Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
982/21.9PIPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA JOANA GRÁCIO
Descritores: CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
IMPUTAÇÕES GENÉRICAS
Nº do Documento: RP20231011982/21.9PIPRT.P1
Data do Acordão: 10/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO.
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I - Refere o artigo 283.º, n.º 3, al. b), do Código de Processo Penal, respeitante aos requisitos de validade da acusação enquanto peça jurídica, que a acusação contém, sob pena de nulidade (…) a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática; tal significa que o grau de possibilidade de concretização temporal da ação pode varia muito, dependendo do tipo de crime que está em causa.
II - Se lidamos com um crime de violência doméstica, com factos ocorridos ao longo de um período temporal de meses ou anos e que se traduzem em palavras ou agressões dirigidas a outro, o grau de possibilidade dessa exata concretização é evidentemente menor; veja-se que é o próprio tipo que pressupõe a possibilidade de ocorrência de reiteração embora o agente, a final, seja sempre condenado por um único crime, independentemente do período de tempo decorrido e do número de vezes em que ocorreu repetição dos factos.
III - Perante este quadro legal e contexto factual, não é exigível que as vítimas de violência doméstica tenham presente o dia e hora em que lhe são dirigidas todas as palavras ou ações que configuram a prática do crime, fazendo recair sobre as mesmas a obrigação de anotarem todas as ocorrências; até porque (e sem prejuízo de questões formais que se possam colocar por força da sucessão de leis no tempo) é indiferente para a configuração do crime se, mantendo-se o contexto subjacente, as palavras ou ações foram dirigidas às 10h00 de uma segunda-feira ou às 16h00 de um domingo.
IV – No crime de violência doméstica, a reciprocidade das agressões só será de atender como forma de desconsideração da tipicidade quando no curso dos episódios se desfaz a polaridade agressor-vítima, e assim a intenção de domínio e de humilhação de um deles sobre o outro
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 982/21.9PIPRT.P1
Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Central Criminal do Porto – Juiz 7



Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
No âmbito do Processo Comum Colectivo n.º 982/21.9PIPRT, a correr termos no Juízo Central Criminal do Porto, Juiz 7, por acórdão datado de 06-02-2023, foi decidido:
«A) Absolver o arguido pela prática de seis crimes de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nº 1 e 2, do Código Penal.
B) Condenar o arguido AA, como autor material, de crime de violência doméstica previsto no artº 152º, nº 1, als. b) e nº 2 al. a), do Código Penal, na pena 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão (ofendida BB).
C) Condenar o arguido AA, como autor material, de crime de violência doméstica previsto no artº 152º, nº 1, al. d) e nº 2 al. a), do Código Penal, na pena 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão (ofendido CC).
D) Em cúmulo jurídico, condenar o arguido na pena única de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, cuja execução se suspende por igual período, sujeito a regime de prova, nos termos dos artº 50º, nº 1, 2 e 5 e 53º, nº 4, do Código Penal;
E) Aplicar ao arguido a pena acessória de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica, prevista no nº 4, do artº 152º, do Código Penal.
F) Condenar o arguido em 3 UC's de taxa de justiça individual e nas custas do processo.
G) Julgar parciamente procedente, por provado, o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante BB e, consequentemente, condenar o demandado AA a pagar à demandante a quantia de €2.000,00 (dois mil euros), acrescidos dos juros de mora legais, contados desde a data da notificação do demandado em 30.12.2022, até efetivo e integral pagamento.
H) Custas do pedido cível a cargo da demandante e demandado na proporção do respetivo decaimento.
I) Mais se condena o arguido a pagar ao ofendido CC, o valor de €1.000,00 (mil euros) a título de danos não patrimoniais, nos termos do disposto no art. 82º-A do CPP e no art. 16º, nº 2, da Lei nº 130/2015, de 04-09.»
*
Inconformado, o arguido AA interpôs recurso, solicitando a revogação do acórdão proferido e a sua substituição por outro que o absolva de todos os crimes imputados, apresentando em apoio da sua posição as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição):
«1 - O arguido foi acusado da prática em autoria material e em concurso real, de dois crimes de violência doméstica agravada, p.e.p pelo artigo 152º nº1 alíneas b) e c) e nº 2 alínea a) do Código Penal ( em relação à vítima BB) e seis crimes de violência doméstica agravada, p.e.p pelo artigo 152º nº1 d) e nº 2 alínea a) do Código Penal ( em relação às vítimas CC, DD e EE) a que correspondem as penas acessórias previstas no nº4,5 e 6 da mesma norma legal.
Realizado o julgamento foi o arguido absolvido da prática de seis crimes de violência doméstica, p.e.p pelo artigo 152º nº1 e nº2 do Código Penal.

Condenado pela prática como autor material de um crime de violência doméstica previsto no artigo 152º nº1 alíneas b) e nº 2 alínea a) do Código Penal na pena única de 2 (dois anos) e 8 (oito) meses de prisão (ofendida BB)

Condenado pela prática como autor material de um crime de violência doméstica previsto no artigo 152º nº1 alínea d) e nº 2 alínea a) do Código Penal na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão (ofendido CC)

Em cúmulo jurídico condenar o arguido na pena única de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, cuja execução se suspende por igual período, sujeita a regime de prova.

O arguido não se conformando com o Acórdão que o condenou vem levantar as seguintes questões,
- Impugnação da matéria de facto dada como provada.
2- Por não se concordar com a matéria de facto dada como provada,
Dando-se cumprimento ao disposto no artigo 412º nº3 indica-se os concretos pontos que se consideram incorretamente julgados:
Factos dados como provados
8,9,10,11,12,14,15,16,17,19,20,21,22,23,24,25,26,27,28,29,31,3 2,33,34,35,36,37,38,40,41
Ponto 16 dos factos dados como não provados.
3- Prova que merece entendimento diverso,
A contestação e todos os documentos apresentados com a contestação (referência Citius 34133577)
Ficheiro áudio 20230123095319_16300113_2871451
Declarações prestadas pelo ofendido CC, constantes no ficheiro áudio 20210827151706_16000569_2871468.wma
4- Impugna-se o ponto 8, 22, 23, 26 e 31
Todos os aludidos pontos reportam-se a insultos proferidos pelo arguido contra a ofendida
Atente-se ao
Ficheiro áudio 20230123104440_16300113_2871451.wma entre o minuto 09:50 e o minuto 11:20. (prova que merece entendimento diverso)
Procurador- Insultos nessas discussões havia? Era de parte a parte, apenas do arguido? A senhora também reagia?
Ofendida- Sim muitas vezes reagia, não sou de ferro.
Procurador- Que género de impropérios que palavrões é que lhe dirigia a si?
Ofendida- Chamava-me muitas vezes, Filha da puta desculpe o termo, de vaca, de baleia, que era uma porca,
Procurador- A senhora já disse que retorquia, o que é que lhe dizia?
Ofendida- Se ele não se olhava ao espelho, ele chamava-me baleia e eu dizia, já te viste ao espelho? Também estás gordo.
Procurador- A senhora nunca o insultou?
Ofendida- A única coisa que lhe dizia é que ele estava gordo”.
A ofendida explicou que reagia aos insultos, e que não se ficava, inexistia qualquer supremacia do arguido para com a ofendida, qualquer intimidação ou menosprezo, tal assim é que a ofendida nunca se inibiu de fazer o mesmo.
Aliás, da prova documental junta aos autos pelo arguido, verifica-se a personalidade da ofendida, e os insultos que a mesma dirigia ao arguido, o que comprova a inexistência da sua subordinação...
É indiscutível que estamos perante uma relação tóxica, contudo tal não merece censura jurídico penal, o descrito são discussões entre ambos, e insultos recíprocos, não merecendo tutela penal
5- No sentido do ora pugnado, veja-se o decidido pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, no âmbito do processo 40/17.0GCOAZ.P1 datado de 09-05-2018, em que foi Relator o Exmo. Senhor Juiz Desembargador José Carreto
6- Impugna-se ainda os pontos dados como provados, mormente
15,16,17, 19,20,21,24,25,26,27,28,29,32,33,34
Porque são baseados apenas e só no teor declaratório da assistente... não sendo corroborados por qualquer outro meio de prova.
Deve operar o princípio in dúbio pro reo, por confronto da versão do arguido com a da ofendida (sendo inclusive a versão do arguido confirmada pelos documentos por si juntos, bem como pelos próprios ofendidos desmentirem parte da versão que apresentaram em inquérito, perdendo credibilidade)
7- O ponto 16 dos factos dados como não provados, merece entendimento diverso, não só porque o arguido espontaneamente o declarou, como foi corroborado pelos documentos juntos em sede de contestação pelo arguido (comprovado pelas mensagens juntas)
Entende-se que a valoração de tais elementos, mormente as mensagens juntas em sede de contestação pelo arguido são preponderantes e determinantes para aferir da credibilidade do depoimento da ofendida, ocorrendo nesta matéria o tribunal a quo em manifesta nulidade pela omissão de pronúncia relativamente a factos que devia tomar uma posição e não o logrou.
É que independentemente de redigir que não considerou provado o motivo da apresentação da queixa pelo início de nova relação do arguido, deveria o tribunal a quo tomar posição sobre as mensagens enviadas pela ofendida, nomeadamente para aferir se os insultos eram ou não recíprocos, bem como para determinar a existência de subordinação ou maus tratos do arguido para com esta ou vice versa...
Ocorrendo, por conseguinte manifesta nulidade por violação do disposto no artigo 374º nº2 do C.P.P. por remissão ao artigo 379º nº1 c) do C.P.P.
8- Ocorre ainda manifesta contradição insanável, vício do artigo 410º nº2 b) do C.P.P. que expressamente se argui... pois resulta do texto da decisão recorrida, escreve o tribunal a quo, o seguinte “ O arguido AA prestou declarações em audiência de julgamento, tendo negado a prática dos factos que lhe são imputados na acusação. “e redige posteriormente “O ponto 9 da matéria de facto provada, resulta da confissão do arguido e do depoimento da assistente BB, razão pela qual foi levada à factualidade provada”
Ora, o arguido ou confessou ou negou os factos...
9- Deve operar o reenvio do processo nos termos e para os efeitos da conjugação das disposições dos artigos 410º nº2 b) e 430º do C.P.P.
10- A medida da pena cominada é excessiva e desproporcional, violadora do disposto no artigo 18º nº2 da C.R.P. por remissão ao artigo 70º do C.P.
O arguido é pessoa inserida socialmente
O arguido tem apoio familiar,
Encontra-se profissionalmente ativo,
Não se antevê uma carreira criminosa ao arguido, o mesmo constituiu nova família e mantém contactos com os filhos menores
O arguido é primário
11- O arguido não praticou os factos de que foi acusado, decorre de tudo o explanado, bem como das regras da experiência comum e do normal acontecer, visto que ninguém retomaria uma relação nos termos descritos pela ofendida... Revelador de que sempre sobrestimou o sucedido...
12- Entende-se que quanto ao ofendido CC não se logrou prova que permita a condenação nos termos que subjazem... a verificar-se um ilícito seria um crime de injúria e não o crime de violência doméstica
13- Sem prejuízo a manter-se a pena cominada a mesma é manifestamente excessiva,
14- Deve operar um novo cúmulo jurídico que estabeleça uma pena que reflita a culpa do arguido e não uma que o puna excessivamente..., ousando sugerir-se a pena única de dois anos e seis meses de prisão suspensa na sua execução.
15- O bem jurídico lesado nos crimes em apreço é o mesmo, não justificando uma pena da natureza e grandeza numérica aplicada.
16- Deve o presente recurso proceder e em consequência retirarem-se as devidas ilações legais, mormente a absolvição do arguido de todos os crimes imputados.»
*
O Ministério Público junto do Tribunal recorrido respondeu ao recurso, pugnando pela procedência parcial do mesmo, com o reconhecimento do vício previsto no art. 410.º, n.º 2, do CPPenal e o reenvio do processo, nos termos do art. 426.º, n.º 1, do CPPenal, para resolução dessa concreta questão, terminando a sua argumentação com as seguintes conclusões (transcrição):
«1 - O recorrente pretende impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto nos termos mais amplos previstos no art. 412º, nº 3, do CPP.
2 – Mistura, contudo, essa via de impugnação com a prevista no art. 410º, nº 2, do CPP, criando uma terceira forma de sindicância da decisão proferida sobre a matéria de facto que não tem previsão legal.
3 - Acresce que, de permeio, suscita questões de direito que têm como pressuposto, não os factos efetivamente dados como provados, mas factos que, na sua subjetiva ótica, deveriam ter sido dados como provados.
4 - O descrito modo de proceder determina a improcedência da pretendida impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.
5 - Também a pretendida redução da pena única resultante do cúmulo jurídico efetuado deve improceder já que a pena proposta é legalmente inadmissível, por se situar abaixo do limite mínimo da moldura imposta para o cúmulo jurídico pelo disposto no nº 2 do art. 77º, do CP.
6 - Num ponto merece, no entanto, adesão o douto recurso.
7 - Com efeito, e relativamente ao facto dado como provado nº 9, retira-se do texto do acórdão que este padece do vício decisório previsto no art. 410º, nº 2, al. b) do CPP: contradição insanável da fundamentação.»
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Neste Tribunal da Relação do Porto, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer secundando a resposta apresentada pelo Ministério Público junto do Tribunal recorrido.
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Notificado nos termos do disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPPenal, o recorrente não apresentou resposta.
*
Realizado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, nada obstando ao conhecimento do recurso.
*
II. Apreciando e decidindo:
Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objecto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1].
As questões que o recorrente coloca à apreciação deste Tribunal de recurso são as seguintes:
- Erro de julgamento em sede de matéria de facto, com violação do princípio in dubio pro reo;
- Nulidade por violação do disposto no art. 374.º, n.º 2, do CPPenal por remissão do art. 379.º, n.º 1, al. c), do mesmo diploma legal;
- Contradição insanável da fundamentação (art. 410.º, n.º 2, al. b), do CPPenal);
- Medida concreta da pena única excessiva.
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Para análise das questões que importa apreciar releva desde logo a factualidade subjacente e razões da sua fixação, sendo do seguinte teor o elenco dos factos provados e não provados e respectiva motivação constantes do acórdão recorrido (transcrição):
«2.1. MATÉRIA DE FACTO PROVADA
Na audiência de julgamento resultou provado a seguinte matéria de facto:
1. A assistente BB conheceu o arguido em 2009, através das redes sociais, tendo iniciado, pouco tempo depois, uma relação de amizade.
2. Decorria o ano de 2010 quando a assistente BB e o arguido passaram a ter uma relação de namoro.
3. Um ano mais tarde, a assistente mudou-se para a residência do arguido, sita na Rua ..., ..., Porto, passando a viver em comunhão de cama, mesa e habitação.
4. Para além de BB, mudaram-se, para tal habitação, EE, nascida a .../.../1998 e CC, nascido a .../.../2005, filhos da assistente de uma anterior relação.
5. Fruto desta união, nasceu o menor DD a .../.../2015.
6. Em 29.06.2016, quando atingiu a maioridade, a ofendida EE foi viver com o seu pai.
7. Inicialmente, o arguido era uma pessoa calma, de bom trato, sociável e tratava bem os filhos da assistente.
8. Mas, ao longo da relação, sempre que era contrariado, na casa de morada de família, o arguido insultou BB de “puta”, “vaca” e “porca”, acusou-a de ser fraca, na presença dos filhos EE, CC e DD.
9. E pelo menos em dez ocasiões no ano de 2015, o arguido agrediu a assistente BB, desferindo-lhe, murros, pontapés, estalos e puxando-lhe os cabelos, sem a presença dos filhos.
10. Nessas ocasiões, o arguido retirava o telemóvel à assistente.
11. Após a ter agredido, o arguido demonstrava-se arrependido e chorava, pelo que a assistente acabava por o perdoar e mantinha-se naquela relação.
12. Durante a relação, o arguido dizia a BB que o seu trabalho de empregada de limpeza, “era um trabalho de merda”, rebaixando-a constantemente, bem como a ameaçou, afirmando “tiro-te o filho, não vais mais vê-lo”.
13. O assistente CC é homossexual.
14. No interior da residência em comum, o arguido passou a maltratar, diariamente, o menor CC desde os seus 5 anos de idade, apelidando-o de “maricas”, “mariconço”, “florzinha” e “paneleiro”.
15. Quando a assistente BB estava grávida do seu filho DD, o arguido queria que a menor EE transportasse uma garrafa de gás para a residência.
16. A EE questionou o arguido sobre tal situação, negando-se a transportar a garrafa de gás, foi então que o arguido desferiu-lhe um estalo na face.
17. Com receio do que o arguido pudesse fazer a si e à sua filha, a assistente acabou por pegar na dita garrafa de gás e transportou-a com a ajuda da filha até ao 3.º andar do prédio.
18. Em data não concretamente apurada, o arguido partir a porta de um roupeiro.
19. Face a tal vivência, a assistente BB e os seus filhos menores saíram de casa em 2018, tendo a assistente recorrido a apoio psicológico através do Projeto Criar uma vez que até já tinha pensado no suicídio.
20. Mas, porque o arguido demostrou estar arrependido, alegando que ia mudar de comportamento, BB aceitou fazer terapia familiar com ele.
21. Passado um ano, em 2019, ao pensar que o arguido tinha efetivamente mudado, BB e os seus filhos menores (CC e DD) regressaram a casa do arguido.
22. Mas, ao fim de um mês, o arguido voltou a ser verbalmente agressivo para com BB.
23. A partir dai, nos últimos dois anos de relação, com frequência quase diária, o arguido insultou BB com os nomes acima descritos, vociferando ainda que “és uma grande filha da puta”, “porque é que entraste na minha vida?”.
24. No ano de 2020, em dia não concretamente apurado, quando o arguido, a assistente BB e o menor DD regressavam a casa, vindos do Centro Comercial ...”, no decurso de uma discussão, o arguido começou a imprimir imensa velocidade ao veiculo automóvel onde seguiam, mesmo na presença do menor DD que também se encontrava no interior do referido veiculo.
25. No verão de 2020, em dia não concretamente apurado, na piscina municipal de ..., o arguido cismou com uma pessoa do sexo masculino que tinha posto um “like” numa fotografia de BB que constava da sua página da rede social “Facebook”.
26. A dada altura, o arguido começou a esbracejar e apelidou BB de “puta”, “vaca”, “filha da puta”, “fodo-te já o focinho”, agarrou-a pelo braço e arrastou-a para o carro.
27. De seguida, o arguido meteu o seu filho DD no interior do carro.
28. No percurso, o arguido continuou a insultar BB com tais impropérios, aos gritos, enquanto conduzia a viatura de forma errática e perigosa, imprimindo alta velocidade ao veículo.
29. Em desespero, BB abriu a porta do carro, como se fosse atirar-se do carro em andamento, mas só não o fez porque o seu filho DD chamou por si e pediu-lhe para não o fazer.
30. Em setembro ou outubro de 2020, BB saiu de casa de morada de família e arranjou um apartamento para si e os seus filhos.
31. Mas, durante o ano de 2020 e 2021, porque o seu filho DD vinha de casa do arguido sem mudar a roupa interior, BB fazia esse reparo ao arguido; porém, era novamente insultada pelo arguido com os nomes acima referidos e ainda com os epítetos de “puta”, “porca” e “filha da puta”.
32. Numa dessas vezes, o arguido saiu do carro, na Rua ..., no Porto, e, aos gritos, dirigiu esses nomes à assistente na via pública.
33. O arguido não se coibiu de agir como descrito, causando sofrimento, humilhação e vergonha a BB, sua companheira e mãe do seu filho menor, molestando-a psicológica e fisicamente, pretendendo humilhá-la na sua honra e consideração na presença dos seus filhos menores, o que assim o logrou.
34. Ademais, com a sua conduta supra descrita, o arguido pretendeu atingir o bem-estar físico e psicológico do menor CC (quando à data era menor de idade) sabendo que o mesmo era vulnerável devido à sua idade e à sua orientação sexual, pretendendo que se sentisse menorizado e humilhado, o que assim logrou, bem sabendo que o afetava na sua saúde, querendo, ainda, atingi-lo na sua dignidade pessoal, o que também alcançou.
35. Mais sabia que, ao atuar dentro da residência comum, ampliava o sentimento de receio das vítimas BB e CC, violando o espaço de vida em comum e o seu espaço de segurança.
36. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, desinteressando-se por completo pelo bem-estar das vítimas acima referidas que consigo viviam na casa de morada de família.
37. Agiu o arguido livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida pela lei penal.
38. Após a apresentação da queixa nos presentes autos, o arguido deixou de proferir expressões ofensivas para com a assistente BB.
39. Do pedido civil:
40. Em consequência das condutas do arguido, a assistente BB sentiu-se humilhada, envergonhada, ansiosa e num estado de medo permanente; e
41. Tudo isto fez com que a demandante ficasse deprimida e entristecida, deixando de apresentar a força de viver a que havia habituado os seus parentes e amigos.
42. Mais resultou provado (relatório social): 43. O arguido foi criado com a avó paterna.
44. O percurso escolar de AA pautou-se por algumas irregularidades associadas a questões familiares, das quais destacou o falecimento do pai, registando retenções no 7º ano de escolaridade.
45. O arguido foi encaminhado para um curso profissionalizante de 3º ciclo na área da marcenaria e carpintaria, que concluiu com 18 anos.
46. Nessa idade, começou a trabalhar na A... como vigilante, estabilizando o vínculo com essa entidade empregadora passados dois anos, na qual vem assumindo responsabilidades no transporte de valores.
47. Após a separação do casal, o agregado familiar atual de AA é unipessoal, com residência estabelecida num apartamento arrendado (social) de tipologia três, inserido em zona residencial de configuração urbana conotada com algumas problemáticas sociais.
48. O arguido mantém inserção laboral estável na A..., trabalhando entre as 05:30h e as 13:30h (horário de saída variável) com folgas rotativas, auferindo uma remuneração líquida entre os 1200 a 1400 euros.
49. As suas despesas fixas mensais relacionam-se com a renda da habitação (80 euros), serviços domésticos (na ordem dos 100 euros), pensão de alimentos (121,30 euros) e as aulas de natação do filho (13 euros).
50. O quotidiano do arguido associa-se à assunção das responsabilidades laborais e parentais, dedicando algum tempo livre para conviver com amigos e um irmão uterino.
51. Os seus projetos de vida passam pela manutenção do seu enquadramento socio-habitacional e profissional, desejando ainda a seu tempo reconstituir família.
52. O arguido é primário.
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2.2. MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA
Da relevante para a discussão da causa não logrou obter prova a seguinte matéria de facto:
1. O arguido não deixava que BB visse televisão a partir das 21h00, desligando o respetivo aparelho.
2. O arguido impedia a assistente e os menores de tomar banho todos os dias. 3. Que o arguido trancava a assistente dentro de casa.
4. Ao longo da relação e de forma gradual, o arguido foi isolando a assistente dos seus familiares e amigos, controlando todas as chamadas que a mesma recebia ou efetuava e insultando-a com os nomes acima referidos, tal como a outra pessoa com quem ela estivesse a falar ao telemóvel.
5. Ademais, ainda antes do menor DD ter nascido, o arguido implicou constantemente com a irmã da assistente, de nome FF, apelidando-a de “vaca” e alegando que a assistente só se dava com “essa gente”, ao ponto desta se afastar da sua irmã.
6. Para além disso, quando ficou grávida do menor DD, a assistente BB viu-se obrigada a continuar a trabalhar, não podendo pôr baixa médica pela gravidez de risco que lhe foi diagnosticada, para poder pagar as despesas.
7. Que o arguido ameaçou a assistente, afirmando “vou-te fazer a vida negra, se me abandonas”, “dou cabo da tua vida e mato-me”.
8. Com o intuito de massacrar a assistente EE para saísse da sua casa, o arguido obrigava-a a acordar cedo para acompanhar a sua mãe ao trabalho.
9. Quando estava no 6.º mês de gravidez do seu filho DD (diga-se, gravidez de risco) a assistente BB foi instada pelo arguido para que sozinha transportasse uma garrafa de gás, do rés do chão até ao 3.º andar do prédio onde residiam.
10. Que o arguido destruía objetos da residência.
11. Quanto ao menor CC, o arguido impediu-o, por diversas vezes, de se aproximar do seu irmão DD e conviver com ele; e quando EE ia a casa de morada de familia para estar com a assistente e os seus irmãos, o arguido fechava-se no quarto e não falava com ela.
12. Que o arguido ameaçava de morte a assistente BB, na presença dos menores CC e DD, em particular quando surgiam noticias na televisão sobre mortes de mulheres no contexto familiar.
13. Ademais, com a sua conduta supra descrita, o arguido pretendeu atingir o bem-estar físico e psicológico dos menores DD e EE (quando à data era menor de idade) sabendo que os mesmos eram vulneráveis devido à sua idade e por estarem dependentes economicamente de si, pretendendo que se sentissem menorizados e humilhados, o que assim logrou, bem sabendo que os afetava na sua saúde, querendo, ainda, atingi-los na sua dignidade pessoal, o que também alcançou.
14. Também, ao expor os menores à violência física a que submetia a sua progenitora, ao longo de todos estes anos, sabia que ia causar nos mesmos um sentimento de permanente receio e de inquietação (tal como causou) atentando, assim, contra a sua saúde e bem-estar psíquico, renovando tal intenção após o regresso daquela à casa de morada de família no ano de 2019.
15. Da contestação:
16. Que a assistente apresentou a queixa junta aos autos no dia 12 de julho de 2021, por causa do arguido ter iniciado uma relação amorosa com outra mulher.
***
2.3. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
Para formar a sua convicção, o tribunal, tendo sempre em atenção o disposto no artº 127º, do Código de Processo Penal, isto é, tendo em atenção o princípio de que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção, bem como as exceções ao mesmo princípio, decorrentes também da lei, baseou-se:
O arguido AA, prestou declarações em audiência de julgamento, tendo negado a prática dos factos que lhe são imputados na acusação. Assim, o tribunal formou convicção relativamente à matéria de facto provada (e não provada), nas declarações prestadas pela assistente BB, nas declarações prestadas para memória futura, pelo assistente CC e pelo menor DD, no depoimento da testemunha EE. Com efeito, o tribunal não recolheu motivos para duvidar dos seus depoimentos, e que, a espontaneidade e simplicidade dos seus relatos, convenceu o tribunal. Assim sendo, o tribunal não teve dúvidas em considerar provados os factos descritos. Importa, porém, referir que a assistente BB, quando confrontada em julgamento com os episódios descritos na acusação que não correspondiam à verdade, logo os corrigia. Assim foi com o episódio da garrafa de gás que a acusação descreve como tendo sido o arguido a obrigá-la a carregar do rés-do-chão até ao 3º andar, quando estava de gravidez de risco, tendo a assistente BB apresentado a versão dada como provada nos pontos 15 a 17. Em conclusão, no que diz respeito àqueles factos que foram considerados não provados, tais factos resultaram dos depoimentos dos assistentes BB e CC e da testemunha EE, que relataram que esses factos não ocorreram da forma como estão descritos na acusação. Por último, dos depoimentos das testemunhas de defesa GG, HH e II, bem como das fotografias e vídeos apresentados pela defesa, foi possível apurar que o casal mantinha uma aparência de bom relacionamento perante terceiros, porém, tal constatação, não põe em causa a veracidade das condutas do arguido para com os ofendidos (dadas como provadas), as quais ocorreram na habitação e no automóvel, apenas na presença dos ofendidos que as relataram.
Analise crítica da prova.
Relativamente aos factos provados sob os números 1 a 6, o tribunal formou convicção com base nas declarações do arguido e da assistente BB, que relataram a forma como se conheceram, o início da união de facto, com a mudança da assistente e dos seus dois filhos menores para a residência do arguido. Teve ainda em conta o tribunal, o teor dos assentos de nascimento dos menores DD e CC de fls. 99 a 102.
Quanto aos factos provados nos pontos 7, 8, 12, o tribunal fundou a sua convicção com base nos depoimentos dos assistentes BB e CC e da testemunha EE, os quais relataram os impropérios que o arguido dirigia à assistente, no decurso de discussões que mantinham na residência, presenciados pelos menores CC, EE e DD, razão pela qual foram dados como provados.
Para formar convicção quanto aos factos 9, 10 e 11, o tribunal teve em conta o depoimento da assistente BB, a qual relatou as agressões físicas de que foi vítima no ano de 2015, a última das quais cerca de ¾ meses após o nascimento do filho DD. Por outro lado, o assistente CC e a testemunha EE relataram que não assistiram a agressões do arguido para a mãe, esclareceram que durante as discussões refugiavam-se no quarto.
Relativamente aos pontos 13 e 14 da matéria de facto provada, o coletivo formou convicção com base nos depoimentos de BB, EE e CC, os quais relataram o tratamento homofóbico que o arguido tinha para com o assistente CC desde os 5 anos de idade. Em especial, o relato do CC que referiu que se “sentia muito mal, porque na altura, nem eu sabia o que era, e, então, foi muito confuso”.
Para formar convicção quanto aos factos 15, 16 e 17 da matéria de facto provada e do ponto 9 da matéria de facto não provada, o tribunal teve em conta o depoimento da assistente BB e da testemunha EE, as quais relataram que o arguido queria obrigar a menor a carregar a botija de gás desde o rés-do-chão até ao 3º andar e, por esta se recusou o arguido desferiu-lhe uma bofetada; mais esclareceu a assistente BB que para terminar a discussão, transportou a botija com a ajuda da filha.
O ponto 9 da matéria de facto provada, resulta da confissão do arguido e do depoimento da assistente BB, razão pela qual foi levada à factualidade provada.
Relativamente aos factos provados sob os números 19 a 32, resultam apenas do relato da assistente BB, porque apenas vividos por si. Assim, a ofendida relatou que no ano de 2018, recorreu a apoio psicológico através do Projeto Criar, face ao seu estado de saúde mental, altura em que saiu da residência do arguido, com os seus filhos CC e DD. Mais relatou, que ao fim de um ano, reatou a relação com o arguido, mas após um mês de convivência, o arguido retomou os insultos e a agressividade verbal, relatou os dois episódios que ocorreram no automóvel na presença do menor DD, então com 5 anos de idade, tendo sido o último destes episódios, que a fez por termo definitivo à relação com o arguido que situou em setembro ou outubro de 2020. Por fim, a assistente BB relatou que, mesmo após a separação e em virtude dos contactos que mantinham por causa do filho de ambos, o arguido continuava a insultar a ofendida, razão pela qual se deu como provado os factos descritos nos pontos 31 e 32.
Relativamente aos factos dos elementos subjetivos (pontos 33 a 37), o tribunal socorreu-se das regras da experiência comum.
Já no que diz respeito àqueles factos que foram considerados não provados, tal resultou dos depoimentos dos ofendidos que descreveram tais factos, mas com enquadramento diverso, ora referindo que o arguido não impedia a assistente e os seus filhos de tomar banho todos os dias, porque na optica dele não havia necessidade, ou porque o arguido queria dormir às 21 horas, por causa do horário do seu trabalho, não queria a televisão ligada no quarto. A assistente BB negou a ocorrência dos factos descritos nos pontos 4 e 5, esclareceu que o afastamento dos seus familiares não ocorreu por imposição do arguido; relatou que teve de continuar a trabalhar quando esteve grávida por que precisava para sustentar os seus dos filhos; negou que o arguido tivesse proferido a ameaça descrita nos pontos 7 e 12; a ofendida EE negou que fosse intenção do arguido que a mesma saísse de casa, quando a obrigava a levantar-se de manhã nos períodos de férias escolares; os ofendidos negaram que o arguido partisse regularmente os objetos da habitação; e por fim, os ofendidos também negaram que o arguido impedia que o CC se aproximasse do menor DD. Assim, tais factos foram considerados não provados.
A ausência de antecedentes criminais do arguido resulta do seu CRC junto aos autos.
As condições pessoais, sociais, profissionais e económicas do arguido, resulta das declarações do arguido que se nos afiguraram sinceras, dos depoimentos das testemunhas de defesa, bem como, do teor do relatório social junto aos autos.»
*
Vejamos as questões colocadas, por ordem de precedência lógica.
Nulidade por violação do disposto no art. 374.º, n.º 2, do CPPenal por remissão do art. 379.º, n.º 1, al. c), do mesmo diploma legal e contradição insanável da fundamentação (art. 410.º, n.º 2, al. b), do CPPenal)

Considera o recorrente que o acórdão recorrido é nulo, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. c)[2], do CPPenal, pois o Tribunal a quo omitiu a necessária fundamentação de acordo com o disposto no art. 374.º, n.º 2, no mesmo diploma legal relativamente a dois segmentos, a saber, i) a fixação do ponto 9 da matéria de facto provada e ii) a sua posição relativamente às mensagens enviadas pela ofendida juntas com a contestação, neste caso para aferir, nomeadamente, se os insultos eram ou não recíprocos, bem como para determinar a existência de subordinação ou maus tratos do arguido para com esta ou vice versa.
De acordo com o disposto no n.º 2 do art. 374.º do CPPenal, sob a epígrafe “Requisitos da sentença”, «[a]o relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.»
Essa análise, que se impõe que o julgador verta na sua decisão, permite aos destinatários da mesma acompanhar o processo lógico-valorativo da formação da convicção do Tribunal, verificar da legalidade da decisão de facto face às regras de apreciação da prova – como o princípio in dubio pro reo, as regras da experiência comum, as proibições de prova, o valor da prova pericial, o grau de convicção exigível e a presunção de inocência –, bem como da decisão de direito e, pretendendo, impugná-las, possibilitando ainda ao Tribunal de recurso uma mais clara e efectiva reponderação da decisão da 1.ª Instância.
A este propósito decidiu-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-01-2018[3]:
«I - A necessidade de fundamentação da sentença condenatória, nos termos dos artigos 374.º e 375.º do CPP, que concretizam requisitos específicos relativamente ao regime geral estabelecido no artigo 97.º, n.º 5, do CPP, decorre directamente do art. 205.º, n.º 1, da CRP. A fundamentação das decisões dos tribunais, constituindo um princípio de boa administração da justiça num Estado de Direito, representa um dos aspectos do direito a um processo equitativo protegido pela Convenção Europeia dos Direitos Humanos.»

É, assim, pressuposto da completude de qualquer sentença que a mesma tenha, desde logo, a indicação, isto é, descrição, enumeração, dos factos provados e não provados, sendo igualmente pacífico que tais factos são os que constam da acusação ou pronúncia, da contestação, do pedido de indemnização civil e ainda os que resultarem da discussão da causa[4], conforme sobressai do teor do art. 368.º do CPPenal.
Com efeito, este preceito, sob a epígrafe “Questão da culpabilidade”, determina que na deliberação que é realizada após o encerramento da discussão:
«1 - O tribunal começa por decidir separadamente as questões prévias ou incidentais sobre as quais ainda não tiver recaído decisão.
2 - Em seguida, se a apreciação do mérito não tiver ficado prejudicada, o presidente enumera discriminada e especificamente e submete a deliberação e votação os factos alegados pela acusação e pela defesa e, bem assim, os que resultarem da discussão da causa, relevantes para as questões de saber:
a) Se se verificaram os elementos constitutivos do tipo de crime;
b) Se o arguido praticou o crime ou nele participou;
c) Se o arguido actuou com culpa;
d) Se se verificou alguma causa que exclua a ilicitude ou a culpa;
e) Se se verificaram quaisquer outros pressupostos de que a lei faça depender a punibilidade do agente ou a aplicação a este de uma medida de segurança;
f) Se se verificaram os pressupostos de que depende o arbitramento da indemnização civil.
3 - Em seguida, o presidente enumera discriminadamente e submete a deliberação e votação todas as questões de direito suscitadas pelos factos referidos no número anterior.»

Decorre, assim, desta norma que não são quaisquer factos provenientes da acusação/pronúncia, da defesa, do pedido de indemnização civil ou da produção de prova em julgamento que importa verter entre os provados e não provados a enumerar na sentença mas apenas aqueles que são relevantes, isto é, essenciais, para a definição dos elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime e do tipo de participação do agente, para a determinação da respectiva culpa, para a verificação de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, para a verificação dos pressupostos de punibilidade ou de aplicação de medida de segurança, bem como dos de arbitramento da indemnização civil e, finalmente, de acordo com o preceituado no art. 369.º do CPPenal, os atinentes à determinação da sanção, sendo de realçar os relativos aos antecedentes criminais do arguido, à personalidade do arguido e ao seu enquadramento social, posto todos eles influenciarem e serem determinantes da escolha e determinação da medida concreta da pena a encontrar pelo Tribunal.
De fora da apontada obrigação de enumeração dos factos provados e não provados ficam todos aqueles que são acessórios ou irrelevantes para a qualificação do crime ou para a graduação da responsabilidade do arguido, e bem assim aqueles que se mostram prejudicados com a solução dadas a outros, por apenas os contrariarem, ou seja, representarem mera infirmação, negação, de outros já constantes do elenco dos factos provados ou não provados.
Entendimento diverso quanto a esta última situação levaria à obrigação de realização de trabalho duplicado e até com sentido jurídico pouco rigoroso, por apelar à comprovação de factos negativos. Assim, por exemplo, se o Tribunal der como provado que A se apoderou de um determinado bem de B não precisa que dar como não provado que A não se apoderou de determinado bem de B. De igual modo, se o Tribunal der como não provado que A se apoderou de determinado bem de B não precisa dar como provado que A não se apoderou de determinado bem de B.
Deste modo, sempre que os factos apresentados numa contestação representarem mera impugnação, no sentido de negação, dos factos descritos da acusação – aqui se incluindo quer uma negação stricto sensu, desacompanhada de uma narrativa explicativa alternativa à descrição factual da acusação, quer esta última hipótese –, ali não se acrescentando quaisquer outros que respeitem ao grau de culpa do agente, que possam constituir-se como causas de exclusão da ilicitude ou da culpa ou que tenham relevo para a determinação da sanção, não é necessário que sejam inseridos no elenco dos factos não provados se o Tribunal deu como provados todos os factos que constam da acusação e respeitem os elementos constitutivos do crime, à participação do arguido e ao seu grau de culpa, representando aqueles apenas o seu reverso.
Neste sentido, veja-se, a título de exemplo, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-10-2011[5], onde se consignou:
«II. A jurisprudência do STJ firmou-se, de há muito, no sentido de que a decisão deve conter a enumeração concreta, feita da mesma forma, dos factos provados e não provados, com interesse e relevância para a decisão da causa, sob pena de nulidade, desde que os mesmos sejam essenciais à caracterização do crime em causa e suas circunstâncias, ou relevantes juridicamente com influência na medida da pena, desde que tenham efectivo interesse para a decisão, mas já não no caso de factos inócuos, excrescentes ou irrelevantes para a qualificação do crime ou para a graduação da responsabilidade do arguido, mesmo que descritos na acusação e/ou na contestação, ou ainda a matéria de facto já prejudicada pela solução dada a outra.
III - Todavia o que importa é que os factos sejam relevantes para a decisão da causa. E relevantes serão todos os factos essenciais à caracterização do crime ou integradores de causas de exclusão»
Ou o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 16-10-2012[6], que firmou o entendimento de que:
«I. A vinculação temática funciona num duplo sentido: impede o tribunal de conhecer para lá do facto e obriga-o a pronunciar-se até ao limite do facto, sendo este o narrado pelo Ministério Público na acusação, pela defesa na contestação, bem como o que resultar da discussão da causa com relevância para a decisão.
2. Se os factos alegados pela defesa representam apenas a versão negativa dos factos provados, é dispensável o tratamento expresso destes factos negativos.»

Importante é que o Tribunal elenque todos os factos, provados e não provados, revelantes para a apreciação das questões enunciadas nos arts. 368.º e 369.º do CPPenal, independentemente de terem proveniência da acusação/pronúncia, da defesa, do pedido de indemnização civil ou da discussão da causa, devendo o segmento seguinte da sentença, a motivação, com o exame crítico das provas, revelar que foram apreciadas todas as perspectivas apresentadas[7].
Regressando à situação em apreço e começando pela questão da fixação do ponto 9 da matéria de facto vemos da motivação do Tribunal a quo que se deixou supratranscrita que as declarações da assistente foram preponderantes na fixação da factualidade assente, nomeadamente a enunciada no ponto 9 da matéria de facto provada, explicando-se a dado ponto que a espontaneidade e simplicidade dos relatos convenceu o Tribunal, não tendo o mesmo razões para duvidar daqueles relatos, sendo certo que a assistente corrigiu, em benefício do arguido, alguns dos episódios descritos da acusação, o que, subentende-se, corroboraria a sua credibilidade.
Esta fundamentação, a par do demais referido quanto ao conjunto da matéria de facto provada e não provada que se deixou transcrita, não sendo particularmente minuciosa, é o suficiente para que os destinatários da decisão acompanhem o processo lógico-valorativo da formação da convicção do Tribunal, abrindo a porta a que possam ser rebatidos os argumentos aduzidos, nomeadamente a credibilidade das declarações da assistente enquanto meio de prova, como efectivamente aconteceu no presente recurso.
Com efeito, é pacífico o entendimento de que a fundamentação da sentença não tem de ser exaustiva, nem se exige que o julgador reproduza ipsis verbis o depoimento das testemunhas ou que se debruce especificadamente sobre todos os pontos de facto e todos os elementos de prova relevantes para cada um. Essencial é que a prova produzida esteja de acordo com os factos provados e não provados e que o Tribunal de julgamento consiga expor as razões da sua decisão, do percurso lógico que o conduziu até à solução encontrada.
Não se detecta, pois, neste segmento qualquer nulidade por falta de fundamentação nos termos do art. 379.º, n.º 1, do CPPenal, sendo certo que apenas a falta absoluta de fundamentação permite configurar a nulidade invocada[8].
O problema neste caso da motivação do ponto 9 da matéria de facto provada não é de falta de fundamentação, que não se verifica, antes de contradição da fundamentação, como o recorrente também alega.
Quanto a esta matéria, é também pacífico o entendimento de que a impugnação da matéria de facto se pode fazer através da invocação dos vícios de lógica da sentença previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPPenal, devendo o recorrente, contudo – contrariamente ao que ocorre com a impugnação ampla da matéria de facto –, ater-se apenas ao texto da decisão e às incoerências que aí possam ser encontradas. Tais vícios consubstanciam defeitos que têm de resultar do próprio texto da decisão recorrida, sem apoio em quaisquer elementos externos à mesma, salvo a sua interpretação à luz das regras da experiência comum. São falhas que hão-de resultar da própria leitura da decisão e que são detectáveis pelo cidadão médio, devendo ser patentes, evidentes, imediatamente perceptíveis à leitura da decisão, revelando juízos ilógicos ou contraditórios.
No caso do vício da contradição insanável previsto na al. b) do n.º 2 do art. 410.º do CPPenal têm de constar do texto da decisão recorrida, sobre a mesma questão, posições antagónicas e inconciliáveis.
Conforme se firmou no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30-10-2013[9], «[a] contradição insanável de fundamentação ou entre esta e a decisão, revela-se em desarmonia intrínseca insanável, em termos de que a sua interligação se apresenta com resultados opostos sobre a mesma factualidade, não sendo possível, face ao texto da decisão recorrida, ainda que em conjugação com as regras da experiência comum, obter o facto seguro, sem dúvidas, saber qual a factualidade provada, perceptível, consistente e conjugável harmonicamente entre si, apurada na versão transmitida.»
No caso concreto detectamos essa incompatibilidade, já que, depois de fundamentar nos termos descritos a sua convicção quanto à fixação da matéria dos factos provados 9, 10 e 11, mais adiante, o Tribunal a quo acrescenta ainda que «[o] ponto 9 da matéria de facto provada, resulta da confissão do arguido e do depoimento da assistente BB, razão pela qual foi levada à factualidade provada.»
Se bem atentarmos na fundamentação do Tribunal a quo, no segmento da análise crítica da prova, verificamos que seguiu a ordem numérica dos factos provados, justificando as razões que conduziram à sua fixação com alusão, em primeiro lugar, aos factos 1 a 6, de seguida, aos factos 7, 8 e 12, depois, aos factos 9, 10 e 11, após, aos factos 13 e 14, de seguida, aos factos 15, 16 e 17, depois ao facto 9, seguindo-se, os factos 19 a 32 e, finalmente, os factos 33 a 37.
A referência ao facto 9 entre as menções aos 15, 16 e 17, por um lado, e 19 a 32, por outro, corresponde a um evidente lapso de escrita, estando em causa, sim, o ponto 18 da matéria de facto provada (em data não concretamente apurada, o arguido partiu a porta de um roupeiro), facto que o arguido até admitiu no seu recurso ser verdadeiro (cf. fls. 11).
Ainda assim, há que reconhecer que essa parcela da fundamentação não deixa de ser contraditória com o que Tribunal a quo havia afirmado no início a sua fundamentação ao referir que o arguido «prestou declarações em audiência de julgamento, tendo negado a prática dos factos que lhe são imputados na acusação.»

Tal falha, a ter-se por insanável, determina, de acordo com o disposto no art. 426.º, n.º 1, do CPPenal, o reenvio do processo para novo julgamento quanto à parcela em causa.
Porém, a constatação de que a sentença recorrida padece do vício da contradição insanável da fundamentação, previsto no art. 410.º, n.º 2, al. b), do CPPenal, não determina automaticamente o reenvio do processo para novo julgamento. O reenvio só deve ocorrer quando não seja possível por outra forma colmatar as falhas detectadas, conforme decorre do disposto no art. 426.º, n.º 1, do CPPenal.
Tratando-se de vício que pode afectar a configuração da matéria de facto permite-se que o Tribunal de recurso procure a sua modificação em ordem à correcção das falhas apuradas nas condições previstas no art. 431.º do CPPenal[10], isto é, se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base, se a prova tiver sido impugnada nos termos do art. 412.º, n.º 3, do referido diploma legal ou se tiver havido renovação da prova.
No caso concreto, são de afastar liminarmente a primeira e a terceira hipótese de sanação do vício, seja porque a modificação a produzir depende também do teor da prova gravada produzida, logo não dispondo o processo de todos os elementos de prova em causa, seja porque não foi requerida renovação da prova e esta não opera oficiosamente, conforme decorre do disposto no art. 430.º do CPPenal[11].
Resta a hipótese prevista na al. b) do art. 431.º do CPPenal – a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do art. 412.º –, o que efectivamente ocorreu.
E ouvidas as declarações do arguido, meio de prova suscitado na impugnação da matéria de facto e que está em concreto directamente ligado à contradição enunciada, concluímos que quanto ao ponto 18. da matéria de facto provada o recorrente, efectivamente, confessou esse facto, conforme resulta das declarações prestadas em julgamento a 23-01-2023 (00:02:50 a 00:02:59) e a 01-02-2023 (00:04:50 a 00:05:01).
E quanto ao mais, negou a factualidade imputada.
Nenhuma falha se verifica, deste modo, ao nível da fixação do facto provado 18, apenas de detectando incorrecta menção na fundamentação à negação pelo arguido da totalidade dos factos imputados, sem ressalva do facto provado consignado no ponto 18, modificação a que se deve atender, em coerência com a prova indicada.

Passemos agora à segunda situação perante a qual o recorrente suscitou a falta de fundamentação, isto é, a posição do Tribunal a quo relativamente às mensagens enviadas pela ofendida juntas com a contestação, no sentido de se aferir se os insultos eram ou não recíprocos, bem como para determinar a existência de subordinação ou maus tratos do arguido para com esta ou vice versa.
Tendo presente os critérios enunciados quanto à completude da fundamentação e transpondo os mesmos para a situação dos autos, verificamos que nenhuma falha é também aqui de imputar à decisão recorrida.
Apreciando a contestação apresentada pelo arguido à luz daquelas regras percebemos que o mesmo se limitou a negar a prática dos factos ou a infirmar a factualidade constante da acusação, descrevendo uma realidade alternativa sem relevância penal, de acordo com a qual a assistente apenas apresentou queixa cerca de um ano após a separação e porque o recorrente mantinha há cerca de três meses uma relação amorosa, procurando humilhá-lo e prejudicá-lo, juntando para o efeito cópia de mensagens que teriam sido trocadas entre o arguido e a assistente.
Esta argumentação serviria para descredibilizar a versão da assistente.
Porém, o Tribunal a quo não acolheu esta interpretação dos acontecimentos, mantendo, embora parcialmente, a versão vertida na acusação com base nas declarações e depoimentos da assistente e dos seus filhos, pelas razões que enunciou. E essa era a fundamentação que tinha de apresentar para justificar a factualidade assente.
Veja-se, aliás, que os documentos invocados pelo recorrente datam de momento posterior aos factos descritos nos pontos 1 a 30 da matéria de facto provada, pelo que nunca seriam susceptíveis de servir como seu meio de prova de acontecimentos pretéritos.
É certo que o Tribunal a quo não se alongou nas explicações e que a fundamentação da convicção poderia ter sido melhorada, ao nível do exame crítico da prova, acrescentando-se, por exemplo, uma nota sobre estes documentos.
Mas isso não significa que o essencial e necessário não esteja explicado, o que afasta, naturalmente, a nulidade por falta de fundamentação, que exige a ausência desta ou uma deficiência tão grave que não seja perceptível o raciocínio do julgador ao tomar aquela decisão, o que não é manifestamente o caso.
Visto o elenco dos factos provados e não provados, a motivação e o exame crítico da prova, é perfeitamente claro que o Tribunal a quo ponderou as diversas posições apresentadas relativamente aos factos, tendo optado, fundamentadamente, por uma delas, estruturando a decisão com correcto cumprimento das regras a que alude o art. 374.º do CPPenal.
Improcede, assim, este segmento do recurso.

O recorrente apela também à configuração genérica e sem concretização temporal dos factos provados 15, 16, 17, 19, 20, 21, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 31, 33 e 34, pugnando pela sua inserção no elenco dos factos não provados.
Apesar de uma tal deficiência, a ocorrer, consubstanciar vício da fundamentação da sentença, concretamente na descrição dos factos provados, o recorrente inseriu-a, erroneamente, na impugnação ampla da matéria de facto que realizou e que será adiante analisada.
Não obstante, apreciaremos neste momento essa questão, por ser o correcto.
Recordemos a redacção dos pontos de facto provados invocados neste segmento:
«15. Quando a assistente BB estava grávida do seu filho DD, o arguido queria que a menor EE transportasse uma garrafa de gás para a residência.
16. A EE questionou o arguido sobre tal situação, negando-se a transportar a garrafa de gás, foi então que o arguido desferiu-lhe um estalo na face.
17. Com receio do que o arguido pudesse fazer a si e à sua filha, a assistente acabou por pegar na dita garrafa de gás e transportou-a com a ajuda da filha até ao 3.º andar do prédio.
19. Face a tal vivência, a assistente BB e os seus filhos menores saíram de casa em 2018, tendo a assistente recorrido a apoio psicológico através do Projeto Criar uma vez que até já tinha pensado no suicídio.
20. Mas, porque o arguido demostrou estar arrependido, alegando que ia mudar de comportamento, BB aceitou fazer terapia familiar com ele.
21. Passado um ano, em 2019, ao pensar que o arguido tinha efetivamente mudado, BB e os seus filhos menores (CC e DD) regressaram a casa do arguido.
24. No ano de 2020, em dia não concretamente apurado, quando o arguido, a assistente BB e o menor DD regressavam a casa, vindos do Centro Comercial ...”, no decurso de uma discussão, o arguido começou a imprimir imensa velocidade ao veiculo automóvel onde seguiam, mesmo na presença do menor DD que também se encontrava no interior do referido veiculo.
25. No verão de 2020, em dia não concretamente apurado, na piscina municipal de ..., o arguido cismou com uma pessoa do sexo masculino que tinha posto um “like” numa fotografia de BB que constava da sua página da rede social “Facebook”.
26. A dada altura, o arguido começou a esbracejar e apelidou BB de “puta”, “vaca”, “filha da puta”, “fodo-te já o focinho”, agarrou-a pelo braço e arrastou-a para o carro.
27. De seguida, o arguido meteu o seu filho DD no interior do carro.
28. No percurso, o arguido continuou a insultar BB com tais impropérios, aos gritos, enquanto conduzia a viatura de forma errática e perigosa, imprimindo alta velocidade ao veículo.
29. Em desespero, BB abriu a porta do carro, como se fosse atirar-se do carro em andamento, mas só não o fez porque o seu filho DD chamou por si e pediu-lhe para não o fazer.
32. Numa dessas vezes, o arguido saiu do carro, na Rua ..., no Porto, e, aos gritos, dirigiu esses nomes à assistente na via pública.
33. O arguido não se coibiu de agir como descrito, causando sofrimento, humilhação e vergonha a BB, sua companheira e mãe do seu filho menor, molestando-a psicológica e fisicamente, pretendendo humilhá-la na sua honra e consideração na presença dos seus filhos menores, o que assim o logrou.
34. Ademais, com a sua conduta supra descrita, o arguido pretendeu atingir o bem-estar físico e psicológico do menor CC (quando à data era menor de idade) sabendo que o mesmo era vulnerável devido à sua idade e à sua orientação sexual, pretendendo que se sentisse menorizado e humilhado, o que assim logrou, bem sabendo que o afetava na sua saúde, querendo, ainda, atingi-lo na sua dignidade pessoal, o que também alcançou.»

Esta alegação causa alguma perplexidade, pois, os factos indicados mostram-se devidamente concretizados e temporalmente delimitados, sendo certo que o recorrente também não apresentou qualquer explicação pormenorizada sobre as falhas que apontou.
Assim, os factos 15 a 17 estão perfeitamente descritos em termos de concretização da acção e ocorreram, em termos temporais, quando a assistente estava grávida do filho DD, que sabemos, nasceu a .../.../2015 (facto provado 5), sendo facto notório que uma gravidez humana tem o limite temporal aproximado de nove meses.
Ora, quanto à definição temporal, refere o art. 283.º, n.º 3, al. b), do CPPenal, respeitante aos requisitos de validade da acusação, enquanto peça jurídica, que a acusação contém, sob pena de nulidade (…) a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática.
O grau de possibilidade de concretização temporal da acção pode varia muito dependendo do tipo de crime que está em causa.
Se se analisa, por exemplo, um crime de roubo, é expectável que a acusação determine em que dia e a que horas ocorreram os factos, pois trata-se de um acto singular e particularmente preciso em termos de tempo e lugar, em que assume relevância para a defesa demonstrar que no dia X, à hora Y, o arguido não se encontrava no local alvo do crime mas sim num outro sítio.
Mas se lidamos com um crime de violência doméstica, com factos ocorridos ao longo de um período temporal de meses ou anos e que se traduzem em palavras ou agressões dirigidas a outro, o grau de possibilidade dessa exacta concretização é evidentemente menor. Veja-se que é o próprio tipo que pressupõe a possibilidade de ocorrência de reiteração embora o agente, a final, seja sempre condenado por um único crime, independentemente do período de tempo decorrido e do número de vezes em que ocorreu repetição dos factos.
É evidente que perante este quadro legal e contexto factual não é exigível que as vítimas de violência doméstica tenham presente o dia e hora em que, por exemplo, lhe são dirigidas palavras ou acções como as supradescritas, no fundo, fazendo recair sobre as mesmas a obrigação de anotarem todas as ocorrências. Até porque, e sem prejuízo de questões formais que se possam colocar por força da sucessão de leis no tempo, o que não é o caso –, é indiferente para a configuração do crime se, mantendo-se o contexto subjacente, as palavras ou acções foram dirigidas às 10h00 de uma segunda-feira ou às 16h00 de um domingo.
No caso concreto a situação relatada nos pontos 15 a 17 está perfeitamente descrita em termos de acção e delimitada de modo a permitir a defesa do arguido, que saberá, perfeitamente, dizer se naquele período e naquele local ocorreu a descrita situação, assim se defendendo, como, aliás, aconteceu.
Um entendimento tão estrito da lei, que imponha um rigor descritivo exacerbado e que não permita em alguns casos, fruto das limitações indicadas, a comprovação da prática de crimes por tal razão é desproporcionado e desadequado aos bens jurídicos e valores que a Justiça protege e prossegue, pois deixa desprotegidas as vítimas mais vulneráveis em nome da garantia de direitos de defesa dos arguidos que não deixam de ser mantidos com regras interpretativas mais maleáveis.
E o legislador ao configurar este tipo crime estava certamente ciente das limitações que as vítimas teriam na concretização dos episódios vividos, por vezes, ao longo de toda uma vida.
É nesta perspectiva que interpretamos as exigências de configuração de uma acusação e posteriormente de uma sentença válida, no sentido em que as exigências que resultam do apontado art. 283.º, n.º 3, al b) do CPPenal não são inócuas, repercutindo-se necessariamente na validade da descrição factual que deve constar da decisão final – isto é, se determinada narrativa é bastante para configurar uma acusação válida e permitir o contraditório também tem de o ser relativamente à sentença, sob pena de grave incongruência interna do sistema processual.

Considerando o critério exposto, impõe-se concluir que os factos provados 19 a 21 estão igualmente delimitados no tempo, não concretizando o recorrente qualquer outra deficiência.
O mesmo se diga do enquadramento temporal dos factos provados 24 a 29, sendo certo que os dizeres “puta”, “vaca”, “filha da puta” e “fodo-te já o focinho”, assim como a acção de agarrar a assistente pelo braço e a arrastar para o carro, correspondem aos dizeres e acções que, na terminologia do art. 283.º, n.º 3, al. b), do CPPenal, constituem a narrativa «dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena», no caso, segundo a qualificação da acusação e do acórdão recorrido, por crime de violência doméstica.
O facto provado 32 concretiza o que se refere no ponto anterior (31), isto é, que durante o ano de 2020 e 2021, porque o seu filho DD vinha de casa do arguido sem mudar a roupa interior, BB fazia esse reparo ao arguido; porém, era novamente insultada pelo arguido com os nomes acima referidos e ainda com os epítetos de “puta”, “porca” e “filha da puta”, sendo por isso complementado pelo mesmo, devendo a respectiva leitura ser realizada em conjunto e não de forma isolada.
A acção imputada ao arguido mostra-se, por isso, balizada temporalmente e encontra-se devidamente concretizada.
Por fim, os factos 33 e 34, respeitantes à conduta interior do arguido, respeitam ao conjunto dos factos anteriormente descritos, como decorre da expressão “com a sua conduta supra descrita”, nada mais havendo aí a especificar.

Em face do que fica exposto, não se reconhece que a decisão recorrida sofra de nulidade por falta de fundamentação, improcedendo, nesta parte, o recurso interposto.
E relativamente à invocada contradição insanável da fundamentação, prevista no art. 410.º, n.º 2, al. b), do CPPenal, reconhece-se verificado este vício, mas procede-se à sua reparação nos termos indicados, sem necessidade de reenvio do processo, como requerido.
*
Erro de julgamento em sede de matéria de facto
Interpolada com os vícios da falta de fundamentação e da contradição insanável da fundamentação, suscita o recorrente a impugnação ampla da matéria de facto quanto aos pontos 8, 9, 10, 11, 12, 14, 15, 16, 17, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 40 e 41, numa “técnica jurídica” que o Ministério Público junto da 1.ª Instância apelida, e bem, de desorganizada, fundindo as duas vias de impugnação e criando uma terceira via de sindicância da decisão proferida sobre a matéria de facto que não possuiu sustentação legal.
Na presente decisão, procurando “separar o trigo do joio”, já nos detivemos na análise dos vícios que poderiam inquinar a decisão em termos formais.
Vejamos agora o alegado erro de julgamento em sede de matéria de facto.
Resulta do texto do art. 412.º, n.º 3, do CPPenal que não é uma qualquer divergência que pode levar o Tribunal ad quem a decidir pela alteração do julgado em sede de matéria de facto.
As provas que os recorrentes invoquem e a apreciação que sobre as mesmas façam recair, em confronto com a valoração que o Tribunal a quo efectuou devem revelar que os factos foram incorrectamente julgados e que se impunha decisão diversa da recorrida em sede do elenco dos factos provados e não provados.
Ou seja, não basta estar demonstrada a possibilidade de existir uma solução em termos de matéria de facto alternativa à fixada pelo Tribunal a quo, é necessário que os recorrentes demonstrem que a prova produzida no julgamento só poderia ter conduzido à solução por si pugnada em sede de elenco de matéria de facto provada e não provada e não à consignada pelo Tribunal. E na verdade, é raro o julgamento onde não estão em confronto duas, ou mais, versões dos factos (arguido/assistente ou arguido/Ministério Público ou mesmo arguido/arguido), qualquer delas sustentada, em abstracto, em prova produzida, seja com base em declarações dos arguidos, seja com fundamento em prova testemunhal, seja alicerçada em outros elementos probatórios.
Por isso, haver prova produzida em sentido contrário, ou diverso, ao acolhido e considerado relevante pelo Tribunal a quo não só é vulgar como é insuficiente para, só por si, alterar a decisão em sede de matéria de facto.
Por outro lado, na análise da prova que apresentam na sua impugnação da matéria de facto (alargada) têm os recorrentes de argumentar fazendo uso do mesmo raciocínio lógico e exame crítico que se impõe ao Tribunal na fundamentação das suas decisões, com respeito pelos princípios da imediação e da livre apreciação da prova.
Para tanto, formalmente, têm os recorrentes de cumprir o preceituado no art. 412.º, n.º s 3 e 4, do CPPenal, isto é:
«3 - Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4 - Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.»

Tal formalismo vai ao encontro da ideia de que o reexame da matéria de facto não de destina a realizar um segundo julgamento pelo Tribunal da Relação, mas tão-somente a corrigir erros de julgamento em que possa ter incorrido a 1.ª Instância.
Neste sentido, que é pacífico, decidiu-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-09-2017[12]:
«I - O reexame da matéria de facto pelo tribunal de recurso não constitui, salvo os casos de renovação da prova, uma nova ou uma suplementar audiência, de e para produção e apreciação de prova, sendo antes uma actividade de fiscalização e de controlo da decisão proferida sobre a matéria de facto, rigorosamente delimitada pela lei aos pontos de facto que o recorrente entende erradamente julgados e ao reexame das provas que sustentam esse entendimento – art. 412.º, n.º 2, als. a) e b), do CPP.
II - O recurso da matéria de facto não visa a prolação de uma segunda decisão de facto, antes e tão só a sindicação da já proferida.»

No caso em apreço, o recorrente não cumpriu o dever de alegar com respeito pelo disposto no art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPPenal relativamente à quase totalidade dos factos que impugna, pois não assinalou, nem na motivação nem nas respectivas conclusões, quais as concretas provas que impunham decisão diversa relativamente a cada um dos factos impugnados, com especificação das passagens das declarações ou depoimentos que conduziam a tal solução, limitando-se a um resumo da prova produzida de acordo com a sua subjectiva avaliação, ou a uma remissão integral para as suas declarações, o que manifestamente não cumpre tais requisitos.
Na sua argumentação, o recorrente procurou a maioria das vezes, de forma genérica, substituir a convicção do Tribunal a quo pela sua subjectiva análise da prova, conferindo, desde logo, diferente credibilidade aos diversos meios de prova, desvalorizando em especial as declarações da assistente, mas não invocou ou salientou nesses casos qualquer verdadeiro erro de julgamento, qualquer argumento jurídico objectivado nas passagens da prova produzida que pudessem levar o Tribunal de recurso a considerar, perante a análise dos vários elementos de prova invocados, ter ocorrido uma qualquer falha na formação da convicção do Tribunal a quo e que a solução por si [recorrente] proposta seria a única que se impunha em face da prova produzida.
É o que se passa com os pontos 9, 10, 11, 14, 15, 16, 17, 19, 20, 21, 24, 25, 27, 28, 29, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 40 e 41 expressamente impugnados, mas com argumentos que apelam simplesmente a um segundo julgamento global dos factos, não se apresentando o recurso nesta parte em condições formais de permitir o reexame da matéria de facto por omissão de cumprimento das formalidades descritas no art. 412.º, n.º s 3 e 4 do CPPenal na própria motivação de recurso, e não apenas nas respectivas conclusões.
Acresce que o argumento invocado a propósito dos factos provados 15, 16, 17, 19, 20, 21, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 32, 33, 34, de que os mesmos apenas se baseavam no teor declaratório da assistente, inexistindo qualquer documento médico, episódio de urgência ou testemunha, não tem fundamento legal, pois uma tal avaliação não é proibida por lei, não representando, por natureza, qualquer erro de julgamento.
Tão-pouco tem cabimento a este propósito a invocação da violação do princípio in dubio pro reo, pois, como se vê da motivação supratranscrita, nem a decisão recorrida revela que o Tribunal a quo em algum momento tenha ficado em dúvida quanto ao reflexo da prova produzida no sentido a atribuir à factualidade provada impugnada, concretamente que ficou na dúvida se devia ter dado como provado ou como não provados os pontos de facto impugnados, nem se reconhece que a prova produzida só podia ter conduzido a tal estado de dúvida.

Assim, nos casos referidos, atentas as falhas indicadas na formulação da impugnação, e em concreto também por inexistir neste segmento qualquer outro vício de conhecimento oficioso, deve ter-se por definitivamente assente a matéria de facto fixada, devendo o recurso nesta parte ser rejeitado por se mostrar afastada a possibilidade de ser formulado convite ao aperfeiçoamento, conforme resulta do disposto no art. 417.º, n.º 4, do CPPenal.
Neste sentido, recusando o dever de convite ao aperfeiçoamento no caso de deficiência da própria motivação, como ocorre no caso em apreço, vejam-se, entre muitos outros, os acórdãos da Relação de Coimbra de 09-01-2012, Proc. n.º 7/10.0GAAVR.C1[13], do Supremo Tribunal de Justiça de 19-05-2010, Proc. n.º 696/05.7TAVCD.S1 - 5.ª Secção[14], e do Tribunal Constitucional de 14-10-2014, onde se decidiu «Não julgar inconstitucional a norma do artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que a falta, na motivação e nas conclusões de recurso em que se impugne matéria de facto, da especificação nele exigida tem como efeito o não conhecimento desta matéria e a improcedência do recurso, sem que ao recorrente seja dada oportunidade de suprir tais deficiências», salientando-se no seu texto que «a questão de constitucionalidade suscitada nos presentes autos não se confunde com uma outra - essa sim já objeto de vários juízos positivos de inconstitucionalidade (cfr., entre outros, os acórdãos n.ºs 259/2002, 405/2004, 357/2006 e 485/2008, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt) – também incidente sobre o artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, mas desta feita quando interpretado no sentido de que a falta, apenas nas conclusões da motivação do recurso– e não na motivação- das menções aí referidas determina a imediata rejeição do recurso, sem possibilidade de convite ao aperfeiçoamento.»[15]

Quanto aos pontos de facto relativamente aos quais se podem considerar minimamente cumpridas as exigências previstas no art. 412.º, n.º s 3 e 4, do CPPenal, há que concluir que também não assiste razão ao recorrente.
Assim, quanto aos pontos 8, 22, 23, 26 e 31, alega o recorrente que os mesmos se reportam a insultos proferidos pelo arguido contra a ofendida e que resulta das declarações da mesma que inexistia qualquer supremacia daquele para com esta, pois a mesma reagia aos insultos, havendo discussões e insultos recíprocos, situação que não merece tutela legal.
Aponta excerto das declarações da ofendida, de 00:09:50 a 00:11:20 – com a duração de um minuto e trinta segundos – para corroborar a sua pretensão.
Nessa parcela das declarações a assistente BB, quando perguntada se reagia aos insultos do arguido, respondeu: ”Sim, muitas vezes reagia, não sou de ferro” e concretizando o que dizia mencionou que quando ele a chamava de baleia perguntava-lhe ele não se via ao espelho, que também estava gordo.
Resulta da perspectiva do recorrente que a vítima de insultos, humilhações ou agressões será apenas aquela que “cala e come”, pois qualquer reacção, qualquer tentativa de defesa configurará um acto de agressão.

Ora, como bem se afirma no acórdão desta Relação do Porto de 16-03-2022[16]: «[a] reciprocidade das agressões como forma de desconsideração da tipicidade, só serão de atender quando no curso dos episódios se desfaz a polaridade agressor-vítima, e assim a intenção de domínio e de humilhação de um deles sobre o outro.»
A explicação é simples: «(…) o género humano é naturalmente defensivo e em certa medida reativo, por isso, no âmbito das discussões incrementadas pelo arguido agressor, são manifestações, pelo menos, humanamente esperadas (embora ilícitas), as reações apuradas da assistente, quando retorquiu nomes injuriosos, sem que isso desqualifique de forma alguma a conduta delitual do arguido, como integrante da violência doméstica. A reacção da vítima, desde que desprovida do dolo agressor e da intensidade do mesmo, nunca poderá desqualificar a imputação pelo crime de violência doméstica.
A reciprocidade é revelante quando no âmbito de uma discussão e agressões, deixa de se reconhecer quem é o verdadeiro agressor, e ambos o são reciprocamente, realidade que nada tem que ver com o que se apura nos autos.»

O recorrente pretende, no fundo, enquadrar a assistente como agressora por a mesma ter reconhecido, em minuto e meio das suas declarações, que retorquia, apelidando aquele de gordo quando o mesmo a chamava de baleia.
O recorrente olvida cerca de duas horas e quarenta minutos de declarações e depoimentos da assistente e dos filhos CC e EE, considerados credíveis e relevantes pelo Tribunal a quo, no decurso dos quais são relatados episódios de agressões, injúrias e desconsiderações em que encontramos um único agressor – o arguido, aqui recorrente – e vários destinatários dessas condutas, a assistente e os filhos.
Acrescente-se, aliás, que a motivação constante da decisão recorrida quanto à credibilidade atribuída às declarações da assistente e depoimentos dos filhos mostra-se respaldada na gravação da prova produzida em julgamento, de cuja audição sobressaem narrativas sentidas, com manifestação de emoção concomitante com a descrição de alguns episódios mais significativos, o que nos dá nota do elevado patamar de credibilidade a atribuir àquelas descrições, tudo a conferir inteira congruência à convicção que o Tribunal a quo formou.
Assim, a prova produzida, na sua globalidade, e não resultante de pequeníssimos excertos, revela que não existiu nenhuma relação de agressividade recíproca e que o recorrente foi o único responsável pelo ambiente de violência doméstica.

Relativamente aos pontos 12 da matéria de facto provada ([d]urante a relação, o arguido dizia a BB que o seu trabalho de empregada de limpeza, “era um trabalho de merda”, rebaixando-a constantemente, bem como a ameaçou, afirmando “tiro-te o filho, não vais mais vê-lo”) e 16 da matéria de facto não provada (a assistente apresentou a queixa junta aos autos no dia 12 de julho de 2021, por causa do arguido ter iniciado uma relação amorosa com outra mulher), o recorrente retoma a argumentação de que a instauração do presente inquérito se prende com a vontade de o arguido passar mais tempo com o seu filho e de ter iniciado uma nova relação, remetendo para parcela das suas declarações – correspondente a um minuto de gravação – onde menciona que os seus problemas começaram quando, em Julho, apresentou ao filho DD uma pessoa que havia conhecido em Maio.
É a posição do arguido, defensável, mas não passa de uma outra versão dos factos apenas apoiada na sua narrativa e, supostamente, nos documentos juntos com a contestação.
Porém, esta explicação e o conteúdo das mensagens juntas com a contestação, foi claramente rebatida pelas declarações da assistente (com início às 11h50 do dia 23-01-2023) quando explicou as razões pelas quais apenas se queixou algum tempo depois da separação (00:01:54 a 00:17:10), numa altura em que se sentiu mais confiante, mais forte, vendo nessa atitude a forma de não continuar a ser insultada e maltratada pelo recorrente.
Não obstante, sempre se dirá que mesmo que a queixa tivesse tido a motivação invocada, isso não permitia concluir, como pretende o recorrente, que os factos denunciados eram falsos.

Face ao que fica enunciado, impõe-se concluir que a impugnação ampla da matéria de facto levada a cabo pelo recorrente contém deficiências que não permitem a efectiva avaliação da prova na grande maioria das situações invocadas, improcedendo nas demais que especificamente se apreciaram.
*
Por fim, o recorrente questiona a medida concreta da pena única de 3 (três) anos e 6 (seis) meses em que foi condenado, pugnando pela aplicação de uma pena única de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Argumenta que é pessoa inserida socialmente, que tem apoio familiar e é profissionalmente activo, mostrando-se a pena cominada excessiva, não proporcional às necessidades de prevenção que o caso suscita. Invoca que não praticou os factos por que foi acusado.

Em sede de escolha e determinação da medida concreta da pena principal, o Tribunal a quo realizou a seguinte análise (transcrição):
«2.4.2. DA MEDIDA CONCRETA DA PENA
Feito pela forma descrita o enquadramento jurídico-penal das condutas do arguido importa agora determinar a natureza e medida da sanção a aplicar.
O crime de violência doméstica previsto no artº 152º, nº 1, als. b) e d) e nº 2 al. a), do Código Penal, é punível com pena de prisão de dois a cinco anos.
Nos termos do artº 40º, nº 1, do Código Penal a aplicação de penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
Para determinar a pena concreta recorre-se ao critério global previsto no nº 1 do art. 71º do CP, o qual dispõe que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”. Donde se extrai que a determinação da medida da pena é feita em função da culpa e da prevenção - especial e geral positiva ou de integração -, concretizadas a partir da eleição dos elementos para elas relevantes.
Na determinação do substrato da medida da pena, isto é, da totalidade das circunstâncias do complexo integral do facto (fatores de medida da pena) que relevam para a culpa e a prevenção, há que atender a “todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele” (art. 71º, nº 2, do CP).
Consideremos agora as circunstâncias relevantes em termos de medida da pena concreta.
As exigências de prevenção geral são significativas, relativamente ao crime de violência doméstica atendendo ao elevado número de crimes desta natureza praticados e à necessidade de desincentivar o seu cometimento;
O grau de ilicitude, refletido no facto e no desvio de valores impostos pela ordem jurídica, é elevado no que toca ao crime de violência doméstica;
O dolo é direto, porquanto o arguido representou claramente os factos criminosos e atuou com intenção de os realizar, tendo tais factos constituído os objetivos primeiros e finais da sua conduta;
Por outro lado, relativamente às consequências do crime, saliente-se, desde logo, que os assistentes foram humilhados, prejudicando não apenas o seu bem-estar psíquico e físico, como condicionando a sua privacidade e a sua liberdade de determinação.
Além do mais, com relevância para o caso em apreço, importa salientar que é consentâneo com as regras da experiência que condutas como as praticadas pelo arguido têm sempre um potencial relevante ao nível do bem-estar pessoal dos ofendidos o que, necessariamente, foi abalado e posto em causa.
O crime de violência doméstica e a forma da sua execução reclamam particulares exigências de prevenção geral, ligadas à satisfação do interesse público de defesa da sociedade que, pela natureza e gravidade dos factos, sente uma necessidade acrescida de ver restabelecida a confiança na norma infringida, protetora de valor nuclear – a tutela da dignidade da pessoa humana.
Por outro lado, o arguido não tem antecedentes criminais e está inserido na sociedade.
Nesta conformidade, mostram-se ajustadas, adequadas e proporcionadas, as seguintes penas: relativamente ao crime de violência doméstica praticado contra a assistente BB a pena de 2 anos e 8 meses de prisão e relativamente ao assistente CC a pena de 2 anos de 6 meses de prisão.
A terceira operação a realizar é o cúmulo jurídico das referidas penas individuais que o tribunal aplicou ao arguido.
A justificação para este regime especial de punição radica nas finalidades da pena, exigindo uma ponderação da culpa e das razões de prevenção (prevenção geral positiva e prevenção especial), no conjunto dos factos incluídos no concurso, tendo presente a personalidade do agente.
Na determinação da pena única a aplicar, há que fazer uma nova reflexão sobre os factos em conjunto com a personalidade do arguido, pois só dessa forma se abandonará um caminho puramente aritmético da medida da pena para se procurar antes adequá-la à personalidade unitária que nos factos se revelou.
Esta pena única é o resultado da aplicação dos “critérios especiais” estabelecidos no mesmo art. 77º, nº 2, não esquecendo, ainda, os “critérios gerais” do art. 71º do CP.
A moldura abstrata do concurso de penas, para o arguido, tem como limite mínimo a pena de dois anos e oito meses de prisão e como limite máximo a pena de cinco anos e dois meses de prisão.
Assim, a pena única a aplicar ao arguido situar-se-á entre os limites máximo e mínimo acima indicados.
Por isso, atendendo aos respetivos factos no conjunto (conexão entre os crimes cometidos gravidade do ilícito global) e à personalidade unitária (adequada aos factos cometidos) do arguido, não esquecendo, relativamente ao ilícito global, quer as exigências de prevenção geral e especial (sendo ambas elevadas), quer as condições de vida do arguido, julga-se ajustada e adequada, a pena unitária de três anos e seis meses de prisão.
Com efeito, a pena unitária de prisão acima indicada atende de modo suficiente ao efeito agravante resultante da pluralidade de crimes cometidos, sendo proporcionada, considerando a conexão entre os factos concorrentes e a personalidade do arguido, a sua idade e o efeito previsível da pena sobre o seu comportamento futuro.
A quarta e última operação a realizar impõe que o tribunal fundamente especificadamente, se deve ou não substituir a pena única de prisão encontrada.
Impõe-se, agora, determinar se é caso de substituir a pena de prisão por uma pena não detentiva ou por uma pena detentiva prevista na lei.
Entre as medidas não detentivas há então que ponderar, a suspensão da execução da prisão, v.g. sujeita ao cumprimento de obrigações e/ou de regras de conduta ou até complementada com o regime de prova (arts. 50º a 54º do CP).
Constitui princípio fundamental do sistema punitivo do Código Penal (art. 40º) o da preferência fundamentada pela aplicação das penas não privativas da liberdade, consideradas mais eficazes para promover a integração do delinquente na sociedade e dar resposta às necessidades de prevenção geral e especial.
Nos termos do art. 50º do Código Penal,
“1 - O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
2 - O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.
3 - Os deveres e as regras de conduta podem ser impostos cumulativamente.
4 - A decisão condenatória especifica sempre os fundamentos da suspensão e das suas condições.
5 - O período de suspensão é fixado entre um e cinco anos.”
O art. 50.º do CP consagra um poder-dever, ou seja, um poder vinculado do julgador, que terá que decretar a suspensão da execução da pena, na modalidade que se afigurar mais conveniente para a realização daquelas finalidades, sempre que se verifiquem os necessários pressupostos.
Sendo uma medida penal de conteúdo reeducativo e pedagógico - Maia Gonçalves (Código Penal Português, 18.ª Edição, pág. 215) -, cujo pressuposto material consiste, na “… adequação da mera censura do facto e da ameaça da prisão às necessidades preventivas do caso, sejam elas de prevenção geral, sejam de prevenção especial…não pode o tribunal afastar a suspensão da execução da pena de prisão com base em considerações assentes na culpa grave do arguido - Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código Penal, Univ. Católica Editora, 2008, pág. 195.
“Para esse efeito, é necessário que o julgador, reportando-se ao momento da decisão e não ao da prática do crime, possa fazer um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento do arguido, no sentido de que a ameaça da pena seja adequada e suficiente para realizar as finalidades da punição; este juízo de prognose favorável ao comportamento futuro do arguido pode assentar numa expectativa razoável de que a simples ameaça da pena de prisão será suficiente para realizar as finalidades da punição e, consequentemente, a ressocialização (em liberdade) do arguido - Ac STJ 27-01-2009.
E a ponderação da personalidade do arguido, a conduta anterior e posterior aos factos retratada neste acórdão, bem como as circunstâncias em que os crimes foram praticados, estão diretamente associadas a finalidades de prevenção especial e não a quaisquer fatores relacionados com o grau de culpa do agente, cuja sede própria de apreciação é a escolha e determinação concreta da pena, constituindo o limite máximo e inultrapassável desta.
A suspensão da execução da pena que, embora efetivamente pronunciada pelo tribunal, não chega a ser cumprida, por se entender que a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para realizar as finalidades da punição, deverá ter na sua base uma prognose social favorável ao réu, a esperança de que o réu sentirá a sua condenação como uma advertência e que não cometerá no futuro nenhum crime (Ac. do STJ de 25.10.2007, in http://www.dgsi.pt).
O tribunal deverá correr um “risco prudente”, uma vez que, como sugestivamente já há muito anotaram Leal-Henriques e Simas Santos, em anotação ao art. 50.º do Código Penal, “…esperança não é seguramente certeza…”, mas, subsistindo dúvidas sobre a capacidade do arguido para compreender a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, então, deverá a prognose ser negativa.
São as razões de prevenção geral, traduzidas nas exigências mínimas e irrenunciáveis de salvaguarda da crença da sociedade, na manutenção e no reforço da validade da norma incriminadora violada, que determinam a possibilidade de reinserção social em liberdade que inspira o instituto da suspensão da execução da pena.
Mesmo que aconselhada à luz das exigências de socialização do condenado, a suspensão da execução da pena não poderá ter lugar, se a tal se opuserem a tutela dos bens jurídicos violados e as expectativas comunitárias, quanto à capacidade dos mecanismos e das instituições previstos na ordem jurídica para repor a validade e a eficácia das normas que a integram e de as fazerem respeitar.

Ora, em face de tudo, quanto ao passado e condições de vida atuais do arguido e dos assistentes ficou provado acima e já se pôs até em relevo e ao que daí se extrai quanto à sua personalidade, afigura-se-nos que tais circunstâncias constituem factos que permitem elaborar o prognóstico de que a simples censura pública e solene do seu crime e a ameaça da execução da pena de prisão bastarão para o afastar da criminalidade e satisfazer ao mesmo tempo as necessidades concretas de reprovação do seu crime e de prevenção de outros.
Por outro lado, não se vislumbram razões de prevenção geral que desaconselhem a suspensão da execução da pena pela prática do crime em apreço, sendo, então, de entender que, no caso destes autos, os fins das penas serão melhor realizados se se declarar tal suspensão.
No entanto, tal suspensão só satisfaz as necessidades prementes de prevenção especial positiva do arguido, se sujeito a regime de prova, também por imposição legal, o qual deverá assentar num plano individual de readaptação, com incidência na vertente de frequência do Programa para Agressores de Violência Doméstica (PAVD), com a duração mínima de 18 meses, dinamizado para DGRSP, com acompanhamento pelos Serviços de Reinserção Social à luz do artº 494º, nº 3, do Código de Processo Penal.
Por tudo dito, a pena de prisão aplicada deve ser suspensa, com regime de prova, nos termos dos artº 50º, nº 1 e 5 e 53º, nº 1, 2 e 3, do Código Penal.»

Resulta da leitura das conclusões e alegações do recurso respeitantes a este segmento que o recorrente se espraia em considerações genéricas e citações, mas, mais uma vez, não concretiza qualquer argumento que possa servir de fundamento à alteração do decidido por representar verdadeiro erro de direito.
O recorrente apela à excessividade da pena única aplicada invocando a sua inserção socialmente, o apoio familiar de que beneficia e a circunstância de ser profissionalmente activo.
Ora, como se vê da transcrição supra, o Tribunal a quo já teve em consideração os 1.º e 3.º factores apontados, não explicando o recorrente, perante os crimes por que foi condenado, como tais circunstância podiam determinar a redução da pena, posto que também nenhuma interferência tiveram no [não] cometimento daqueles.
Acresce que o segundo dos factores mencionados não consta do elenco da matéria de facto provada, pelo que não pode ser invocado a favor do arguido. Tão-pouco a negação da prática dos factos é argumento que, nesta fase da decisão, possa ser invocado.
A propósito da reavaliação da pena, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vem entendendo há muito que «[e]m matéria de medida concreta da pena, apesar de se mostrar hoje afastada a concepção da medida da pena concreta, como a «arte de julgar» substituída pela de autêntica aplicação do direito, aceitando-se a sindicabilidade da correcção das operações de determinação ou do procedimento, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, a falta de indicação de factores relevantes, o desconhecimento pelo tribunal ou a errada aplicação dos princípios gerais de determinação, bem como a questão do limite ou da moldura da culpa e a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, para controlo do qual o recurso de revista seria inadequado, salvo perante a violação das regras da experiência ou a desproporção da quantificação efectuada.»[17]

No mesmo sentido, entre outros, entendeu-se no acórdão da Relação de Coimbra de 05-04-2017[18] que:
«I - No quadro da moldura penal abstracta, a fixação [da pena] estabelece-se entre o mínimo, em concreto imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, e o máximo que a culpa do agente consente: entre estes limites satisfazem-se as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização.
II - Relativamente à determinação do quantum exacto de pena [só] será objecto de alteração se tiver ocorrido violação das regras da experiência ou se se verificar desproporção da quantificação efectuada.»

Esta jurisprudência reflecte a ideia, que perfilhamos, de que a alteração da medida concreta da pena em sede de recurso deve respeitar a zona de liberdade do julgador em 1.ª Instância ao fixar o quantum da pena, desde de que se situe entre os referidos limites que satisfazem as necessidades de prevenção especial (o mínimo necessário à salvaguarda das expectativas comunitárias e o máximo balizado pela culpa do agente) e não ocorra violação das regras da experiência comum ou manifesta desproporção na pena aplicada, o que claramente não ocorreu no caso dos autos.
Com efeito, atenta a personalidade do arguido e a gravidade dos factos, mostra-se perfeitamente justificada, e dentro dos parâmetros normais neste tipo de operação, a opção pela aplicação de uma pena única em função da soma da pena parcelar mais elevada (2 anos e 8 meses) – o mínimo legal – ao resultado da compressão a um terço da outra pena (10 meses de uma pena de 2 anos e 6 seis meses).
Para além do já enunciado, salienta-se ainda que a pretensão de fixação de uma pena única de 2 anos e 6 meses de prisão não cumpre o critério legal prescrito no art. 77.º, n.º 2, do CPPenal, de acordo com o qual o limite mínimo da pena do concurso corresponde à mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, que no caso concreto é de 2 anos e 8 meses de prisão.
Assim, porque nas operações realizadas para determinação da medida concreta da pena não se detecta qualquer desconformidade com a lei ou desproporcionalidade na sua fixação, nada se impõe alterar.
O recurso não pode, pois, proceder.
*
III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em:
a) - Reconhecer verificado o vício da contradição na fundamentação, mas saná-lo nos termos enunciados;
b) - Negar total provimento ao recurso, rejeitando-se parcialmente o mesmo no segmento da impugnação ampla da matéria de facto, nos termos supraconsignados, e, em consequência, confirmar a decisão recorrida, sem prejuízo da rectificação enunciada em a).

Custas pelo recorrente, fixando-se em 4,5 UC a taxa de justiça devida (arts. 513.º, n.ºs 1 e 3, do CPPenal e 8.º, n.º 9, do RCP e Tabela III anexa).



Porto, 11 de Outubro de 2023
(Texto elaborado e integralmente revisto pela relatora, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo esquerdo da primeira página)
Maria Joana Grácio
Nuno Pires Salpico
Maria do Rosário Martins
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[1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção.
[2] Certamente por lapso foi referida a al. c), pois a al. a) do n.º 1 do art. 379.º é que efectua uma tal remissão. Por outro lado, a referência no recurso à al. b) do n.º 2 do art. 379.º do CPPenal – que não existe - deve-se igualmente a lapso de escrita.
[3] Proc. n.º 388/15.9GBABF.S1 – 3.ª Secção, acessível in www.stj.pt (Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de Acórdãos).
[4] Cf. nesse sentido, entre muitos outros, acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 08-09-2010, Proc. n.º 20/09.0PEPDL.L1.S1, da Relação de Coimbra de 26-10-2011, Proc. n.º 586/07.9GBAND.C1 e da Relação de Évora de 18-01-2013, Proc. n.º 10/09.2GBODM.E1, acessíveis in www.dgsi.pt.
[5] Proc. n.º 36/06.8GAPSR.S1, acessível in www.dgsi.pt.
[6] Proc. n.º 495/11.7GBTBABF.E1, acessível in www.dgsi.pt
[7] Assim se entendeu no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 18-01- 2013, Proc. n.º 10/09.2GBODM.E1, acessível in www.dgsi.pt, onde se defendeu que «I - A exigência legal da enumeração na sentença dos factos provados e não provados visa permitir que a decisão, em processo penal, demonstre que o tribunal considerou especificadamente toda a matéria de prova que foi trazida à apreciação e que tem relevo para a decisão, por ter sido incluída na acusação, ou na pronúncia, e na contestação ou resultante da discussão da causa e com relevância para a decisão.
II - Não se configura, porém, como imposição de inclusão de factos sem relevância para a decisão da causa ou de factos que decorram implicitamente de outros mencionados e/ou os contrariem».
Também no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19-03-2014, Proc. n.º 811/12.4JACBR.C1, acessível in www.dgsi.pt, foi decidido que: «1.- A elencação dos factos provados e não provados refere-se apenas aos factos essenciais à caracterização do crime e circunstâncias relevantes para a determinação da pena e não aos factos inócuos, mesmo que descritos na contestação;
2.- O que importa é que da conjugação da matéria da acusação e da defesa, resulte claro que o tribunal apreciou os factos relevantes aduzidos por uma e por outra, relevantes para a decisão a proferir».
[8] Neste sentido, entre muitos outros, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-01-2018, Proc. n.º 388/15.9GBABF.S1 – 3.ª Secção, acessível in www.stj.pt (Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de Acórdãos).
[9] Relatado por Pires da Graça no Âmbito do Proc. n.º 40/11.4JAAVR.C2.S1, acessível in www.stj.pt.
[10] Sobre esta questão, embora chegando a solução diversa no caso concreto, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21-03-2018, Proc. n.º 1188/15.1PHLRS.L1.S1 - 3.ª Secção, onde se decidiu (sumário):
«III - Decorre do art. 426.º do CPP que, quando se reconheça a verificação de um dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, a decisão de reenvio constituirá a excepção e só tem lugar se «não for possível decidir da causa» no tribunal de recurso, cabendo em regra a sanação do vício ao próprio tribunal de recurso.
IV - A decisão de aditamento de um ponto aos factos provados, levada a cabo pelo Tribunal da Relação no acórdão recorrido, surge por reconhecimento da existência do vício invocado pelo arguido – insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, prevista no art. 410.º, nº 2, al. a), do CPP - e tendo considerado ser possível decidir com os elementos constantes dos autos, procedeu à sanação do vício e consequentemente não determinou o reenvio do processo para a 1.ª instância. Esta forma de sanação do vício não excede os poderes de cognição da Relação (arts. 428.º, 410.º, n.º 2, al. a), e art. 426.º, n.º 1, todos do CPP).
V - Constitui jurisprudência corrente do STJ a orientação interpretativa dos arts. 1.º, al. f) e 358.º, n.º 1, ambos do CPP, segundo a qual inexiste alteração substancial dos factos da acusação ou da pronúncia quando na sentença melhor se concretizam os factos ali descritos. O aditamento de factos levado a cabo pelo Tribunal da Relação consubstancia uma alteração não substancial de factos, na medida em que se traduz num mero facto concretizador da conduta criminosa do arguido e não decorre a imputação para o mesmo de crimes diversos ou a agravação dos limites máximos da pena aplicável.
VI - O art. 424.º, n.º 3, do CPP limita o dever de notificação do arguido à alteração não conhecida do arguido, pelo que tendo o arguido conhecimento da eventual alteração uma vez que a questão foi suscitada pelo próprio recorrente (nas alegações de recurso interposto do acórdão da 1.ª instância), a mesma não carece de ser notificado ao arguido. Inexiste nesta interpretação qualquer violação do princípio do contraditório ou diminuição das garantias de defesa do arguido.»
[11] Nesse sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de processo Penal, Universidade Católica Editora, 3.ª edição, anotação 2 ao art. 430.º, pág. 1158.
[12] Proc. n.º 772/10.4PCLRS.L1.S1 – 3.ª Secção, acessível in www.stj.pt (Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de Acórdãos).
[13] Acessível in www.dgsi.pt, aí se concluindo que «Se o recorrente não faz, nem nas conclusões, nem no texto da motivação, as especificações ordenadas pelos números 3 e 4, do artigo 412.º do C. Proc. Penal, não há lugar ao convite à correcção das conclusões, nos termos do n.º 3, do art.º 417º, do mesmo Código, uma vez que o conteúdo do texto da motivação constitui um limite absoluto que não pode ser extravasado através do referido convite
[14] Acessível in www.stj.pt (Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de Acórdãos), aí se perfilhando o entendimento de que «VIII - O convite ao aperfeiçoamento pressupõe que não se esteja perante uma deficiência substancial da própria motivação, que necessariamente se reflectirá em deficiência substancial das conclusões. IX - Não se estando perante deficiências relativas apenas à formulação das conclusões mas perante deficiências substanciais da própria motivação, o princípio constitucional do direito ao recurso em matéria penal não implica que ao recorrente seja facultada oportunidade para aperfeiçoar em termos substanciais a motivação do recurso quanto à matéria de facto.»
[15] Também o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 685/2020, de 26-11, proferiu decisão em que julgou «inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a norma constante dos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal segundo a qual a falta de indicação, nas conclusões da motivação do recurso em que o arguido impugne a decisão sobre a matéria de facto, das menções contidas nas alíneas a), b) e c) daquele n.º 3, pela forma prevista no referido n.º 4, tem como efeito o não conhecimento da impugnação daquela matéria e a improcedência do recurso nessa parte, sem que ao recorrente seja dada a oportunidade de suprir tal deficiência».
[16] Relatado por Nuno Pires Salpico no âmbito do Proc. n.º 1052/20.2GBVNG.P1, acessível in www.dgsi.pt.
[17] Cf., entre muitos outros, acórdão de 11-10-2007, Proc. n.º 07P3171, acessível in www.dgsi.pt.
[18] Cf. Proc. n.º 47/15.2IDLRA.C1, acessível in www.dgsi.pt.