Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
886/09.3PAPVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EDUARDA LOBO
Descritores: MEDIDA DA PENA
RELATÓRIO SOCIAL
INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
Nº do Documento: RP20121219886/09.3PAPVZ.P1
Data do Acordão: 12/19/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: REENVIO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A escolha e o doseamento da pena não podem, em princípio, prescindir do conhecimento circunstanciado das condições pessoais do agente.
II - O facto de os serviços de reinserção social não terem conseguido contactar pessoalmente o arguido não constitui obstáculo à elaboração do competente relatório social, uma vez que este não é, nem deve ser, elaborado apenas com base na entrevista ao arguido.
III - Padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada a sentença que procede à determinação da sanção apenas com base na menção aos antecedentes criminais do arguido.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 886/09.3PAPVZ.P1
1ª secção

Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO
No âmbito do Processo Comum com intervenção do Tribunal Coletivo que corre termos no 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Póvoa de Varzim com o nº 886/09.3PAPVZ, foi submetido a julgamento o arguido B…, tendo a final sido proferido acórdão que condenou o arguido:
- como autor de um crime de roubo simples p. e p. no artº 210º nº 1, com referência ao artº 204º nº 2 als. b) e f) e nº 4, do Cód. Penal na pena de dois anos de prisão;
- como autor de um crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. no artº 145º nº 1 al. a) do Cód. Penal na pena de seis meses de prisão;
- efetuado o cúmulo jurídico das referidas penas, foi o arguido condenado na pena única de dois anos e dois meses de prisão suspensa na sua execução por igual período de tempo.
Inconformado com a decisão condenatória proferida, dela veio o Ministério Público interpor o presente recurso, extraindo das respetivas motivações as seguintes conclusões:
1. Tanto a personalidade do agente como a sua conduta anterior/posterior ao crime o desaconselham fortemente a aplicação ao seu caso do instituto da suspensão da execução da pena;
2. Não se provou nenhum facto sobre o enquadramento familiar do arguido, sobre a sua inserção na sociedade, sobre os seus hábitos (ou falta de hábitos) de trabalho, sobre se recebe apoio familiar ou de amigos, sobre se tem alguma problemática aditiva ou sobre se interiorizou que a vida em sociedade se pauta por normas que têm de ser respeitadas;
3. Também não se provou que o arguido esteja arrependido dos factos que praticou nem que tenha apresentado um qualquer pedido de desculpas ao ofendido;
4. Na falta destes factos (eventualmente favoráveis ao arguido) não é viável preconizar que a ameaça da pena é suficiente para afastar o arguido da prática de futuros crimes;
5. Para reforçar a impossibilidade de recurso ao instituto da suspensão da execução da pena estão ainda as duas condenações anteriores do arguido que, embora não respeitem a crimes de roubo ou de ofensa à integridade física qualificada, evidenciam à saciedade que o arguido não interiorizou que deve afastar-se da criminalidade pois se tal tivesse acontecido não teria enveredado pela prática de um novo crime;
6. As elevadas exigências de prevenção especial e, sobretudo, as exigências de prevenção geral impedem que, no caso do arguido, lhe seja aplicada uma suspensão da execução da pena;
7. A suspensão da execução da pena deve ser reservada para os casos em que o arguido revele vontade inequívoca em se ressocializar e convença o tribunal que a solene advertência que está ínsita na ameaça da pena chega para evitar que pratique novos crimes o que, no que respeita ao arguido, manifestamente não se verifica;
8. Ao aplicar ao arguido a pena de 2 anos e 6 meses de prisão, em cúmulo jurídico pela prática de um crime de roubo e de um crime de ofensa à integridade física qualificada, suspensa na sua execução, o tribunal coletivo violou o disposto no artº 50º do Código Penal.
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O arguido respondeu às motivações de recurso, concluindo pela respetiva improcedência e consequente confirmação do acórdão recorrido.
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Neste Tribunal da Relação do Porto o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer suscitando a nulidade insanável prevista no artº 119º nº 1 al. c) do C.P.P., em virtude de o julgamento ter decorrido na ausência do arguido, não por sua iniciativa, mas por iniciativa do tribunal. Alega ainda que o acórdão recorrido padece do vício de insuficiência da matéria de facto provada para a determinação da sanção, já que o tribunal recorrido nada apurou acerca da situação económica e condições pessoais do arguido, da sua conduta posterior ao facto e preparação ou não para manter uma conduta lícita, o que determina o reenvio para novo julgamento, uma vez que tal vício é insuscetível de suprimento no âmbito do presente recurso.
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Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do C.P.P., não foi apresentada qualquer resposta.
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Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
O acórdão recorrido considerou provados os seguintes factos: (transcrição)
1. No dia 16/08/2009 pelas 14 horas e 10 minutos, no interior da agência bancária da C…, sita na Rua …, freguesia …, concelho da Póvoa de Varzim, onde o ofendido D… se encontrava, o arguido B… acima melhor identificado, abordou-o.
2. De seguida, o arguido encostou uma seringa contendo um líquido vermelho e uma agulha acoplada ao pescoço do ofendido e ordenou-lhe que levantasse 200 Euros, o que deixou o ofendido completamente petrificado e sem qualquer capacidade de reação.
3. Como tal quantia excedia o quantitativo máximo diário, não foi concretizado o respetivo levantamento mas, ato contínuo, numa segunda tentativa efetuada pelo ofendido, o próprio arguido marcou a quantia de 20 Euros, da qual se apoderou e fez coisa sua.
4. De seguida, tendo já aquele dinheiro na sua posse e sem que nada o fizesse prever, o arguido espetou a agulha acoplada à seringa no antebraço direito do ofendido e abandonou o local, levando consigo a aludida quantia monetária.
5. Em consequência de tal agressão, o ofendido sofreu um traumatismo no antebraço direito e foi observado e tratado no serviço de doenças infeto-contagiosas do Hospital …, no Porto, o que lhe terá determinado 199 dias para a cura, sem afetação da capacidade de trabalho geral e com afetação da capacidade de trabalho profissional pelo período de 30 dias – Cfr. Relatório do INML de fls. 198 a 200.
6. O arguido agiu com o propósito concretizado de se apropriar e fazer sua a aludida quantia monetária, sabendo que a mesma não lhe pertencia. Para tanto não se coibiu de usar de violência bem sabendo que atuava sem o consentimento e contra a vontade do ofendido, seu proprietário.
7. O arguido quis criar no ofendido um efetivo constrangimento, abordando-o e encostando-lhe uma seringa, contendo líquido vermelho e uma agulha acoplada, ao pescoço, para o impedir de obstar a que subtraísse o referido dinheiro.
8. O ofendido só não impediu o arguido de se apossar dos aludidos 20,00 Euros por temer que o arguido lhe espetasse a seringa e que a mesma estivesse infetada.
9. Ao espetar a seringa com agulha no braço do ofendido quando já se encontrava na posse do dinheiro, o arguido agiu com o propósito concretizado de atingir e molestar a sua integridade física, o que conseguiu. E sabia que a agulha era um objeto particularmente perigoso e até letal.
10. O arguido actuou de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
11. Por sentença de 15.10.2007, transitada em julgado, proferida no Processo Comum Singular nº 92/04.3FBAVR, do Tribunal Judicial de Espinho, foi o arguido condenado pela prática, em 06.12.2004, de um crime de venda, circulação ou ocultação de produtos ou artigos, previsto e punível pelo artigo 324º, do Decreto-Lei 36/2003, de 05.03 e de um crime de fraude sobre mercadorias, previsto e punível pelo artigo 23º, nº 1, do Decreto-Lei nº 28/84, de 20.01., na pena de 80 dias de multa à taxa diária e 5,00, a qual foi declarada extinta pelo pagamento.
12. Por sentença de 19.02.2009, transitada em julgado, proferida no Processo Comum Singular nº 123/09.0PAVCD, do Tribunal Judicial de Vila do Conde, foi o arguido condenado pela prática, em 22.02.2009, de um crime de consumo de estupefacientes, previsto e punível pelo artigo 40º, do Decreto-Lei 15/93, de 22.01., na pena de 45 dias de multa à taxa diária e 7,00.
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Foram considerados não provados os seguintes factos: (transcrição)
- O arguido tenha advertido o ofendido de que era portador de SIDA.
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A matéria de facto encontra-se motivada nos seguintes termos: (transcrição)
O artigo 127º do Código de Processo Penal estabelece que, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do tribunal.
Assim, o tribunal formou a sua convicção a partir de toda a prova produzida em sede de audiência de julgamento, depois de criticamente analisada, à luz das regras da experiência comum e da verosimilhança, naquela se incluindo os depoimentos prestados em audiência pelas várias testemunhas, os documentos juntos aos autos e a prova pericial produzida.
Na realidade, conjugados, confrontados e entrecruzados entre si os vários depoimentos prestados, os documentos juntos aos autos e a prova pericial neles produzida, buscando-se os seus pontos de concludência, coerência e de consistência, a prova é contundente e clarificadora nos termos supra expostos, uma vez que são factos que constituíram um denominador comum de toda a prova produzida.
No que respeita aos depoimentos das testemunhas, dispensamo-nos, aqui, de reproduzir tais declarações e depoimentos, uma vez que a audiência foi objeto de gravação.
Dir-se-á, no entanto, que o tribunal formou a sua convicção, quanto aos factos provados, no depoimento do ofendido D…, que relatou a situação de que foi vítima, confirmando que se encontrava no interior da agência bancária da C…, quando foi abordado pelo arguido, que lhe encostou uma seringa com agulha e que continha um líquido vermelho ao pescoço e lhe ordenou que levantasse dinheiro, o que o deixou cheio de medo. Nessa sequência o arguido marcou a quantia de 20 Euros, da qual se apoderou e fez coisa sua. De seguida, com o dinheiro na sua posse o arguido espetou-lhe a seringa no braço e abandonou o local, levando consigo tal quantia. Esclareceu ainda as lesões sofridas em consequência da conduta do arguido. Reconheceu o arguido B… como o autor dos factos relatados (cfr. Auto de reconhecimento de fls. 83 e 84).
Considerou também os depoimentos da testemunha E…, que na ocasião se dirigiu ao multibanco em causa e conseguiu explicar o que presenciou no seu interior. Esclareceu que pretendia fazer uso do multibanco mas apercebeu-se que lá dentro estavam dois indivíduos, muito próximos um do outro, tendo ele desconfiado de que algo de anormal se passava. Esperou até que viu as duas pessoas a saírem, sendo que uma delas lhe mostrou a picada que tinha no braço e lhe contou o que havia sucedido.
Atendeu também o tribunal aos depoimentos das testemunhas F…, G… e H…, que acompanhavam a anterior testemunha, encontrando-se no interior de um veículo automóvel que ali se encontrava estacionado e que confirmaram terem presenciado a saída de um indivíduo da caixa multibanco, que de seguida se deslocou de bicicleta e se foi embora dali e, de um outro que se queixava de ter sido assaltado, ter sido picado com uma seringa no braço e que mostrava o braço/camisola com sangue. As testemunhas F…, H… e G… confirmaram ter reconhecido o arguido como sendo o referido indivíduo que viu a sair da caixa multibanco e ido embora de bicicleta (cfr. Autos de reconhecimento de fls. 155, 156, 159, 160, 164 e 165).
Tais depoimentos foram conjugados com a seguinte prova documental:
- Auto de reconhecimento fotográfico (Clichés fotográfico nº …..), a fls. 83, 89;
- Autos de reconhecimento pessoal, a fls.83 e 84, 90, 155 e 156, 159 e 160 e 164 e 165;
- Documentação clínica do ofendido, a fls. 181 a 183 e 190 e 191.
E com a prova pericial, nomeadamente com o relatório de Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Penal, de fls. 198 a 200.
No que se refere aos antecedentes criminais do arguido o tribunal considerou o CRC junto de fls. 261 a 263.
Quanto aos factos não provados «O arguido não esteve presente na audiência de julgamento e, como tal, não prestou declarações.
O ofendido não se pronunciou nesse sentido, ou seja, não confirmou que o arguido quando lhe encostou a agulha da seringa ao pescoço o tenha advertido o ofendido de que era portador de SIDA.
Por tudo isto, entendeu o tribunal que o facto em causa não poderia considerar-se provado».
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III – O DIREITO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2].
No caso em apreço, porém, tendo sido suscitada pelo Sr. Procurador-Geral Adjunto a questão prévia da nulidade insanável prevista na al. c) do artº 119º do C.P.P. que, em sua opinião, tornará inválido o julgamento, iremos abordar a referida questão, uma vez que a sua eventual procedência poderá prejudicar o conhecimento do mérito do recurso interposto pelo Mº Público.
Apoiando-se em jurisprudência do STJ, que expressamente cita, o Sr. Procurador-Geral Adjunto defende que, tendo o julgamento decorrido na ausência do arguido, não por sua iniciativa, mas por iniciativa do tribunal que não encetou diligências com vista a assegurar o direito de o arguido prestar declarações até ao encerramento da audiência, designadamente notificando-o para a sessão do dia 24 de Janeiro, o tribunal recorrido cometeu a nulidade acima apontada, impondo-se a realização de novo julgamento.
Sobre a questão em apreço, se pronunciaram já os tribunais superiores em sentidos contraditórios.
No sentido de que o tribunal só está obrigado a encetar diligências para promover a comparência do arguido em audiência, quando considere que a sua presença é absolutamente indispensável à descoberta da verdade material, e já não para garantir a sua defesa pessoal em audiência, se pronunciaram os seguintes arestos:
- Ac. do STJ de 31.01.2008, Proc. nº 3272/07, 5ª secção, Cons. Rodrigues da Costa;
- Ac. Rel. Porto de 24.04.2002, Proc. nº 0111589, Des. Fernando Monterroso;
- Ac. Rel. Porto de 23.06.2004, Proc. nº 0313286, Des. Élia São Pedro;
- Ac. Rel. Porto de 27.05.2009, Proc. nº 0818071, Des. José Carreto;
- Ac. Rel. Porto de 02.12.2010, Proc. nº 262/08.5GAPRD.P1, Des. Maria Dolores Silva e Sousa;
- Ac. Rel. Coimbra de 27.04.2011, Proc. nº 142/09.7TBETR.C1, Des. Alice Santos;
- Ac. Rel. Guimarães de 14.09.2009, Proc. nº 407/07.2GCGMR.G1, Des. Estelita de Mendonça;
- Ac. Rel. Guimarães de 23.01.2012, Proc. nº 102/09.8GEBRG, Des. Maria Luísa Arantes.
No sentido de ser nula a audiência de julgamento realizada na ausência de arguido notificado e faltoso, sem que fossem tomadas as medidas necessárias e legalmente admissíveis para conseguir a sua comparência, podem ver-se os seguintes arestos:
- Ac. do STJ de 02.05.2007, Proc.º 07P1018, Cons. Pires da Graça;
- Ac. do STJ de 24.10.2007, Proc. nº 07P3486, Cons. Soreto de Barros;
- Ac. Rel. Coimbra de 18.01.2012, Proc. 31/06.7GBSAT.C1, Des. Maria José Nogueira;
- Ac. Rel. Coimbra de 21.03.2012, Proc.º 279/10.0PBCTB.C1, Des. José Eduardo Martins;
- Ac. Rel. Lisboa de 05.07.2011, Proc.º 515/06.7PBLRS.L1-5, Des. Neto de Moura.
Entretanto, o Supremo Tribunal de Justiça, através do Ac. 9/2012 de 08.03.2012[3], veio a fixar jurisprudência no seguinte sentido: «Notificado o arguido da audiência de julgamento por forma regular, e faltando injustificadamente à mesma, se o tribunal considerar que a sua presença não é necessária para a descoberta da verdade, nos termos do nº 1 do artº 333º do CPP, deverá dar início ao julgamento, sem tomar quaisquer medidas para assegurar a presença do arguido, e poderá encerrar a audiência na primeira data designada, na ausência do arguido, a não ser que o seu defensor requeira que ele seja ouvido na segunda data marcada, nos termos do nº 3 do mesmo artigo».
Essa jurisprudência uniformizada, sendo certo que já não tem hoje o carácter vinculativo que tinham os Assentos, possui, necessariamente, uma força acrescida em relação a qualquer outra decisão judicial, mesmo do STJ. Não se trata de mais uma decisão; ela é a decisão que, na respetiva matéria, todas as que se lhe seguirem devem ter presente e que em relação a elas terá uma força persuasiva[4].
É o valor reforçado que têm os acórdãos de uniformização de jurisprudência e os fins que eles visam, que justificam que, nos termos do disposto no artigo 446º do Cód. Proc. Penal, seja sempre admissível recurso das decisões proferidas contra a jurisprudência uniformizada pelo STJ. A possibilidade de nessas circunstâncias se recorrer, independentemente do valor da causa e da sucumbência, pretende potenciar a obediência a tais acórdãos. Por isso, a discordância, a existir, deve ser antecedida de fundamentação convincente, baseada em critérios rigorosos, em alguma diferença relevante entre as situações de facto, em contributos da doutrina, em novos argumentos trazidos pelas partes e numa profunda e serena reflexão interior[5].
A segurança do comércio jurídico exige que as discussões das questões de direito tenham limites, nomeadamente temporais; não é possível a manutenção, por anos e anos, de uma guerra jurídica. Também aqui, findo o combate, a sociedade anseia por usufruir dos inestimáveis benefícios da paz, que no caso é a paz jurídica.
Convém não esquecer que a segurança é um dos fins do Direito ou uma das exigências feitas ao Direito[6], pois é ela que nos permite prever os efeitos jurídicos dos nossos atos e, em consequência, planear a vida em bases razoavelmente firmes[7].
A solução a que se chegou, que visou substituir os Assentos, criou uma figura, naturalmente em moldes diferentes, e que é perfeitamente suficiente para assegurar, em termos satisfatórios, a desejável unidade da jurisprudência[8].
No caso em apreço o arguido prestou TIR tendo indicado como sua residência o … – Casa nº .., …, …. Póvoa de Varzim.
O arguido foi notificado por via postal simples com prova de depósito enviada para a morada constante do TIR, quer da acusação deduzida pelo Mº Pº, quer das datas designadas para audiência de julgamento.
O arguido faltou injustificadamente à audiência designada para as 9,00h do dia 12.01.2011, razão por que foi condenado na multa de 2 UC’s – fls. 266.
O tribunal considerou não ser indispensável a presença do arguido e deu início à audiência de julgamento na sua ausência, tendo procedido à audição das testemunhas arroladas e designando o dia 24.01.2011 para a leitura do acórdão.
É certo que o arguido não foi notificado desta nova data, quer pessoalmente, quer por via postal com PD. Porém, essa data destinava-se apenas à leitura da decisão final e não à produção de prova, não tendo a ilustre defensora oficiosa do arguido requerido, em momento algum, que o mesmo fosse ouvido na segunda data designada (artºs. 333º nº 3 e 312º nº 2 do C.P.P.).
Não se vê por isso qualquer razão para não aplicar na situação em apreço a doutrina fixada no AFJ de 08.03.2012, supra citado, na medida em que não ocorreu violação das garantias de defesa do arguido, o qual, pessoalmente notificado do acórdão recorrido, não invocou a invalidade do julgamento.
Ao arguido foram concedidas todas as garantias de defesa e de contraditório, designadamente o direito de estar presente na audiência.
Como se escreve no citado AFJ «A presença do arguido perde o carácter de princípio absoluto, para se afirmar primacialmente como um direito do arguido a estar presente. Um direito disponível, que o arguido enquanto sujeito processual autónomo e plenamente responsável, exercerá como entender. Não fica, porém, privado de defesa, no caso de optar por estar ausente, uma vez que será necessariamente assistido por defensor, escolhido ou nomeado. […] A Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) não prevê expressamente esse direito (o direito do arguido a estar presente no processo). Mas a jurisprudência firme do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) é no sentido de que constitui um dos elementos componentes do “processo equitativo”, consagrando o artº 6º da CEDH a obrigação de o tribunal garantir ao arguido o direito de estar presente na audiência. Contudo, o mesmo TEDH entende que o arguido tem igualmente o direito de renunciar àquela garantia. […] É, pois, como direito disponível que o TEDH entende a presença do arguido em julgamento (a não ser que exista um interesse público relevante que imponha a presença, como será o caso da descoberta da verdade), embora exija a garantia dos direitos de defesa no caso de ausência do arguido.»
E mais adiante, escreve-se: «Relembra-se que o arguido, quando notificado do termo de identidade e residência, fica a saber que a sua falta ao julgamento não impede a realização do mesmo na sua ausência, nos termos do artº 333º, conforme dispõe a citada al. d) do nº 3 do artº 196º, de forma que a falta injustificada do arguido não pode ser interpretada senão como renúncia consciente ao direito de presença em audiência».
No caso em apreço não ocorreu qualquer violação dos direitos de defesa do arguido, na medida em que por um lado, o tribunal não estava obrigado a diligenciar pela comparência do arguido em audiência de julgamento, mostrando-se este pessoalmente notificado – pelos fundamentos supra referidos -, e por outro, a omissão de notificação da data designada para a leitura da decisão final não constitui qualquer nulidade, muito menos a nulidade insanável prevista na al. c) do artº 119º do C.P.P. Tanto mais que o tribunal diligenciou pelo cumprimento do disposto no artº 333º nº 6 do C.P.P., tendo o arguido sido pessoalmente notificado do acórdão recorrido.
Improcede, assim, a questão prévia suscitada pelo Sr. Procurador-Geral Adjunto.
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Que dizer, porém, quanto ao invocado vício de insuficiência da matéria de facto provada?
Preceitua o artº 410º nº 2 al. a) do Código de Processo Penal que «mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da sentença recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada».
A insuficiência a que se reporta a citada alínea a) é um vício que ocorre quando a matéria de facto é insuficiente para a decisão de direito, o que se verifica porque o tribunal deixou de apurar a matéria de facto que lhe cabia apurar dentro do objeto do processo, tal como este está circunscrito pela acusação e pela defesa, sem prejuízo do mais que a prova produzida em audiência justifique. Tal vício consiste na formulação incorreta de um juízo: a conclusão extravasa as premissas; a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada[9].
Sendo o objeto do processo delimitado pela acusação/pronúncia, pela contestação e pelos factos que resultarem da prova produzida em audiência (cfr. artº 339º nº 4 do C.P.P.) e estando tribunal obrigado a enumerar os factos provados e não provados (cfr. artº 374º nº 2 do C.P.P.) esta enumeração respeita aos factos alegados pela acusação e pela defesa que sejam essenciais para a caracterização do crime e suas circunstâncias juridicamente relevantes e os factos provados que resultem da prova produzida em audiência que sejam relevantes para a questão da culpabilidade e determinação da sanção a aplicar (cfr. artºs 368º e 369º do C.P.P.).
Para, de um ponto de vista substancial, sedimentar a obrigação do tribunal de investigar todos os factos relevantes ainda que não alegados e ainda que as partes não ofereçam prova sobre eles, o artigo 340º do Código de Processo Penal impõe ao tribunal a obrigação de ordenar a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa (consagrando-se, assim, na fase de julgamento, o primado do princípio da investigação – poder-dever que incumbe ao tribunal de investigar autonomamente os factos, para além das contribuições de acusação e defesa). E o artº 369º já citado impõe ainda que o tribunal reabra a audiência se a matéria factual investigada for insuficiente para a determinação da espécie e medida da sanção.
Assentemos que a matéria de facto tanto pode ser insuficiente quando não permite a subsunção efetuada em termos de imputação de determinado crime, como quando não permite uma opção fundamentada entre penas não privativas e privativas da liberdade, entre pena de prisão efetiva e penas de substituição desta ou um juízo inteiramente fundamentado sobre o doseamento da pena, suposto que o tribunal podia investigar os factos em falta e não investigou.
Todos os dispositivos legais citados fazem sentido se for possível alargar a investigação, colmatar a insuficiência factual. Na verdade eles apenas se podem dirigir à prova que é possível realizar e não àquela que por qualquer razão não é atingível.
O facto de a lei processual penal permitir que se realizem, em diversas situações, julgamentos na ausência do arguido, como ocorreu no caso, não derroga o disposto nos indicados artºs. 340º, 368º e 369º do C.P.P. Com efeito, as declarações do arguido em audiência não são o único meio de prova que permite alcançar o conhecimento da sua situação pessoal, podendo o tribunal socorrer-se de outros meios. Assim, a sentença, na falta de prova dos factos respetivos, terá de expressar e justificar a impossibilidade do seu conhecimento, se relevantes para a boa decisão da causa. Só esta interpretação do artº 374º, nº 2 do C.P.P. é compaginável com a demonstração do cumprimento daqueles artigos e de que a mesma não padece de insuficiência factual para a decisão.
Na verdade, o vício em apreço há-de resultar do texto da própria decisão, como expressamente se refere no preceito que o prevê e sempre se poderá revelar a existência desse vício quando da sentença não conste justificação para a falta de investigação de tal matéria, sendo a mesma relevante para a boa decisão da causa.
Recorde-se que no sistema de césure mitigada de que é tributário o nosso sistema processual penal, a questão da determinação da sanção aplicável é destacada da questão da determinação da culpabilidade do agente.
Com efeito, de acordo com o disposto no art. 369.º do CPP, se resultar da deliberação tomada, na sequência da audiência de julgamento, dever ser aplicada uma pena ou uma medida de segurança, o presidente do tribunal lê ou manda ler toda a documentação existente nos autos relativa aos antecedentes criminais do arguido, à perícia sobre a sua personalidade e ao relatório social (n.º 1).
De seguida o mesmo presidente pergunta se o tribunal considera necessária produção de prova suplementar para determinação da espécie e da medida da sanção a aplicar, deliberando e votando o tribunal sobre a espécie e a medida da sanção a aplicar imediatamente, se não for entendida necessária aquela prova, ou após a produção da prova nos termos do art. 371.º, se entendida necessária (n.º 2).
Importa, neste contexto, recordar que o tribunal pode em qualquer altura do julgamento, logo que, em função da prova para o efeito produzida em audiência, o considerar necessário à correta determinação da sanção que eventualmente possa vir a ser aplicada, solicitar a elaboração de relatório social ou de informação dos serviços de reinserção social, ou a respetiva atualização quando aqueles já constarem do processo (art. 370.º).
E que, para produção da prova complementar considerada necessária à aplicação de pena ou medida de segurança, tem lugar em audiência para o efeito reaberta (art. 371.º, n.º 1), ouvindo-se sempre que possível o perito criminológico, o técnico de reinserção social e quaisquer pessoas que possam depor com relevo sobre a personalidade e as condições de vida do arguido.
Por outro lado, o n.º 2 do art. 71.º do C. Penal manda atender também, na determinação da medida da pena, às condições pessoais do agente e a sua situação económica [d)], à sua conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime [e)] e à falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena [f)].
Ora, é manifesto é que no caso em apreço, a opção pela aplicação do regime de suspensão implica a formulação de um juízo de prognose que não pode prescindir de um conhecimento circunstanciado das condições pessoais do arguido, para além de um juízo sobre a adequação de tal regime a realizar as finalidades da punição. Em geral, a escolha e o doseamento da pena não podem, em princípio, prescindir do conhecimento desse tipo de factualidade.
Na situação sub judice, o tribunal recorrido nada mais apurou para além dos antecedentes criminais do arguido, o que apenas releva para efeitos da mencionada al. e) do artº 71º nº 2 do C.Penal.
E o facto de os serviços de reinserção social não terem conseguido contactar pessoalmente com o arguido, não constitui obstáculo à elaboração do competente relatório social que, como é bom de ver, não é, nem deve ser, elaborado apenas com base em entrevista com o interessado.
Pelo exposto, se conclui que a sentença recorrida padece do invocado vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão o que, nos termos do artº 426º nº 1 do C.P.P., tem como consequência que o processo deva ser reenviado para novo julgamento, restrito, porém, à averiguação da situação pessoal do arguido nas suas diversas vertentes, solicitando-se para o efeito o devido relatório social, com a produção de outras provas que venham a ser consideradas necessárias para a determinação da sanção, mantendo-se porém inalterada a questão da culpabilidade do arguido.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo Mº Público, embora com fundamento diverso do invocado e, em consequência, ordenam o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos dos artºs. 426º e 426º-A do C.P.P., restrito à investigação dos factos acima mencionados relativos à situação pessoal do arguido, para efeitos da determinação da sanção.
Sem tributação.
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Porto, 19 de Dezembro de 2012
(Elaborado e revisto pela 1ª signatária)
Eduarda Maria de Pinto e Lobo
António José Alves Duarte
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[1] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 3ª ed., pág. 347 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[3] Relatado pelo Cons. Maia Costa, no Proc. nº 245/07.2GGLSB.L1-A.S1 e publicado no DR., I Série, de 10.12.2012
[4] Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, pág. 425.
[5] Cfr. Abrantes Geraldes, ob. cit. pág. 427.
[6] V. Batista Machado, in “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, 18.ª Reimpressão, pág. 55.
[7] V. Santos Justo, in “Introdução ao Estudo do Direito”, 4.ª Edição, pág. 75.
[8] Preâmbulo do Decreto-Lei 329-A/95 de 12 de Dezembro.
[9] Cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, Rei dos Livros, 4ª edição, pág. 70 e Acórdão do S.T.J. de 13.1.99 citado na mesma obra.