Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2297/17.0T8PRT-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA PAULA AMORIM
Descritores: RESPONSABILIDADES PARENTAIS
PRESTAÇÃO DE ALIMENTOS
GUARDA
INCUMPRIMENTO
INDEFERIMENTO LIMINAR
Nº do Documento: RP201812182297/17.0T8PRT-B.P1
Data do Acordão: 12/18/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 686-A, FLS 92-99)
Área Temática: .
Sumário: No incidente de incumprimento do regime de responsabilidades parentais alegando o requerente no requerimento inicial um conjunto de factos que ocorreram em momento posterior à data em que foi proferida sentença e que configura, em abstracto, situações de incumprimento por parte do progenitor quanto ao regime de guarda da criança e prestação de alimentos, inexiste motivo para indeferir liminarmente o requerimento inicial.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: RespParentais-IndLim-22967/17.0T8PRT-B.P1
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Juiz Desembargador Relator: Ana Paula Amorim
Juízes Desembargadores Adjuntos: Manuel Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
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Acordam neste Tribunal da Relação do Porto[1] (5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)

I. Relatório
No presente incidente de incumprimento das responsabilidades parentais, instaurado ao abrigo do art. 41º RGPTC, que corre os seus termos por apenso ao processo que fixou o regime de responsabilidades parentais em relação à criança B..., no qual figura como:
- REQUERENTE: C..., residente na Rua ..., n.º ..., ..., ....-... ..., em Matosinhos, progenitora da criança B..., e
- REQUERIDO: D..., residente na Rua ..., ..., ..., ....-... Porto,
pede a requerente:
A) se declare que o Requerido não cumpriu com o seu dever de velar pela segurança e saúde do menor;
B) se declare que o Requerido não cumpriu com o dever de comparticipação nas despesas com a saúde e educação do filho, com a consequente, condenação do mesmo no pagamento da quantia de € 70,70, correspondente às despesas em dívida, nesta data;
C) a alteração da cláusula a) do regime das responsabilidades em vigor, e que seja atribuída a guarda do menor à Requerente, fixando em exclusivo, junto desta, a residência do mesmo.
Alegou para o efeito e em síntese, que a requerente e o requerido são progenitores do menor, B... e por douta sentença, proferida em 11/05/2018, foi fixado o regime de regulação das responsabilidades parentais, tendo ficado determinado, entre outros aspetos: “a) Fixar a residência da criança, alternadamente com cada um dos progenitores, em períodos de 3 dias seguidos”.
Mais refere que tal decisão não salvaguarda o interesse do menor, nem acautela o seu desenvolvimento saudável e harmonioso, pelo que, foi objeto de recurso por parte da Requerente, para o Tribunal da Relação do Porto, encontrando-se a aguardar, a subida ao Tribunal superior.
Vigorando o referido regime de residência partilhada, o menor, de três em três dias, tem ficado sob a guarda do Requerido, dependendo deste, totalmente, para todas as atividades básicas do dia-a-dia, atenta a tenra idade do menor, que conta apenas com 2 anos de idade, regime com o qual a requerente discorda, defendendo que deve ser fixado o regime da residência do menor junto de si, com fins de semana alternados com o pai e um dia por semana, em que o menor passe a tarde e jante com o pai.
Alegou que no dia 21 de Maio de 2018, após alguns dias após ter sido proferida a sentença que fixou a residência partilhada, a Requerente foi chamada à atenção por parte do colégio, da existência de uma lesão cutânea redonda, na zona do umbigo (conforme cópia do registo n.º 179 do livro de ocorrências do colégio frequentado pelo menor, cuja junção se requer, como DOC. 1). Tal verificou-se após o menor ter passado o período de 3 dias com o pai, que decorreu entre 18 e 21 de Maio. Tal lesão, pela imensa gravidade, foi prontamente comunicada às autoridades e observada, em sede de perícia clínica realizada ao menor, no Instituto de Medicina Legal do Porto.
Na sequência da referida perícia, foi elaborado o relatório respetivo, o qual não foi, porém, disponibilizado à Requerente. O tipo de lesão pode ser compatível com a queimadura com uma ponta de cigarro e atenta a natureza da lesão, o Instituto de Medicina Legal participou a mesma, junto do Ministério Público.
Na sequência dessa situação, a Requerente questionou o Requerido que, não deu conta da referida lesão àquela, mas do mesmo apenas obteve uma resposta vaga, sem explicar em concreto o que aconteceu com o menor para ficar com aquela lesão.
Mais referiu que já anteriormente, no mês de Fevereiro de 2018, igualmente, após o período de 3 dias em que o menor esteve entregue ao pai, a Requerente verificou que o B... tinha uma lesão na mão direita, compatível com uma queimadura por contacto com um radiador (aquecimento), como se constata da fotografia cuja junção se requer, como Doc. 3). A Requerente porém, por pensar que se tratava de uma situação pontual, não informou o Mandatário judicial de tal ocorrência, pelo que, não foi comunicada essa lesão a este Tribunal.
Com a verificação de uma nova lesão no menor, ocorrida durante o período em que o mesmo ficou à guarda do recorrido, e apenas cerca de 2 meses depois de uma outra lesão, dúvidas não restam que a anterior situação da queimadura na mão, não foi uma ocorrência única, considerando que estão em causa, claras evidências da falta de vigilância e de especial cuidado do Requerido, para com o seu filho de apenas 2 anos de idade, que resultou em lesões que, pelas marcas que produziram, podem permanecer por largos meses ou mesmo, anos, para além de serem, reconhecidamente, dolorosas.
Referiu, ainda, que tais lesões foram detetadas após o período em que o menor esteve à guarda do Requerido, apenas este pode ser responsabilizado pelas mesmas, sendo demonstração bastante da falta de competência e capacidade do Requerido para ter a seu cargo o menor, uma criança de apenas 2 anos de idade.
Como resulta já dos autos principais, por ter sido provado em sede de julgamento realizado no âmbito dos autos principais, o Requerido, no mês de Março de 2018, entregou o menor à mãe, “num estado de visível prostração e com cerca de 39,5ºC de febre”, sem se ter apercebido de tal condição de doença do filho.
Somando tal situação de inequívoca negligência do Requerido, bem patente na total desatenção quanto ao estado físico do filho, às situações atrás alegadas, que, pela sua natureza e gravidade, vão além da mera falta de cuidado do Requerido com o filho, e inclusive, podem constituir matéria do foro criminal, é manifesto não só, o incumprimento, pelo Requerido, do dever que sobre si recai de velar pela segurança e saúde do filho de apenas 2 anos, como da incapacidade do mesmo para cuidar do menor.
Alegou, ainda, que o Requerido continua a não cumprir com as orientações prescritas pelo médico oftalmologista do B..., já que continua a adquirir pensos oculares com características diferentes daquelas que foram prescritas e recomendadas pelo médico oftalmologista.
Conclui que o requerido incumpriu o dever de zelar pela saúde e segurança do filho, pois pela sua idade exige uma atenção e cuidado permanente. O aparecimento de lesões, por queimaduras, num espaço de poucas semanas, em diferentes partes do corpo do menor, sem que o Requerido tenha tido o cuidado de providenciar por um qualquer tratamento ou tão pouco, avisado a progenitora de tais lesões, bem como, a falta de perceção por parte do mesmo, dentro do mesmo período temporal, que o filho estava com 39,5ºC de febre, são comportamentos indicativos, não só, da violação do dever de especial vigilância pela segurança e saúde do filho, mas também, da total falta de capacidade do Requerido para cuidar convenientemente do B....
Mais alegou que o tribunal fixou ainda, em sede de regime de regulação das responsabilidades parentais, os seguintes pontos:
- “k) Mais dividirão (os progenitores), na proporção de 2/3 (progenitora) e 1/3 (progenitor), em partes iguais, as despesas extraordinárias de saúde, na parte não comparticipada, sempre mediante apresentação dos respetivos comprovativos;
- l) Bem como a mensalidade dos estabelecimentos de ensino privados que a criança frequentar, na mesma proporção de 2/3 para a progenitora e 1/3 para o progenitor, atenta a diferença de rendimentos, devendo os pagamentos serem realizados diretamente no estabelecimento de ensino em causa pela progenitora, devendo o progenitor proceder ao pagamento à progenitora do montante a seu cargo, até ao último dia do mês a que disser respeito;
- m) Que todas as despesas extraordinárias de educação – livros, material escolar, por um lado, e explicações, centros de estudo (quando existirem) e atividades extracurriculares (desde que acordadas entre ambos, no que se refere a estas três questões), serão divididas entre os progenitores, em partes iguais, sempre mediante a apresentação dos respetivos comprovativos”.
Referiu, ainda, que o requerido, à semelhança do que havia já sucedido, continua a não cumprir com o dever de comparticipação em algumas das despesas de saúde e de educação, recusando-se, perante a exibição das faturas respetivas, por parte da Requerente, em proceder ao pagamento da sua quota-parte.
No decurso do mês de Maio de 2018, a Requerente assegurou o pagamento de um conjunto de despesas com o menor, que se passam a descrever de seguida e que ascenderam à quantia de €365,40:
- €244,00 (óculos);
- €70,00 (consulta);
- €35,00 (pensos oculares e medicação);
- €16,40 (chapéu uniforme colégio).
A Requerente comunicou tais despesas ao Requerido, através de email de 28 de Maio de 2018, através do qual procedeu, igualmente, ao envio dos respetivos comprovativos de pagamento, mas o requerido não procedeu ao pagamento imediato, da sua quota-parte, no valor de €182,70, como lhe competia, apenas o tendo feito, parcialmente, alguns dias depois e não sem antes, pôr em causa, designadamente, o preço de alguns itens, como os óculos, para o filho encontrando-se em dívida para com a Requerente, nesta data, da quantia de €70,70 (setenta euros e setenta cêntimos).
O Requerido, desde que foi fixado o regime provisório, em Dezembro de 2017, nunca cumpriu com o seu dever de comparticipação nas despesas de saúde e escolares do B..., de forma atempada e espontânea.
Argumenta por fim, que o superior interesse da criança justifica a alteração da decisão a respeito da guarda partilhada, no sentido de se atribuir a guarda da criança à requerente, com fixação do regime de visitas. O requerido continua a enviar mensagens com comentários inconvenientes para a requerente, despreza a relação da criança com os avós maternos. O Requerido não tem uma vida profissional estável, encontrando-se a trabalhar sem vínculo definitivo, nem horários fixos. Não tem horários definidos para nenhuma rotina, o que, naturalmente, se repercute no menor, quando este fica entregue ao pai, não sendo certa a hora de ir para a cama, de tomar banho ou das refeições. A própria dieta do B... varia conforme está com a mãe ou com o pai.
Refere, por fim, que a requerente sempre se assumiu como a figura primária de referência na relação com a criança e esta particular relação aliada ao contexto em que a criança se encontra justifica a alteração da decisão de guarda partilhada.
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Apresentados os autos com conclusão, proferiu-se o despacho que se transcreve:
“C..., residente na Rua ..., n.º ..., ..., ....-... ..., em Matosinhos, em representação da criança B..., veio deduzir incidente de incumprimento do exercício das responsabilidades parentais, sendo requerido o progenitor, D..., residente na rua ..., nº. ..., no Porto, estando em causa o incumprimento da obrigação de assegurar as condições de segurança ao filho, e também no pagamento das despesas da criança.
Termina peticionando a alteração do regime em execução.
Ora conforme a requerente alega, não transitou ainda a decisão proferida no âmbito dos autos principais, pelo que não poderíamos estar perante uma ação de alteração. No mais a causa de pedir assenta precisamente nos mesmos argumentos apresentados no âmbito dos autos principais, e que foram já apreciados, retirando-se que a requerente se pretende insurgir contra a decisão ali proferida.
Por todo o exposto, e nos termos dos artigos 590º, n.º 1 do CPC, aplicável por força do disposto no artigo 33º, n.º 1 do RGPTC, e 41º, n.º 3 deste mesmo Regime, indefiro liminarmente o presente requerimento.
Custas pela requerente.
Notifique.
Valor do incidente – 30.000,01 € - artigos 303º, n.º 1, 304, n.º 1 e 306º, n.º 2 do CPC, aplicáveis por força do disposto no artigo 33º, n.º 1 do RGPTC”.
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A requerente veio interpor recurso do despacho.
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Nas alegações que apresentou a apelante formulou as seguintes conclusões:
A - A Requerente, aqui Recorrente, veio suscitar incidente da regulação do exercício das responsabilidades parentais.
B - Pelo Tribunal a quo foi porém, de imediato, proferida decisão a indeferir liminarmente a petição da Recorrente.
C - Acontece que, o despacho ora sob recurso viola o estatuído n.ºs 1 a 3 do art. 41.º e nos n.ºs 1 a 4 do art. 42.º RGPTC, na exata medida em que o Tribunal a quo proferiu despacho a considerar o pedido formulado pela Recorrente antes de ter sido citado o Requerido para alegar o que tivesse por conveniente.
Sem prescindir,
D - Resulta da lei processual civil, a possibilidade de, por um lado, face ao incumprimento dos progenitores, ser novamente regulada a questão, e, por outro lado, face à alegação de factos supervenientes, que ocorreram posteriormente à decisão ou anteriormente, mas que não tenham sido alegadas por ignorância ou outro motivo ponderoso, ser reapreciada a questão.
E - O Tribunal a quo considerou porém que, por não ter transitada a decisão dos autos principais, “não poderíamos estar perante uma ação de alteração” e ainda, que a “causa de pedir assenta precisamente nos mesmos argumentos (…) que foram já apreciados”.
F - Salvo o devido respeito, no requerimento inicial da autoria da Recorrente, que está na origem dos presentes autos, aquela alegou um conjunto de factos que atestam que o Recorrido não tem, de todo em todo, condições para manter a guarda do menor, alegando para o efeito, factos novos e supervenientes, de extrema gravidade, que porém, nem foram considerados pelo Tribunal recorrido.
G - Como melhor resulta do requerimento de início do presente apenso, a Recorrente enumerou duas situações que ainda não tinham sido levadas a juízo, uma delas por se ter verificado já depois de proferida a sentença dos autos principais, mais concretamente, em 21 de Maio de 2018, altura em que a Recorrente foi chamada à atenção por parte do colégio, da existência de uma lesão cutânea profunda, na sensível zona do umbigo, compatível com uma queimadura de cigarro.
H – Igualmente, a Recorrente alegou que, já anteriormente, no mês de Fevereiro de 2018, igualmente, após o período de 3 dias em que o menor esteve entregue ao pai, verificou que o menor B... tinha uma lesão na mão direita, compatível com uma queimadura por contacto com um radiador (aquecimento), mas que não tinha então, dado conhecimento ao Tribunal por acreditar que se tratava de uma situação pontual.
I - O Tribunal recorrido porém, não atendeu a nenhum dos referidos novos factos, que ainda não tinham sido levados ao conhecimento do Venerando Julgador, nem ordenou qualquer diligência para procurar perceber o que esteve na origem de tais lesões detetadas no menor.
J - Violou pois, o Tribunal a quo, o disposto no n.º 1 do artigo 42.º do RGPTC e no art. 988.º, n.º 1 do C.P.C, pelo que, o despacho ora sob recurso deve ser revogado e substituído por um outro que ordene a citação do requerido e o prosseguimento dos ulteriores trâmites processuais.
Termina por requerer que se julgue o recurso procedente com a revogação do despacho proferido em 27/06/2018, proferido pelo Tribunal a quo, ordenando-se a citação do Requerido e o prosseguimento dos autos.
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O Ministério Público veio responder ao recurso alegando, para o efeito, que C... veio deduzir incidente de incumprimento do regime provisoriamente fixado, alegando não ter o progenitor providenciado pela segurança e saúde do filho, nem ter comparticipado com as despesas tidas com a sua educação e saúde, pedindo, por fim, a alteração do decidido no sentido de ser fixada a residência do filho junto de si.
Tal pretensão foi indeferida liminarmente por se ter entendido o pedido como alteração do regime em execução, que, por não haver ainda, transitado em julgado, não seria passível de ser alterado em nova ação, sendo certo que a requerente pretendia com o inicial requerimento era a instauração de incidente de incumprimento relativamente ao regime provisoriamente estabelecido, no âmbito do qual não está vedada, até, a obtenção de eventual acordo quanto ao exercício das responsabilidades parentais (art. 41, nº.4, do RGPTC), nem mesmo, caso se justificasse e sempre no interesse da criança, nova decisão provisória que alterasse o anterior e provisoriamente decidido.
Mais se alegou que foi já, pelo M.P., instaurado processo judicial de promoção e proteção e nada obsta ao prosseguimento dos presentes autos como incidente de incumprimento que a alegação da progenitora minimamente fundamenta.
Conclui as doutas alegações no sentido que devem os autos prosseguir como incidente de incumprimento e, nos termos do nº.3 do art. 41º do RGPC, designar-se dia para uma conferência ou, se assim for entendido, notificar-se o requerido para alegar o que tiver por conveniente.
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O recurso foi admitido como recurso de apelação.
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No Tribunal da Relação o juiz relator solicitou junto do tribunal de 1ª instância certidão da sentença que fixou o regime das responsabilidades parentais, o que foi satisfeito, constando a certidão da sentença de fls. 48 a 71 verso, com nota que não transitou em julgado.
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Dispensaram-se os vistos legais.
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Cumpre apreciar e decidir.
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II. Fundamentação
1. Delimitação do objecto do recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 639º do CPC.
A questão a decidir consiste em saber se existe fundamento para indeferir liminarmente o requerimento inicial.
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2. Os factos
Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os termos do relatório.
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3. O direito
A apelante insurge-se contra o despacho que indeferiu liminarmente o requerimento inicial, por considerar que alegou factos supervenientes que revelam o incumprimento do regime de regulação do exercício das responsabilidades parentais estabelecido na sentença, por parte do progenitor e justificam a alteração do regime ali estabelecido.
No despacho recorrido considerou-se que a sentença onde foi fixado o regime de regulação das responsabilidades parentais não transitou em julgado pelo que não se poderia estar perante uma ação de alteração e que a causa de pedir assenta precisamente nos mesmos argumentos apresentados no âmbito dos autos principais, e que foram já apreciados, pretendendo assim insurgir-se contra a decisão proferida. Com tais fundamentos e fazendo apelo ao art. 590º, n.º 1 do CPC, aplicável por força do disposto no artigo 33º, n.º 1 do RGPTC, e 41º, n.º 3 deste mesmo Regime, indeferiu-se liminarmente o requerimento.
Está em causa apreciar se existe fundamento para indeferir liminarmente o requerimento inicial.
De acordo com o disposto no art.590º/1 CPC, preceito que fundamenta a decisão de direito no despacho recorrido:
“[…]a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente […]”.
A lei prevê duas causas para o indeferimento liminar da petição:
- pedido manifestamente improcedente;
- quando ocorram de forma evidente exceções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente.
A petição “manifestamente improcedente” está associada a razões de fundo, por falta de condições necessárias para a procedência da ação.
Mostram-se atuais os ensinamentos de ALBERTO DOS REIS, quando considerava que se justificava o indeferimento liminar da petição inicial quando “[…] a improcedência da pretensão do autor for tão evidente que se torne inútil qualquer instrução e discussão posterior, isto é, quando o seguimento do processo não tenha razão de ser, seja desperdício manifesto de atividade judicial”[2].
O vício em causa determina que a simples inspeção da petição leva o juiz a concluir que o autor não tem o direito que se arroga.
Na segunda situação será necessário que se verifique qualquer das exceções previstas no art. 577º CPC, preceito que enuncia as exceções dilatórias insupríveis.
No caso presente o processo foi instaurado por apenso ao processo de regulação das responsabilidades parentais, como incidente de “Incumprimento das Responsabilidades Parentais”, ao abrigo do art. 41º RGPTC.
No procedimento previsto no art. 41º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível - Lei 141/2015 de 08 de setembro (abreviadamente RGPTC) -, à semelhança do que ocorria no procedimento previsto no art. 181º OTM, o legislador pretendeu configurar um incidente de incumprimento que abarcasse todas as situações em que o desrespeito pelo estabelecido no âmbito da Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais pudesse ser apreciado.
O incidente em causa reveste a natureza de processo de jurisdição voluntária, não estando por isso, subordinado a princípios de legalidade estrita, cumprindo ao juiz adequar a tramitação e decisão à concreta situação de facto e que melhor tutele os interesse da criança (art. 12º RGPTC e art. 986º CPC).
O procedimento visa tão só aferir do incumprimento de acordo ou decisão que fixou o regime de responsabilidades parentais. Não está em causa apreciar de uma nova e diferente questão suscitada entre as partes.
O procedimento segue os seus termos por apenso ao processo onde foi fixado o regime de responsabilidades parentais (art. 41º/2 RGPTC), constitui um incidente deste processo.
Prevê o art. 41º/3 RGPTC que autuado o requerimento por apenso, o juiz convoca os pais para uma conferência ou excecionalmente, manda notificar o requerido para, no prazo de cinco dias, alegar o que tiver por conveniente.
Da conjugação do art. 41º/4 e 7 RGPTC decorre que o regime estabelecido de regulação das responsabilidades parentais pode ser alterado por acordo entre os progenitores ou por decisão judicial.
No despacho recorrido não se indica o motivo concreto que justifica o indeferimento liminar da petição, fazendo-se apenas referência ao facto de a causa de pedir assentar precisamente nos mesmos argumentos apresentados no âmbito dos autos principais, e que foram já apreciados.
Analisada a petição verifica-se que a apelante não pretende apenas a alteração do regime fixado, quanto à confiança da criança, como se afirma no despacho recorrido.
Desde logo formularam-se os seguintes pedidos:
A) Ser declarado que o Requerido não cumpriu com o seu dever de velar pela segurança e saúde do menor;
B) Ser declarado que o Requerido não cumpriu com o dever de comparticipação nas despesas com a saúde e educação do filho, com a consequente, condenação do mesmo no pagamento da quantia de € 70,70, correspondente às despesas em dívida, nesta data;
C) Ser alterada a cláusula a) do regime das responsabilidades em vigor, e ser atribuída a guarda do menor à Requerente, fixando em exclusivo, junto desta, a residência do mesmo.
Os pedidos visam o reconhecimento da situação de incumprimento do regime fixado e a condenação do requerido ao seu cumprimento, bem como, a alteração do regime de confiança, com fundamento em factos supervenientes.
Em sede de causa de pedir alegaram-se um conjunto de factos que ocorreram em momento posterior (factos supervenientes) à data em que foi proferida a sentença e que configuram, em abstrato, situações de incumprimento por parte do progenitor quanto ao regime fixado de guarda da criança e prestação de alimentos (art. 7º, 14º, 23º, 34º, 43º, 70º, 71º da petição).
A simples apreciação do requerimento inicial permite considerar que existe uma situação de incumprimento que justifica o recurso ao tribunal, pela via própria que consiste no incidente de incumprimento das responsabilidades parentais. Não se trata portanto de uma pretensão destituída ou não conforme ao direito invocado e por isso, não se pode considerar o pedido manifestamente improcedente.
Por outro lado, o despacho recorrido ao referir que está em causa a apreciação dos factos que já foram objeto de apreciação em sede de regulação do exercício das responsabilidades parentais e que a decisão ainda não transitou em julgado enuncia um conjunto de argumentos suscetíveis de integrar a exceção de litispendência.
A litispendência, exceção dilatória, como determina o art. 577º/i), conjugado com o art. 580º/1 CPC “pressupõe a repetição de uma causa, estando a anterior ainda em curso.”
A exceção de litispendência tem por fim “evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior”.
Constituem requisitos da litispendência e do caso julgado, nos termos do art. 580º CPC:
“1. Repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
2. Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.
3. Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.
4. Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico. Nas ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas ações constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido. “
Dá-se a litispendência quando se instaura um processo, estando pendente, no mesmo tribunal ou em tribunal diferente, outro processo entre os mesmos sujeitos, tendo o mesmo objeto, fundado na mesma causa de pedir.
No caso concreto não se verifica a apontada exceção, por não se verificar a identidade de pedido e causa de pedir, apesar da identidade de sujeitos. Os fundamentos do requerimento prendem-se com o incumprimento do regime fixado.
Por outro lado, revestindo o processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais a natureza de processo de jurisdição voluntária nada impede que por efeito de factos supervenientes venha a ser alterado o regime fixado.
Conclui-se que a mera análise do requerimento inicial não justifica o indeferimento liminar da pretensão, devendo os autos prosseguir os seus termos, com a tramitação própria do incidente previsto no art. 41º do RGPTC.
Procedem as conclusões de recurso.
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Nos termos do art. 527º CPC as custas são suportadas pela parte vencida a final.
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III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e revogar o despacho, ordenando em sua substituição o prosseguimento dos autos, com a tramitação própria do incidente previsto no art. 41º do RGPTC.
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Custas suportadas pela parte vencida a final.
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Porto, 18 de dezembro de 2018
(processei e revi – art.131º/5 CPC)
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
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[1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico
[2] ALBERTO DOS REIS Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3ª edição Reimpressão, Coimbra Editora, Lim, Coimbra 1982, pag. 385