Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
72/17.9JACBR-E.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: AIRISA CALDINHO
Descritores: PROVA PROIBIDA
ZARAGATOA BOCAL
Nº do Documento: RP2017101172/17.9JACBR-E.P1
Data do Acordão: 10/11/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 730, FLS.280-286)
Área Temática: .
Sumário: Não constitui prova proibida a prova emergente da recolha de saliva para identificação de ADN, através de zaragatoa bucal, mesmo contra a vontade do visado, ordenada por autoridade judicial nos termos do artº 172º1 CPP.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 72/17.9JACBR-E.P1
2.ª Secção Criminal
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Águeda
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Acordam, em conferência, na 2.ª Secção Criminal:
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I. No processo de inquérito n.º 72/17.9JACBR do Tribunal da Comarca de Aveiro – Águeda – Juízo Inst. Criminal, o arguido B… recorre do despacho judicial que autorizou a recolha de saliva através de zaragatoa bucal, apresentando as seguintes conclusões:
- “ ...
1. O aqui recorrente vem acusado da prática de um crime de roubo agravado p. e p. pelo artigo 210.º n.° 1 e 2 alínea b), tendo por referência o artigo 204.º n.º 2 alínea f); um crime de sequestro p. e p. pelo artigo 158.º n.º 1; um crime de burla informática p. e p. pelo artigo 221° n.º1 todos do Código Penal.
2. Encontrando-se desde o dia 24 de Fevereiro de 2017 sujeito à medida de coação de prisão preventiva, que vem cumprindo desde então no EP C….
3 Por despacho datado de 12 de Julho de 2017, o Meritíssimo Juiz de Instrução autorizou a recolha de saliva ao aqui recorrente através de zaragatoa bucal para comparação com vestígios biológicos recolhidos no âmbito do processo de investigação.
4. Para o qual o arguido não prestou qualquer tipo de consentimento, sendo o mesmo consumado no dia 21 de Julho de 2017.
5. O aqui recorrente, vê ainda a ser lhe vedado o acesso aos autos, estando assim impedido objectivamente de contraditar tal promoção levada a cabo inicialmente pelo Ministério Público.
6. Exame esse que vem agora a ser ordenado pelo Meritíssimo Juiz de Instrução através do despacho recorrido.
7. Estamos perante um tipo de exame que necessita para a sua execução do consentimento do arguido, caso não se verifique, constituiu um meio de prova evasivo que colide com os seus direitos liberdades e garantias constitucionalmente protegidos.
Pelo que, exames deste foro apenas podem ser levados a cabo quando não existam nos autos, ou caso não possam a vir a existir outros meios de prova instrumentais que possam ir ao encontro da descoberta da verdade material e a realização da justiça.
9. Entende-se assim, que se pondere a necessidade da realização de tal exame, enquanto uma diligência útil, relevante e necessária para a descoberta da verdade, em função das demais provas recolhidas ou a recolher futuramente.
10. Pois o exame de recolha de saliva configura uma violação da integridade física do arguido, quando é realizada contra a sua vontade e quando se recorre a meios coactivos para a efectivar.
11. De tal modo, que o Meritíssimo Juiz de Instrução deveria ter apreciado em concreto no seu despacho tais fundamentos que ditem a necessidade de recolha de amostras de saliva através de zaragatoa bucal.
12. Assim como deveria ter fundamentado, e concretamente que para provar ou não tais factos x ou y não existem, nem se vislumbre que venham a existir outros meios de prova que nos possam levar ao desiderato que é alvitrado com a realização da presente diligência.
13. Não indicando ainda, se para provar tais factos a zaragatoa bucal é a única e exclusiva forma de obter prova, ou se existem outros meios e métodos capazes para a obtenção da prova pretendida que possam atingir o mesmo desiderato.
14. O tribunal o quo limita-se apenas a dizer, grosso modo, que a diligência visa a descoberta da verdade material, ao indicar apenas que no âmbito da investigação foram recolhidos vestígios biológicos que podem contribuir para a identificação dos autores dos factos.
15. Sendo omisso quanto ao facto de a identificação dos autores poder ser objecto de qualquer outra forma ou meio de prova.
16. Ora, na nossa humilde opinião tal concretização factual deverá ser determinante para que, em bom rigor se possa ordenar que o arguido possa vir a ser submetido a zaragatoa bucal sem o seu consentimento claro e expresso.
17. Pois tal método evasivo de obtenção de prova só poderá efectuar-se quando a realização da justiça, e, por conseguinte, a descoberta da verdade material não possa alcançar-se através de outras diligências.
18. O que no caso em questão não se verifica, uma vez que existem uma panóplia de outras diligências capazes de apurar o pretendido com a recolha de saliva.
19. E nesse sentido o Ac. Do Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 172/92 de 6 de Maio, disponível em www.tribunalconstitucional.pt entende que "O processo penal de um Estado de direito há-de cumprir dois objectivos fundamentais: assegurar ao Estado a possibilidade de realização do seu jus punendi e oferecer aos cidadãos as garantias necessárias para os proteger contra os abusos que possam cometer-se no exercício do poder punitivo (...)"
20. "Um tal processo há-de, por conseguinte, ser um processo equitativo (a due process, a fair process), que tenha por preocupação dominante a busca da verdade material, mas sempre com inteiro respeito pela pessoa do arguido, o que, entre o mais, exige que se assegurem o este todas as garantias de defesa e que se não admitam provas que não passem pelo crivo do contraditório (...)" (negrito e sublinhado nossos).
21. Ora, o facto de ter sido imposto ao aqui recorrente a sua sujeição a tal exame, o juiz a quo apenas deslumbrou a descoberta da verdade material a todo o custo.
22. Não tendo assim em conta na sua decisão o respeito pela pessoa do arguido, assim como, não lhe assegurou todas as suas garantias de defesa, esquivando-se assim ao contraditório.
23. Pois, esta sujeição ao aqui recorrente a submeter-se a diligências de prova, só deverá ser coactivamente imposta, tal como se verifica quanto à aplicação da medida de coação de prisão preventiva, quando a realização da Justiça não se possa alcançar através de outras diligências.
24. E nessa linha o Professor Figueiredo Dias entende que o exame consiste "um verdadeiro meio de coacção processual pelo que se o objecto for uma pessoa "(…) esta vê-se constrangido a sofrer ou a suportar uma actividade de investigação sobre si mesma (...),25. E por isso, "as normas que os permitem não poderão de deixar de ser entendidas e aplicadas
nos termos mais estritos tal coma sucede com os restantes meios de coacção, máxime com a prisão preventiva: em um conto por outro caso a liberdade é a regra e a restrição daquela, a excepção" (negrito e sublinhado nossos).
26. Não se verifica assim no caso sub judice, nenhuma situação de excepção de necessidade e de subsidiariedade, uma vez que existem outros meios de prova, como o testemunho do ofendido.
27. Com a sua decisão o Meritíssimo Juiz violou, entre outras, as normas contidas nos artigos 25.º, 26.º e 32.º 8 todos do CRP, o artigo 8° da CEDH, o artigo 12° da DUDH, os artigos 126.º n.° 1 e 2 alíneas a) e c), bem como o artigo 172.º n.º1 ambos do CPP.
28. Para além de violar o disposto na norma do artigo 172° n.° 1 do CPP, pois ordena no seu despacho que a recolha de saliva deve ser feita mesmo que "ainda que contra a vontade dos arguidos".
29. Da mesma forma que viola o disposto no artigo 126.º n.2 1 e 2 alínea a) e c) e n.º 3 do CPP, quando interpretada no sentido de considerar válida e, consequentemente susceptível de ulterior utilização e valoração, a prova obtida através da colheita efectuada quando o arguido manifeste a sua expressa recusa em colaborar ou permitir tal colheita.
30. Pois a colheita de saliva constituiu uma agressão significante, que não carece de dignidade jurídico penal, uma vez que viola o direito à integridade física de um arguido, constituindo-se assim como uma auto-incriminação por parte deste.
31. Estamos perante um direito basilar de cada pessoa, sendo o mesmo inerente à própria dignidade humana.
32. Assim, a realização de recolha de saliva apenas não fere tal direito, quando o arguido preste o seu consentimento livre e esclarecido, como se prevê no direito português vigente, pois só nesses casos é que se legitima a submissão a uma colheita de vestígios biológicos para análise de amostras.
33. E nessa linha o Professor Manuel Costa Andrade sustenta que "no direito positivo vigente em Portugal não é juridicamente admissível impor a recolha coactiva de substâncias biológicas nem a sua ulterior e não o consentida análise genética com vista à determinação do perfil genético para fins de processo criminal",
34. Pois não existe "uma lei especifica que as autorize e prescreva o respectivo regime", não oferecendo "as normas da lei processual-penal relativas a perícias e exames bem como […] os dispositivos da lei que estabelece o regime das perícias médico-legais [...], como ainda os preceitos pertinentes (sobretudo o artigo 152°) do Código da Estrada", "a indispensável legitimação penal."
35. E assim sendo, "no plano processual-penal, o direito vigente em Portugal prescreve uma intransponível proibição de produção de prova contra a recolha coerciva das substâncias biológicas e contra a sua análise genética não consentida. Uma proibição cuia violação só pode ter como consequência a correspondente proibição de valoração das provas obtidas" (negrito e sublinhado nossos).
36. Como não existe no nosso ordenamento jurídico uma lei que autorize e prespective tal regime, o exame de recolha de saliva através de zaragatoa bucal que o aqui recorrente foi sujeito não pode valer como prova, pois estamos perante uma prática atentatória da sua integridade moral e física.
37. Para além de estarmos perante um tratamento desumano e degradante, pois a realização do exame acarretou para o aqui recorrente um grave sofrimento psicológico.
38. Assim como lhe foi infligido sentimentos de medo, e de angústia e inferioridade, causando-lhe humilhação e aviltamento, que conduziu o arguido a agir contra sua vontade e consciência.
39. O arguido sentiu assim a sua integridade física e pessoal violentada, pois com a realização da recolha de saliva houve uma intromissão para além das fronteiras delimitadas pela sua pele e pelos seus músculos.
40. Não podendo esse tipo de intromissão ser justificada como um meio legal de obtenção de prova, uma vez que que tal recolha entra em colisão com o direito consagrado constitucionalmente pelo artigo 25.º da CRP.
41. E seguindo a linha de Vera Lúcio Raposo "(...) parte da doutrina entende que o artigo 25.° da CRP (direito à integridade física) não protege apenas contra um determinado grau de ofensa nem apenas contra aquelas que causem lesões corporais. Segunda esta tese, qualquer extracção de amostras biológicas - independentemente da forma como é executada e do tipo de amostra que é extraída - viola o direito em causa e integra o tipo de ilícito de agressão à integridade física, excepto quando se verifique uma causa de exclusão de ilicitude, como seja o consentimento".
42. Por sua vez o artigo 32.º n.º 8 da Lei Fundamental prescreve que "São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa abusiva intromissão na vida privada, no domicilio, na correspondência ou nas telecomunicações." (negrito e sublinhado nossos).
43. "O que há de novo no n.º 8 não é a proibição do uso de meios proibidos na obtenção dos elementos de prova mas essencialmente a utilização das provas obtidas por tais meios. Essas provas é que são nulas (...); seria intolerável que para realizar a justiça no caso fossem utilizados elementos de prova obtidos por meios vedados pela Constituição e incriminados pela lei". (Anotação ao artigo por Jorge Miranda e Rui Medeiros).
44. Ora o artigo 126.º do CPP dispõe ainda que:
"1- São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante (...) ofensa da integridade física ou moral das pessoas.
2 - São ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que com o consentimento delas, mediante:
a) Perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de (...), ofensas corporais (...);
c) utilização da força, fora dos casos e dos limites permitidos pela lei, (...)" - realce nosso. "(negrito e sublinhado nosso).
45. A partir das normas supra citadas, entende-se que a utilização do arguido enquanto meio de prova no processo penal, está sempre limitada ao integral respeito pela decisão da sua vontade.
46. Assim, o facto de o arguido não ter prestado o devido consentimento para a recolha de saliva através de zaragatoa bucal, tem como consequência a proibição de valoração como prova do resultado obtido através da sua análise, nos termos do artigo 126.º n.º 1 e 2 al. a) e c).
47. Assim, se por um lado o Estado deve realizar o seu dever de repressor das violações de legalidade, por outro lado deve efectivar e salvaguardar as garantias e liberdades dos cidadãos.
48. O Acórdão n.º 212/93 de 16 de Março do Tribunal Constitucional disponível em www.tribunalconstitucional.pt dispõe que "a aludida busca da verdade material tornar-se-ia sobrevalorada e bem poderia conduzir à postergação daqueloutro valor sobre o qual repousa o Estado de Direito, precisamente o de se deverem plenamente efectivar as garantias e liberdades fundamentais".
49. O legislador penal qualifica este bem jurídico como uma barreira a qualquer prova, considerando nulas e insusceptíveis de valoração as provas obtidas pelos meios da violação da integridade física e moral da pessoa.
50. O direito à integridade pessoal, tanto física como moral, é assim um direito que possuiu uma forte tutela constitucional, e nas palavras de Sónia Fidalgo "este direito vale, obviamente, também no plano da investigação criminal, não sendo lícita a utilização de qualquer prática atentaria da integridade física ou moral da pessoa".
51. Do despacho recorrido, o juiz a quo violou ainda o artigo 26° n.° 1 da CRP pois "A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento do personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação". (negrito e sublinhado nossos).
52. Estamos assim perante um "direito a uma esfera própria inviolável, onde ninguém deve poder penetrar sem autorização do respectivo titular", de acordo com a nossa Jurisprudência Constitucional.
53. Nas palavras de Marta Botelho,"enquanto direito fundamental, o direito à reserva de intimidade da vida privada consiste em haver garantias efectivas contra a obtenção ou a utilização abusiva ou contrária à dignidade humana de informações relativas às pessoas ou às famílias".
54. Todavia, este direito não é absoluto, logo, pode sofrer restrições, designadamente através do consentimento do seu titular, consentimento este que tem de ser livre e esclarecido, o que não se verificou no caso sub judice.
55. O despacho do juiz a quo violou ainda o artigo 32.º da CRP, quanto às garantias de defesa no processo criminal que estão ao dispor do arguido, ou seja, os mecanismos necessários para que haja uma igualdade de armas entre o arguido que se defende e a acusação.
56. Assim, no âmbito de prova por intrusão corporal, mais especificamente na prova por amostras de ADN, esta somente só poderá ser aceite se não se puser em causa uma das garantias presentes no artigo 32.º da CRP.
57. O juiz o quo no seu despacho põe ainda em causa, um dos princípios basilares que vigora no nosso sistema processual penal, o principio nemo tenetur se ipsum accusare.
58. Este princípio "constitiu um corolário de tutela de valores ou direitos fundamentais, com direta consagração constitucional que a doutrina vem referindo como correspondendo à dignidade humana, à liberdade de ação e à presunção de inocência", Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 418/2013 disponível em vvww.tribunalconstitucional.pt.
59. Tendo tal princípio consagração constitucional nos artigos 2.º;26.º; 32.º n.º 2 e 8, pois é um principio que tutela valores ou direitos fundamentais como a dignidade humana, a liberdade de acção e a presunção de inocência.
60. Assegurando assim que o arguido não seja reduzido a um mero objecto da actividade estadual.
61. nessa linha de raciocínio Vera Lúcia Raposo entende que a "liberdade individual de cada cidadão, liberdade esta que seria posta em causa caso o arguido fosse degradado a objecto e instrumentalizado a meio de prova contra si mesmo. Dai a importância de proteger o silêncio do arguido em processo criminal, providenciando para que nunca funcione contra si",
62." Por conseguinte, as provas obtidas em violação do direito de protecção contra autoincriminações deverão considerar-se nulas, por atentarem contra o integridade moral do arguido, ou mesmo por constituírem uma forma de tortura".
63. Ora, o exame de recolha de saliva viola este principio, devendo assim mais urna vez ser nula a prova obtida através da análise de recolha de saliva, pois este atenta de forma clara contra a integridade moral do aqui recorrente.
64. Por tudo o exposto, entende-se que o resultado obtido através da análise de recolha de saliva não deve valor como prova, uma vez que o exame em questão envolve uma restrição de direitos e liberdades e garantias do aqui recorrente.
65. Assim como, deve ser revogado o despacho proferido pelo juiz a quo que autoriza e ordena a recolha de saliva através de zaragatoa bucal, mesmo que para isso seja realizada contra a vontade do arguido.
66. Pois estamos perante uma obtenção clara de provas ilícitas.
Normas Jurídicas Violadas: Artigo 25.º,26.ºe 32° todos da CRP; artigo 8.º da CEDH; artigo 12° da DUDH; os artigos 126° n.º 1 e 2 alíneas a) e c), bem como o artigo 172º n.º1 ambos do CPP.
Principio Jurídicos Violados: nemo tenetur se ipsum accuscre”
O Digno Magistrado do Ministério público junto do tribunal recorrido respondeu pela improcedência do recurso.
Neste Tribunal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer pela manifesta improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
II. O recorrente suscita para apreciação nesta instância, tal como emerge das conclusões apresentadas e que delimitam o objecto e âmbito do recurso (art. 412.º, n.º 1, do CPP), a legalidade e constitucionalidade da recolha de saliva por zaragatoa bucal ordenada por despacho judicial.
Dos autos resulta que, segundo promoção do Ministério Público, foi proferido o seguinte despacho judicial:
- “...
Investigam-se nestes autos factos integradores de um crime de roubo agravado, p. e p. pelos artigos 210.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), tendo por referência o disposto no artigo 204.º, n.º 2, alínea f), ambos do Código Penal; um crime de sequestro, p. e p. pelo artigo 158.º, n.º 1, do Código Penal; e um crime de burla informática, p. e p. pelo artigo 221.º, n.º 1, do Código Penal.
Foram recolhidos vestígios biológicos que podem contribuir de forma decisiva para a identificação dos autores dos factos.
Para tanto é essencial proceder à recolha de saliva aos arguidos B… e D…, através de zaragatoa bucal, para determinação do seu perfil de ADN e posterior realização de exame comparativo com os vestígios biológicos recolhidos.
A recolha de saliva através de zaragatoa bucal não coloca em risco e de forma significativa o direito à autodeterminação corporal dos arguidos.
E fazendo um esforço de concordância prática entre aquele direito e o interesse do Estado na perseguição criminal (sobretudo nos casos de criminalidade grave), concluímos que aquele direito deve, no caso concreto, ceder perante este interesse.
Pelo exposto, em conformidade com o preceituado no art.º 172.º, n.º 1 do CPP, autorizo a recolha de saliva aos arguidos B… e D…, através de zaragatoa bucal, ainda que contra a vontade dos arguidos.
…”
É deste despacho que vem interposto o recurso, nos termos que as respectivas conclusões espelham, dando o recorrente como violados os art.s 25.º, 26.º e 32.º da CRP, 8.º da CEDH, 12.º da DUDH e 126.º, n,ºs 1 e 2, al.s a) e c), e 172.º, n.º 1, do CPP.
Dispõe o art. 172.º, n.º 1, do CPP:
“Se alguém pretender eximir-se ou obstar a qualquer exame devido ou a facultar coisa que deva ser examinada, pode ser compelido por decisão da autoridade judiciária competente.”
E o art. 126.º, n.ºs 1 e 2, al.s a) e c), do CPP:
“1 – São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coação ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas.
2 – São ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que consentimento delas, mediante:
a) Perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos;

c) Utilização da força, fora dos casos e dos limites permitidos pela lei;
…”
O art. 126.º do CPP respeita aos métodos proibidos de prova e radica nos art.s 25.º, 26.º e 32.º da CRP que dispõem:
Artigo 25.º
“A integridade moral e física das pessoas é inviolável.
1. Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas cruéis ou desumanos.”
Artigo 26.º
“1. A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação.”
Artigo 32.º
“8. São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.”
Em contrapartida, dispõe o art. 18.º da CRP:
“2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
…”
O art. 18.º, n.º 2, da CRP demonstra que a afirmação dos direitos liberdades e garantias assegurada nos artigos anteriormente citados não é absoluta, cedendo nos casos previstos na Constituição, dentro dos limites necessários à salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
Também o art. 12.º da DUDH dispõe:
“Ninguém será sujeito à interferência na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação…”
E o art. 8.º da CEDU proclama, no seu n.º 1, o direito de qualquer pessoa pelo respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência, para no seu n.º 2 estabelecer restrições a esse direito, sempre que tal esteja previsto na lei e que constitua uma medida que, numa sociedade democrática, seja necessária à segurança nacional, ao bem-estar económico do país, à defesa da ordem e à prevenção de infracções penais, à protecção da saúde ou da moral, ou à protecção dos direitos e liberdades de outrem.
Também daqui resulta que aqueles direitos não são absolutos cedendo nas condições indicadas.
Ainda com interesse para a questão em apreço, diz o art. 61.º do CPP:
“3 – Recaem em especial sobre o arguido os deveres de:

d) Sujeitar-se a diligências de prova e a medidas de coacção e garantia patrimonial especificadas na lei e efectuadas por entidade competente.”
A decisão recorrida mostra-se acertada e bem fundamentada, reflectindo o equilíbrio entre os direitos do recorrente e o interesse do Estado na realização da justiça, situação justificadora da restrição desses direitos nos termos em que o foi.
A restrição traduzida na recolha de vestígios biológicos através de zaragatoa bucal tem sido pacificamente aceite pelo TC, desde que mediante autorização do juiz, como se colhe, designadamente, do Ac. n.º 155/2007, de 02.03.2007, proc. n.º 695/06.
De resto, a restrição dos direitos do recorrente no caso de recolha de saliva através de zaragatoa bucal, mesmo contra sua vontade, representa violação pouco significativa da sua integridade física ou moral, só uma extrema susceptibilidade, não comprovada, justificando os estados de alma do recorrente perante a recolha de prova a que foi sujeito, ordenada por entidade competente e em harmonia com a Constituição e a Lei.
Neste sentido, para além do Ac. do TC mencionado, podem consultar-se em www.dgsi.pt, os ac. da RP de 10.12.2008, 10.07.2013, da RL de 24.08.2007 e da RE de 16.12.2008.
Quanto ao princípio nemo tenetur se ipsum accusare, também aquele Ac. do TC, defende que tal recolha não corresponde a qualquer violação do privilégio da não auto-incriminação, consagrado nos art.s 2.º, 26.º, 32.º, n.ºs 2 e 4, da CRP.
Temos, assim, que o recurso só pode improceder.
III. Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC.
Elaborado e revisto pela primeira signatária.

Porto, 11 de Outubro de 2017
Airisa Caldinho
Cravo Roxo