Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2524/17.1T8LOU.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
ENTREGA JUDICIAL DE BENS
DIREITO DE HABITAÇÃO
Nº do Documento: RP202109202524/17.1T8LOU.P2
Data do Acordão: 09/20/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I– O art.º 6.º-A, n.º 6, alíneas b) e c) e n.º 7, da Lei n.º 1-A/2020, de 19/03 (na redacção da Lei n.º 16/2020, de 29/05) prevê três níveis diferentes de protecção das pessoas visadas com diligências de entrega de imóveis: a) se o imóvel em causa constituir casa de morada de família ficam automaticamente suspensas todas as diligências de entrega judicial da mesma; b) se o imóvel a entregar, não sendo casa de morada de família, for um imóvel arrendado apenas se suspendem estas mesmas diligências caso “o arrendatário, por força da decisão final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa”; c) se o imóvel em causa não constituir casa de morada de família nem for arrendado somente se suspende a prática de tais diligências caso estas “sejam susceptíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente (…) desde que essa suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou um prejuízo irreparável.
II- A al. b) do citado preceito apenas suspende a entrega do imóvel que constitui a casa de morada de família, mas não já a sua venda ou adjudicação que necessariamente precedem aquela.
III- O nº 7 do citado preceito não abrange na sua factie species a casa de morada de família, mas ainda que assim não fosse, não vemos como seria possível, nessas situações, a verificação do primeiro dos apontados requisitos (prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente), quando a sua protecção durante o período pandémico está garantida pela imposição da suspensão da entrega judicial do imóvel, sendo que, passado o referido período, a venda do imóvel poderá ser uma inevitabilidade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 2524/17.1T8LOU.P2-Apelação
Origem-Tribunal Judicial da Comarca
do Porto Este-Juízo de Execução de Lousada-J2
Relator: Des. Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Miguel Baldaia
2º Adjunto Des. Jorge Seabra
5ª Secção
Sumário:
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I - RELATÓRIO
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
Nos presentes autos de execução comum sumária que o Banco B…, S.A. com sede na Praça …, n.º .., Porto move contra C…, D…, E… todos residentes na Rua …, .., … e F…, residente Rua …, …, Matosinhos, veio o executado por si e na qualidade de legal representante das executadas menores requerer a suspensão da venda do imóvel penhorada ao abrigo do disposto no nº 8, do Artigo 6.º- E, da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de Abril.
Para tanto alegam que aquele constitui a casa de morada de família dos Executados não possuindo estes, qualquer outro imóvel que lhes permita o seu alojamento.
Enquanto a Executada Venina se encontra desempregada, o Executado G… usufruí do salário mínimo nacional, verba com a qual tem de prover todas as despesas mantidas com o agregado familiar e consigo próprio, a qual se tem revelado deveras insuficiente para assegurar a respectiva sobrevivência condigna, não havendo um remanescente que permita suportar o encargo com o arrendamento de uma habitação. A situação económico financeira dos Executados é assim muito difícil, padecendo de graves carências económicas e a imediata venda do imóvel iria colocar esta família “debaixo da ponte”.
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Devidamente notificado veio o banco exequente opor-se a tal pretensão.
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Conclusos os autos foi proferido despacho que indeferiu o pedido de suspensão da venda judicial do imóvel penhorado, sem prejuízo do disposto no artº 6-E nº 7 al. b) da Lei 1-A/2020 de 19.03 (suspensão da diligência de entrega judicial da casa de morada de família dos executados).
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Não se conformando com o assim decidido veio o executado interpor o presente recurso, concluindo as suas alegações nos seguintes termos:
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Devidamente notificada contra-alegou a recorrente concluindo pelo não provimento do recurso.
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Foram dispensados os vistos.
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II- FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. cfr. arts. 635º, nº 3, e 639º, nsº 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação são as seguintes as questões que importa apreciar e decidir:
a)- saber se a devia, ou não, ter sido suspensa a diligência da venda do imóvel em causa.
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A)-FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A matéria factual a ter em conta para a apreciação da custa supra referida é a que consta do relatório supra e que aqui se dá integralmente por reproduzida.
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III- O DIREITO
Como supra se referiu é apenas uma a questão que importa apreciar e decidir:
a)- saber se a devia, ou não, ter sido suspensa a diligência da venda do imóvel em causa.
Como se evidencia do despacho recorrido aí se propendeu para o entendimento de que no caso não se verificava a factie species quer do nº 7 quer do nº 8 do artigo 6.º da Lei 1-A/2020 de 19/3.
Deste entendimento dissentem os recorrentes.
Quid iuris?
Abreviando razões, temos que em termos simples o tribunal recorrido entendeu ser aplicável à situação vertente exclusivamente a disposição legal do artigo 6.º-A, n.º 6, alínea b), da Lei n.º 1-A/2020, de 19/03 (na redacção da Lei n.º 16/2020, de 29/05) enquanto os recorrentes advogam ser diversamente aplicável disposição legal do n.º 7 do mesmo preceito legal.
Como se sabe a interpretação da lei faz-se–cfr. artigo 9.º do Código Civil-à luz da letra e espírito da lei, esta última através dos elementos racional, sistemático e histórico.
Ora, o espírito racional e histórico da promulgação do conjunto das actuais normas excepcionais e temporárias foi a de fixar os termos das modificações contratuais adequadas aos efeitos da pandemia por COVID-19 nos aspectos pontuais considerados fragilizados nos respectivos institutos jurídicos sobre que versam.
A norma do artigo 6.º-A da Lei n.º 1-A/2020, de 19/03 (na redacção da Lei n.º 16/2020, de 29/05)–na parte aqui potencialmente aplicável–tem por propósito específico assegurar a manutenção de condições de habitabilidade ou de utilização dos visados com diligências de entrega de imóveis, atendendo ao contexto actual de pandemia que obriga, em muitas situações, a confinamento obrigatório na habitação e que, por outro lado, é potenciador de diminuição dos rendimentos das famílias. Terá ainda reflexamente por intenção minorar situações de especial perigo de disseminação do vírus, que se verificariam caso os visados ficassem desalojados da sua casa de morada de família.
Como assim, analisando o texto da lei à luz deste espírito, entendemos que o citado artigo 6.º-A, n.º 6, alíneas b) e c) e n.º 7, da Lei n.º 1-A/2020, de 19/03 (na redacção da Lei n.º 16/2020, de 29/05)[1] prevê três níveis diferentes de protecção das pessoas visadas com diligências de entrega de imóveis:
a) se o imóvel em causa constituir casa de morada de família ficam automaticamente suspensas todas as diligências de entrega judicial da mesma;
b) se o imóvel a entregar, não sendo casa de morada de família, for um imóvel arrendado apenas se suspendem estas mesmas diligências caso “o arrendatário, por força da decisão final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.”;
c) se o imóvel em causa não constituir casa de morada de família nem for arrendado somente se suspende a prática de tais diligências caso estas “sejam susceptíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente (…) desde que essa suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou um prejuízo irreparável.”
Os executados como se vê do seu requerimento, accionaram o incidente nele previsto com vista à suspensão da venda do imóvel que constitui a sua casa de morada de família.
O tribunal de primeira instância, indeferiu tal pretensão.
E, a nosso ver, bem.
Vejamos.
Sobre actos a realizar em sede de processo de insolvência que tenham a ver com a concretização da entrega judicial (consequente a venda ou adjudicação, por exemplo) da casa de mora de morada de família, há a disposição expressa que consta do nº 6, alínea b), do art. 6º-A daquela mesma Lei 1-A/2020 de 19/3 (na alteração introduzida pelo art. 2º da Lei 16/2020 de 29/5) e actualmente no art.º 6.º-E, n.º 7, alínea b) da Lei n.º 13-B/2021, de 05/04., onde desde logo se impõe que “Ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excepcional e transitório: …b) Os actos a realizar em sede processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família”.
Esta norma, como dela claramente resulta, está especialmente vocacionada para os casos de alienação em sede executiva ou de processo de insolvência do imóvel que constitui a casa de mora de família, sendo que a sua previsão constitui a única disposição daquela Lei explicitamente respeitante à protecção do desapossamento daquele tipo de imóvel no âmbito daqueles processos.
Como assim, não obstante aquela norma imponha a suspensão dos actos concretizadores da entrega judicial da mesma, daí não se retira que ela impossibilite a realização dos actos transmissores da sua propriedade que sejam necessariamente anteriores a tal entrega.
Ou seja, impõe o preceito a suspensão da entrega, mas não já a venda ou adjudicação que necessariamente precedem essa mesma entrega, o que tanto bastaria para improceder a pretensão dos requerentes/recorrentes no sentido de suspensão da venda do imóvel em causa.
Mas, ainda que assim não seja e, portanto, se considere, ao contrário do que acima se referiu, que a pretensão de suspensão da venda daquele imóvel que constitui a casa de mora de família poderia ter lugar ao abrigo do que se dispõe no nº 7 daquele mesmo artigo 6.º-A que supra se transcreveu (o que leva a considerar que o referido preceito seja interpretado no sentido de que os “imóveis” ali referidos se possa incluir também a casa de morada de família-orientação que não perfilhamos, face ao facto de para este tipo de imóvel haver norma própria e com o alcance que defendemos atrás)–, tal possibilidade de suspensão, como decorre da redacção de tal preceito, está dependente da verificação cumulativa dos requisitos ali enunciados:
a)- que a venda em causa seja susceptível de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente;
b)- e que a suspensão da mesma não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou um prejuízo irreparável.
Ora, o primeiro dos citados requisitos, respeitando-se entendimento diverso, só se verificará, se o imóvel em causa servisse como elemento ou meio de trabalho para auferir rendimentos dos quais dependesse a subsistência dos insolventes: seria o caso de o imóvel, por exemplo, servir como local de funcionamento de alguma actividade económica e/ou produtor de rendimentos que fosse determinante do sustento das pessoas em causa.[2]
E contra isso não argumente que a venda do imóvel onde habitam os executados (e o respectivo agregado familiar) importa sempre num prejuízo, na medida em que se, por um lado, com a venda o mesmo solve (total ou parcialmente) o débito exequendo, por outro, tem necessariamente que arcar com uma nova despesa que antes não tinha, seja a renda de uma outra habitação, seja a prestação de um eventual crédito para aquisição de outra.
Na verdade, o prejuízo imediato quando se trate de casa de morada de família apenas adviria se a referida entrega não ficasse suspensa automaticamente nos termos da cita al. b) do nº 6 do artigo 6.º-A.
Ora, ficando suspenda a entrega do imóvel não se lobriga que prejuízo daí decorre para o executado, pois que, passado o período pandémico, a venda do imóvel poderá ser uma inevitabilidade, ou seja, sempre o executado terá arcar, ou com o pagamento de uma nova renda, ou com o pagamento de prestação de um eventual crédito para aquisição de outra.
Significa, portanto, que o preceito em causa, apenas terá em vista as situações em que o imóvel seja fonte, de forma directa ou indirecta, de rendimento para o executado.
Acontece que, como se vê da factualidade referida na decisão sob recurso (que não foi enquanto tal impugnada), não se apurou qualquer facto de onde decorra que tal imóvel tivesse esse papel na vida dos executados, pois, como também da mesma resulta, o mesmo apenas serve de sua residência.
Assim, ainda que se considerasse aplicável a previsão daquele nº 7 do artigo 6.º-A da Lei em referência, não se verificaria o apontado requisito, e daí que, também por tal motivo, sempre fosse de indeferir a suspensão da referida venda.
Portanto, a protecção dos executados durante o decurso da situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS-Cov-2 e da doença COVID-19 (que é a que informa e está na base do regime processual transitório e excepcional previsto no art. 6.º-A da Lei 1-A/2020) está garantida pela imposição da suspensão da entrega judicial do imóvel em causa, como sua casa de morada de família, expressamente prevista em tal preceito e que, no caso vertente, disso até já deu nota o tribunal a quo no despacho recorrido.
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Improcedem, assim, todas as conclusões formuladas pelos recorrentes e, com elas, o respectivo recurso.
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IV - DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente por não prova a apelação e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
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Custas pela Autora apelante (cfr. artigo 527.º, nº 1 do CPCivil).
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Porto, 20 de Setembro de 2021.
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais (dispensei o visto)
Jorge Seabra (dispensei o visto)
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[1] E actualmente no art.º 6.º-E, n.º 7, alíneas b) e c) e n.º 8 da Lei n.º 13-B/2021, de 05/04.
[2] Neste sentido cfr. Ac. desta Relação de 09/11/2020 in www.dgsi.pt.