Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
12/19.0FAPRT-L.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO PEDRO PEREIRA CARDOSO
Descritores: PERDA ALARGADA
CONFISCO
ARRESTO
VANTAGEM CRIMINOSA
PRESUNÇÃO
MEIOS DE DEFESA
Nº do Documento: RP2022071312/19.0FAPRT-L.P1
Data do Acordão: 07/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO (CRIMINAL)
Área Temática: .
Sumário: I - A criação de um mecanismo substantivo de perda alargada, suscetível de confiscar o valor do património ilícito do arguido (arts. 7º e ss. da Lei nº 5/2002, de 11-01), gerou a necessidade de criar o correspondente mecanismo processual cautelar, capaz de assegurar a possibilidade mínima do cumprimento futuro da decisão final de confisco.
II - Dispõe o art. 10º, nº 1, da referida Lei nº 5/2002: “Para garantia do pagamento do valor determinado nos termos do nº 1 do art. 7º, é decretado o arresto de bens do arguido.”.
III - O arresto, que pode ser requerido a todo o tempo pelo Ministério Público, deve ser decretado sobre bens do arguido no valor correspondente ao apurado como constituindo vantagem de atividade criminosa (nº 2 do referido preceito legal), sendo decretado pelo juiz independentemente da verificação dos pressupostos referidos no nº l do art. 227º do Código de Processo Penal, se existirem fortes indícios do cometimento do crime (nº 3 do referido preceito legal).
IV - O arresto previsto no artigo 10.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, é uma medida de índole jurídico-penal, que visa garantir o (eventual) futuro confisco (forçado, portanto) de um dado património que, porque incongruente com os rendimentos lícitos, se «presume», na aceção da citada Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro e na falta de prova bastante em contrário, constituir «vantagem de atividade criminosa» - artigo 7.º, n.º 1, do diploma legal em questão
V - Em tudo o que não contrariar o referido diploma legal, é aplicável o regime de arresto preventivo previsto no Código Processo Penal.
VI - Na síntese legal: “presume-se constituir vantagem de actividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito” (art. 7º, nº 1, da Lei nº 5/2002, de 11-01), o que significa que, com base em determinados pressupostos (condenação por crime de catálogo, património, incongruente com o rendimento lícito), para efeitos de confisco, o legislador presume que a diferença entre o valor do património detetado e aquele que seria congruente com o seu rendimento lícito provém de atividade criminosa.
VII - A aplicação do mecanismo de “perda alargada” de bens, previsto na Lei nº 5/2002, de 11-01, assenta na verificação dos seguintes requisitos:
a) Condenação pela prática de um crime do catálogo (art. 1º da Lei nº 5/2002, de 11-01);
b) Património do condenado;
c) Incongruente com o seu rendimento lícito.
VIII - Uma vez verificados os pressupostos atrás elencados, o legislador presume, para efeitos de confisco, que a diferença entre o valor do património detetado e aquele que seria congruente com o rendimento lícito do arguido provém de atividade criminosa. É nisto que se traduz a presunção da proveniência do património desconforme.
IX - O arguido pode ilidir a presunção legal de incongruência, demonstrando que, afinal, apesar de todas as aparências, o património não tem nada de incongruente (cfr. art. 9º da Lei nº 5/2002, de 11-01). E pode fazê-lo em sede de oposição ao arresto, alegando factos novos e oferecendo provas para afastar a existência de fortes indícios da desconformidade do património do arguido, sem o que se estaria perante uma grave e desproporcionada violação das garantias de defesa do arguido (artigos 18º, nº 2 e 32.º, n.ºs 1 e 5 da C.R.P. e art. 61.º, n.º1, al. b) e 194º, nº1 e 4, ambos do CPP) em torno do seu direito de propriedade (art. 62º da C.R.P.).
X - O decretamento do arresto com vista à perda alargada exige o respeito pelos princípios da necessidade, adequação, subsidiariedade, precariedade e proporcionalidade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo 12/19.0FAPRT-L.P1

Acordam, em conferência, na Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:


1. RELATÓRIO
A Magistrada do Ministério Público veio interpor recurso do despacho proferido no Juízo Central Criminal do Porto que julgando procedente a oposição da requerida AA determinou o levantamento do arresto do saldo da conta bancária titulada pela requerida no Banco 1..., S.A. (Conta DO nº ...) e o levantamento do arresto do imóvel correspondente à fracção autónoma de tipologia T3, para habitação, identificada pela letra «A», situada a sul, no rés-do- chão e andar, com dois logradouros, do prédio urbano sito no Lugar ..., freguesia ..., concelho de Guimarães (descrita na Conservatória do Registo Predial de Guimarães sob o nº ...... e inscrita na respectiva matriz predial urbana sob o art. ...).
Sustentando que a decisão deverá ser revertida e o arresto nos bens da arguida/arrestada manterem-se apreendidos até final da decisão a proferir nos autos principais de liquidação no âmbito da perda alargada de bens (cfr. conclusão 11), o recorrente Ministério Público sintetiza a sua argumentação nas seguintes
CONCLUSÕES:
“1. A nossa discordância deve-se, em absoluto, pela decisão do Mº Juiz proferida nestes autos, do total levantamento do arresto decretado à arguida, arresto esse que foi, inicialmente, admitido, no âmbito da perda alargada;
2. Porquanto, o Ilustre Juiz, indevidamente, foi mais além do objeto de uma mera oposição a este arresto, aqui colocada pela arrestada/arguida AA;
3. Uma vez que o Mº Juiz, extemporaneamente, já analisou a procedência da pretensão da arrestada/arguida, cujo momento próprio deveria ser nos autos principais e em sede de julgamento, na altura em que for ouvida a prova testemunhal apresentada, quer pelo MP, quer pela arrestada, no âmbito do incidente da liquidação;
4. Ao conhecer, agora, da substância e do fundo da pretensão da arrestada, julgando totalmente procedente a presente oposição, baseado, apenas, nas declarações da própria arguida e do seu companheiro, ordenando o levantamento da totalidade dos bens arrestados, o Mº Juiz, esvaziou de conteúdo os autos principais de liquidação do arresto;
5. Impossibilitando o MP, no caso de vir a ser julgada procedente e nos autos principais, o nosso pedido de perda alargada em relação a esta arguida, de possuirmos garantias suficientes, como uma caução em caso de falta de pagamento da quantia devida e não satisfeita pela condenada.
6. A função do arresto preventivo, previsto nesta lei criminal- Lei nº 5/2002, de 11 de janeiro, é de garantir que o Estado possa ser ressarcido, no caso de um arguido/arrestado, vir a ser condenado e esse montante não ser pago;
7. Daí que o Mº Juiz ao apreciar a procedência da oposição do arresto à nossa liquidação apresentada em momento próprio nos autos principais, ultrapassou o poder que a lei nesta fase de oposição ao arresto, lhe incumbia;
8. Esvaziando a apreciação que deveria, mais tarde e em momento próprio, realizar, em julgamento, o Juiz, deveria apreciar toda a prova apresentada pela arrestada/arguida, a fim de conseguir ilidir ou não-, a presunção legal prevista no artigo 9º nº 2 da Lei nº 5/2002, de 11-01; tanto mais que a arguida e aqui arrestada, vai ter de reproduzir nos autos de liquidação a mesma prova;
9. Nestes autos de incidente de oposição ao arresto preventivo, ao decretar o levantamento da totalidade dos bens arrestados, o Tribunal comprometeu o objeto e a finalidade desta providencia cautelar, inviabilizando, na ação principal, a pretensão que o Estado Português visava com esta providencia cautelar;
10. Extrapolando o objeto desta oposição, o Mº Juiz violou também o disposto nos artigos 7º, 9º e 10º da Lei nº5/2002, de 11/01”.
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O recurso foi regularmente admitido a subir imediatamente, em separada e com o efeito legal.
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A arguida não respondeu ao recurso.
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Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no qual, acompanhando os considerandos constantes do recurso do Ministério Público na 1ª instância, pugna pela sua procedência.
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Na sequência da notificação a que se refere o art.417º, nº 2, do CPP, procedeu-se a exame preliminar e foram colhidos os vistos, após o que o processo foi à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
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2. FUNDAMENTAÇÃO
Conforme vêm considerando a doutrina e a jurisprudência de forma uniforme, à luz do disposto no art. 412º, nº 1, do Código Processo Penal (ao qual respeitam os normativos adiante indicados sem indicação da respetiva fonte legal), o âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extraiu da sua motivação, em que resume as razões do pedido, sem prejuízo, naturalmente, do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.
Das conclusões supra transcritas emerge a seguinte
Questão a resolver:
- âmbito dos fundamentos da oposição ao arresto preventivo previsto no art.10º da Lei 5/2002 de 11 janeiro: ilidir a presunção de incongruência
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O recurso é, pois, restrito à matéria de direito, tendo presente
o teor da decisão recorrida, a saber :
“ O Requerente (Mº Pº) deduziu o presente procedimento de arresto, no âmbito do regime de perda alargada de bens a favor do Estado (art. 10º da Lei nº 5/2002, de 11-01) e para garantia do pagamento do valor da vantagem de actividade criminosa objecto da liquidação apresentada contra a arguida/Requerida (€7.185,52), pretendendo o arresto dos bens da arguida/Requerida que identificou (valores mobiliários, contas bancárias e bem imóvel).
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Foi proferida decisão de procedência da pretensão do Requerente, decretando-se o arresto para garantia de pagamento dos valores plasmados na liquidação com vista à perda alargada de bens a favor do Estado, nos seguintes termos:
B) Quanto à arguida AA, para garantia do montante de €7.185,52, decreta-se o arresto sobre os bens (valores mobiliários, contas bancárias e bem imóvel) identificados pelo Ministério Público no requerimento de arresto.
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Efectuado o arresto e notificada para o contraditório, a arguida/Requerida apresentou oposição, na qual, peticionou que o pedido de perda ampliada de bens formulado pelo Mº Pº (pelo montante liquidado de €7.185,52) seja julgado improcedente, julgando-se provada e procedente a oposição, com as inerentes consequências legais, nomeadamente, com o levantamento do arresto ordenado sobre o imóvel de que a arguida é comproprietária (descrito na CRP de Guimarães sob o nº ......), ordenando-se igualmente o cancelamento do registo do arresto.
A arguida/Requerida alegou, em síntese, que, para além de não ter praticados os ilícitos de que se encontra pronunciada, não possui qualquer património incongruente.
(…)
Factos Provados:
1. Por decisão proferida nos presentes autos e para garantia do montante de €7.185,52, foi decretado o arresto sobre os bens da arguida (valores mobiliários, contas bancárias e bem imóvel) identificados pelo Ministério Público no requerimento de arresto.
2. Em 15/12/2021, foi registado o arresto do imóvel correspondente à fracção autónoma de tipologia T3, para habitação, identificada pela letra «A», situada a sul, no rés-do-chão e andar, com dois logradouros, do prédio urbano sito no Lugar ..., freguesia ..., concelho de Guimarães.
3. A referida fracção autónoma está descrita na Conservatória do Registo Predial de Guimarães sob o nº ...... e está inscrita na respectiva matriz predial urbana sob o art. ....
4. A propriedade sobre a referida fracção autónoma encontra-se inscrita a favor de BB e da arguida AA (sendo referida a “compra” como causa da aquisição).
5. A referida fracção autónoma foi adquirida pela arguida AA e por BB em 10/07/2019.
6. Encontra-se inscrita uma hipoteca sobre a referida fracção autónoma a favor do Banco 1..., S.A., para garantia do mútuo celebrado para financiamento da aquisição da mencionada habitação.
7. Em 15/12/2021, foi arrestado o saldo, no valor de €322,50, da conta de depósitos à ordem (DO) nº ..., do Banco 1..., S.A., titulada pela arguida AA.
8. A arguida AA foi constituída arguida em 07/07/2020.
9. A arguida AA é solteira e vive em união de facto com BB, tendo dois filhos menores, CC nascida em .../.../2016 e DD nascida em .../.../2021.
10. A conta do Banco 2... nº ..., cancelada desde 2017, era titulada pela arguida AA, pela sua irmã EE e pela sua mãe FF (falecida em .../.../2017) e destinava-se a receber o valor da reforma da mãe da arguida e pequenos e pontuais depósitos que esta ia fazendo e tanto a arguida como a sua irmã nunca a movimentaram a não ser após a morte da mãe para resgatar os fundos nela existentes.
11. A conta do Banco 2... nº ..., foi aberta pelo companheiro da arguida e foi por ele movimentada de forma exclusiva, sendo que a arguida AA passou a fazer parte desta conta em 2016, como segunda titular.
12. Nesta conta eram apenas creditados os abonos de família, reembolsos de IRS, doações feitas aos filhos e pequenos depósitos que o companheiro da arguida fazia para assegurar a sua manutenção.
(…)
O Direito:
Como já foi referido na decisão que decretou o arresto, a aplicação deste mecanismo cautelar, quando está em causa a garantia do pagamento do valor liquidado no âmbito da perda alargada (art. 10º, nº 1, da Lei nº 5/2002, de 11-01), obedece a certos requisitos.
Assim, em primeiro lugar, o arresto com vista à perda alargada é decretado se existirem fortes indícios da prática de um dos crimes do catálogo consagrado no art. 1º da Lei nº 5/2002, de 11-01.
A arguida refere ser alheia aos factos que lhe são imputados nos autos e não praticou os crimes de que se encontra pronunciada.
Contudo, como já foi referido, a exigência legal da existência de «fortes indícios» da prática dos referidos crimes (como pressuposto de aplicação do regime da Lei nº 5/2002, de 11-01, o que não é o mesmo que dizer, como afirma a arguida, que o rendimento entendido como incongruente é proveniente da actividade ilícita de que a arguida se encontra pronunciada), mostra-se satisfeita com a dedução de acusação / pronúncia (e com os meios de prova aí referidos).
Logo, a alegação da arguida no sentido de ser alheia aos factos e aos crimes que lhe são imputados, não assume relevo para o afastamento do arresto que foi decretado.
Em segundo lugar, o arresto com vista à perda alargada é decretado se existirem fortes indícios da desconformidade do património do arguido.
A lei presume constituir vantagem de actividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e o valor do património que seja congruente com o seu rendimento lícito.
A liquidação afirma que, entre 07/07/2015 e 31/12/2020, a arguida e, a partir de 01/01/2017, juntamente com o seu companheiro, obteve um rendimento (lícito) no montante de €127.863,91 e, no mesmo período temporal, ocorreram movimentos / entradas a crédito nas contas bancárias da arguida no Banco 2..., S.A. e no Banco 1..., S.A. no valor total de €135.049,43, fixando assim o valor do património incongruente (diferença entre as duas referidas parcelas) no valor de €7.185,52.
A arguida refere que os rendimentos auferidos e os montantes movimentados nas contas bancárias são de proveniência claramente lícita, nada tendo a ver com qualquer actividade criminosa nem daí sendo provenientes, não existindo qualquer rendimento / património incongruente.
O apuramento do património incongruente é baseado numa presunção, susceptível de ser ilidida (total ou parcialmente).
Quer dizer, o arguido pode ilidir a presunção legal (utilizando, para tanto, todas as provas válidas em processo penal – art. 9º, nº 2, da Lei nº 5/2002, de 11-01), demonstrando que, afinal, apesar de todas as aparências, o património nada tem de incongruente (nomeadamente, porque tem origem lícita ou provém de actividade lícita).
A arguida, com a presente oposição, pretende ilidir a já referida presunção legal.
E, na verdade, perante os factos provados, a arguida logrou demonstrar, pelo menos indiciariamente, não existir património / rendimento incongruente, ilidindo assim a referida presunção legal.
Vejamos.
O valor do património incongruente mencionado na liquidação efectuada nos autos decorre de incrementos patrimoniais (depósitos) nas contas do Banco 2... nº ... e nº ....
Sucede, porém, que a arguida logrou demonstrar a origem lícita de tais incrementos patrimoniais (depósitos), conforme resulta dos factos provados nºs 10 a 12.
Em suma, impõe-se a procedência da oposição ao arresto apresentada pela arguida, com consequente levantamento da providência de arresto requerida pelo Ministério Público e determinada nos autos”.
Cumpre apreciar.
Argumenta o recorrente Ministério Público que a decisão recorrida esvaziou a apreciação que deveria realizar apenas no julgamento a fim de conseguir ilidir ou não a presunção legal prevista no artigo 9º nº 2 da Lei nº5/2002, de 11-01, tanto mais que a arguida vai ter de reproduzir nos autos de liquidação a mesma prova.
Ao decretar o levantamento da totalidade dos bens arrestados, o Tribunal comprometeu o objeto e a finalidade do arresto preventivo, inviabilizando, na ação principal, a pretensão que o Estado Português visava com esta providencia cautelar” (itálico nosso).
Com se vê não vem questionada pelo recorrente Ministério Público a possibilidade do arrestado reagir, através da oposição ao arresto [1].
O Ministério Público insurge-se antes e tão só contra o âmbito dos fundamentos dessa oposição, concretamente a possibilidade de o arrestado lançar mão da oposição para ilidir a presunção da incongruência, o que no caso serviu de fundamento para levantar o arresto antes decretado.
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Dos fundamentos da oposição ao arresto
Está em causa, nos presentes autos, um procedimento de arresto no âmbito do regime de perda alargada de bens a favor do Estado (art. 10º da Lei nº 5/2002, de 11-01).
A criação de um mecanismo substantivo de perda alargada, suscetível de confiscar o valor do património ilícito do arguido (arts. 7º e ss. da Lei nº 5/2002, de 11-01), gerou também a necessidade de criar o correspondente mecanismo processual cautelar, capaz de assegurar a possibilidade mínima do cumprimento futuro da decisão final de confisco.
Dispõe o art. 10º, nº 1, da referida Lei nº 5/2002: “Para garantia do pagamento do valor determinado nos termos do nº 1 do art. 7º, é decretado o arresto de bens do arguido.”.
O arresto, que pode ser requerido a todo o tempo pelo Ministério Público, deve ser decretado sobre bens do arguido no valor correspondente ao apurado como constituindo vantagem de atividade criminosa (nº 2 do referido preceito legal).
O arresto é decretado pelo juiz independentemente da verificação dos pressupostos referidos no nº l do art. 227º do Código de Processo Penal, se existirem fortes indícios do cometimento do crime (nº 3 do referido preceito legal).
Do n.º 4 do citado preceito legal resulta que, em tudo o que não contrariar o referido diploma legal, é aplicável o regime de arresto preventivo previsto no Código Processo Penal.
O legislador português consagrou na Lei nº 5/2002, de 11-01 (que estabelece medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira), um regime de perda alargada, baseado na diferença entre o património do arguido e aquele que seria compatível com o seu rendimento lícito.
Na síntese legal: “presume-se constituir vantagem de actividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito” (art. 7º, nº 1, da Lei nº 5/2002, de 11-01).
Quer dizer, com base em determinados pressupostos (condenação por crime de catálogo, património, incongruente com o rendimento lícito), para efeitos de confisco, o legislador presume que a diferença entre o valor do património detetado e aquele que seria congruente com o seu rendimento lícito provém de atividade criminosa.
Assim, a aplicação do mecanismo de “perda alargada” de bens, previsto na Lei nº 5/2002, de 11-01, assenta na verificação dos seguintes requisitos:
a) Condenação pela prática de um crime do catálogo (art. 1º da Lei nº 5/2002, de 11-01);
b) Património do condenado;
c) Incongruente com o seu rendimento lícito.
O arresto previsto no artigo 10.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, é uma medida de índole jurídico-penal, que visa garantir o (eventual) futuro confisco (forçado, portanto) de um dado património que, porque incongruente com os rendimentos lícitos, se «presume», na aceção da citada Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro e na falta de prova bastante em contrário se considera definitivamente constituir «vantagem de atividade criminosa» - artigo 7.º, n.º 1, do diploma legal em questão) [2].
Uma vez verificados os pressupostos atrás elencados (condenação por crime de catálogo, património, incongruente com o rendimento lícito), o legislador presume, para efeitos de confisco, que a diferença entre o valor do património detetado e aquele que seria congruente com o rendimento lícito do arguido provém de atividade criminosa. O conhecimento daqueles factos permite afirmar, com a necessária segurança, um facto desconhecido: a verdadeira origem dos bens.
É nisto que se traduz a presunção da proveniência do património desconforme.
Neste caso, o tribunal, na sentença condenatória, declara o valor que deve ser perdido a favor do Estado (art. 12º da Lei nº 5/2002, de 11-01).
Finalmente, o decretamento do arresto com vista à perda alargada exige o respeito pelos princípios da necessidade, adequação, subsidiariedade, precariedade e proporcionalidade.
De facto, apesar de o Ministério Público estar dispensado de demonstrar o periculum in mora substancial (cfr. art. 10º, nºs 3 e 4, da Lei nº 5/2002, de 11-01), o tribunal não está dispensado de verificar a existência dos requisitos comuns a todas as medidas de garantia patrimonial, acima referidos.
Retomando o caso concreto, o arguido pode ilidir a presunção legal de incongruência, demonstrando que, afinal, apesar de todas as aparências, o património não tem nada de incongruente (cfr. art. 9º da Lei nº 5/2002, de 11-01).
E pode fazê-lo em sede de oposição ao arresto, como o fez, alegando factos novos e oferecendo provas para afastar a existência de fortes indícios da desconformidade do património do arguido.
Na situação em apreço, o julgado da oposição ao arresto mais não fez do que, analisada a liquidação com vista à perda alargada de bens a favor do Estado, tendo em conta o conjunto das provas oferecidas e produzidas no incidente de arresto e oposição, concluir neste momento pela insubsistência de fortes indícios da desconformidade do património da arguida.
O que fundamenta a aplicação do arresto é precisamente a necessidade de garantir a eficácia do confisco do valor do património incongruente. Para garantir o pagamento desse valor e, assim, assegurar a efetivação do confisco, é que foi decretado o arresto cautelar.
A oposição destina-se a infirmar os fundamentos da providência, como preceitua o normativo inserto no artigo 388º, nº1, alínea b) do CPCivil, devendo o Requerido nela alegar e provar os factos suscetíveis de fazer afastar as razões que levaram à decretação do arresto [3].
Garantir a oposição ao arresto, faculdade prevista no artigo 372º, nº 1, al.b), do Código de Processo Civil, ex vi art. 228º, do Código Processo Penal e art.10º, nº4, da aludida Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, é antes de mais assegurar a possibilidade do arrestado exercer o contraditório em relação a todos os apontados requisitos do arresto, aqui incluída – como foi o caso dos autos - a existência e medida do valor do património incongruente.
O arresto, como referido, só pode ser decretado se forem recolhidos fortes indícios da desconformidade do património do arguido com o seu rendimento licito.
Ao arrestado é assegurada, em sede de oposição, a possibilidade de infirmar, além do mais, a existência desses fortes indícios de desconformidade do seu património.
Defender o contrário, a pretexto de se esgotar “o objeto e a finalidade do arresto preventivo” ou de se inviabilizar, na ação principal, a pretensão que o Estado Português visava com esta providência cautelar”, seria anular o direito de oposição ao arresto.
A ser como pretende o recorrente estaria vedado ao arrestado contestar os fundamentos da medida decretada, o que conduziria a uma grave e desproporcionada violação das garantias de defesa do arguido (artigos 18º, nº2 e 32.º, n.ºs 1 e 5 da C.R.P. e art.61.º, n.º1, al. b) e 194º, nº1 e 4, ambos do CPP) em torno do seu direito de propriedade (art.62º da C.R.P.).
Violação tanto mais grave quanto é certo que o arresto em causa, à semelhança do arresto preventivo do art.228º, do Código Processo Penal, é decretado sem audição prévia do arguido [4], atenta a necessidade de assegurar a efetividade da medida de garantia patrimonial – cfr. RP 17-01-2007 (Maria do Carmo Silva Dias), RC 25.09.2013 (Cacilda Sena) e RP 21.12.2016 (Ligia Figueiredo), in www.dgsi.pt.
Assim, há lugar a oposição quando, o requerido, não encontrando na decisão que o visou qualquer vício intrínseco ou vício no procedimento que a ela conduziu e que a afete, hipótese em que dela deverá interpor recurso, “pretender alegar outros/novos factos ou produzir meios de prova que não hajam sido tidos em consideração pelo tribunal e suscetíveis de infirmar os fundamentos da anterior decisão ou passiveis de reduzir os seus limites» - cfr. Sofia dos Reis Rodrigues, «VII- Dos meios de impugnação das garantias processuais penais do confisco», in O Novo regime de recuperação de ativos, 2018, p. 276 e 281-4.
Entre os fundamentos admissíveis e mais usuais na oposição ao arresto conta-se, afirma a Autora, a faculdade do arrestado alegar e provar “que o seu património não é incongruente, por estar todo ele justificado por rendimento licito, ou que, sendo-o embora, essa incongruência se verifica em medida inferior à tomada por perfunctoriamente verificada na decisão que decretou a providência, por forma a ver reduzido o seu alcance” [5].
Defender que na oposição ao arresto não é permitido ao arrestado ilidir a presunção de incongruência do seu património, reservando-lhe esse direito apenas para a oposição à liquidação prevista no art.8º, da cit. Lei nº5/2002, de 11 de janeiro), equivale a postergar a garantia constitucional, plasmada no art.20º, nº4, da C.R.P., que assegura o direito a um processo justo e equitativo em todas as fases do processo de declaração e efetivação da perda do valor incongruente.
No mesmo sentido encontramos a jurisprudência seguida no ac RE 09-06-2020 (Fernando Pina) www.dgsi.pt defendeu: “Resultando do referido art.228º, nº 1, do Código de Processo Penal que o arresto é decretado nos termos da lei do processo civil e que o nº 3 da mesma disposição legal admite expressamente a oposição ao despacho que decrete o arresto, há que concluir que uma das formas de reacção ao arresto decretado nos termos do disposto no artigo 10º, nº 1, da Lei nº 5/2002 de 11/1, será deduzir oposição, quando se pretenda alegar factos ou produzir meios de prova não tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da providência ou determinem a sua redução, nos termos do artigo 372º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil”.
Também a jurisprudência do ac RG 22-10-2018 (Fátima Furtado) www.dgsi.pt: “I) Os arrestados têm dois meios, em alternativa, para se oporem à decisão que decretou o arresto: recorrer da mesma ou deduzir oposição (art. 372.º, n.º 1, als. a) e b) do CPC). II) Caso optem pela dedução de oposição não podem pedir que se proceda à reponderação da legalidade da decisão, já que o objetivo de tal meio é só o de permitir a alegação de factos ou apresentação de meios de prova com os quais o tribunal ainda não havia sido confrontado, que possam contrariar e mesmo afastar os fundamentos da providência ou determinar a sua redução”.
Nestes termos, não se mostrando violado o disposto nos artigos 7º, 9º e 10º da Lei nº5/2002, de 11/01, improcede a pretensão recursiva.
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3. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso e em consequência confirmar integralmente a decisão recorrida.

Sem custas

Notifique.
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Acórdão elaborado pelo primeiro signatário em processador de texto que o reviu integralmente (art. 94º nº 2 do CPP), sendo assinado pelo próprio e pelo Excelentíssimo Juiz Adjunto.
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Porto, 13 de julho de 2022
João Pedro Pereira Cardoso
Raúl Cordeiro
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[1] De resto, a generalidade da doutrina e júris admitem a oposição ao arresto nos termos gerais do Código Processo Civil como meio de impugnação do arresto – cfr. João Conde Correia, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Almedina, 2019, Tomo I, anot. art. º, pg. s.d.
Em sentido contrário o ac RL 21.03.2017 (Ana Sebastião, processo 143/11.5JFLSB-A.L2-5) www.dgsi.pt, concluindo que apenas é admissível recurso e não também oposição ao despacho que decreta o arresto preventivo do art.228º do Código Processo Penal ou arresto para perda alargada de bens (art.10º, da cit. Lei nº5/2002).
[2] Sobre a diferença de natureza entre o arresto «civil» e o arresto preventivo previsto no código de processo penal, e destes, a fortiori, relativamente ao arresto previsto na aludida Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, Manuel da Costa Andrade e Maria João Antunes, in Da natureza processual penal do arresto preventivo, em Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 27, n.º 1, 2017, págs. 141-142.
[3] Com a oposição ao arresto pretende-se invalidar os fundamentos de facto com base nos quais foi determinado o decretamento da providência ou obter a redução da providência aos justos limites, alegando factos ou produzindo meios de prova não considerados antes pelo tribunal (cfr. RP 25-11-2020 – Eduarda Lobo) www.dgsi.pt).
[4] Entendimento seguido na jurisprudência do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 724/2014, de 28 de outubro de 2014. No mesmo sentido a doutrina de Augusto Silva Dias, in «Criminalidade organizada e combate ao lucro ilícito», – 2º Congresso de investigação criminal, Coimbra: Almedina, 2010, p. 47. Também neste sentido Paulo Pinto Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal Comentário do Código de Processo Penal…, 4.ª edição, Lisboa Universidade Católica Editora, 2011, p. 630; Hélio Rigor Rodrigues in Constituição de arguido e decretamento do arresto preventivo, JULGAR Online, dezembro de 2015, pg. 14.
Em sentido diferente, tendo como referência a redação do CPP anterior à entrada em vigor da Lei nº30/2017, de 30 de maio - cfr. Costa Andrade e Maria João Antunes, in «Da natureza processual penal do arresto preventivo», in RPCC (Ano 27, nº1, janeiro-abril 2017, p. 139-140 e 152.
João Conde Correia, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Almedina, 2019, Tomo I, anot. art. º, pg. s.d.
[5] Idem, pg.282.