Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
180/15.0PDPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: VÍTOR MORGADO
Descritores: INIMPUTÁVEL PERIGOSO
SENTENÇA CONDENATÓRIA
CASSAÇÃO DO TÍTULO DE CONDUÇÃO
Nº do Documento: RP20200115180/15.0PDPRT.P1
Data do Acordão: 01/15/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PARCIAL PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – No caso de arguido inimputável que tenha praticado atos materiais integradores de um tipo legal de crime é proferida sentença absolutória; mas se, em consequência da perigosidade criminal, lhe for aplicada medida de segurança essa sentença vale como condenatória.
II – A sentença que declara o arguido inimputável, provada a pratica pelo arguido da materialidade dos factos integradores de um crime, a sua perigosidade e lhe aplica medida de segurança, não padece de nulidade pela circunstância de na sua literalidade não dizer que “absolve” o arguido, nos termos da parte inicial do n.º 3 do art. 376.º do CPP.
III – Ao arguido inimputável é inaplicável da pena acessória de proibição de conduzir; mas já lhe é aplicável a medida de cassação do título de condução.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso nº 180/15.0PDPRT.P1
Origem: Comarca do Porto- Juízo Local Criminal do Porto- Juiz 2

Acordam, em conferência, na 1ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO
Para julgamento em processo comum, com intervenção de tribunal singular, o Ministério Público acusou B…, nascido em 25/05/1981, imputando-lhe a prática de um crime de condução perigosa, previsto e punível pelo artigo 291.º, n.º 1, alínea b), e 69º, n.º1, alínea a) do Código Penal, em concurso aparente com as contraordenações causais, previstas e punidas pelas disposições conjugadas dos artigos 24º, n.º 1, 25º, 27º e 103º, n.º 2 do Código da Estrada, e 60.º, 65.º, 69.º, n.º 1, alínea a), e 76.º, alínea a), do Decreto Regulamentar 22-A/98, de 01/10.
O arguido apresentou contestação, alegando que os factos ocorreram porque se encontrava em situação de pânico, julgando ser perseguido pela polícia que o quereria internar compulsivamente.
Realizou-se a audiência de julgamento, em que foi cumprido o disposto no artigo 358º do Código de Processo Penal, e a final da qual foi proferida sentença, em que foi decidido:
«a) Declarar o arguido inimputável em razão de anomalia psíquica, ao abrigo do disposto no artigo 20.º, n.º 1 do Código Penal;
b) Julgar provada a prática pelo arguido da materialidade de factos integradores do crime de condução perigosa, previsto pelo artigo 291.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal;
c) Declarar a sua perigosidade, por haver razões para recear a prática de outros factos da mesma natureza e gravidade daqueles cuja materialidade integra o crime de condução perigosa, pelo que se determina a aplicação de medida de segurança de internamento em estabelecimento de tratamento adequado pelo período mínimo de 1 ano e máximo de 2 anos;
d) Suspender a execução do internamento por um período de dois anos, a contar do trânsito em julgado da decisão, com a condição de o arguido aceitar a “vigilância tutelar” e o acompanhamento do IRS da área da sua residência e comparecer perante o Técnico de Reinserção Social sempre que tal lhe for ordenado, submetendo-se a tratamentos e regimes de cura ambulatórios apropriados (designadamente os já previstos no âmbito do processo de internamento compulsivo n.º 561/11.9TBPRT – J6 – a correr termos na instância local criminal do Porto) e de se prestar a exames e observações nos lugares que lhe forem aplicados, devendo ser estabelecido um plano nos termos previstos no artigo 98.º n.º 4 e 54.º do Código Penal; sem prejuízo da cessação da medida, caso o arguido deixe de ser socialmente perigoso e cuja execução será avaliada nos termos legais (artigos 92.º, 93.º e 95.º do Código Penal).
e) [Colocar] o arguido (…) sob vigilância tutelar dos serviços da Direcção-Geral da Reinserção e Serviços Prisionais (artigo 98.º, n.º 4 do CP);
f) Aplicar ao arguido a medida de segurança de cassação do título e interdição da concessão do título de condução de veículo com motor por um período de um ano, a contar do trânsito em julgado da decisão (artigos 101.º, n.º 1 e 3 e 100.º, n.º 3 do Código Penal).
g) Condenar o arguido, no pagamento das custas do processo, fixando-se em três unidades de conta a taxa de justiça, nos termos do art.º 8º, nº 9 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa
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Inconformado com o assim decidido, veio o arguido interpor o presente recurso, cuja motivação condensou nas seguintes conclusões:
«A. A decisão em crise limitou-se a declarar o arguido inimputável em razão de anomalia psíquica, ao abrigo do artigo 20º, nº 1, do Código Penal, e não contém, como devia, nos termos do artigo 374º, nº 3, alínea b), a decisão absolutória, pelo que, não o tendo feito, é nula, de acordo com o disposto no artigo 379.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal, nulidade que se invoca desde já.
B. Ao referir – “O arguido é inimputável relativamente ao crime de condução perigosa praticado e, por outro lado, a inimputabilidade mantém-se por força da doença psiquiátrica de que padece.” – o Tribunal “a quo” extrapola o conceito de inimputabilidade referido no artigo 20º do CP, fazendo juízos científicos para os quais não está apto.
C. Ficou definitivamente esclarecido que, apesar da doença psiquiátrica diagnosticada, o recorrente “tem capacidade de fazer julgamentos morais das suas ações, tendo consciência do significado das mesmas dentro do conjunto de normas socioculturalmente estabelecidas”, o que resulta da avaliação psicológica constante do Relatório de Perícia Médico-Legal – Psicologia.
D. Por outro lado, não se encontra qualquer referência, em relatórios periciais, declarações médicas escritas ou orais ou documentos juntos aos autos, de que a inimputabilidade existente à data da prática dos factos se mantém na data da prolação da decisão recorrida.
E. Assim, a Sentença em crise quando diz “por outro lado, a inimputabilidade mantém-se por força da doença psiquiátrica de que padece” viola o artigo 20º, nº 1 do CP e faz uma errada interpretação do artigo 91º, nº 1 do CP e, por outro lado, é ambígua e obscura, pelo que deverá tal referência ser retirada da mesma, nos termos do artigo 380º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Penal.
F. O Recorrente foi declarado perigoso, por considerar o Tribunal a quo haver razões para recear a prática de outros factos da mesma natureza e gravidade daqueles cuja materialidade integra o crime de condução perigosa.
G. A referida declaração de perigosidade assenta no “relatório de psicologia forense, que conclui que o arguido apresenta dificuldade no controlo dos impulsos, intolerância à frustração, dificuldade no cumprimento de regras, donde resulta a possibilidade de emergência de comportamentos disfuncionais em situações de maior exigência e contrariedade. Bem como do relatório de perícia psiquiátrica forense nos termos do qual dada a perturbação psicótica, historial de internamentos e consumo de drogas ilícitas, incumprimento da terapêutica psicofarmacológica prescrita, é de admitir o risco de reincidência, devendo ser considerado perigoso.”
H. Para dar como provada esta factualidade, o Tribunal a quo baseou-se unicamente nos relatórios periciais supra referidos, desconsiderando totalmente o depoimento da testemunha C…, médico psiquiatra que o acompanha no Hospital D…, no âmbito do processo de internamento compulsivo, como se constata do referido pelo Tribunal na decisão: “Apesar de ter referido que, caso o arguido se mantenha estável, o risco de voltar a cometer factos do mesmo género constitui um risco sobreponível ao da população em geral, tal afirmação não tem a virtualidade de infirmar as conclusões dos relatórios contantes dos autos”.
I. O Tribunal a quo, no que parece ser meramente um lapso de escrita, refere, no quarto parágrafo da sentença em crise, que o arguido estava instável - “Foi ouvido C…, médico psiquiatra que acompanha o arguido, no Hospital D…. Referiu que o arguido tem estado instável. Não tem havido indícios de consumos de drogas ilícitas. Apesar de ter referido que caso o arguido se mantenha estável, o risco de voltar a cometer factos da mesma natureza constitui um risco sobreponível ao da população em geral, tal afirmação não tem a virtualidade de infirmar as conclusões dos relatórios periciais constantes dos autos.”
J. Tal apenas se pode dever a lapso de escrita, já que a testemunha nunca referiu que o arguido estava instável, mas sim estável, conforme se pode retirar das suas declarações, supra transcritas, proferidas entre os 2m20s-2m28s, que deverá ser corrigido nos termos do artigo 380º, nº 1, alínea b), do CPP.
K. A testemunha em causa acompanha o arguido por imposição resultante do processo de internamento compulsivo 561/11.9TBPRT e não por opção do arguido.
L. O acompanhamento por este profissional de saúde não foi resultado de uma escolha livre do Arguido, mas sim de uma atribuição imposta no processo de internamento compulsivo.
M. O tribunal a quo em momento algum pôs em questão que a testemunha C… não era credível, pelo que, tratando-se de uma pessoa isenta e com conhecimento muito mais próximo e mais amplo das circunstâncias que importam provar do que os peritos que elaboraram os relatórios periciais, não se entende por que não tem o seu depoimento a virtualidade de infirmar tais relatórios, o que nos parece, com o devido respeito, que é muito, totalmente inaceitável.
N. Na verdade, a testemunha C…, no que respeita à verificação dos pressupostos de facto in casu para declaração da perigosidade, atendendo ao facto de acompanhar o arguido com a periocidade exigida (trimestral) pelo processo de internamento compulsivo, é quem melhor pode avaliar o risco de reincidência, por ser a única que poderá atestar a estabilidade do Recorrente, o cumprimento do tratamento ambulatório em curso e a ausência de consumo de drogas e álcool pelo Recorrente.
O. Não se entende como podem as avaliações clínico-psiquiátricas efetuadas pela testemunha C… e os seus pareceres sobre o tratamento adequado terem a virtualidade de influir nas decisões proferidas no âmbito do processo de internamento compulsivo, mas os factos trazidos aos autos através do seu depoimento e os constantes das referidas avaliações, não terem a virtualidade de provar que não há risco de reincidência.
P. Até porque alguns desses elementos não estavam disponíveis para os peritos que elaboraram o relatório.
Q. Note-se que o Tribunal não apresenta, como devia, qualquer fundamentação para desconsiderar e afastar o depoimento do médico C….
R. O relatório pericial, quando refere que “atendendo à natureza da doença, à comorbilidade com consumo de drogas ilícitas e ao tipo de ilícito praticado é de admitir o risco de reincidência em atos da mesma natureza ou similares, pelo que deve ser considerado perigoso”, apenas lança os dados que o Tribunal tem de verificar, se in casu se confirmam, como é o exemplo do consumo de drogas ilícitas.
S. Saliente-se que, os peritos que realizaram os relatórios periciais não dispunham de todos os elementos, nomeadamente dos posteriormente carreados para os autos através do depoimento da testemunha C…, como é o caso do facto do arguido cumprir os tratamentos, estar estável, consumir álcool de forma pontual, socialmente e em pequenas quantidades e a confirmação de não existir qualquer indício de consumo de drogas ilícitas.
T. Note-se que apenas alguém com contacto pessoal, privilegiado e periódico com o arguido tem meios para afirmar os factos contantes do parágrafo anterior, [sobre] que, in casu, o relatório pericial não tinha a virtualidade de produzir prova.
U. Enquanto a matéria suprarreferida em S), que deveria ter sido dada como provada, traduz factos concretos, o parecer pericial assenta numa mera previsão de facto.
V. O tribunal não pode furtar-se ao conhecimento dos factos que preenchem este conceito jurídico, escudando-se numa possibilidade analisada em termos gerais no relatório pericial, no campo das probabilidades.
W. Pelo contrário, o Tribunal tem obrigação de perceber, no caso concreto, analisando todos os elementos de que dispõe, se se verifica ou não a perigosidade do arguido.
X. Resultou claro do depoimento da testemunha C… que, mantendo-se estável, como está, desde o episódio em questão nos presentes autos, o risco de voltar a cometer factos do mesmo género constitui um risco sobreponível ao da população em geral.
Y. Acresce ainda que, da Avaliação Clínico-Psiquiátrica, de 20.10.2017, elaborada no âmbito do processo de internamento compulsivo supramencionado, que serviu de base documental [à] execução dos relatórios periciais, resulta claramente que o internando “tem comparecido às consultas agendadas e tem cumprido a toma de medicação antipsicótica injetável. O Internando tem estado psicopatologicamente estabilizado.”
Z. Do mesmo documento resulta ainda que o fundamento da manutenção do tratamento ambulatório compulsivo é a possibilidade de descontinuação do mesmo, se cessar a sua obrigatoriedade.
AA. Pelo contrário, do referido documento não resulta que a necessidade de tratamento ambulatório compulsivo seja pelos motivos de continuidade do comportamento de adição e incumprimento da terapêutica.
BB. Sucede ainda que o momento a tomar em consideração sobre a perigosidade e respetiva prognose é o da decisão e resulta da factualidade que deveria ter sido dada como provada.
CC. Com efeito, nessa altura, de acordo com a matéria de facto relatada pela testemunha C… (20181130111007_14950693_2871495) 0m1s – 36m28s, ao longo de todo o seu depoimento, o estado de saúde do arguido é estável, o arguido cumpre o tratamento ambulatório, quer no que respeita a consultas, quer no que respeita à toma da terapêutica prescrita, não consome drogas e o consumo de álcool ocorre apenas em situações sociais pontuais e em doses reduzidas e consideradas normais, não apresentando critérios de dependência de álcool.
DD. Os factos supra referidos no parágrafo anterior deveriam ter sido dado como provados e não o tendo sido, o Tribunal a quo violou o artigo 127º do CPP, pelo que deverá a decisão em crise dar como provado que: o arguido está estável; o arguido cumpre o tratamento ambulatório, quer no que respeita a consultas, quer no que respeita à toma da terapêutica prescrita; o arguido não consome drogas; o arguido consome cerveja em situações sociais pontuais e em doses reduzidas e consideradas normais, não apresentando critérios de dependência de álcool.
EE. Provado deveria também ter ficado que o comportamento do arguido ocorreu num contexto excecional, que terá tido origem num episódio, não de incumprimento, mas sim de atraso na toma da medicação antipsicótica injetável, o que, aliado ao facto da presença, confirmada pela testemunha C… (2m20s-3m50s), da polícia em casa do arguido, para entrega de ofício no âmbito do processo de internamento compulsivo, admite-se poder ter resultado numa descompensação que provocou a inimputabilidade na data dos factos.
FF. Por outro lado, o Tribunal desvalorizou ainda totalmente o facto de terem decorrido mais de três anos e meio desde a prática dos factos e, durante esse período, em que o arguido esteve estável, a cumprir os tratamentos, sem consumir drogas, com consumos de cerveja apenas em situações sociais pontuais e em doses reduzidas e consideradas normais, não apresentando critérios de dependência de álcool, continuou a conduzir sem nada ter sucedido de similar com o ocorrido!
GG. Ao ignorar estes factos, que devia ter considerado provados, o Tribunal violou o artigo 127º do CPP, já que não desconsiderou as regras da experiência que permitiam com segurança olhar para o período de três anos e meio decorrido, como uma prova de que o risco de reincidência não se verifica.
HH. A decisão contida na Sentença em crise de aplicar o previsto no artigo 91º, n.º 1 do Código Penal, aderindo às conclusões dos exames periciais, revela uma incorreta interpretação do artigo 163º do Código de Processo Penal e uma violação daquele preceito, bem como do constante no artigo 40º, n.º 3 do Código Penal, devendo, deste modo, ser revogada.
II. É que, para a aplicação da medida de segurança não basta a declaração de inimputabilidade e a prática, pelo inimputável, de factos previstos como crime. É necessário que elementos de facto revelem a perigosidade. Quanto a esses elementos de facto, o Tribunal tinha o poder de livre apreciação.
JJ. De facto, perante as declarações da testemunha C… que refere que o arguido está estabilizado, cumpre o tratamento ambulatório, quer no que respeita a consultas, quer no que respeita à toma da terapêutica prescrita, não consome drogas e o consumo de álcool ocorre apenas em situações sociais pontuais e em doses reduzidas e consideradas normais, existem motivos, de sobejo, para concluir de modo divergente da conclusão dos peritos.
KK. Pelo que, mesmo considerando que a perigosidade do arguido e aplicação da medida de segurança está sujeita à prova pericial e por isso subtraída da livre apreciação do juiz – o que por mera hipótese de patrocínio se concebe sem se conceder – tendo resultado da perícia um juízo incerto, a decisão sobre esta questão ficou a cargo do Tribunal, de acordo com a posição adotada pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 5.11.1998 in CJ STJ, 1998, 3, p. 210 e ss.
LL. Refira-se ainda que o Princípio da livre apreciação da prova, plasmado no artigo 127º do Código de Processo Penal, impõe ao Tribunal a apreciação da prova segundo as regras da experiência comum.
MM. E é essa experiência comum que nos leva a poder concluir, com certeza, que ficou provado que o Recorrente está estável, a cumprir o tratamento ambulatório que lhe foi imposto no âmbito do processo de internamento compulsivo em curso e sem consumir drogas ilícitas, sendo os consumos de álcool diminutos, pontuais e em situações sociais, não se verificando os critérios para dependência de álcool.
NN. Assim, os factos elencados no artigo anterior deveriam ter sido dados como provados por constituírem matéria relevante para o objeto do processo, nomeadamente no que respeita à perigosidade e, por consequência, deveria o arguido ter sido considerado não perigoso.
OO. Por outro lado, a contrario sensu, deveriam ser dados como não provados os factos dados como provados referidos em L) na parte que refere politoxicofilia, N), O), na parte em que refere por continuação de adição e incumprimento da terapêutica, da sentença recorrida, baseando-se unicamente no referido na prova pericial, a douta sentença viola as normas dos artigo 91, nº 1º do CP e artigos 163º e 127º do Código de Processo Penal.
PP. Na verdade, a prova produzida nos presentes autos impunha ao Tribunal a quo uma decisão oposta à que resulta da Sentença recorrida no que à verificação da perigosidade do arguido diz respeito e consequentemente não deveria ter sido aplicada ao arguido a medida de segurança de internamento e de cassação do título, nem tão pouco sujeitar o arguido a vigilância tutelar dos Serviços da Direcção-Geral da Reinserção dos Serviços Prisionais e IRS.
QQ. A matéria relativa à aplicação de medidas de segurança deve subordinar-se estritamente ao princípio da subsidiariedade, isto é, uma medida de segurança não deve ser aplicada, quando outras medidas menos onerosas constituam uma proteção adequada e suficiente dos bens jurídicos face à perigosidade do agente, conforme ensina o Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, pág. 446.
RR. Ora, para além de tudo o quanto ficou dito no Título III- Da Perigosidade, que por uma questão de economia processual, aqui se reitera na íntegra, importa referir que, quer a Testemunha C…, quer o Perito que elaborou o relatório psiquiátrico, foram unânimes em referir que não havia necessidade de internamento.
SS. Note-se que, reitera-se, o Recorrente é acompanhado continuamente no âmbito da Lei de Saúde Mental no Hospital D…, pelo que se existisse necessidade de internamento, essa necessidade já teria sido observada e obrigatoriamente instituída pelo médico C….
TT. Pelo exposto, não sendo o arguido perigoso não há motivo que fundamente a aplicação de qualquer medida de segurança, nomeadamente a de internamento que lhe foi aplicada. Mais ainda quando será prejudicial, como referido pelo Clínico que o acompanha.
UU. Assim, deverá a decisão em crise ser revogada na parte em que sujeita o arguido a uma medida de segurança de internamento.
Sem prescindir nem conceder, ainda que assim não se entenda,
VV. Importa referir que, no que respeita ao limite mínimo e máximo da medida de segurança, a lei apenas estabelece a existência de limite mínimo no caso de crimes puníveis com pena de prisão superior a 5 anos, o que não se verifica in casu, em que a moldura penal é até 3 anos.
WW. Nenhum dos factos praticados é subsumível a tipos legais de crimes de perigo comum puníveis com pena de prisão superior a 5 anos.
XX. Pelo que não se verifica o pressuposto legal necessário, previsto no artigo 91º nº2 do Código Penal, à aplicação de uma medida de segurança de internamento psiquiátrico com duração mínima de 1 ano, como consta da sentença em crise.
YY. Foram violados, por erro de interpretação e aplicação, o artigo 91º nº 2, ambos do Código Penal e ainda o artigo 501º do C.P.P. (este na parte em que a decisão em crise determinou a duração mínima do internamento).
ZZ. Acresce ainda que, no que respeita ao limite máximo estabelecido, de 2 anos, pelo Tribunal a quo, o mesmo é demasiado elevado.
AAA. Note-se que o arguido nunca teve um período de internamento, no âmbito do internamento compulsivo, superior a um mês, o que aliás apenas ocorreu uma vez (em 2011), os restantes foram por períodos inferiores a quinze dias, como o Tribunal a quo teve oportunidade de verificar no processo de internamento compulsivo que dispôs para consulta.
BBB. Com efeito, considerando que: não se verifica a necessidade de internamento; há elementos concretos que permitem determinar que o arguido nunca teve necessidade de internamento superior a um mês; inexistem dados concretos que façam prever que necessitará de um período de tempo de um a dois anos, período totalmente desmesurado; o Tribunal a quo não poderia estabelecer limite máximo superior a um mês.
CCC. Pelo exposto, o Tribunal a quo, ao estabelecer como limite mínimo, um ano e máximo, dois anos, viola os artigos 40º nº1 e 3 e 91º, nº 1 do CP e o artigo 501º do CPP.
DDD. Se se entender ser de aplicar ao arguido medida de segurança de internamento, por se considerar o arguido perigoso, o que apenas por mera hipótese académica de concebe, salvo melhor opinião e douto entendimento desse Tribunal da Relação, deverá ser revogada a sentença proferida, alterando-se a decisão no sentido de reduzir a duração máxima da medida de segurança para um mês e excluir a duração mínima da mesma e suspender a execução do internamento por igual período, submetendo-se ao tratamento ambulatório já em curso, sem necessidade de vigilância tutelar da Direcção-Geral da Reinserção e Serviços Prisionais e acompanhamento do IRS, fazendo assim a devida Justiça.
EEE. Por outro lado, no que se refere à aplicação da cassação da licença de condutor como consequência jurídica dos crimes cometidos pelo arguido, sendo uma medida de segurança, a cassação só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente e nunca como uma mera consequência do cometimento de um determinado crime.
FFF. Assim, é necessária a verificação, em concreto, de um de dois requisitos: ou um particular receio de repetição de factos da mesma natureza ou que o agente deva ser considerado inapto para a condução de veículo com motor.
GGG. Quanto ao concreto receio de repetição de factos da mesma natureza reitera-se tudo o quanto já ficou dito no título III – Da Perigosidade.
HHH. O artigo 101º do CP indica-nos indícios ou sinais da ineptidão para a condução (entre outros factos, a condução perigosa de veículo rodoviário, nos termos do artigo 291º do Código Penal, mas ainda assim, a aplicação desta medida acessória não prescinde de um juízo concreto de prognose do comportamento, assente em elementos específicos da personalidade do agente.
III. Em suma, a aplicação da medida de segurança de cassação da licença de condução de veículo com motor é sempre consequência de um comprovado estado de perigosidade do agente para a condução no futuro, não constituindo nunca consequência automática da prática de crime rodoviário, por mais grave e censurável que ele seja.
JJJ. Ora não há qualquer referência a falta de idoneidade do arguido para adequar a sua conduta aos deveres que recaem sobre si quando conduz, nem uma personalidade contrária aos valores em causa.
KKK. O tribunal recorrido pura e simplesmente não fundamentou a condenação na medida de segurança de cassação da carta.
LLL. Assim, com interesse neste âmbito, podemos considerar assente que do registo individual do condutor atualizado, quanto ao arguido nada consta; o arguido não tem antecedentes criminais.
MMM. Apesar da significativa gravidade dos factos e das suas consequências, a prática pelo arguido do crime rodoviário naquele dia em concreto não revela, por si só, a sua inaptidão para a prática da condução no futuro, nem um concreto perigo fundado da prática de factos da mesma natureza.
NNN. Saliente-se que nada ocorreu nos últimos três anos e meio em que o arguido conduziu.
OOO. Por outro lado, a testemunha C… no depoimento referido em III – Perigosidade, que se reitera e para o qual se remete, atestou a idoneidade do arguido para conduzir.
PPP. Saliente-se que, o referido médico, na data dos factos, teve conhecimento do acidente em questão e das circunstâncias em que ocorreu.
QQQ. Por outro lado, a carta tem a importância que todos sabemos na vida quotidiana dos nossos tempos, pelo que, in casu, seria mais uma restrição no dia-a-dia do Recorrente e que, na nossa humilde opinião, parece ter sido aplicada como uma consequência obrigatória, uma espécie de castigo, e não pelos fundamentos que estão na sua base.
RRR. Em conclusão, por todos os motivos e argumentos expostos relativamente à não verificação da perigosidade e pelos agora vertidos, não se comprovam os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido da medida de segurança de cassação da licença de condução de veículo com motor, prevista no artigo 101º do Código Penal e impõe-se também a revogação da sentença nessa parte.»
Terminou o arguido o seu recurso pedindo a revogação da sentença e a sua substituição por outra que se coadune com as pretensões expostas, nomeadamente que absolva o arguido, o declare não perigoso e não lhe aplique qualquer medida de segurança.
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Respondendo a este recurso, o Ministério Público entendeu, após desenvolvida argumentação, que deverá ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a douta sentença recorrida.
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Já nesta Relação o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido da improcedência do presente recurso.
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Cumpre decidir.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar [1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso.
Tendo como ponto de partida a decisão da matéria de facto dada como provada na sentença impugnada e as conclusões do recurso, as principais questões a decidir são as de saber:
- se se verifica a nulidade sentencial invocada;
- se a sentença recorrida padece do erro de julgamento da matéria de facto alegado pelo recorrente;
- se não se justifica a medida de internamento e se o seu “quantum” concreto é ilegal e/ou exagerado:
- se é injustificada a medida de cassação da licença de condução.
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A decisão da matéria de facto na 1ª instância (transcrição):
«(…) Factos provados
A) No dia 15 de junho de 2015, cerca das 21h10m, o arguido circulava na Avenida …, área desta comarca, no sentido Poente – Nascente, ao volante do veículo automóvel da marca Peugeot, com a matrícula ..-..-OD.
B) Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, à frente do veículo conduzido pelo arguido, circulava uma viatura policial, encontrando-se no seu interior os Agentes da Polícia de Segurança Pública E… e F….
C) Entretanto, o arguido, que circulava a uma velocidade não concretamente apurada, mas seguramente superior a 50 Km/h e desadequada para as características da via, onde circulavam vários transeuntes junto ao rio, efetuou uma ultrapassagem àquela viatura policial, após o que, ao aproximar-se de uma passagem assinalada para a travessia de peões, não cessou nem abrandou a marcha, obrigando os peões que se encontravam a fazer a travessia da mesma a apressar o passo de forma a evitar serem colhidos pelo veículo conduzido pelo arguido.
D) Posteriormente, já no fim da Rua …, o arguido desrespeitou o sinal vermelho dos semáforos ali existentes, tendo, para o efeito, ultrapassado um veículo automóvel que ali se encontrava parado em obediência a tal sinalização semafórica, e transposto a linha longitudinal contínua, invadindo a faixa destinada ao trânsito que circulava em sentido oposto.
E) Seguidamente, imprimindo ainda maior velocidade ao veículo que conduzia, o arguido prosseguiu pela Rua …, sendo que, ao descrever uma curva à esquerda, mais precisamente junto ao número de polícia … daquela artéria, perdeu o controlo da viatura e invadiu a via de trânsito afeta à circulação em sentido contrário ao seu, tendo vindo a embater frontalmente no veículo automóvel da marca Volvo, com a matrícula ..-..-XN, conduzido por G…, e que ali circulava no sentido Nascente – Poente.
F) Tal embate verificou-se na metade direita da faixa de rodagem da Rua …, considerando o referido sentido de marcha Nascente – Poente.
G) Em consequência de tal embate, resultaram danos no veículo automóvel de matrícula ..-..-XN, com o valor de cerca de € 12.678,11, o qual veio a ser declarado pela seguradora como perda total, e ainda lesões corporais na sua condutora, a qual, juntamente com o arguido, foi transportada para o Hospital H…, no Porto.
H) Naquele local, a faixa de rodagem tem dois sentidos, Nascente-Poente e Poente-Nascente, possuindo duas vias de trânsito asfaltadas e devidamente demarcadas, encontrando-se a separar as vias de trânsito uma linha longitudinal descontínua.
I) O limite de velocidade é de 50 Km/h.
J) O tempo estava bom, o pavimento seco e a via iluminada.
L) O arguido sofre, desde o início da terceira década de vida, de perturbação psicótica e politoxicofilia.
M) À data da prática dos factos, o arguido encontrava-se afetado de anomalia psíquica grave que o incapacitava de avaliar a ilicitude dos atos por si praticados, de se determinar de acordo com essa avaliação.
N) Atendendo à natureza da sua doença, à comorbilidade com consumo de drogas ilícitas e ao tipo de ilícito praticado, há fundado receio de que venha a cometer outros factos ilícitos do mesmo tipo ou similares.
O) Por continuação do comportamento de adição, apesar dos tratamentos efetuados, e incumprimento de terapêutica psicofarmacológica prescrita, encontra-se em tratamento ambulatório compulsivo com antipsicótico injetável de libertação prolongada.
P) O arguido é acompanhado no Hospital H… desde 1999 por surto psicótico. Tem história de cinco internamentos completos em regime compulsivo, em 2004, 2007, 2011 e 2014, por descompensação e incumprimento terapêutico.
Q) O arguido revela dificuldade no controlo dos impulsos, algumas alterações do pensamento que se agravam em situações de stress e angústia, apresenta dificuldades na interação com os pares e no relacionamento interpessoal em geral, episódios de intolerância à frustração, dificuldade no cumprimento de regras e com historial de dependência de drogas.
R) Relativamente à esfera da personalidade e da socialização, os dados sugerem que, no seu conjunto, estas características poderão não condicionar o examinado na globalidade das situações sociais, mas poderão facilitar a emergência de comportamentos disfuncionais em gestão de relações de maior proximidade e em situações sociais de maior exigência e/ou contrariedade.
S) O pai do arguido morreu quando o arguido tinha 12 anos.
T) O arguido vive com forte receio de ser internado ou levado à força para o Hospital D… e entende desnecessário o processo de internamento compulsivo (artigos 20.º e 22.º da contestação).
U) Do CRC do arguido nada consta.
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(…) Factos não provados
Com relevo, não se provou que:
1.º- No entanto, o arguido assim não procedeu, como podia e devia, lhe era exigível e se lhe impunha, sendo certo que se o tivesse feito teria evitado aquele embate.
2.º- O arguido, ao assim proceder, violando de modo grosseiro e injustificado as mais elementares regras de segurança rodoviária, designadamente a relativa à obrigatoriedade de parar nos sinais vermelhos dos semáforos, de abrandar e parar na passagem assinalada para a travessia de peões e ao limite de velocidade dentro das localidades, bem sabia que a sua conduta era adequada a criar perigo para a vida ou para a integridade física dos utentes daquelas artérias, que consigo se cruzavam, como era o caso dos peões e dos condutores dos veículos automóveis que ali circulavam, e como veio efetivamente a suceder com a condutora do veículo automóvel de matrícula ..-..-XN, G…, em que acabou por embater, e ainda para bens patrimoniais alheios de valor elevado, como é o caso daquele veículo automóvel.
3.- Não obstante estar ciente de tal, o arguido conduziu o veículo automóvel de matrícula ..-..-OD nas circunstâncias de tempo, modo e lugar suprarreferidas, não deixando de persistir na sua conduta, por lhe ser indiferente o perigo criado com tal comportamento, com o que se conformou.
4.º- Agiu o arguido livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei.
5.º- Para além do arguido, são herdeiros de seu pai a sua mãe e o seu irmão I… (artigo 3.º da contestação).
6.º- Estes, em virtude de partilha judicial, são comproprietários de diversos bens, nomeadamente de uma casa senhorial na freguesia …, concelho de Vinhais (artigo 4.º da contestação).
7.º- O irmão do arguido pretende apropriar-se do património deste e geri-lo como bem entende (artigo 5.º da contestação).
8.º- Tem vindo a promover processos judiciais contra o arguido, motivando a sua mãe também a fazê-lo, tendo já impulsionado dois processos de internamento compulsivo e um de interdição, com o intuito de gerir e utilizar o seu património, como bem entende e na tentativa de o excluir da gestão e utilização (artigo 6.º da contestação).
9.º- Em virtude de queixas promovidas pela sua mãe e pelo seu irmão com fundamento em episódios inventados e de mal-estar familiar e outros, invariavelmente as forças policiais deslocam-se a casa do arguido e provocam no arguido medo, insegurança e terror (artigo 19.º da contestação).
10.º- O arguido, na data dos factos, cerca das 19:00 horas, um agente da PSP, por motivos que desconhece, tocou na campainha de casa e bateram com força na porta da rua (artigo 23.º da contestação).
11.º- Por medo de ser sujeito a mais um internamento compulsivo o arguido não abriu a porta (artigo 24.º da contestação).
12.º- Uma hora mais tarde, saiu para se dirigir a uma pensão da Baixa da cidade, onde tentou pernoitar para evitar novo internamento que temia e que, mais uma vez, não tinha qualquer fundamento (artigo 25.º da contestação).
13.º- No decorrer do trajeto, apercebeu-se de que, atrás de si, seguia um carro de polícia e entrou em pânico, tentou apenas livrar-se dessa situação (artigos 26.º e 27.º da contestação).
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(…) Motivação
A convicção do Tribunal fundou-se na prova documental e pericial junta aos autos e, bem assim, na prova produzida em audiência de julgamento.
Para prova dos factos concernentes à condução por parte do arguido, circunstâncias e consequências, valorou-se o auto de notícia; participação de acidente de fls. 101; relatório de averiguação de fls. 41 a 73; reportagem fotográfica de fls. 137 a 140; em conjugação com os depoimentos de E… e F…, agentes da PSP e testemunhas oculares dos factos, por se encontrarem a circular na viatura de serviço, na avenida em causa, quando foram ultrapassados pela viatura do arguido. Mais referiram que o arguido não pode ter sido encandeado atenta a hora em causa, bem como o sentido em que seguia, uma vez que o sol se põe em sentido oposto; J…, agente da PSP, que foi chamado ao local para registar o acidente, que se tratou de uma colisão frontal; G…, a qual referiu que se deslocava na sua viatura, há cerca de três anos, quando avista a viatura do arguido, numa curva, completamente descontrolada, dada a velocidade, em cima de duas rodas, tendo embatido frontalmente na sua viatura, na sua via de trânsito. Não teve tempo de se desviar. O carro foi para a sucata e foi para o hospital; desde então, ficou com sequelas na cervical. Atribuí credibilidade aos referidos depoimentos por se afigurarem circunstanciados e espontâneos.
Assim, não atribuí credibilidade às declarações do arguido, quando referiu que passou o sinal vermelho por ter sido encandeado pelo sol. De igual modo, a versão narrada pela contestação de que o arguido pensava que estava a ser perseguido pela polícia, não colhe, uma vez que a viatura da polícia não seguia atrás do arguido, antes foi o arguido que a ultrapassou. Também referiu que há muito tempo que não consome drogas, sendo certo que no relatório pericial datado de 15-02-2018, consta que o arguido terá reportado o último consumo ao Verão de 2017 (fls. 332).
No que concerne à inimputabilidade do arguido reportada à data dos factos, teve-se em atenção o teor do relatório pericial de fls. 332 e ss, o qual conclui nesse sentido, bem como no risco de reincidência em atos da mesma natureza ou similares. Quanto aos esclarecimentos prestados pelo médico K…, autor do relatório pericial, valorou-se o facto de ser importante que o arguido se abstenha completamente da ingestão de bebidas alcoólicas e se previna o consumo de drogas ilícitas.
Quanto às condições psicológicas e personalidade do arguido, teve-se em conta o teor do relatório de avaliação psicológica constante de fls. 321 e ss (v. tb. fls. declaração médica de fls. 28 – apenso).
L…, mãe do arguido, referiu que o arguido reage mal quando os agentes da PSP vão a casa, e às vezes foge, pois não vê necessidade de internamento. No entender da depoente, é o irmão que faz pressão para o internamento. Ele ficou órfão de pai aos 12 anos. Ele fumou haxixe, mas largou os consumos.
M…, tio do arguido, que o arguido já teve alguns internamentos, os quais começaram pouco após o pai ter morrido. Por vezes, tem tido empregos de longe a longe. Tem tido internamentos contra a sua vontade.
Foi ouvido C…, médico psiquiatra que acompanha o arguido no Hospital D…. Referiu que o arguido tem estado instável. Não tem havido indícios de consumos de drogas ilícitas. Apesar de ter referido que, caso o arguido se mantenha estável, o risco de voltar a cometer factos do mesmo género constitui um risco sobreponível ao da população em geral, tal afirmação não tem a virtualidade de infirmar as conclusões dos relatórios periciais constantes dos autos. Seja do relatório de psicologia forense, que concluiu que o arguido apresenta dificuldade no controlo dos impulsos, intolerância à frustração, dificuldade no cumprimento de regras, donde resulta a possibilidade de emergência de comportamentos disfuncionais em situações de maior exigência e contrariedade. Bem como do relatório de perícia de psiquiatria forense, nos termos do qual, dada a perturbação psicótica, historial de internamentos e consumo de drogas ilícitas, incumprimento da terapêutica psicofarmacológica prescrita, é de admitir o risco de reincidência, devendo ser considerado perigoso (fls. 333).
No que toca aos antecedentes criminais do arguido, baseei-me no CRC junto aos autos.
Da matéria da contestação não se considerou em sede de factos provados e não provados, matéria irrelevante para o objeto do processo, matéria conclusiva ou de teor meramente jurídico
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A) A nulidade invocada
Começa o recorrente por arguir a nulidade da sentença recorrida por esta não conter a decisão absolutória do crime de condução perigosa imputada ao arguido, o que violaria o disposto no artigo 374º, nº 3, alínea b), do Código de Processo Penal, e configuraria a nulidade a que alude a alínea a), do nº 1, do artigo 379º do mesmo diploma.
Pois bem.
Nos termos das referidas disposições invocadas pelo arguido no seu recurso, a sentença é nula se não contiver a decisão condenatória ou absolutória, isto é, se dela se não puder determinar se o arguido foi absolvido ou condenado.
Ora, se bem que se reconheça que, na parte dispositiva da sentença recorrida, se não utilizem (a não ser quanto a custas) os verbos condenar ou absolver (ou vocábulos de igual raiz morfológica), tal não significa, necessariamente, que estejamos perante a alegada nulidade.
Na verdade, para o caso específico de absolvição do crime por inimputabilidade, mas de aplicação de medidas de segurança por perigosidade, dispõe o nº 3 do artigo 376º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe “Sentença absolutória” que:
“3 - Se o crime tiver sido cometido por inimputável, a sentença é absolutória; mas se nela for aplicada medida de segurança, vale como sentença condenatória para efeitos do disposto no n.º 1 do artigo anterior e de recurso do arguido.”
Ou seja, no caso de arguido inimputável que tenha praticado os atos materiais integradores de um tipo legal de crime e a quem seja aplicada medida de segurança de internamento, “embora a sentença seja absolutória (por falta de juízo de censura), como há perigosidade criminal e consequente aplicação de medida de segurança (…), para os efeitos específicos previstos no nº 3 e no final do nº 1, a sentença será considerada condenatória” [2].
Assinale-se ainda que, mesmo no caso particular de suspensão da execução da medida de segurança (como é o vertente), tem vindo a ser entendido que a sentença deve ser considerada condenatória para efeitos de recurso [3].
É, pois, neste contexto de ambivalência decorrente do próprio teor literal da lei, que deve interpretar-se o segmento decisório visado por esta vertente formal do recurso.
Assim, porque a decisão recorrida explicita com suficiente clareza o seu sentido, improcede a presente arguição de nulidade.
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B) O alegado erro de julgamento da matéria de facto
Põe o recorrente em causa que se tenha dado como assente a matéria de facto levada às alíneas L) (na parte em que refere politoxicofilia), N e O) dos factos provados na sentença recorrida, alegando que não pode o Tribunal ‘a quo’ lançar mão do teor dos relatórios periciais para além do período a que eles se referem – isto é, extrapolando a validade das suas conclusões do momento em que foram realizados para o momento da prolação da sentença – quando existiriam provas mais atualizadas e de maior proximidade, mormente o depoimento do médico psiquiatra que o acompanha, cujo teor deveria conduzir à não prova desses factos (factos esses até parcialmente conclusivos, por reproduzirem expressões ou conceitos legais).
Assim, para além da conclusividade e da falta de rigor das expressões utilizadas, verbera o recorrente a indevida transposição do estado de inimputabilidade e de perigosidade do contexto em que foi determinado nas perícias, ao considerar-se a sua manutenção à data da decisão recorrida.
Vejamos.
A prova testemunhal que, no entender do recorrente, deveria ter levado o Tribunal recorrido a afastar-se das conclusões das perícias médico-legais efetuadas nos autos seria, basicamente, o depoimento da testemunha C…, médico psiquiatra que, ultimamente, tem acompanhado o mesmo recorrente no Hospital D…, no âmbito do processo de internamento compulsivo.
As razões adiantadas pelo arguido para a propugnada prevalência do declarado por tal testemunha decorreriam, no essencial, de que, “tratando-se de uma pessoa isenta e com conhecimento muito mais próximo e mais amplo das circunstâncias que importam provar do que os peritos que elaboraram os relatórios periciais, não se entende por que não tem o seu depoimento a virtualidade de infirmar tais relatórios, o que nos parece (…) totalmente inaceitável” – cfr. conclusão M) do recurso.
No entanto, vista a prova pericial e ouvida a prova pessoal gravada, não se nos afigura que esta última prova – e, paradigmaticamente, o depoimento da testemunha C… – seja suficiente para infirmar as conclusões dos peritos, sendo até discutível se, em vários aspetos, as não reforça.
Com efeito, não pode perder-se de vista que esta testemunha, não obstante a sua maior proximidade em relação ao arguido, não se encontra na melhor situação para produzir um depoimento inteiramente descomprometido, mormente atendendo às especificidades da relação médico-doente.
É certo que predomina neste depoimento o tópico de que o arguido tem cumprido a medicação estipulada no regime de tratamento ambulatório compulsivo e que, nestas circunstâncias, o risco de reincidência será sobreponível à da população em geral [“Ele tem cumprido o tratamento, tem estado clinicamente estável.” – cfr. gravação do depoimento, entre 2’19’’ e 2’22’’]. Assim, apesar de também considerar o arguido inimputável para o crime que cometeu, entende que, não sendo as suas perdas de discernimento permanentes nem irreversíveis, não vê necessidade de um internamento agudo, se continuar a fazer o tratamento.
Porém, não obstante este posicionamento otimista relativamente às perspetivas de comportamento futuro do arguido, não deixou esta testemunha de assinalar que, por ocasião dos factos, o mesmo arguido tinha atrasado a toma do injetável mensal de libertação prolongada – que obsta à repetição de surtos psicóticos como aquele sob o qual então agiu – medicação que fez depois, ficando estável.
Ilustrativas de tal menção, podem ouvir-se, nomeadamente, as seguintes passagens da gravação:
- Entre 5’55’’ e 7’03’’: “Eu penso que nessa altura até foi a última vez que ele de facto… Ele cumpriu, só que foi com atraso. Depois, efetivamente, verifiquei, a posteriori…”;
- Entre 7’27’’ e 7’34’’: “Às vezes, alguns dias, poderá ter repercussão…nalguma instabilidade de comportamento e até nalguma descompensação mais…”.
Ora, foi a persistência de tais “ses” que levou o Tribunal recorrido – e bem, a nosso ver – a aderir às conclusões sobre a perigosidade formuladas nas perícias psicológica e psiquiátrica oportunamente realizadas, a saber:
- na perícia psicológica (a folha 323-323 vº): “…estas características poderão não condicionar o examinado na globalidade das situações sociais, mas, face ao exposto anteriormente, poderão facilitar a emergência de comportamentos disfuncionais na gestão de relações de maior proximidade e em situações sociais quotidianas de maior exigência e/ou contrariedade”;
- na perícia psiquiátrica (a folha 334): “Atendendo à natureza da sua doença, à comorbilidade com consumo de drogas ilícitas e ao tipo de ilícito praticado, é de admitir risco de reincidência em atos da mesma natureza ou similares, pelo que deve ser considerado perigoso”.
E tais riscos mais são de temer quando pessoas da “entourage” mais próxima do arguido – como a sua mãe, testemunha L…, revelando uma prejudicial ambivalência – mostram não disfarçada relutância relativamente à terapia antipsicótica instituída pelo médico psiquiatra que o assiste, no âmbito dos sucessivos tratamentos ambulatórios compulsivos.
Nenhuma censura nos merece, assim, o decidido, em matéria de facto, pelo Tribunal recorrido, mantendo-se, designadamente, o teor dos impugnados itens L), N) e O), e não acrescentando qualquer novo facto, designadamente os factos negativos referidos nas conclusões S) e MM) do recurso.
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C) A medida de internamento e o seu ‘quantum’ concreto
Pretendia o arguido que não lhe fosse aplicada qualquer medida de segurança, atendendo a que não deve ser considerado perigoso.
Tal desiderato estava, ao menos parcialmente, dependente da também requerida alteração da matéria de facto, que, como acima se patenteia, não foi modificada.
Sobre a questão de direito ora em causa, o Tribunal recorrido expendeu as seguintes considerações (transcrição):
«Cumpre referir que o crime de condução perigosa (artigo 291.º, n.º 1 do Código Penal) é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa;
Sucede, porém, que, no momento da prática dos ilícitos, o arguido se encontrava privado, por força da anomalia psíquica, de avaliar a ilicitude e de se determinar com essa avaliação.
Por isso, não é “possível a censura ao agente por não ter agido de outra maneira” (Eduardo Correia, Direito Criminal, vol. I, pág. 331).
Consequentemente impõe-se julgar o arguido inimputável, por anomalia psíquica, nos termos do artigo 20.º do Código Penal.
Importa, agora, analisar e ponderar da necessidade de sujeitar o arguido a uma medida de segurança.
“A declaração de inimputabilidade exclui a culpa do agente e, portanto, a possibilidade de se lhe aplicar uma pena. Mas pode suceder que o agente de um crime, declarado inimputável, revele um grau de perigosidade tal que a sociedade tenha de defender-se prevenindo o risco da prática de futuros crimes (Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado, 3ª ed., Coimbra, 1986, pág. 183).
Com efeito, dispõe o n.º 1 do artigo 91.º do Código Penal que “quando um facto descrito num tipo legal de crime for praticado por indivíduo inimputável nos termos do artigo 20.º, será mandado internar pelo tribunal em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança, sempre que, por virtude da anomalia psíquica e da natureza e gravidade do facto praticado, houver fundado receio de que venha a cometer outros factos típicos graves”.
Importa agora analisar cada um dos requisitos necessários à aplicação da medida requerida e ponderar da sua verificação no caso dos autos.
a) Facto descrito num tipo legal de crime.
Só o inimputável que cometeu um facto descrito num tipo legal de crime pode ser sujeito a internamento. É que “(...) somente a prática de uma ação criminosa evidencia a sua efetiva capacidade de delinquência, sem a qual o juízo de periculosidade arrisca-se a não ser mais que precária hipótese ou simples conjetura” (Nelson Hungria apud Leal Henriques e Simas Santos, O Código Penal de 1982, Lisboa, 1986, Lisboa, 1986, vol. 1º, pág. 463). Quanto a este aspeto é inequívoca a prática pelo arguido de factos descritos no tipo legal de crime de condução perigosa.
Mas, não basta qualquer facto típico criminalmente previsto para desencadear a aplicação da medida. Só aqueles factos, que revestem certa gravidade, tem essa potencialidade. Isso mesmo se depreende da parte final do nº1 do citado artigo 91º que manda atender à “gravidade do facto praticado”.
Não diz a lei o que são factos graves, pelo que cabe à doutrina e jurisprudência a elaboração de um critério neste domínio. Mas o legislador dá-nos uma indicação indireta através do nº 2 daquele preceito, quando refere crimes contra as pessoas ou a crimes de perigo comum puníveis com pena superior a 5 anos. Por isso, pequenos furtos, pequenas infrações de natureza sexual, leves ofensas corporais não podem fundamentar a aplicação de medida de segurança por mais que se evidencie ou se prognostique que o agente vai cometer novos factos delituosos.
A este propósito, o Prof. Figueiredo Dias depois de consignar que “o que deve, em concreto, entender-se por tais requisitos é problema de resolução extremamente difícil” e, depois de rejeitar por injustificado o critério segundo o qual a natureza e a gravidade do facto praticado justificariam a aplicação de uma medida de segurança de internamento precisamente naqueles caso em que, se se tratasse de uma pena, deveria ser aplicada uma pena de prisão, vai um pouco mais longe quando assinala: “Uma solução político-criminalmente correta do problema posto parece lograr-se quando se atenta em que, enquanto o critério da natureza do facto assume uma dimensão caracterizadamente abstrata, já o critério da gravidade – à falta de uma tarifação legal – só em concreto se tornará passível de determinação. Perante estas condicionantes, cremos que com razoável exatidão se poderá traçar o quadro seguinte”. “A natureza (abstrata) do facto excluirá a aplicação de uma medida de segurança de internamento sempre que se trate de bagatelas penais, ou mesmo de crimes que integrem o conceito criminológico da pequena criminalidade. E isto ainda mesmo quando se possa afirmar que, apesar daquela natureza pouco significativa do facto, ele é sintoma de uma perigosidade relevante, pois ainda aqui se deve manter fidelidade à ideia de que o papel do facto é constitutivo e não meramente sintomático”.
A este respeito, não pode de modo algum considerar-se como bagatela penal um crime de condução perigosa punível com pena de prisão até três anos.
Por isso que, na sequência do que expôs, haja necessidade de apurar da concreta gravidade do facto do ponto de vista da prevenção.
Neste domínio e centrando a nossa atenção sobre os concretos factos cometidos pelo arguido temos que convir que os mesmos, nas circunstâncias em que foram levados a cabo, justificam, segundo um juízo de proporcionalidade, a imposição ao arguido de uma medida de segurança.
b) Agente inimputável.
Enquanto a pena continua a ter como fundamento a culpa, a medida de segurança assenta exclusivamente na perigosidade.
Mas, para que tenha lugar a aplicação daquela medida não basta que o agente seja inimputável no momento da prática do facto típico, é ainda necessário que essa inimputabilidade ser mantenha no momento da aplicação da medida como claramente resulta da parte final do n º1 do artigo 91º que manda atender ao juízo de perigosidade à anomalia psíquica.
O arguido é inimputável relativamente ao crime de condução perigosa praticado e, por outro lado essa inimputabilidade mantém-se por força da doença psiquiátrica de que padece.
c) Perigosidade.
Para que o inimputável possa e deva ser internado é necessário que ele seja perigoso. Mas o que é ou quem é um delinquente perigoso? Tendo sempre presente que o conceito de perigosidade criminal é um conceito cientificamente ainda pouco esclarecido, legalmente de difícil definição, aceita-se a referência feita na 1ª Comissão Revisora do Código Penal segundo a qual o delinquente perigoso “significa, como com precisão o ensinou a escola positiva, que o delinquente é um tal de quem se espera a prática de graves factos criminalmente ilícitos” (Atas da Comissão Revisora do Código Penal, vol. II, Lisboa, 1966, pág. 265).
Para que o inimputável seja declarado perigoso e consequentemente sujeito a uma medida de segurança é, pois, necessário “ocorrer uma prognose desfavorável, uma acentuada possibilidade de que o agente volte a praticar factos típicos, derivada de consideração conjunta da anomalia psíquica, da natureza e gravidade do facto típico praticado “(Simas Santos e Leal Henriques, op., cit., pág. 465) sendo ainda necessário que o fundado receio de cometimento de outros factos típicos se refira a factos típicos graves ou relevantes não sendo motivo suficiente factos pouco graves.
Ora, a este respeito, a perícia efetuada é clara, ao afirmar que o arguido apresenta um risco de reincidência em atos da mesma natureza ou similares, pelo que deve ser considerado perigoso. Existe, assim, fundado receio de que o arguido venha a cometer outros factos típicos graves.
Estão, pois, verificados os pressupostos exigidos pelo referenciado artigo 91º do Código Penal, fixando-se o período mínimo de internamento em 1 ano e o máximo em 2 anos
Mantendo-se, como já se referiu, a factualidade apurada, não vemos também razões para pôr em causa a argumentação jurídica usada pelo Tribunal recorrido, acima reproduzida, conducente à necessidade e à adequação de determinar uma medida de internamento – ainda que suspensa na sua execução – como meio de manter sob controlo a perigosidade apresentada pelo arguido quando não cumpre as prescrições terapêuticas do médico psiquiatra que o acompanha.
Importa, todavia, ainda apreciar a questão de saber se o “quantum” da medida de internamento é ilegal e/ou exagerado.
Segundo o recorrente, a ilegalidade decorreria da fixação de um mínimo para a medida de internamento, pois a lei (nº 2 do artigo 91º do Código Penal) apenas estabelece a obrigatoriedade de um limite mínimo de 3 anos no caso de crimes puníveis com pena de prisão superior a 5 anos, o que não se verifica no caso concreto.
Ora, se é verdade que os factos objetivos praticados são descritos num tipo legal de crime punível apenas com pena de prisão até 3 anos, verifica-se que, na sentença recorrida, se não faz aplicação do citado nº 2 do artigo 91º do Código Penal, pois o mínimo de internamento aí determinado foi de um ano, o que se nos não afigura ilegal.
Com efeito, aquele preceito não estatui sobre a proibição de aplicação de limites mínimos ao internamento, mas apenas enuncia uma regra de aplicação de, pelo menos, um determinado mínimo para factos objetivos integradores de ilícitos-típicos contra as pessoas ou de perigo comum de maior gravidade.
No que respeita a outros crimes, o tribunal deve fixar o limite mínimo tendo como referência o limite mínimo da moldura penal [4].
Inexistindo, pois, a alegada ilegalidade, cumpre, no entanto, ponderar se os limites mínimo e máximo determinados na 1ª instância são demasiado elevados.
Na verdade, apesar de o arguido ter histórico de cinco internamentos completos em regime compulsivo, em 2004, 2007, 2011 e 2014, por descompensação e incumprimento terapêutico, não se tratou de internamentos por períodos longos, pois não perde o discernimento de forma permanente e irreversível, reagindo favoravelmente aos fármacos adequados.
Como decorre das disposições conjugadas dos artigos 41º, nº 1, 91º, 92º e 291º do Código Penal, os limites mínimo e máximo são de, respetivamente, um mês e 3 anos.
Assim, atendendo às necessidades de prevenção presentes, entendemos como necessária e adequada uma medida de internamento por um mínimo de 3 meses e um máximo de 2 anos, mantendo a suspensão da sua execução e as condições impostas pela 1ª instância – cfr. artigo 98º, nº 2, do Código Penal.
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D) A cassação do título de condução
No que respeita à aplicação da cassação da licença de condutor como consequência da prática dos factos objetivos integradores do tipo legal de crime de condução perigosa, entende o arguido que à mesma não deveria ter havido lugar, por se tratar de uma medida de segurança que só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente, nunca constituindo consequência automática da prática de crime rodoviário, por mais grave e censurável que seja.
Tais gravidade e perigosidade não se verificariam no caso concreto, acrescendo que na sentença impugnada pura e simplesmente não se fundamentou a condenação em tal medida de segurança.
Não deveria, por isso, ter sido aplicada tal medida.
Vejamos.
Na justificação da aplicação da medida de cassação, o Tribunal recorrido começa por referir a inaplicabilidade da pena acessória de proibição de conduzir prevista no artigo 69º do Código Penal, face à inimputabilidade do arguido. Afirma, por contraposição, a aplicabilidade da medida de cassação do título de condução, nos termos do artigo 101º do mesmo Código, extratando, de tal normativo, os segmentos que considerou relevantes para fundamentar a aplicação de tal medida e determinar a respetiva duração.
Conclui pela verificação dos pressupostos da respetiva aplicação e fixa o seu “quantum”.
Ainda que se não trate de uma fundamentação particularmente analítica, não pode dizer-se que a mesma inexista.
Por outro lado, em termos substanciais, sopesando a inimputabilidade do arguido, a prova da materialidade de factos integradores do crime de condução perigosa previsto na alínea b), do nº 1, do artigo 291º, do Código Penal e o fundado receio de que possa vir a praticar outros factos da mesma espécie (valendo aqui também as considerações tecidas na sentença a propósito da perigosidade do agente para efeitos de lhe dever ser aplicação a medida de segurança de internamento), entendemos que bem andou o Tribunal recorrido ao julgar adequado aplicar ao recorrente a medida de segurança de cassação do título de condução e interdição da concessão do título de condução de veículo com motor por um período de um ano.
Improcede, assim, esta pretensão.
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III – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido B…, e, revogando parcialmente a sentença recorrida, deliberam reduzir o período mínimo da medida de internamento para 3 meses, confirmando, em tudo o mais, o decidido na sentença recorrida.
*
Sem custas nesta instância (nº 1 do artigo 513º do Código de Processo Penal, ‘a contrario sensu’).
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Porto, 15 de janeiro de 2020
Vítor Morgado
Maria Joana Grácio
_______________
[1] Tal decorre, desde logo, do disposto no nº 1do artigo 412º dos nºs 3 e 4 do artigo 417º. Ver também, nomeadamente, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, III, 3ª edição (2009), página 347 e jurisprudência uniforme do S.T.J. (por exemplo, os acórdãos. do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, página 196, e de 4/3/1999, CJ/S.T.J., tomo I, página 239).
[2] Assim, Maia Gonçalves, em “Código de Processo Penal Anotado (…)”, Almedina, 17ª edição (2009), nota 2 ao artigo 376º, página 868.
[3] Neste sentido, Oliveira Mendes, em “Cód. de Processo Penal Comentado”, vários AA., Almedina, 2014, terceiro parágrafo do comentário nº 2 ao artigo 376º, pág. 1177.
[4] Neste sentido, M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, Código Penal, Parte geral e especial, com notas e comentários, Almedina, 2014, nota 8 ao artigo 91º, página 417; no mesmo sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal (…), UCE, 4ª edição (2010), nota 15 ao mesmo artigo, página 329.