Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5/17.2PEMTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FRANCISCO MOTA RIBEIRO
Descritores: CRIME DE DETENÇÃO DE ARMA
ARMAS VÁRIAS
CONCURSO APARENTE
Nº do Documento: RP201802215/17.2PEMTS.P1
Data do Acordão: 02/21/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º750, FLS.108-116)
Área Temática: .
Sumário: I - É teleológico, e não meramente lógico-subsuntivo, o critério legalmente adotado para a determinação do concurso efetivo de crimes.
II - Ainda que os factos sejam formalmente subsumíveis a uma pluralidade de ilícitos típicos, não estaremos perante uma pluralidade de crimes efetivamente cometidos sempre que esses mesmos factos se encontrem entre si numa relação de inclusão material e traduzam por isso um “comportamento ilícito global” apenas subsumível ao tipo “absolutamente dominante, preponderante ou principal”, devendo uma tal pluralidade relevar somente no âmbito da ponderação da existência de uma maior gravidade da ilicitude e da culpa, para efeitos de escolha e determinação da pena.
III - Comete um único crime de detenção de arma proibida - situação de concurso ideal homogéneo ou heterógeneo, em que a punição do facto mais grave consome ou esgota o ilícito globalmente cometido - quem, sob o teto da mesma resolução criminosa e num mesmo período espácio - temporal, detém ilicitamente mais do que uma arma.

(Sumário eleborado pelo relator)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 5/17.2PEMTS.P1 – 4.ª Secção
Relator: Francisco Mota Ribeiro
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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto
1. RELATÓRIO
1.1 Por sentença de 28/09/2017, após realização da audiência de julgamento, no Processo n.º 5/17.2PEMTS, que correu termos no Juízo Criminal da Maia, Juiz 3, Comarca do Porto, foi o arguido B…:
- absolvido da prática de um crime de detenção de arma proibida previsto e punido no art.º 86º, nº 1, al. d), da Lei n° 5/2006, de 23 de janeiro, na redação que lhe foi dada pela Lei nº 17/2009, de 06/05;
- condenado pela prática de um crime de detenção de arma proibida previsto e punido no art.º 86º, nº 1, al. c), da Lei n° 5/2006, de 23 de janeiro, na redação que lhe foi dada pela Lei nº 17/2009, de 06/05 na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa à taxa diária de €6,00 (seis euros);
- condenado pela prática de um crime de detenção de arma proibida previsto e punido no art.º 86º, nº 1, al. c), da Lei n° 5/2006, de 23 de janeiro, na redação que lhe foi dada pela Lei n°17/2009, de 06/05 na pena de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa à taxa diária de €6,00 (seis euros);
- como pena única resultante do cúmulo jurídico das penas parcelares atrás referidas, foi o mesmo arguido condenado na pena de 330 (trezentos e trinta) dias de multa à taxa diária de €6.00, num total global de €1.980.00 (mil novecentos e oitenta euros).
1.2. Não se conformando com tal decisão, dela interpôs recurso o arguido, apresentando motivação que termina com as seguintes conclusões:
“I. Devem ser levados à matéria de facto julgada provada os seguintes factos:
a) o Arguido foi titular de licença de uso e porte de arma de defesa pessoal, como é o revólver de marca Amadeo Rossi, calibre .32 mm SW Long, com o número de série C-……, desde 1996 e até 23.05.2010; e
b) o Arguido foi titular de licença de uso e porte de arma de caça, como é a arma de caça de marca Baikal, calibre 12 mm GA, com número de série ……...
II. As penas aplicadas ao Recorrente são excessivas e violadoras do disposto no artigo 71.º do CP, por não terem sido devidamente levados em consideração, na determinação das medidas concretas das penas, todos os factos que, nos autos, depõem a favor do Arguido, nomeadamente, o concreto grau de ilicitude dos factos, o modo de execução destes, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente, a intensidade do dolo, e a situação pessoal do Arguido.
III. O Tribunal a quo, na determinação da medida da pena, não apreciou devidamente as circunstâncias que depõem a favor do Arguido.
IV. As penas aplicadas ao Arguido, atentos os fundamentos da medida das mesmas e as circunstâncias que o Tribunal a quo deu como provado ou de que dispunha e não valorou na determinação da medida da pena, são manifestamente desadequadas, por desajustadas, quer em relação à medida da culpa, quer em relação às exigências de prevenção geral e especial.
V. Em momento algum, o Tribunal a quo se pronunciou quanto às necessidades de prevenção especial, em ordem a fundamentar a aplicação de penas em medida tão afastada do limite mínimo legalmente admitido.
VI. O Tribunal a quo utilizou apenas a putativa existência de uma elevada necessidade de prevenção geral para justificar a medida concreta da pena.
VII. As apontadas elevadas necessidades de prevenção geral, não obstante se aceite verificarem-se em abstrato neste tipo de crimes, não se verificam com a mesma intensidade nos crimes concretamente imputados ao Arguido, em especial face ao modo de execução dos mesmos, que não foi devidamente valorado.
VIII. O Arguido foi condenado por guardar armas em casa – e não por usá-las, ou sequer trazê-las consigo na via pública –, para cuja posse não estava devidamente licenciado, mas que são armas que se encontravam devidamente manifestadas e registadas em nome do Arguido.
IX. Quanto às concretas necessidades de prevenção geral a atender, há que considerar que, quanto aos crimes por que vem o Arguido condenado, sendo em abstrato graves, correspondendo-lhes um grau de ilicitude geralmente elevado, em especial considerando os bens jurídicos em causa, a verdade é que, no caso concretamente em apreço, se apresentam com um grau de ilicitude reduzido.
X. A circunstância de as armas se encontrarem manifestadas e registadas a favor do Arguido deveria ter sido devidamente considerada em seu benefício, na determinação das penas concretamente aplicáveis, a demandar penas inferiores às efetivamente aplicadas.
XI. No que concerne às concretas necessidades de prevenção especial, não foi devidamente valorada a inexistência de história criminal do Arguido, porque, não foi ponderado que o arguido, não só não tem antecedentes criminais, como os não tem aos 64 anos de idade, o que impunha, necessariamente, opção por medidas concretas da pena mais próximas do mínimo legal.
XII. O Tribunal a quo também não tomou em devida consideração a conduta do Arguido anterior à prática dos factos, conduta essa que, estando objetivamente vertida nos autos, é reveladora de o Arguido estar, afinal, preparado para manter uma conduta lícita.
XIII. Pelo contrário, no seu todo, a conduta do Arguido é reveladora de uma personalidade apta a manter uma conduta lícita, que, somente mercê das circunstâncias, deixou de o fazer.
XIV. As exigências de prevenção especial do agente, reveladas no modo de execução do crime, na sua atuação anterior à prática do mesmo, na idade e ausência de antecedentes criminais, assim como na vontade de colaborar com a justiça que demonstrou ao confessar os factos, são reduzidas e demandam a fixação das penas a aplicar em medidas mais próximas dos limites mínimos legalmente admitidos.
XV. Ao contrário do que inferiu o Tribunal a quo, o Arguido não agiu “com a modalidade mais forte de culpa atuando com dolo direto, representando e querendo os resultados obtidos”.
XVI. O Arguido não quis manter na sua posse armas para cuja posse e uso não estava devidamente licenciado, agindo ab initio com esse desígnio.
XVII. O Arguido apenas se conformou com o facto de não ter procedido à renovação das respetivas licenças de porte e uso de arma e de, por essa via, passar a ser detentor de armas para cuja detenção não tinha licença.
XVIII. O Arguido atuou, assim, com dolo eventual e não com dolo direto.
XIX. Pelo que é necessariamente menor o limite máximo das penas a aplicar-lhe, que não podem jamais ultrapassar a medida da culpa.
XX. Mal andou o Tribunal a quo ao fixar as penas parcelares, devendo tê-las fixado mais próximas do seu limite mínimo, ou seja:
- Para o crime de detenção da espingarda, 50 dias de multa; e
- Para o crime de detenção do revólver, 100 dias de multa.
XXI. A moldura penal do concurso encontrar-se-ia, assim, entre os 100 e os 150 dias de multa, encontrando-se o ponto ótimo de realização das necessidades preventivas da comunidade – ou seja, a medida de pena que a comunidade entenderá necessária à tutela das suas expectativas na validade e no reforço da norma jurídica afetada pela conduta do Arguido – nos 100 dias de multa.
XXII. Considerando as exigências de prevenção geral, não revelando o Arguido carência de socialização, nem exigências de prevenção especial que reclamem pena a aplicar em medida superior, a aplicação de uma pena situada junto do limite mínimo do cúmulo jurídico – 100 dias de multa – realizaria eficazmente as finalidades da punição.
DISPOSIÇÕES LEGAIS VIOLADAS
• 40.º, 71.º, 77.º, todos do CP.”
1.3. O recurso foi admitido pelo despacho de fls. 144, de 13/11/2017.
1.4. O Ministério Público respondeu, de fls. 147 a 149, concluindo não merecer o recurso provimento.
1.5. A Sra. Procuradora-Geral-Adjunta, neste Tribunal, emitiu parecer, considerando não poder ser imputado à decisão recorrida qualquer dos vícios do art.º 410º, nº 2, do CPP, designadamente o da alínea a), assim como o da nulidade a que se reporta o art.º 374º, nº 2, e 379º, nº 1, do CPP, considerando dever ser tida por fixada a matéria de facto, com a consequente improcedência do recurso. Sendo que quanto à pena única aplicada, e tendo em conta que a moldura penal abstrata é limitada por um mínimo de 10 dias e um máximo de 600 dias, considera que qualquer das penas parcelares se situa na metade inferior e uma delas no terço inferior, ainda que consideravelmente afastadas do mínimo de 10 dias, formulando o entendimento de que tais penas deveriam ser reduzidas para valores próximos dos 60 e dos 100 dias de multa, embora com taxa diária superior à que foi fixada e não inferior a €10,00. Discordando também da pena única encontrada, no âmbito do cúmulo jurídico efetuado, por a mesma se situar acima da metade superior dos limites abstratos, quando a pena mais elevada do cúmulo se situa na metade superior. Concluindo dever ser concedido provimento ao recurso.
1.6. Tendo em conta os fundamentos do recurso interposto pelo arguido e os poderes de cognição deste tribunal, tendo em conta ademais que o recurso visa apenas matéria de direito, importa apreciar e decidir as seguintes questões:
1.6.1. Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
1.6.2. Caráter excessivo da pena única de multa concretamente aplicada e a questão precípua da verificação de concurso efetivo ou meramente aparente entre os crimes imputados ao recorrente.
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1 Factos a considerar
2.1.1 No sentença condenatória proferida nos autos foi considerada provada a seguinte factualidade:
“a) No dia 18 de janeiro de 2017, pelas 07h30m, no âmbito do proc. 1410/16.PHMTS, foi realizada busca domiciliária na residência sita na Rua …, n° …, …, Maia, área desta Comarca, onde o arguido, à data, residia.
b) No decurso da realização da busca domiciliária, no quarto ocupado pelo arguido, foram encontrados os seguintes objetos:
- uma arma de caça de marca Baikal, calibre de 12mm GA, com número de série …….., melhor descrita no relatório de fls. 37, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais e manifestada em nome do arguido;
- um revólver de marca Amadeo Rossi, calibre .32 mm SW Long, com o número de série C-……, melhor descrita no relatório de fls. 69/70, que aqui se dá reproduzido para todos os efeitos legais e manifestada em nome do arguido;
- 55 munições de calibre .32, melhor descritas no relatório de fls. 32, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
c) O arguido não era, à data dos factos, titular de licença de uso e porte daquelas armas e munições, nem de licença de detenção das mesmas no domicílio.
d) As armas supra identificadas estavam registadas e manifestadas em nome do arguido.
e) O arguido conhecia as características e composições da arma e munições que detinha no seu quarto, bem sabendo que a sua posse era proibida, carecendo de licença de uso e porte de arma, que o mesmo sabia não ter.
f) Sabia o arguido que as suas condutas lhe estavam vedadas por lei penal e tendo capacidade de determinação segundo as legais prescrições, ainda assim não se inibiu de as realizar, tendo agido de forma livre, deliberada e consciente pelo que lhe foi imediatamente retirada por Agentes da PSP e devidamente apreendida. Mais se provou que:
g) Não se conhecem antecedentes criminais ao arguido.
h) O arguido é casado, concluiu o 4º ano de escolaridade (antiga 4a classe) e trabalha como mecânico auferindo cerca de €580,00 por mês. A mulher é doméstica e não aufere qualquer rendimento ou subsidio. Vivem em casa própria, pagando uma prestação mensal pelo empréstimo para a sua aquisição no valor de €540,00. Contam com a ajuda dos dois filhos, já maiores, para fazer face às despesas do agregado.”
2.1.2. Na fundamentação relativa à qualificação jurídica dos factos e à escolha e determinação da medida da pena o Tribunal a quo considerou o seguinte (transcrição das partes mais relevantes):
“(…)
Ora, no caso sub judice, resultou provado que o arguido efetivamente detinha um revólver Amadeo Rossi de .32mm S&W Long, uma espingarda Baikal 12 mmGA e ainda 55 munições calibre .32, que servem para disparar no revólver supra referido, agindo dessa forma por ser a sua vontade, o que sabia ser proibido e punido por lei, ou seja que se encontram preenchidos os elementos a que se alude nas alíneas c) e d) do n°1, do art.º 86° da Lei n°5/2006 e que integram os crimes pelos quais o arguido vem acusado.
Contudo não se pode olvidar que o arguido detinha ilicitamente duas armas de fogo - o revólver e a espingarda - e as respetivas munições do revólver.
Quanto a esta detenção da arma e respetivas munições deteta-se a existência de uma unidade resolutiva criminosa, da identidade do bem jurídico, e bem ainda uma conexão temporal e espacial dos factos, revelando-se tais critérios fulcrais para se aferir da eventual unidade ou pluralidade de crimes.
Conforme a matéria de facto provada, temos em causa dois tipos de arma (armas de fogo e munições), integrando-se duas delas (as armas) na previsão da alínea c) e as outras (as 55 munições) na alínea d), do citado n° 1 do artigo 86°.
Ora considerando que o bem jurídico protegido é, de facto, o mesmo, em ambas as alíneas, divergindo apenas a categoria ou natureza da arma em causa, que não se descortina uma pluralidade de resoluções criminosas e que os factos incriminadores ocorrem no mesmo contexto espácio-temporal, temos que concluir que relativamente à arma e respetivas munições existe apenas um crime, punível, no caso, segundo a moldura penal mais grave, da alínea c) - cfr. Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2a edição, pág. 1037.
Nessa sequência, e face ao concurso aparente (e não efetivo) de crimes, apenas poderá o arguido ser condenado por um crime, o previsto pela alínea c) do n°1 do Regime
Jurídico das Armas e Munições.
Em face do exposto, conclui-se, sem mais considerações, por se terem por despiciendas, que o arguido deve ser absolvido do crime de detenção ilegal de arma previsto na alínea d), do n°1, do art.º 86° da Lei n°5/2006, relativamente às munições que detinha em conjunto com a arma que os permitia deflafrar, e ser condenado pela prática de dois crimes de detenção de arma proibida relativamente às duas armas distintas que se provou estarem na sua posse, o revólver e a espingarda.
DAS CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO CRIME
O artigo 86º, nº 1, al. c), da Lei n°5/2006, de 23 de fevereiro estipula que o agente será punido com pena de prisão de 1 a 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.
Assim, como não se encontra definido o limite mínimo da pena de multa, com recurso ao artigo 47º do C. Penal, é abstratamente aplicável ao arguido uma pena de prisão de 1 ano a 5 anos ou uma pena de multa de 10 a 600 dias.
O art.º 70° do Código Penal estipula que se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal deverá dar preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição prevista no artigo 40° do diploma supra referido.
Desta forma, o critério de determinação da pena concreta aplicável encontra-se condicionado pelo momento prévio da necessária escolha da pena, atendendo aos requisitos impostos pelo art.º 70º. Dado que o preceito incriminador das condutas do arguido prevê a possibilidade de aplicação de uma pena alternativa de multa, será esta aplicável se com tal se compatibilizarem as exigências de prevenção.
No caso sub judice, considera-se que com a aplicação de uma pena de multa se satisfazem com suficiência tais exigências dado que não se conhecem antecedentes criminais ao arguido, que aliás colaborou com o tribunal na administração da justiça confessando de forma integral os factos pelos quais vinha acusado. A circunstância da escolha da pena se dever associar mais estritamente a critérios de prevenção especial e a uma consideração da capacidade de ressocialização, impõe a escolha de penas de multa como as mais adequadas ao caso concreto.
Dentro da moldura abstrata acima definida para os crime praticados pelo arguido cabe agora encontrar a pena concretamente aplicável considerando as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime deponham contra ou a favor do arguido.
Os critérios de determinação da medida concreta da pena encontram-se exemplificativamente enumerados no art. 71° do Código Penal (aplicável ex vi do art. 47°, n°1 CP). A pena será delimitada pela inultrapassável medida da culpa do arguido, determinando-se o seu quantitativo tendo em atenção essa mesma culpa e as exigências de prevenção.
A prevenção geral, no seu entendimento mais atual, como prevenção geral positiva ou de integração, é um momento irrenunciável que não pode deixar de relevar decisivamente para a medida da pena - a ideia de que só razões ligadas à inarredável necessidade de reafirmar as expectativas comunitárias na validade e vigência da norma jurídica violada, abaladas pela prática do crime, podem justificar as reações mais gravosas por parte do direito penal.
Como circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime e se associam diretamente à sua prática ou à motivação que lhe deu origem, haverá a considerar que:
• o arguido agiu com a modalidade mais forte de culpa, atuando com dolo direto, representando e querendo os resultados obtidos;
• existem elevadas exigências de prevenção geral, atendendo aos inúmeros casos de utilização ilegal de armas, com a sensação de insegurança que tal facto provoca na comunidade, impondo a reafirmação perante a mesma da vigência e validade da norma violada;
• as armas estavam em bom estado de conservação, prontas a ser usadas
• o arguido detinha ainda 55 munições do revólver que tinha consigo, o que claramente aumenta a perigosidade da sua conduta;
• o concurso de crimes agrava a responsabilidade do arguido
• não se conhecem antecedentes criminais ao arguido;
• o arguido confessou os factos, colaborando com o tribunal na administração da justiça;
• trabalha e está socialmente inserido
Consideradas em conjunto as circunstâncias descritas tem-se por adequadas e proporcionais:
- uma pena concreta de 180 dias de muita para a detenção da espingarda:
- uma pena concreta de 250 dias de multa para a detenção do revólver.
Operando o cúmulo jurídico de tais penas parcelares nos termos do artigo 77º do Código Penal, considerando para o efeito, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, reputa-se adequada a pena única de 330 dias de multa.
No que respeita ao quantitativo diário para a pena de multa do arguido, tendo em consideração as suas condições sócio-económicas que supra resultaram provadas, em conformidade com o art.º 47°, n°2, do Código Penal, fixo o mesmo em €6,00 (seis euros).”
2.2. Fundamentos fáctico - conclusivos e jurídicos
Resumidamente, pode afirmar-se que o recorrente discorda antes de mais das penas concretamente aplicadas, por as considerar excessivas, quer as parcelares, quer a pena única resultante do concurso de crimes que o Tribunal a quo considerou existir face aos factos dados como provados. Sendo certo que, antes disso, refere o recorrente que o Tribunal a quo deveria ter dado ainda como provados os seguintes factos:
a) o arguido foi titular de licença de uso e porte de arma de defesa pessoal, como é o revólver de marca Amadeo Rossi, calibre .32 mm SW Long, com o número de série C-……, desde 1996 e até 23.05.2010; e
b) o arguido foi titular de licença de uso e porte de arma de caça, como é a arma de caça de marca Baikal, calibre 12 mm GA, com número de série ……...
No aditamento dos novos factos ora pretendido, o recorrente não invoca qualquer norma jurídica pertinente, como seria curial fazê-lo, dado ademais o disposto no art.º 412º, nº 2, al. a) e b) do CPP, e já que se não vislumbra fundamento legal para que a pretensão assim deduzida pudesse ser considerada como constitutiva de impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, porquanto os respetivos pressupostos se não verificam, e desde logo a circunstância da factualidade invocada não ter integrado o objeto de decisão do Tribunal a quo, no tocante à matéria de facto (não faz parte dos factos dados como provados ou não provados). Por isso mesmo o chamamento de tal matéria ao objeto do litígio só poderia ser enquadrável, antes de mais, no vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que alude o art.º 410º, nº 2, al. a), do CPP.
Em verdade, dispõe o art.º 410º, nº 2, al. a), do CPP que, “mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) a insuficiência da matéria de facto provada.”
Designadamente no Processo nº 470/09.1TAFLG.P1, deste Tribunal da Relação do Porto, já nos pronunciámos sobre a aplicação do art.º 410º, nº 2, al. a), nos seguintes termos, que aqui consideramos ser de manter: “A correta interpretação de tal normativo implica, antes de mais, que tenhamos, subjacente à apreciação crítica que ele implica, uma perfeita ou adequada noção do objeto do processo, isto é do conjunto de factos ou de questões, cuja determinação é dada em primeira linha pela acusação ou pronúncia, bem como pela contestação ou pela defesa ou ainda pela discussão da causa, e sobre os quais vai assentar a vinculação temática do tribunal e, em concreto, os poderes de cognição do juiz, de modo a poder afirmar-se que aquilo que o tribunal investigou ou os factos sobre os quais fez incidir o seu poder/dever de decisão e que, no fundo, constituem ou formam o objeto do seu julgamento, são aqueles que constituíam o objeto do processo, de molde a poder também afirmar-se que fora do seu julgamento também não ficou nenhum desses factos que importava conhecer, dando-os como provados ou não provados, tanto faz, pois o que importa é que não fique de fora da sua apreciação qualquer facto relevante para a decisão da causa, quer haja sido carreado pela acusação, quer pela defesa, ou haja vindo ao processo no âmbito dos poderes de investigação e conhecimento oficioso do tribunal. Só se existir algum desses factos, que hajam sido carreados ao processo, mas não tenham sido objeto de apreciação pelo Tribunal, é que poderemos concluir pela insuficiência da decisão sobre a matéria de facto provada (ou não provada), porquanto nela não foram vertidos todos os factos relevantes para a respetiva decisão[1].”
No caso dos autos, é apenas na motivação do recurso e nas respetivas conclusões que o recorrente vem invocar a factualidade acima descrita, não resultando do processo que o haja feito antes, tanto mais que na contestação deduzida, constante de fls. 97, se limitou a oferecer o merecimento dos autos. Por outro lado, não vemos como tal factualidade pudesse ou devesse ter vindo ao conhecimento oficioso do Tribunal de julgamento, e desde logo porque se não vislumbra que interesse relevante pudesse ter para a boa decisão da causa ou pelo menos em termos de se poder considerar como insuficiente a que ficou dada como provada no processo. Isto é, não vemos como é que o facto de o recorrente ter tido licença de uso e porte de arma de defesa pessoal até há cerca de 7 anos ou tê-la tido anteriormente em relação a uma arma de caça, possa ter alguma relevância significativa quanto ao facto de a não ter relativamente às armas por cuja detenção ilegal foi condenado nos presentes autos, como aliás considerou o Ministério Público na resposta deduzida ao recurso. Nem o recorrente explica, concretamente, que relevância poderia ser essa, mesmo para a determinação da medida da pena, porquanto não vemos em que medida relevante, e para além da mera argumentação que abstratamente se pudesse desenvolver, tal facto pudesse diminuir ou agravar o grau da sua ilicitude ou da sua culpa ou em que medida poderia concretamente diminuir a perigosidade que em abstrato justifica a proibição de detenção de armas como as que foram encontradas na sua posse, para que também por esta via se considerassem diminuídas as necessidades de prevenção. Não vemos. Assim como não vislumbramos que conexão positiva ou negativa pudesse ser estabelecida, em concreto, entre os factos referidos e os critérios de escolha e determinação da medida da pena, e sobretudo para que se considerasse como insuficiente a que resulta provada nos autos.
Razão por que, nesta parte, deve ser negado provimento ao recurso.
A segunda questão que o recurso interposto pelo arguido levanta prende-se necessária e logicamente com o caráter excessivo ou não das penas parcelares e da pena única aplicada ao concurso de crimes. Porém, a ela é precípua a qualificação jurídica dos factos. Isto é, saber antes de mais se, afinal, face aos factos dados como provados, cometeu ou não o arguido dois crimes de detenção de arma proibida, nos termos em que o considerou ou Tribunal a quo ou se apenas um crime.
O art.º 30º, nº 1, do CP diz que “O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.”
Entendendo-se que critério jurídico - normativo que a lei acolhe para a determinação do concurso de crimes, e desde logo o concurso heterogéneo, é teleológico, designadamente pela expressa referência nele contida ao conceito de crimes “efetivamente cometidos”, delimitando-o assim por oposição aos casos em que esse concurso é meramente aparente[2].
Assim sendo, será aparente e não efetivo o concurso designadamente quando as normas chamadas a regular o caso ou em relação às quais os factos se apresentam como subsumíveis se encontram numa relação de inclusão material, devendo uma tal pluralidade relevar apenas no âmbito da ponderação da existência de uma maior gravidade da ilicitude da respetiva conduta e da culpa do agente. Assumindo-se, portanto, concretamente, e vistas as coisas à luz do art.º 30º, nº 1, do CP, como “um caso de pluralidade de normas típicas concretamente aplicáveis, mas não uma pluralidade de crimes ‘efetivamente cometidos’”[3]. Havendo que procurar no comportamento ilícito global do agente a subsunção típica “absolutamente dominante, preponderante ou principal”, seja em função da “unidade do sentido social do acontecimento global; seja em função da unidade de desígnio criminoso; seja em função da estreita conexão situacional, nomeadamente, espácio - temporal, intercedente entre diversas realizações típicas singulares homogéneas”[4].
E tais considerações valem igualmente, ou até por maioria de razão, para o concurso homogéneo de crimes, isto é, quando o mesmo tipo de crime for preenchido várias vezes pela conduta do agente, mas em que a aparente pluralidade de factos típicos subsumíveis ao mesmo tipo-de-ilícito, afinal, integra e esgota-se num único acontecimento global, em que a punição de um dos factos consome ou esgota o ilícito assim globalmente considerado.
Sendo precisamente isso que acontece no caso dos autos: um único agente; a detenção ilícita de mais do que uma arma; sob o teto da mesma resolução criminosa; no mesmo período espácio-temporal – cf. al. a) a f) dos factos dados como provados. Ou seja, uma situação de concurso ideal homogéneo, em que os fatos cometidos revelam uma “unidade substancial” reforçada, não só pelas concretas circunstâncias em que se dá o concurso, marcado pela identidade do bem jurídico protegido e a pela “unidade de sentido do acontecimento ilícito global-final”[5], visado pelo agente, e ainda pela estreita conexão espácio-temporal em que decorreram os factos.
Sobre esta matéria pronunciaram-se, aliás, diversos acórdãos, cuja doutrina subscrevemos, no sentido de que não estaremos perante um concurso efetivo de crimes de detenção ilegal de armas, mas sim perante um concurso aparente, sempre que esteja em causa a detenção por um mesmo agente, e sob a mesma resolução criminosa, de uma pluralidade de armas, ainda que de diversa natureza, em função das quais, e se individualmente consideradas, levariam ao preenchimento da ilicitude típica a que se referem as várias normas do art.º 86º da Lei 5/2006[6].
Razão por que cometeu o recorrente apenas um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo art.º 86°, n°1, al. c) da Lei n° 5/2006, de 23 de Janeiro, com pena de prisão de 1 a 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.
Chegados a este ponto, importa agora determinar qual a pena concretamente aplicável ao arguido.
Não merece censura a opção feita pelo Tribunal a quo pela aplicação de uma pena de multa, aliás, de harmonia com o disposto no art.º 70º do CP, enquanto pena alternativa que é à pena de prisão, opção que não tendo sido posta em causa no recurso interposto não poderia agora ser objeto de apreciação, sob pena de violação do princípio da proibição da reformatio in pejus, consagrado no art.º 409º do CPP. Assim como, também face ao objeto do recurso interposto, o que verdadeiramente está em causa é apenas a determinação dos dias de multa aplicados ao recorrente.
Estabelece o art.º 47º, nº 1, do CP que a pena de multa é fixada em dias de acordo com os critérios estabelecidos no art.º 71º, nº 1, do CP.
Diz por seu turno o art.º 71º, nº 1, que a determinação da medida da pena, dentro dos limites da lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, reiterando claramente, e desde logo, uma incidência específica do princípio da culpa na determinação da medida concreta da pena, fazendo assim atuar a culpa como limite máximo da punição. Por outro lado, na determinação da medida da pena deverão ainda ser tidas em conta as finalidades de prevenção geral, as quais se mostram alcançadas sempre que o efeito da ameaça penal, por referência ao momento da aplicação da pena, permite alcançar a “tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da validade da norma infringida”[7] (aspeto positivo), mais do que uma intimidação dos potenciais delinquentes (aspeto negativo). Sendo que no que diz respeito à prevenção especial, esta valerá fundamentalmente na sua dimensão positiva, pelo efeito de socialização que a pena permitirá produzir em relação ao agente, mais do que a intimidação que lhe possa causar – dimensão negativa[8].
Finalmente, o nº 2 do art.º 71º do CP impõe que na determinação concreta da pena, o tribunal atenda a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando nomeadamente as que aí resultam especificadas nas al. a) a f).
Seguindo os critérios acima enunciados, tendo em conta a moldura penal aplicável, que se situa entre um mínimo de 10 dias (art.º47º, nº 1, do CP) e um máximo de 600 dias, ponderando ademais as circunstâncias que no processo se revelaram a favor do arguido e contra ele, designadamente a circunstância de não ter antecedentes criminais, o facto de as armas se encontrarem registadas e manifestadas em nome do arguido, contar já com 64 anos de idade, mostrar-se familiar e socialmente bem integrado, e pese embora alguma gravidade da ilicitude, dada a pluralidade de objetos proibidos por si detidos, acompanhada por alguma gravidade da culpa assente ademais num dolo claro e persistente, o que faz com que, pese embora as necessidades de prevenção especial sejam reduzidas, as necessidades de prevenção geral se afigurem elevadas, mas a imporem contudo uma pena bem mais perto do limite mínimo do que do seu limite máximo.
Tudo ponderado, realçando-se essencialmente as necessidades de prevenção geral que o caso reclama, entende-se como adequada à salvaguarda das necessidades da punição, e sem prejuízo da culpa concretamente registada, a aplicação ao arguido de uma pena de 150 dias de multa, à taxa diária de €6,00.
2.3. Responsabilidade pelo pagamento de custas
Uma vez que o arguido obteve vencimento no recurso por si interposto não é responsável pelo pagamento da taxa de justiça e dos encargos a que a sua atividade deu lugar (artigos 513.º, nº 1, do CPP, a contrario sensu).
3. DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 2.ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido B… e, consequentemente, revogar a decisão recorrida, na parte em que condenou o arguido pela autoria, em concurso efetivo, de dois crimes de detenção de arma proibida, condenando-se agora o mesmo arguido, pelo autoria de um único crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo art.º 86°, n°1, al. c), da Lei n° 5/2006, de 23 de Janeiro, na redação que lhe foi dada pela Lei n°17/2009, de 06/05, na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de €6,00 (seis euros), mantendo-se quanto ao mais a decisão recorrida.
Sem custas
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Porto, 21 de fevereiro de 2018
Francisco Mota Ribeiro
Elsa Paixão
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[1] Neste sentido, Conselheiro Pereira Madeira, in Código de Processo Penal Comentado, Reimpressão, Almedina, Coimbra, 2014, p. 1357 e sgs., aí se sublinhando, a dado passo, que “quando se afirma, como se vê fazer muitas vezes, que a matéria de facto provada é insuficiente para a condenação pelo tribunal, não se está a proceder à invocação deste vício, antes, em suma, a afirmar que o tribunal errou na aplicação do direito aos factos provados, o que nada tem a ver com vícios da matéria de facto.” Veja-se ainda Ac. do STJ, de 27/11/2013, Pº nº 2239/11.4JAPRT.P1.S1, in http://www.dgsi.pt/jstj.
[2] Eduardo Correia, apud Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da Republica Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2ª Edição atualizada, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2010, p. 154.
[3] Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 1012.
[4] Idem, p. 1015.
[5] Idem, p.1016.
[6] Por todos, Ac. do TRP, de 12/05/2010, proc. nº 1203/07.2GAVNF.P1, Ac. do TRE, de 8/11/2011, proc. nº 92/10.4GAENT.E1, e Ac. do TRC, de 22/01/2014, proc. n.º 82/13.5GCFVN.C1, e Ac. do TRC, de 16/03/2016, Proc.º 9/13.4PELRA.C1, todos disponíveis em www.dgsi.pt
[7] Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português. As consequências jurídicas do crime, 1993, p. 228.
[8] Prof. Anabela Rodrigues, in A determinação da medida da pena privativa da liberdade, 1995, p. 317 e segs.