revelar possível.
Sem custas.
Oportunamente e após trânsito, arquivem-se os autos.”
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Cumpre apreciar.
Apreciando o objeto de recurso, a centralidade da questão reside em saber se o legislador ao referir a expressão “condenado” no catálogo de exclusões da amnistia, concretamente no nº2 do art.7 da Lei nº38-A/2023, estava a permitir a amnistia nos termos do art.4º do mesmo diploma, pelo simples facto do arguido, in casu, ainda não ter sido julgado e condenado.
Antes de mais, concordamos com a jurisprudência do STJ citada no Douto Parecer do Procurador Geral Adjunto quando refere “Supremo Tribunal de Justiça exarou no seu Acórdão de 7 de Dezembro de 2000, proc. n.º 2748/00-5: “as leis de amnistia, como providências de excepção, devem ser interpretadas e aplicadas nos seus precisos termos, sem ampliações, nem restrições que nelas não venham expressas”.” Ou seja, na determinação do sentido destes diplomas não é admitida a interpretação extensiva, restritiva ou analógica, mas sim e só a interpretação declarativa. Contudo, mesmo as leis de exceção estão sujeitas a interpretação jurídica dentro do sentido da norma, e já são várias as divergências que se espelham na jurisprudência dos Tribunais Superiores quanto à presente lei de amnistia.
Cremos não assistir razão ao MmºJuiz “A Quo”, porquanto, a exclusão da amnistia identifica-se sempre com a natureza específica do crime, pouco importando a sorte da tramitação dos autos, ou seja, se o arguido já foi, ou não, julgado, premissa que confere com o regime jurídico previsto no art.128º nº2 do Cód.Penal, o qual prevê que “a amnistia extingue o procedimento criminal e, no caso de ter havido condenação, faz cessar a execução tanto da pena e dos seus efeitos…”.
Portanto, o conceito de amnistia extingue a responsabilidade criminal, pois “A consequência é a mesma quer o processo ainda não tenha sito instaurado, já o tenha sido, mas não haja condenação ou já haja condenação transitada.” (ver Paulo Pinto Albuquerque “Comentário do Código Penal” 2ª ed., pág.390, Lisboa, 2010)”. Aliás, no ordenamento espanhol a amnistia exprime idêntico regime jurídico. Cuello Calón sobre os efeitos da amnistia refere “Sobre a sua extensão, tal como tem sido regulada em Espanha pelas leis que a têm outorgado, é maior ainda, extingue não só a pena e seus efeitos, com também a ação penal pendente.” In “Derecho Penal, Parte General”, Tomo I, p.713, Barcelona 1964). E compreende-se o porquê, pois, a razão do alvo da exclusão da amnistia, dirigindo-se a uma tipologia de crime, nunca pode depender do estado da tramitação dos autos (contrariamente ao perdão que, por essência, supõe a condenação e uma pena). Não há uma única razão que valide ou sustente excecionar e negar a amnistia de um arguido condenado, por o crime estar previsto no catálogo das exclusões da lei (com ou sem trânsito, também se poderia discutir); e no mesmo crime permitir a amnistia na situação em que o arguido apesar de responder pelo mesmo crime, ainda não foi julgado.
A distinção entre condenado e arguido não julgado, situa-se completamente à margem do regime da amnistia, e a efetividade dessa diferença conduziria a resultados anacrónicos e profundamente desiguais, dependendo das agendas dos tribunais, diferenciando, quem já foi julgado e condenado negando-se-lhe a amnistia; por contra-ponto aos Juízos locais com agendas mais morosas, com cronologias mais dilatadas, os arguidos ainda não julgados veriam o respetivo procedimento criminal extinto por amnistia, sem que se perceba a “ratio” ou teleologia dessa diferença, que afinal, é nenhuma.
A realidade é que, manifestamente, e por lapso, o legislador na nomenclatura usada e na imensa mole de situações que excecionam o perdão, não redigiu rigorosamente as exceções da amnistia muito pontualmente situadas nos delitos de condução em estado de embriaguez e nas injúrias agravadas contra as forças de autoridade, lapso este que não tem a virtualidade de derrogar nem o disposto no art.128º nº2 do Cód.Penal, e muito menos de criar um fundamento teleológico para a distinção artificial de quem está acusado da prática o delito e ainda não foi julgado, dos que já o foram, sendo condenados. É incorreto tornar um lapso do legislador numa opção sua. A interpretação jurídica tem a obrigação de detetar essas situações e operar a sua função dentro da norma.
Sabemos que os desenvolvimentos judiciais do direito contra legem, por via de interpretações corretivas são proibidas cfr.art.8º nº2 do Cód.Civil (o dever de obediência à lei não pode ser afastado sob o pretexto de ser injusto ou imoral o conteúdo do preceito legislativo), mas essas infrações exegéticas ocorrem quando os Tribunais se afastam da letra e do espírito da norma, sendo que a leitura do intérprete da teleologia, não pode incluir os poderes criativos do legislador.
Tendo bem ciente que se trata de uma lei especial/excecional, a expressão literal de “condenado” não impressiona, nem é decisiva, porque, como se referiu, no extenso elenco do catálogo de exclusões/exceções previsto no artigo 7º, todas essas exclusões se referem ao perdão e aí o sentido de “condenado” é usado em sentido próprio (exceto em parte, como se disse, no delito de condução em estado de embriaguez nº1 alínea d) ii) do art.7º, e na parte do nº2 do art.7º na parte que se refira a injúrias agravadas a forças policiais) De notar que o legislador nas anteriores leis da amnistia, concretamente nos arts.9º nº3 da Lei nº15/94, e art.2º nº2 da Lei nº29/99, foi mais cuidadoso, reconduzindo as exclusões de perdão às situações de arguido “condenado”. . Mas a letra da lei na expressão “condenado” sendo em parte imprópria, no que se refere ao alcance da amnistia, enferma de incorreção literal, e nestes casos, como aliás sempre, pese embora os limites impostos pelo direito penal e pelas leis excecionais à interpretação extensiva e analógica, as respetivas regras jurídicas estão sujeitas à interpretação, e é esse o dever do intérprete perante a norma. Como é consabido, a jurisprudência demonstra permanentemente como é fértil o campo interpretativo das normais penais. No caso, como o presente, a redação do legislador revela-se em parte imprópria com o regime da amnistia, que, como vimos no Código Penal, atinge e extingue o procedimento criminal, embora também extinga os efeitos da pena perante o condenado. No que tange à amnistia seria curial a expressão “prática de infração”.
No processo exegético necessariamente tem de se entender que, muito embora o nº2 do art.7º se reporte à amnistia e ao perdão, a expressão “condenado” refere-se ao perdão e bem assim à amnistia, porém, esta porque também atinge todo o procedimento (como lhe é próprio) e também o condenado, deve entender-se que, perante tal lapso, o alcance e os efeitos da excludentes da amnistia no procedimento criminal não estão precludidos ou fora desta exceção legal (no fundo, é uma ressalva parcial do universo da amnistia). Tal exegese não implica restrições ou extensões do âmbito interpretativo, ou sequer sacrifica o sentido literal da lei a um sentido normativo que vá mais além ou fique aquém, sobretudo porque, não só, está de acordo com o regime penal da amnistia, como também, é no campo da letra da lei que o problema se resolve definitivamente. Concretamente, na economia do disposto no art.7º nº3 da Lei nº38-A/2023 consta que “A exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação (…) da amnistia prevista no artigo 4º relativamente a outros crimes.” (relevo nosso), significa isto que, o comando desta norma prejudica a aplicação da amnistia quanto aos crimes previstos no art.7º, tão só isso: seja o arguido condenado ou ainda não julgado.
O legislador nesse nº3 quis expressamente excluir da amnistia do art.4º o elenco de delitos previstos no art.7º nºs 1 e 2, não sendo ajustado amnistiar crimes previstos no art7º, com a distinção de condenado ou não julgado, pois, a única distinção não prejudicada é serem outros crimes. Na redação deste nº3 do art.7º não consta que “não prejudica a amnistia pelos mesmos crimes do art.7º, desde que ainda não julgados”.
E o que se fez na decisão do Tribunal “A Quo”, contrariamente ao disposto no art.7º nº3 da Lei nº38-A/2023, foi integrar os crimes excecionados nos nºs1 a 2 do art.7º na amnistia geral de outros crimes, prevista no art.4º da mesma lei, o que a norma do nº3 do art.7º não permite.
Portanto, o processo hermenêutico em causa, - ao excluir a amnistia nos casos em que estando o arguido acusado do crime de injúrias agravadas contra forças policiais, conforme o nº2 do art.7º, mas ainda não foi julgado - não derroga a letra da lei, não conduz a resultados “contra legem” ou a torna extensiva a sua aplicação, antes obedece ao regime penal da amnistia previsto no art.128º nº2 do Cód.Penal, e sobretudo, cumpre expressamente o disposto no nº3 do art.7º da Lei nº38-A/2023.
Deste modo, entendendo-se que os presentes autos se integram na exclusão da amnistia prevista no nº2 do art.7º nº38-A/2023, não poderia o Tribunal “A Quo” ter amnistiado o procedimento criminal.
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DISPOSITIVO.
Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso, revogando o despacho proferido, por o procedimento criminal não ser amnistiável, devendo os autos prosseguir os seus ulteriores termos.

Notifique.

Sumário:
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Porto, 21 de Fevereiro 2024.
(Elaborado e revisto pelo 1º signatário)
Nuno Pires Salpico
Maria Joana Grácio
Pedro Vaz Pato