Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
393/21.6T8MCN.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISABEL PEIXOTO PEREIRA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
USUCAPIÃO
TRANSMISSÃO DA POSSE
Nº do Documento: RP20240222393/21.6T8MCN.P1
Data do Acordão: 02/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A reapreciação da prova implica a consideração dos meios de prova indicados pela partes e o confronto com outros meios de prova disponíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido.
II – O uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
III – A prova nos termos adquiridos pelo tribunal recorrido, quanto ao uso/fruição da parcela, mostra-se perfeitamente fundamentada nos depoimentos das testemunhas arroladas pela Autora, como convocados na decisão recorrida, conhecedoras directas das condutas atestadas, pelo relacionamento intercedente com o imóvel.
IV - A antecessora da A. (e, após a aquisição, esta) exerceu sobre a parcela actos correspondentes ao direito de propriedade; os quais fazem presumir o animus na sua realização, havendo por isso posse em nome próprio; essa situação vem dos anteriores detentores do prédio inscrito no registo a favor da autora, pelo que houve transmissão da posse; tais actos são praticados de forma pública e pacífica. Assim, durando já há mais de 20 anos, estão totalmente reunidos os pressupostos para declarar a aquisição da propriedade da parcela em litígio pela Autora com fundamento no instituto da usucapião (artigos 1287.º e 1294.º do Código Civil).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 393/21.6T8MCN

Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este

Juízo Local Cível de Marco de Canaveses

Relatora: Isabel Peixoto Pereira

1º Adjunto: Isabel Silva

2º Adjunto: Aristides Rodrigues de Almeida


*

Acordam os juízes da 3.ª secção do Tribunal da Relação do Porto:

I.

A..., S.A, veio propor acção declarativa de condenação contra  AA e BB, concluindo a final pedindo:

A) – Seja reconhecido o direito de propriedade da Autora sobre o seu prédio, do qual faz parte integrante o logradouro sito na parte traseira do referido prédio em relação à estrada nacional e onde foi colocada pelos Réus a terra sobre a pavimentação;

B) – Sejam os Réus condenados a retirar a terra colocada sobre a pavimentação do logradouro propriedade da Autora em prazo a definir pelo tribunal mas, nunca superior a 30 dias após o transito em julgado da sentença;

C) - Sejam os Réus condenados a repor/reconstruir o muro de meação para o caminho de servidão de passagem existente e que delimita, em parte, o quintal propriedade dos Réus em prazo a definir pelo tribunal mas, nunca superior a 30 dias após o transito em julgado da sentença;

D) – Sejam os Réus condenados a pagar à Autora o valor de € 500,00 pelo corte e derrube do limoeiro no logradouro do prédio propriedade da Autora, a título de indemnização;

E) Sejam os Réus condenados em indemnização a arbitrar a favor da Autora, mas que nunca de valor inferior a € 4.000,00 para compensação de todas as despesas que esta se viu obrigada a suportar, nomeadamente com a contratação de advogada, por terem sido os Réus quem deram origem a tais despesas.

Estribam as pretensões na titularidade de um trato de terreno situado nas traseiras de um prédio que identificam, alegando que os RR ali procederam ao corte e derrube de um limoeiro centenário que aí existia, colocaram terra por cima do pavimento em paralelos e derrubaram parte do muro que  dividia o terreno da autora com um caminho de servidão de passagem e quintal do prédio dos réus.

Citados os réus, contestaram, aduzindo desde logo que nenhum dos comportamentos alegados pela autora o foi por si, antes pela promitente adquirente de um imóvel seu, vizinho do prédio da A, concluindo pela respectiva absolvição.

Admitido o incidente de intervenção principal provocada da adquirente do imóvel, veio a B..., Lda., contestar, afirmando-se proprietária do trato de terreno em causa, tendo-o limpo na convicção de exercer um direito próprio, mais impugnando os reclamados danos.

Deduziu ainda reconvenção, admitida, pedindo o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o trato de terreno que a autora diz pertencer-lhe, alegando que o prédio por si adquirido tem 2400m2 de área descoberta, de acordo com a caderneta predial e certidão predial, com o que a parcela em causa nele se integra.

Após julgamento, foi proferida sentença, a qual julgou a acção parcialmente procedente, por provada e, em consequência,  absolvendo os RR da totalidade das pretensões, reconheceu o direito de propriedade da Autora sobre prédio registado a favor da A., do qual faz parte integrante o logradouro sito na parte traseira do referido prédio em relação à estrada nacional e onde foi colocada pela interveniente principal a terra sobre a pavimentação ali preexistente; condenando a B..., Lda. a retirar a terra colocada sobre a pavimentação do logradouro propriedade da Autora no prazo máximo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da sentença; ainda a repor/reconstruir o muro de meação para o caminho de servidão de passagem existente e que delimita, em parte, o quintal da sua propriedade no prazo máximo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da sentença. Mais foi condenada a B..., Lda. a pagar à Autora o valor de € 500,00 pelo corte e derrube do limoeiro no logradouro do prédio propriedade da Autora, a título de indemnização.

Foi já absolvida a interveniente da reclamada indemnização para compensação de todas as despesas que a A. se viu obrigada a suportar, nomeadamente com a contratação de advogada.

Foi julgado improcedente o pedido reconvencional por não provado e, em consequência, absolvida a reconvinda do pedido contra si formulado.

Veio a interveniente principal recorrer da sentença, formulando as seguintes conclusões:

1- O tribunal andou mal ao considerar como provados os pontos 8, 9, 10, 11, 12, 13, 15, 16, 17 e 20 da matéria de facto, sendo impugnados, por não provados, e distante da realidade comum e jurídica na fundamentação de facto e de direito.

2- O ponto 8) deve ser considerado não provado, pois não ficou provado que “há cerca de mais de 50 anos, foi plantado um limoeiro, podado, tratado e regado pela anterior proprietária, a Dª. CC quando ainda residia na casa, que colhia os limões, actos que passaram a ser exercidos pela Autora a partir da sua aquisição”. Nenhuma testemunha afirmou que tinha sido a Dª CC a plantar o limoeiro e a podar, tendo sido produzida prova no sentido de que toda e qualquer pessoa ia colher limões.

3- O ponto 9) deve ser considerado não provado, pois não foi provado que em data não concretamente apurada, mas há mais de 10 anos, ainda pela anterior proprietária, veio tal parte exterior do prédio a ser revestida a paralelos. Tendo em conta do depoimento das testemunhas DD e EE, ficou notório que não foi a anterior proprietária a revestir o exterior do prédio em paralelos.

4- O ponto 10) deve ser considerado não provado, pois não ficou provado que “foram os anteriores proprietários do prédio e, posteriormente a Autora que, há mais de 50 anos procederam à limpeza do trato de terreno”. Tendo em conta os depoimentos das testemunhas e o depoimento do representante da recorrente, não foi produzida prova que pudesse considerar tal facto provado.

5- O ponto 11) deve ser considerado não provado, pois não ficou provado que era a anterior proprietária que procedia às reparações necessárias e respeitantes pavimento do logradouro, sua limpeza e manutenção, à vista de toda a gente. O tribunal considerou que há mais de 10 anos foi revestido a paralelos o pavimento do logradouro. E provou-se perante o depoimento das testemunhas DD e EE que nunca poderia ter sido a anterior proprietária, logo, ficou evidente que não sendo a proprietária (nem agindo nessa qualidade), não era quem procedia às reparações do pavimento do logradouro, limpeza e manutenção e, quem fazia isso não era à vista de toda a gente, pois o logradouro ficava na parte traseira do prédio da recorrente.

6- O ponto 12) deve ser considerado não provado, pois os actos de limpeza, fruicção e manutenção, quer do limoeiro, quer do logradouro não foram praticados pela anterior proprietária, nem à vista de toda a gente, conforme resulta da prova produzida. Tendo em conta o depoimento das testemunhas DD e EE e o depoimento do representante da recorrente, ficou notório que a anterior proprietária apenas em determinado momento cultivou o terreno, sob autorização dos proprietários, nunca tendo ficado provado que procedia à sua manutenção e limpeza. E quanto ao limoeiro, nada ficou provado.

7- O ponto 13) deve ser considerado como não provado, pois não foi provado que “do prédio da chamada faz parte uma parcela de terreno a que se acede por um caminho que vai desde a estrada nacional, confrontando de seguida com a casa da chamada e de seguida com o trato de terreno da autora”. Perante a prova documental junto aos autos, o trato de terreno é da recorrente e não da recorrida e nenhuma prova de aquisição do direito de propriedade foi feita que permita a sua aquisição.

8- O ponto 15) deve ser considerado como não provado, não pode ser aceitável tal facto como provado, devendo o mesmo ser alterado com o seguinte conteúdo:” No dia 03 de Janeiro de 2020, a chamada procedeu ao corte e derrube do limoeiro centenário existente na parte traseira do prédio da chamada”.

9 - O ponto 16) deve ser considerado não provado, pois não resulta da prova produzida que “no dia 11 de janeiro de 2020 procedeu ao derrube de parte do muro que delimitava o caminho de servidão existente à mais de 60 ou mesmo 80 anos, por forma a que com a recurso a uma máquina, pudessem aceder ao prédio da Autora anulando a divisão da propriedade da A. com a parcela de terreno adquirida pelos Réus no que respeita ao quintal bem como, parte do caminho de servidão existente, e”. Tendo em conta o depoimento da testemunha EE e do representante da recorrente, não ficou provado que tenha sido a recorrente a proceder ao derrube do muro.

10 - O ponto 17) deve ser considerado não provado, não pode ser aceitável tal facto como provado, devendo o mesmo ser alterado com o seguinte conteúdo:” procedeu à colocação de terra por cima de toda a extensão do logradouro do prédio da Chamada”.

11 - O ponto 20) deve ser considerado não provado, pois não ficou provado que “Os vizinhos, desconhecendo quem eram os proprietários do prédio, alertaram o legal representante da empresa B... Ldª, de que estava a ser invadida e danificada propriedade privada de terceiros”. Tendo em conta o depoimento das testemunhas, apenas a testemunha FF (que é familiar da recorrida e tem um interesse directo no desfecho da acção, prestando um depoimento parcial e pouco credível) referiu que viu cortarem o limoeiro, sabendo que eram os proprietários do logradouro, não tendo mais ninguém dito isso. E todos sempre souberam quem eram os proprietários actuais e anteriores do prédio da recorrente.

12 - O tribunal andou mal ao considerar não provado o ponto F) que diz “o prédio da chamada tem a configuração que se demonstra no levantamento topográfico que juntou aos autos”, deve ser considerado provado.

13 - Perante a prova produzida em tribunal, nada se provou quanto ao alegado pela recorrida, quer quanto ao limoeiro, quer quanto ao logradouro.

14 - No que respeita ao limoeiro, apenas se provou que toda a gente colhia limões, conforme decorreu do testemunho de EE, do representante da recorrente e da testemunha DD, não tendo ninguém afirmado que este tinha sido plantado pela anterior proprietária do prédio da recorrida, sendo ridículo peticionar uma indemnização € 500,00 euros por um limoeiro que estava ao abandono, sem ter sido produzida prova que demonstrasse ter sido plantado por terceiros.

15 – Quanto ao logradouro, apenas se provou que a Dª CC cultivou num determinado momento temporal o terreno (ninguém soube identificar o início e o fim), nunca podendo ter acreditado ser a única dona e proprietária, pois conhecia e sabia quem eram os donos (frequentavam o seu café e visitavam periodicamente o imóvel). Existiu uma carpintaria no logradouro há 25 anos (dito pela representante da recorrente e pela testemunha FF). E ficou provado em tribunal que não foi a Dª CC que colocou os paralelos no pavimento, ou seja, não era a Dª CC quem procedia às reparações e manutenção do pavimento do logradouro, e não se provou que procedia à limpeza do terreno, ou seja, nada se provou quanto à titularidade da posse invocada pela recorrida.

16 -Não foi invocada a usucapião pela recorrida, o que limita o poder de cognição do tribunal, nos termos do artigo 615.º n.º1 alínea a) e e) do CPC.

17 – Não estão preenchidos os elementos da posse: corpus e animus e, equacionando ter existido detenção ou posse precária, teria de haver inversão do título da posse, comunicar a intenção de actuar como titular do direito, o que não aconteceu, como exige o artigo 1290.º do Código Civil.

18 - Há um aproveitamento da tolerância dos proprietários, nunca tendo sido alegada matéria que permitisse fixar uma data em que tivessem passado a agir com a intenção  de exercer o direito de propriedade sobre o terreno, nunca tendo evidenciando sequer a intenção de exercer esse direito, nem sido invocada a usucapião pela recorrida.

19 - As certidões prediais juntas aos autos comprovam que o prédio da recorrente tem uma área descoberta de 2400 m2, da qual faz parte o logradouro em discussão nos autos (pertencente à traseira do prédio da recorrente) e outro terreno do lado esquerdo do prédio da chamada (estando de frente para o prédio da chamada).

20 - O facto de terem deixado cultivar o terreno (tendo sido produzida prova onde é notório que toda a gente conhecia e sabia que o terreno tinha os donos, os tais senhores do Porto, que frequentavam o café da Dª CC), não é motivo nem aceite que se possa formar a convicção de que, por efeito dessa autorização de cultivo do terreno, a mesma tenha passado a agir sobre o terreno como única dona e com plena consciência de que era a sua proprietária.

21 - Os actos invocados pela recorrida não são adequados a transmitir a posse em termos de direito de propriedade, integrada pela convicção de que se passou a ser titular de tal direito sobre o bem possuído.

22 - Estamos perante uma decisão incorrecta e injusta, que resulta de uma notória e ilógica apreciação e valoração das provas e uma fixação imprecisa dos factos relevantes à decisão, com uma deficiente aplicação do direito.

Conclui pela improcedência da acção e pela procedência da reconvenção.

Após os vistos legais, cumpre decidir.

Questões a decidir:

As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
i.Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
ii.Da verificação dos pressupostos da aquisição originária da propriedade da parcela em litígio pela A.  e da invocação da usucapião pela Autora.
i.

«Nos termos do artigo 639.º do Código de Processo Civil as alegações de recurso dividem-se em corpo das alegações, nas quais o recorrente expõe os fundamentos ou argumentos através dos quais procura convencer o tribunal de recurso da sua razão, e conclusões das alegações, nas quais o recorrente sintetiza as concretas questões que pretende que o tribunal de recurso aprecie e o sentido com que as deverá decidir.

Com base nos artigos 608.º, nº 2, 609.º, n.º 1, 635.º, nº 4, e 639.º, do Código de Processo Civil constitui jurisprudência reafirmada ad nausea que o thema decidendum do recurso é estabelecido pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não sendo permitido ao tribunal ad quem conhecer de questões que extravasem as conclusões de recurso, excepto se as mesmas forem de conhecimento oficioso. 

A delimitação do objecto do recurso pela formulação das conclusões das alegações conduz a que seja em função destas, e não propriamente do corpo das alegações (ainda que estas possam servir para interpretar aquelas) que se devam interpretar a balizar as questões que o tribunal de recurso pode e deve conhecer, as quais só podem exceder o mencionado nas referidas conclusões no caso de se tratar de questões de conhecimento oficioso e cujo conhecimento não esteja precludido ou prejudicado. 

Servindo as conclusões de recurso para sintetizar as questões que se pretende que o tribunal aprecie e o sentido com que as deverá decidir, no caso em que uma dessas questões é a impugnação da decisão da matéria de facto, terão forçosamente de fazer parte das conclusões itens especificando essa pretensão. 

Para impugnar a decisão da matéria de facto o recorrente tem de especificar, obrigatoriamente e sob pena de imediata rejeição do recurso nessa parte, os seguintes aspectos: os concretos pontos de facto considerados incorrectamente julgados, os concretos meios probatórios que na óptica dos recorrentes impunham decisão diversa e o sentido da decisão que deve ser proferida, sendo que no tocante aos depoimentos gravados carece de indicar as passagens da gravação em que se funda o seu recurso (artigo 640.º do Código de Proc. Civil)» (sic, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28.09.2023, Relator: Aristides Rodrigues Almeida, aqui Segundo Adjunto, no Processo sob o número 1383.20.1T8LOU.P1, ainda inédito)

Ora, «a possibilidade de reapreciação da prova produzida em 1ª instância, enquanto garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, está, como é consabido, subordinada à observância de determinados ónus que a lei adjetiva impõe ao recorrente.

Na verdade, a apontada garantia nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida na audiência final, impondo-se, por isso, ao recorrente, no respeito dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa-fé processuais, que proceda à delimitação com, toda a precisão, dos concretos pontos da decisão que pretende questionar, os meios de prova, disponibilizados pelo processo ou pelo registo ou gravação nele realizada, que imponham, sobre aqueles pontos, distinta decisão, e a decisão que, no ver do recorrente, deve ser encontrada para os pontos de facto objeto da impugnação.» (sic, Acórdão da Relação do Porto de 29.06.2023, Relator: Ernesto Nascimento, acessível na base de dados da dgsi).

Neste sentido, preceitua, sob a epígrafe “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, dispõe o n.º 1 do art. 640º do C. P. Civil, que: “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Por seu turno, ainda, em conformidade com o n.º 2 do mesmo normativo, sempre que “ (…) os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.” (sublinhado nosso).

Deve, assim, o recorrente, sob cominação de rejeição do recurso, para além de delimitar com precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, motivar ainda o seu recurso através da indicação das passagens da gravação que reproduzam os meios de prova que, no seu entendimento, determinam decisão diversa da que foi proferida sobre a matéria de facto.

Os aspetos fundamentais que o recorrente deve assegurar neste particular prendem-se com a definição clara do objeto da impugnação (clara enunciação dos pontos de facto em causa); com a seriedade da impugnação (meios de prova indicados ou meios de prova oralmente produzidos que são explicitados) e com a assunção clara do resultado pretendido (indicação da decisão da matéria de facto diversa da decisão recorrida).

Porém, importa que não se sobrevalorizem os requisitos formais a um ponto que seja violado o princípio da proporcionalidade e seja denegada a reapreciação da decisão da matéria de facto com a invocação de fundamentos que não encontram sustentação clara na letra ou no espírito do legislador.

Assim, como salienta Abrantes Geraldes[1] o Supremo Tribunal de Justiça “vem batalhando precisamente no sentido de evitar os efeitos de um excessivo formalismo que ainda marca alguns acórdãos das Relações, promovendo que o esforço que é aplicável na justificação de soluções que exponenciam aspectos de natureza meramente formal sem suficiente tradução na letra da lei, nem no espírito do sistema, seja canalizado para a efectiva apreciação das impugnações de matéria de facto”.[2] Neste sentido, mais recentemente o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 12/2023, de 14 de novembro, publicado no Diário da República n.º 220/2023, Série I de 2023-11-14, páginas 44 – 65.

Por outro lado, na fase da admissão formal do recurso de apelação em que é impugnada a decisão da matéria de facto, importa que se estabeleça uma clara separação entre os requisitos formais e os ligados ao mérito ou demérito da pretensão que será avaliado em momento posterior. Deste modo, havendo “sérios motivos para a rejeição do recurso sobre a matéria de facto (maxime quando o recorrente se insurja genericamente contra a decisão, sem indicação dos pontos de facto, quando não indique de forma clara nem os pontos de facto impugnados, nem os meios de prova em que criticamente se baseia ou quando nem sequer tome posição clara sobre a resposta alternativa pretendida) tal efeito apenas se repercutirá nos segmentos afectados, não colidindo com a admissibilidade do recurso quanto aos demais aspectos[3].

Tendo, assim, presente este enquadramento legal, cumpre decidir.

No caso em apreço, a recorrente, cumprindo os apontados requisitos formais, pretende a alteração da factualidade dada como assente e não assente, de modo que a factualidade havida como provada sob 8 a 20 seja havida como indemonstrada e sempre provada aquela havida por não adquirida sobre f), a determinar, assim, a improcedência da acção e a procedência da reconvenção.

Tendo presente, assim, a fundamentação convocada pelo tribunal recorrido e a impugnação deduzida pelos recorrentes, importa saber se, procedendo este tribunal superior à reanálise dos meios probatórios convocados, a sua própria e autónoma convicção é coincidente ou não com a convicção evidenciada, em sede de fundamentação, pelo tribunal recorrido e, por inerência, se se impõe uma decisão de facto diversa da proferida por este último, nos concretos pontos de facto postos em crise.

Com efeito, em sede de reapreciação da prova gravada no âmbito do recurso da decisão sobre a matéria de facto, haverá que ter em consideração, como sublinha Abrantes Geraldes[4], que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, nessa sua reapreciação tem ele autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia.

«Assim, competirá ao Tribunal da Relação reapreciar de forma crítica as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, sujeito às mesmas regras de direito probatório a que se encontrava sujeito o tribunal recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que tenham sido produzidos nos autos, incluindo, naturalmente, os que tenham servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.

De facto, o acesso direto do Tribunal da Relação à gravação integral do julgamento antes efetuado, terá de permitir-lhe, na formação da sua própria e autónoma convicção, sustentada numa análise crítica da prova, para além da apreciação dos concretos meios probatórios que tenham sido indicados pelo recorrente, a ponderação e a reanálise de todos os meios probatórios produzidos, sujeitos às mesmas regras de direito probatório material a que se encontra sujeito o tribunal de 1ª instância, enquanto forma, por um lado, de atenuar a inevitável quebra dos princípios da imediação e da oralidade suscetíveis de exercer influência sobre a convicção do julgador, e, por outro, ainda, de evitar julgamentos descontextualizados ou parciais, submetidos apenas à leitura dos meios probatórios convocados pelo recorrente.

Pretende-se, pois, uma visão global, integrada e contextualizada de todos os meios probatórios produzidos, como garantia de uma decisão de facto o mais próxima possível da realidade, sem que tal implique a procura de uma verdade ou de uma certeza naturalística ou absoluta, que é, por princípio, insuscetível de ser alcançada.

Por outro lado, ainda, no que se refere à reapreciação da prova, em particular quando se trata de reapreciar a força probatória dos depoimentos/declarações prestados pelas partes ou por testemunhas ou, ainda, a reapreciação da prova pericial, é de recordar que no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da livre apreciação da prova[5], princípio que expressamente se consagra no art. 607º, n.º 5, do C. P. Civil.[6]» (Acórdão do STJ de 12.11.2020, Relator: Oliveira Abreu, na base de dados da dgsi.)

De facto, ao contrário do que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, sem pré-fixação legal do mérito de tal julgamento, mas sempre sendo de exigir que esse mérito decorra de uma apreciação crítica e integrada de todo o acervo probatório produzido, ou seja, de uma ponderação da prova produzida à luz das regras da experiência humana, da lógica e, se for esse o caso, das regras da ciência convocáveis ao caso, ponderação essa que deverá ficar plasmada na fundamentação do decidido (art. 607º, n.º 4, do C. P. Civil).

Como refere Miguel Teixeira de Sousa[7], a propósito do sistema de prova livre, o que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique “os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado. A exigência de motivação da decisão não se destina a obter a exteriorização das razões psicológicas do juiz, mas a permitir que o juiz convença os terceiros da correcção da sua decisão.

Nesta perspetiva, se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis, segundo as regras da lógica, da ciência ou da experiência, à partida, ela será inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção.

«Todavia, face aos actuais poderes da Relação ao nível da reapreciação da decisão de facto, daí não decorre que não possa e não deva o tribunal ad quem analisar, também ele, criticamente, e sujeito às mesmas regras da experiência, da lógica e da ciência, a prova produzida, formando ele próprio, uma nova e autónoma convicção, caso em que, constatando, que ela não é coincidente com a convicção formada pelo Sr. Juiz de 1ª instância, deverá efetuar as correções na matéria de facto que aquela sua convicção lhe imponha. Quando um Tribunal de 2ª instância, ao reapreciar a prova, valorando-a de acordo com o princípio da livre convicção, a que também está sujeito, conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, uma convicção segura acerca da existência de erro de julgamento da matéria de facto, deve proceder à modificação da decisão, afirmando os reconhecidos poderes que lhe foram atribuídos enquanto tribunal de instância que garante um segundo grau de jurisdição.

Deste modo, quando o Tribunal da Relação é chamado a pronunciar-se sobre a reapreciação da prova, no caso de se mostrarem gravados os depoimentos ou estando em causa a análise de meios prova reduzidos a escrito e constantes do processo, deve o mesmo considerar os meios de prova indicados pela partes e confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido, seja no sentido de decidir em sentido oposto ou, num plano intermédio, alterar a decisão no sentido restritivo ou explicativo.[8]» (sic. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 18.03.2021, Relator: Barroca Penha, acessível no mesmo sítio)

Importa, porém, não esquecer que se mantêm-se em vigor os princípios de imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, pelo que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.

Assim, “em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância, em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte”.[9]

Feitas estas considerações prévias, cumpre-nos, pois, conhecer da factualidade impugnada pela recorrente.

É a seguinte a matéria de facto provada e não provada:

1. Quanto ao prédio urbano, sito no Lugar ..., freguesia ..., inscrito na matriz sob o artigo ..., mostra-se registado a favor da Autora o respectivo direito de propriedade na Conservatória de Registo Predial, sob a descrição ...[10].

2. De acordo com a certidão matricial do artigo 528 o mesmo foi inscrito em 1953 e descrito como casa de 3 pavimentos e logradouro.

3. O prédio da Autora é composto por área coberta e descoberta, existindo há mais de 100 anos.

4. O direito de propriedade sobre o prédio urbano, composto de casa de 2 pavimentos, sito no ..., inscrito na matriz sob o artigo ... e descrito na Conservatória de Registo Predial do Marco de Canaveses pela descrição ... encontra-se inscrito a favor dos réus pela ap. ... de 03.12.2019.

5. Tal direito adveio à esfera dos réus por compra efetuada através de leilão eletrónico no âmbito do processo de inventário que correu termos com o n.º 1350/2016[11].

6. Por escritura pública de compra e venda datada de 22.06.2021 os réus declararam vender à B..., Lda. que declarou comprar o prédio referido em 4.

7. Na parte traseira do prédio da Autora, com a área de 100 m2, a partir/para lá da parede da casa ali implantada e na direcção ou sentido do prédio da Ré[12], e existe um trato de terreno onde há cerca de pelo menos 50 anos atrás, existiam videiras e um local para criação de galinhas e

8. há cerca de mais de 50 anos, foi plantado um limoeiro, podado, tratado e regado pela anterior proprietária, a D.ª CC quando ainda residia na casa, que colhia os limões, atos que passaram a ser exercidos pela Autora a partir da sua aquisição.

9. Mais tarde, em data não concretamente apurada, mas há mais de 10 anos, ainda pela anterior proprietária, veio tal parte exterior do prédio a ser revestida a paralelos.  Essa parcela

10. Foram os anteriores proprietários do prédio e, posteriormente a Autora que, (desde) há mais de 50 anos procederam à limpeza do trato de terreno.

11. Era a anterior proprietária quem procedia às reparações que, com o decurso do tempo, foram necessárias respeitantes ao pavimento do logradouro, sua limpeza e manutenção, tudo à vista de toda agente e sem qualquer oposição de terceiros.

12. Os atos de limpeza, manutenção e fruição quer do limoeiro quer do logradouro, quer do muro de meação foram praticados pela anterior proprietária a expensas suas, à vista de toda a gente, de forma ininterrupta e continua, sem qualquer oposição de terceiros.

13. Do prédio da chamada faz parte uma parcela de terreno a que se acede por um caminho que vai desde a estrada nacional, confrontando de seguida com a casa da chamada e de seguida com o trato de terreno da autora.

14. Tal parcela de terreno ou quintal dista cerca de 40 a 50 metros da casa.

15. No dia 3 de janeiro de 2020 a chamada procedeu ao corte e derrube do limoeiro centenário existente na parte traseira do prédio da autora.

16. No dia 11 de janeiro de 2020 procedeu ao derrube de parte do muro que delimitava o caminho de servidão existente à mais de 60 ou mesmo 80 anos, por forma a que com o recurso a uma máquina, pudessem aceder ao prédio da Autora anulando a divisão da propriedade da A. com a parcela de terreno adquirida pelos Réus no que respeita ao quintal bem como, parte do caminho de servidão existente, e

17. procedeu à colocação de terra por cima de toda a extensão do logradouro do prédio da Autora.

18. Na data dos factos referidos em 15, 16 e 17 os réus tinham declarado prometer vender à B..., Lda. que declarou prometer comprar o prédio referido em 4.

19. Em presença da situação supra descrita, em 13 de janeiro do ano de 2020, pelas 15H50mn, a Autora procedeu ao embargo extrajudicial da obra que se encontrava a ser executada pela empresa denominada B... Ldª.

20. Os vizinhos, desconhecendo quem eram os proprietários do prédio, alertaram o legal representante da empresa B... Ldª, de que estava a ser invadida e danificada propriedade privada de terceiros.

Factos não provados

A. O prédio da Autora existe há mais de 60 e mesmo 70 anos no estado em que se encontrava o seu exterior - respetivo logradouro - antes da intervenção dos Réus.

B. Após a aquisição do prédio pela Autora, tais atos de tratar, cuidar, plantar, colher os frutos, pavimentar, manutenção da pavimentação e outros, continuaram a ser por si exercidos em tal prédio e seu logradouro, com a convicção de lhe pertencer

C. Os atos referidos em 15, 16 e 17 foram praticados pela chamada por ordem dos réus.

D. Nas circunstâncias referidas no artigo 20, também foi alertado o Sr. GG da empresa imobiliária que havia sido contratada pelos Réus para promover a venda.

E. Não obstante as muitas e diversas tentativas efetuadas pela Autora para que a terra fosse retirada, certo é que os Réus até à presente data não colocaram o logradouro no estado em que existia anteriormente a tal ação.

F. O prédio da chamada tem a configuração que se demonstra no levantamento topográfico que juntou aos autos.

G. Nunca existiu nenhum muro divisório junto ao caminho de servidão a delimitar a propriedade da autora.


*

Desde logo, da leitura atenta dos factos assentes não resulta, ao contrário do que opõe a recorrente, que tenha sido dado como provado que foi a anterior proprietária do prédio registado a favor da Autora quem plantou o limoeiro cortado pela Recorrente… O que resulta é que aquele existia há mais de 50 anos e era fruído por aquela anterior proprietária, a qual permitia que os limões fossem colhidos por várias das testemunhas arroladas pela Autora, as quais, todas, confirmaram que a autorização para aproveitar os limões o era por aquela D. CC, a ante proprietária do prédio da A.

Bem assim não ressalta da matéria de facto provada quem procedeu à pavimentação da parcela ou quando exactamente o foi pavimentada, sem prejuízo da conformidade da atestação daquela pavimentação há largo tempo e da necessária inferência pela respectiva responsabilidade/autoria…

Na verdade, a prova trazida a juízo pela Autora e cabalmente referida na decisão recorrida caracterizou unanimemente o uso, gozo, fruição, ainda mediante autorização a terceiros para a respectiva ocupação, da parcela reivindicada, pela anterior proprietária da casa implantada/existente no prédio registado a favor da Autora… Assim, desde logo, o cuidado com o limoeiro e a colheita dos seus frutos, como bem assim a permissão ou autorização a outros para realizarem/aproveitarem os limões, o cultivo primeiro da parcela, a milho e vinha, a ulterior/posterior autorização para nela serem depositados bens de terceiros, sendo que nessa parte mais resultou do depoimento da testemunha HH que um tal uso foi ademais consentido ou ao menos tolerado pela Autora, porquanto respeitando já ao comportamento de um arrendatário desta… Sempre ainda a implantação em área daquele logradouro ou parcela de infraestruturas de apoio ao café explorado na casa, assim wc e atinentes à mesma casa, assim fossas. Como a implantação de um galinheiro e respectivo uso mediante autorização da mesma ante proprietária e possuidora.

De resto, é o próprio gerente de facto da Recorrente, a quem foi tomado depoimento de parte, nos termos que da acta de audiência de julgamento melhor resulta, quem caracteriza o domínio da parcela pela anterior proprietária, mediante o respectivo uso, fruição e utilização, atestando uma série de actos materiais inequívocos: o galinheiro, a autorização para a colheita de limões, o cultivo de milho e vinha, a ocupação da parcela com infraestruturas beneficentes da casa e café naquela instalado, a autorização ou tolerância na ocupação com materiais de construção e veículos…

Ora, estas condutas ou actos materiais objectivos permitem a inferência, em sede de prova mesma, pela intenção subjacente, a de possuir a parcela ou logradouro em termos de um direito de propriedade.

É que apenas e só aquele gerente de facto da Recorrente, que não também qualquer outra prova isenta e desinteressada, v.g., os antepossuidores do prédio adquirido pela recorrente ou mesmo o referido ocupante deste que também teria usado a parcela em apreço como depósito de materiais, se reportaram a um comportamento assente já na mera tolerância, consentimento e até amizade dos ante proprietários do imóvel que veio a adquirir a recorrente…

As declarações de parte sobre factos que lhe sejam favoráveis devem ser apreciadas pelo tribunal, sendo valoradas segundo o princípio da livre apreciação da prova, consagrado nos artigos 396.º do Código Civil e 607.º n.º 5, do CPC, em conjunto com as demais provas produzidas, designadamente, a testemunhal e documental (que não tenha força probatória plena). Bem assim as declarações de testemunhas relacionadas com as partes mesmas.

Ora, ninguém, se não o referido gerente de facto,  se referiu a um único comportamento de uso ou fruição por qualquer caseiro do prédio ora da Recorrente, ressalvado o já aludido depósito de materiais, sem outra confirmação e sempre desmentido pelas testemunhas arroladas pela Autora (assim, desde logo, HH) que remeteram os materiais de construção depositados na parcela, como corroborado pelas fotografias juntas aos autos, a uma empresa instalada no prédio da A…)…

Ora, sendo a posse relevante, por natureza, o mais publicitado/público dos comportamentos, não se mostra desprezível que apenas o interessado mais directo na acção se tenha reportado ao comportamento contra-indiciário…

Totalmente efabulatório o segmento deste depoimento que se reportou já à tolerância ou amizade com os proprietários do imóvel que veio a adquirir pela ante proprietária do imóvel da Autora… Pela contrariedade a juízos de normalidade ou regras da experiência, visto o lapso de tempo pelo qual se prolongou a fruição/ocupação, mas, decisivamente, a implantação na parcela de infraestruturas permanentes de serventia à casa… e, de forma não escamoteável, a atestada ocupação para cultivo, também pela antepossuidora do prédio da Autora de uma parte do prédio ora da Recorrente, entretanto cessada ou terminada, com a restituição aos proprietários nessa parte, mantendo-se incólume o uso ou fruição da parcela em discussão nos autos…

Desmente aqueles comportamentos apenas de favor e sem a consciência e vontade de actuação a domino e sem margem para dúvidas, tal a incongruência dos comportamentos e o significado concordante ou coincidente dos factos indiciários que acabam de elencar-se, no sentido da integração efectiva e da posse em termos de um direito de propriedade pela antepossuidora da Autora e após por esta mesma, já que mantendo-se ao menos a ocupação com materiais, com esse animus, inferível ou presumido dos comportamentos objectivos da utilização/fruição sem prestar contas a quem quer que seja.

«Assim é que quando os factos têm intervenção humana ou são resultado dessa actuação, perscrutar a realidade desse facto é, antes de mais, averiguar a razão que subjaz a essa actuação, que lhe dá origem e a orienta e, sobretudo, apurar se a mesma é compatível com o quadro de actuação que qualquer outra pessoa nas mesmas circunstâncias teria. Por isso que um dos elementos decisivos para a formação da convicção do julgador é a verosimilhança dos factos sobre os quais recai a controvérsia, i.é., a pertinência lógica dos mesmos ao domínio dos acontecimentos humanos que, por definição, possuem motivações apreensíveis, são orientados para um fim compreensível e delineados por processos intelectualmente aptos e estão de acordo com o que as regras da experiência nos ensinam ser expectável, corresponder ao devir normal.

Comportamentos privados de racionalidade, opostos ou diferentes da actuação que o comum dos cidadãos teria, cuja lógica ou motivação não é sequer perceptível ou se mostra destituída de coerência, são estranhos e como tal, ainda que possíveis, são pouco prováveis, indiciando que ou o comportamento não foi realmente aquele que é afirmado ou que o seu objectivo é diferente daquele que se pretende.» (sic, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23.02.2023, Relator: Aristides Rodrigues de Almeida, na base de dados da dgsi)

Sempre a construção/ocupação de uma parcela de um prédio alheio com infraestruturas como fossas ou wc comporta uma imediata lesão ou afectação do valor deste, facto que os ante proprietários do imóvel da A não podiam desconhecer…

Mas é ainda a atitude após a aquisição do imóvel pela A, visto ademais o tempo decorrido até à aquisição pela Recorrente, que é perfeitamente contrária ao comportamento normal/usual/espectável de um homem comum. Se o “altruísmo” durante o tempo em que o edificado foi usado pela “amiga”, a antepossuidora do prédio da A., podia aparentar ser justificado em função do relacionamento privilegiado intercedente (a que, repita-se, apenas o gerente de facto da recorrente se referiu), que dizer do desinteresse, rectius, do perfeito alheamento, feito abandono e inércia, com prejuízo mesmo para a integridade do imóvel, ao sabor de infestantes e silvas de uma parte de um prédio seu…Incompreensível, ilógico, inverosímil, incredível…

Não se afirma, sem mais, a irrelevância da prova integrada por declarações de parte…  Desde há muito que se enfatiza que o interesse da testemunha na causa não é fundamento de inabilidade, devendo apenas ser ponderado como um dos factores a ter em conta na valoração do testemunho. Assim, «Nada impede assim que o juiz forme a sua convicção com base no depoimento de uma testemunha interessada (até exclusivamente com base nesse depoimento) desde que, ponderando o mesmo com a sua experiência e bom senso, conclua pela credibilidade da testemunha.» (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15.3.2012, Deolinda Varão, 6584/09).

A credibilidade das declarações tem de ser aferida em concreto e não em observância de máximas abstractas pré-constituídas.

Ora, na situação decidenda, relevou-se que as declarações pelo gerente de facto da recorrente não foram corroboradas, documental ou testemunhalmente, sendo que decisiva a falta de prova testemunhal da posse pelos antepossuidores do prédio da A., o acto desejavelmente mais público para poder relevar/convencer.

A prova, pois, nos termos adquiridos pelo tribunal recorrido, quanto ao uso/fruição da parcela, mostra-se perfeitamente fundamentada nos depoimentos das testemunhas arroladas pela Autora, como convocados na decisão recorrida, conhecedoras directas das condutas atestadas, pelo relacionamento intercedente com o imóvel.

Sempre, finalmente, inconcludentes os documentos registrais ou matriciais. Nesta sede de pouco (ou nada) valem a descrição registral ou matricial de um prédio: como vem entendo a jurisprudência, a presunção derivada do registo predial não abrange a área e as confrontações dos prédios, porque nada pode garantir a sua exactidão (neste sentido, os Acs. do STJ de 11.05.93, 7.03.95, 4.04.95, 11.06.95, 22.04.97, 31.10.97, 9.02.99 e 29.06.99). Na verdade, como escreve Jorge de Seabra Magalhães (Estudos de Registo Predial, Coimbra, 1986, ps. 64 - 65), «o registo não dispõe do necessário suporte de dados topográficos que nele se incorpore ou possa, ao menos, servir-lhe de referência. Os prédios são então descritos e actualizados com base em declarações que os intervenientes prestam nos títulos, ou os interessados perante a conservatória, em qualquer caso sem. nenhuma espécie de autenticidade nem garantia de precisão.  «A situação e denominação de um prédio rústico ajudam-nos, é certo, a identificá-lo, mas, em si próprias, nada, nos dizem acerca da sua configuração e limites. Com excepção dos elementos naturais ou de carácter permanente – por isso mesmo, muito significativos –, a menção das confrontações revela-se efémera e contingente, até porque não situa em concreto a linha divisória com o prédio do vizinho nem indica, ao menos como regra, a forma e a extensão dessa linha. De igual modo quanto à área do prédio, já que a uma superfície idêntica podem corresponder os polígonos mais diversos.» «Em suma, a descrição em termos puramente literários constitui um critério de reprodução indirecta, rudimentar e aleatória, que não exclui erros grosseiros nem manipulações fraudulentas».

De resto, da descrição documental do prédio da Autora consta também uma área de logradouro, perfeitamente compatível, pois, com a parcela em discussão nos autos…

E, conclua-se, o levantamento topográfico junto aos autos pela interveniente recorrente constitui-se como um exercício de identificação “interessada” (assim elaborado a mando e expensas desta, mediante a indicação da composição e limites a seu bel prazer), directa e imediatamente influído pela área descoberta do imóvel adquirido indicada na documentação, como mais se evidenciou no depoimento do já aludido gerente de facto da Recorrente.

E por isso se adiantou a total ausência de prova pela Recorrente dos factos em que estribava a sua pretensão reconvencional, a saber, ela sim[13] a integração ou pertença da parcela ao imóvel registado a seu favor.

Donde, perfeitamente correcta a valoração da prova[14] pela M.ma Juiz recorrida e totalmente improcedente a argumentação da Recorrente quanto ao erro na respectiva apreciação…

Cabe julgar, pois, insubsistente a pretendida alteração da matéria de facto pretendida pela recorrente, mantendo-se aquela nos termos decididos pela primeira instância.

ii.

Entre os meios judiciais de defesa do direito de propriedade avulta a acção de reivindicação, que constitui o instrumento legal mais vigoroso posto à disposição do proprietário para lhe garantir o gozo do direito sobre a coisa que lhe pertence, quando dele efectivamente privado. Daí que Pires de Lima – Antunes Varela a definam como «a pretensão do proprietário não possuidor contra o possuidor não proprietário ou do proprietário possuidor contra o detentor».

Nesta acção, o autor (reivindicante), invocando o título de proprietário de certa coisa na posse – ou na detenção – de outrem pretende que, reconhecido judicialmente o seu direito, o possuidor – ou o detentor – seja, em consequência, condenado a restituí-la – cfr. art. 1311.º, n.º 1, do Código Civil. A acção deve, pois, ser proposta contra quem, no momento da propositura, for possuidor ou detentor da coisa reivindicada.

Porque o fundamento da pretensão do autor e dos reconvintes assenta na sua qualidade de proprietário da coisa reivindicada   cfr. art. 498.º, n.º 2, 2.ª parte, do Código de Processo Civil –, cabe-lhes o ónus de provar os factos por virtude dos quais a adquiriu.

Desde logo, como já se adiantou, no caso em apreço são imprestáveis os registos prediais de que beneficiam ambas as partes. Assim é que estes não demonstram, por si, que a parcela em causa nos autos seja parte  dos imóveis registados em favor da A. ou da Reconvinte/Recorrente.

No domínio jurídico dos direitos reais, vigora no direito nacional a máxima nemo plus iuris in alium transfere potest quam ipse habet, segundo a qual ninguém pode transferir para terceiros mais direitos do que tem ou direitos que não tem. É esta regra que inspira, por exemplo, o princípio do trato sucessivo do registo predial. 

Em virtude dessa regra, o reconhecimento do direito de propriedade só pode ser fundamentado em factos constitutivos da aquisição do direito de propriedade e esta, em princípio, só é possível através da demonstração de uma forma de aquisição originária, uma vez que na transmissão derivada estaria sempre por demonstrar que o transmitente era efectivamente titular do direito que declarou transmitir.

Querendo ser reconhecido como proprietário o reivindicante deve fazer a prova dos factos onde radica a aquisição do direito de propriedade, a prova de uma forma de aquisição originária. Outra possibilidade consiste na demonstração de factos a que correspondam presunções de domínio não afastadas pela parte contrária, designadamente a que derivam do registo predial ou da posse. 

Pela via da aquisição originária, para poder obter o reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel é, portanto, necessário que a parte demonstre que se encontra na posse do imóvel e que essa posse reúna os requisitos necessários (pública e pacífica) e a duração suficiente para permitir a aquisição do direito por usucapião (forma de aquisição originária que se sobreporia a qualquer direito anterior).

Resulta do disposto nos artigos 1287.º e 1288.º do Código Civil que a posse não conduz automaticamente à aquisição do direito correspondente, gerando somente a faculdade de o possuidor poder adquirir o direito, para o que, no entanto, necessita de invocar a usucapião. 

Essa invocação tem naturalmente de ser feita pelo possuidor, mas os actos de posse que relevam para efeito de contagem do prazo de usucapião não são somente os do próprio possuidor. Se o anterior possuidor tiver falecido, a posse continua nos sucessores pelo que para aquele efeito se entrará em linha de conta com o tempo de posse do antecessor (artigo 1255.º do Código Civil). Se o anterior possuidor tiver transmitido a posse por actos entre vivos (artigo 1264º, n.º 2, do Código Civil), o novo possuidor pode juntar à sua posse a posse do antecessor (artigo 1256.º do Código Civil).  

Em síntese, não sendo possível recorrer à presunção de titularidade do direito emergente do registo de que que beneficiam reciprocamente a A. e a Reconvinte, a questão do direito de propriedade sobre a parcela em questão não pode resolver-se senão pelo recurso a outras formas de aquisição do direito, o que anteviu a A., que alegou, adiante-se, os factos integradores da aquisição por usucapião. Vejam-se, concludentemente, os factos sob os artigos 24º a 36º da petição inicial…

Improcede, pois, a argumentação da recorrente, de que a Autora não invocou a aquisição originária da parcela e, assim, a usucapião. Confrontem-se bem assim o objecto da acção e os temas da prova em sede de saneamento do processo, que confirmam a recondução da causa de pedir à aquisição originária do direito pela A., por via da usucapião, como emerge ademais do objecto da prova e dos factos tidos por relevantes na sentença.

Incompreensível mesmo a alusão no recurso a uma tal ausência, quando o cerne da produção da prova se reconduziu, precisamente, à verificação dos actos de posse alegados…

«Na noção do artigo 1251º do Código Civil, a posse consiste no «poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real». Como é sabido, o nosso sistema jurídico parece ter adoptado o chamado sistema subjectivo da posse desenvolvido por Savigny por oposição ao sistema objectivo desenvolvido por Ihering, daí resultando que a aquisição por usucapião do direito correspondente aos poderes de facto sobre a coisa não se basta com o exercício destes (o corpus), sendo ainda necessário o chamado animus possidendi. O animus é normalmente definido como a intenção de agir como titular do direito correspondente ao poder de facto que se exerce. Não basta, pois, que se exerça o poder de facto com a intenção de tirar proveito próprio desse exercício, de aproveitar as utilidades dessa forma retiradas da coisa, é indispensável que haja uma intencionalidade de obtenção de efeitos jurídico-reais, a intenção de afirmar ou alcançar a titularidade em nome próprio do direito real correspondente aos poderes de facto.

Como adverte Orlando de Carvalho, há uma relação biunívoca ou de interdependência entre esses dois elementos, pelo que não existe corpus sem animus, nem animus sem corpus: “Corpus é o exercício de poderes de facto que intende uma vontade de domínio, de poder jurídico-real. Animus é a intenção jurídico-real, a vontade de agir como titular de um direito real, que se exprime (e hoc sensu emerge ou é inferível) de certa actuação de facto” - cf. Orlando de Carvalho, in Introdução à Posse, na Revista de Legislação e Jurisprudência (1989), n.º 3780, pág. 68 e segs., e n.º 3810 (1992), pág. 261 -.

Ainda segundo o mesmo autor “(…) a usucapião requer que a posse tenha certas características, que seja, de algum modo, “digna’ do direito a que conduz. O que nela se homenageia, digamos, é menos a posse em si do que o direito que a mesma indicia, que a prefiguração do direito a cujo título se possui. Donde a exigência, em qualquer sistema possessório, de uma posse em nome próprio, de uma intenção de domínio – e uma intenção de domínio que não deixe dúvidas sobre a sua autenticidade” - cf. Introdução à Posse, Revista de Legislação e Jurisprudência, n.º 3780, pág. 67.

Por isso, o poder de facto em que se traduz o corpus tem de possuir um mínimo de estabilidade, embora não continuidade no tempo. Essa estabilidade dos poderes de facto depende naturalmente da afectação concreta do bem, da normal utilização que o mesmo permite e da forma de aquisição da posse. Já o animus, carece de ser seguro e inequívoco, revelando uma intenção clara de se exercerem poderes de facto sobre a coisa, de agir como titular do direito de propriedade ou de outro direito real. Isto, porque «sobre o carácter real do direito que os actos “intendem” não pode haver dúvidas, pois a ausência total de animus possidendi é insuprível». Donde resulta afinal que só estando comprovado o animus possidendi é que, perante uma factualidade equívoca, deve concluir-se que se quer possuir em termos do direito de propriedade.

No já distante Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.06.2009, in www.dgsi.pt, escreveu-se que «a posse, face à concepção adoptada na definição que do conceito dá o art. 1251º do Código Civil, tem de se revestir de dois elementos: o “corpus”, ou seja, a relação material com a coisa, e o “animus”, o elemento psicológico, a intenção de actuar como se o agente fosse titular do direito real correspondente, seja ele o direito de propriedade ou outro. A doutrina dominante (Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, III, 2.ª ed., pág. 5; Mota Pinto, “Direitos Reais”, p. 189; Henrique Mesquita, “Direitos Reais”, 69 e ss; Orlando de Carvalho, RLJ, 122-65 e ss; Penha Gonçalves, “Direitos Reais”, 2ª ed., págs. 243 e ss.) sustenta que o conceito de posse, acolhido nos arts. 1251º e ss., deve ser entendido de acordo com a concepção subjectivista, analisando-se por isso numa situação jurídica que tem como ingredientes necessários o “corpus” e o “animus possidendi” (contra, Menezes Cordeiro, “Direitos Reais”, 1º-563 e ss; Oliveira Ascensão, “Direitos Reais”, 4ªed., págs. 42 e ss.). O “corpus” da posse traduz-se no “poder de facto” manifestado pela actividade exercida por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (arts. 1251º e 1252.º, nº2). Actividade que não carece, aliás, de ser sempre efectiva, pois uma vez adquirida a posse, o “corpus” permanece como que espiritualizado, enquanto o possuidor tiver a possibilidade de o exercer (art. 1257º, n.º1). Quanto ao “animus possidendi”, a sua presença e relevância não poderão ser recusadas quando a actividade em que o “corpus” se traduz pela causa que a justifica, seja reveladora, por parte de quem a exerce, da vontade de criar em seu benefício, uma aparência de titularidade correspondente ao direito de propriedade ou outro direito real.” – cfr. Abílio Neto, in “Código Civil Anotado”, 15ª edição 2006, pág. 1037.»

A propósito dessa questão, no Acórdão do Pleno das Secções Cíveis de 14.05.1996, Amâncio Ferreira, in DR Série II, de 24.06.1996, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu uniformizar a jurisprudência do seguinte modo: “podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa”.

Na fundamentação da decisão, escreveu-se no aludido Acórdão: “A posse, por certo lapso de tempo e com certas características, conduz ao direito real que indica. É o fenómeno da usucapião, definido no artigo 1287, como todas os a seguir indicados sem menção em contrário, do actual Código Civil. Mas a posse como caminho para a dominialidade é a posse stricto sensu, não, a posse precária ou detenção. Esta só é susceptível de levar à dominialidade se houver inversão do título de posse, como resulta do artigo 1290, que corresponde ao artigo 510 do Código Civil de Seabra. (…) São havidos como detentores ou possuidores precários os indicados no artigo 1253, ou seja, todos aqueles que, tendo embora a detenção da coisa, não exercem sobre ela os poderes de facto com o animus de exercer o direito real correspondente. Como já acontecia com o Código Civil de 1867, o actual ordenamento jurídico português adopta a concepção subjectiva da posse. Daí ser esta integrada por dois elementos estruturais: o corpus e o animus possidendi. Define-se o corpus como o exercício actual ou potencial de um poder de facto sobre a coisa, enquanto o animus possidendi se caracteriza como a intenção de agir como titular do direito correspondente aos actos realizados. O acto de aquisição da posse que releva para a usucapião terá assim de conter os dois elementos definidores do conceito de posse: o corpus e o animus. Se só o primeiro se preenche, verifica-se uma situação de detenção, insusceptível de conduzir à dominialidade. Por ser difícil, se não impossível, fazer a prova da posse em nome próprio, que não seja coincidente com a prova do direito aparente, estabelece o nº 2 do artigo 1252, como já o fazia o parágrafo 1 do artigo 481 do Código de 1867, uma presunção de posse em nome próprio por parte daquele que exerce o poder de facto, ou seja, daquele que tem a detenção da coisa (corpus). Donde, e tendo em conta o que se dispõe no nº 1 do artigo 350, competir àqueles que se arrogam a posse provar que o detentor não é possuidor”.

Uma das formas de aquisição da posse é o chamado constituto possessório (artigo 1263.º, alínea d), do Código Civil). Nos termos do artigo 1264.º do Código Civil que define esta figura, se o titular do direito real, que está na posse da coisa, transmitir esse direito a outrem, não deixa de considerar-se transferida a posse para o adquirente, ainda que, por qualquer causa, aquele continue a deter a coisa.

Tal como se adquire, designadamente através do constituto possessório, a posse também se perde, não obstando a essa perda a forma como se adquiriu a posse quando sobrevenha qualquer uma das circunstâncias previstas na lei que conduzem à sua perda. Nos termos do artigo 1267.º do Código Civil o possuidor perde a posse sobrevindo nova «posse de outrem, mesmo contra a vontade do antigo possuidor, se a nova posse houver durado por mais de um ano», sendo que se a nova posse de outrem foi tomada publicamente esse prazo se conta desde o seu início.

Conforme prescreve o artigo 1257.º, n.º 1, do Código Civil, a posse mantém-se enquanto durar a actuação correspondente ao exercício do direito ou a possibilidade de a continuar.

Para Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, 2.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, 1987, pág. 15, «o problema da conservação da posse, quanto ao seu elemento corpus, foi resolvido … nos termos em que era solucionado pelo Código de Seabra. É o exercício efectivo dos poderes correspondentes ao direito que marca a existência e duração da posse. Porém, para que a posse se conserve não é necessária a continuidade do seu exercício; basta que, uma vez principiada a actuação correspondente ao exercício do direito, haja a possibilidade de a continuar. Conserva-se, por exemplo, a posse de uma servidão de passagem, embora se não passe, se não houver impedimento a que o respectivo titular atravesse o terreno vizinho. Nesta orientação foi redigido também o artigo 1267.º; na enumeração dos casos de perda da posse, não se faz nele referência ao não exercício efectivo do direito». A propósito da mesma questão também Oliveira Ascensão, assinala in Direito Civil – Reais, 4.ª edição reimpressão Coimbra Editora, 1987, pág. 88, que «a relação entre pessoa e coisa não tem sequer de se traduzir por actos materiais; basta que se mantenha um estado de facto em que não surjam obstáculos a essa actuação. Podemos efectivamente dizer que enquanto a coisa estiver submetida à vontade do sujeito, de tal modo que este possa renovar a actuação material sobre ela, querendo, há corpus».

Dito por outras palavras, tendo o exercício de poderes de facto sido iniciado por determinada pessoa, uma vez que esse exercício postula não propriamente um contacto com a coisa mas a «imissão desta na zona de disponibilidade empírica do sujeito”, continuando o exercício a ser possível e não estando demonstrado que a pessoa tenha sido confrontada com obstáculos a esse exercício não superados nem a verificação de nenhuma das situações que o artigo 1267.º do Código Civil considera de perda da posse (abandono, perda ou destruição da coisa, cedência ou posse de outrem), tem de se considerar que o corpus se mantém, designadamente para efeitos de contagem do prazo da sua duração.» (sic, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28.09.2023, já citado, Relator: Aristides Rodrigues Almeida).

É o que sucede na situação decidenda, na medida em que apenas a conduta da Recorrente veio perturbar a situação possessória caracterizada nos autos, proficientemente, quanto à anterior proprietária do imóvel…

«A usucapião traduz-se na faculdade do possuidor, através da posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, adquirir, salvo disposição em contrário, o direito a cujo exercício corresponde a sua actuação (artigo 1287.º). Trata-se, pois, de uma forma de aquisição originária do direito de propriedade que se dá, nas palavras de Pires de Lima e Antunes Varela in Código Civil Anotado, 2ª edição, pág. 64, “pela transformação em jurídica duma situação de facto, de uma mera aparência, em benefício daquele que exerce a gestão económica da coisa”.

O seu primeiro requisito é a posse. Mas não basta. Para gerar a consequência jurídica de permitir a aquisição do direito por usucapião a posse necessita de reunir duas características específicas, ser pacífica e pública (artigos 1287.º, 1297.º e 1300.º).

A posse é pacífica quando foi adquirida sem violência e é violenta quando para a obter o possuidor usou de coacção física ou moral (artigo 1261.º). O que releva para o efeito não é o modo como os actos de posse vêm sendo praticados ao longo do tempo, o modo como a posse é exercida, mas o modo como a posse foi adquirida, ou seja, como teve início, como começou a prática reiterada dos actos materiais, como se fez a tradição material ou simbólica da coisa, o constituto possessório ou a inversão do título de posse.

A posse é pública quando é exercida «de modo a poder ser conhecida pelos interessados» (artigo 1262.º). Esta noção exprime que o que releva não é o efectivo conhecimento de que os actos materiais vêm sendo exercidos, que o proprietário onerado saiba realmente que o possuidor está a exercer esses actos sobre o seu prédio, mas sim que eles sejam exercidos em circunstâncias que permitam o seu conhecimento pelos interessados. 

Para o efeito basta que o possuidor exerça a posse em condições notórias de normal utilização das faculdades correspondentes ao direito, que não o faça de forma encapotada ou dissimulada, apenas quando ninguém está a observar, sob anonimato ou às escondidas de todas as pessoas. Tal como não é necessário que o possuidor anuncie publicamente de alguma forma que está a exercer a posse ou que o faça não quando necessita, mas quando o proprietário do prédio onerado está presente e a observar, também não é obstáculo à caracterização da posse como pública o facto de o proprietário do prédio serviente, face à organização da sua vida, poder ter uma relação distante com o prédio serviente e só esporadicamente nele se encontrar para poder oferecer resistência à posse de outrem». (Novamente, data venia, a citação é-o integral do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28.09.2023, já citado)

Como vimos foi julgado provado e a respectiva decisão não foi validamente impugnada que a antecessora da Autora, durante (bem) mais de 20 anos, com exclusão de outros, de forma contínua, tem usado, fruído, disposto, colhido e permitido a outros a colheita dos frutos da parcela, utilizando-a, na ignorância de lesar interesses ou direitos alheios, de forma pacífica, sem a oposição de ninguém ou contestação de quem quer que seja para além do que se descreve supra.

Em conclusão (na adopção ainda da feliz síntese, à guisa de check list de aferição ou controlo da verificação dos pressupostos da usucapião no Acórdão da Relação do Porto que vimos reproduzindo):  a antecessora da A. (e, após a aquisição, esta) exerceu sobre a parcela actos correspondentes ao direito de propriedade; tais actos fazem presumir o animus na sua realização, havendo por isso posse em nome próprio; essa situação vem dos anteriores detentores do prédio inscrito no registo a favor da autora, pelo que houve transmissão da posse; tais actos são praticados de forma pública e pacífica. Assim, durando já há mais de 20 anos, estão totalmente reunidos os pressupostos para declarar a aquisição da propriedade da parcela em litígio pela Autora com fundamento no instituto da usucapião (artigos 1287.º e 1294.º do Código Civil).

Por conseguinte, a sentença recorrida apreciou e aplicou devidamente o direito aos factos provados, pelo que só pode ser confirmada.

É que, finalmente, no que tange à indemnização fixada ou arbitrada por via da actuação da Recorrente que consistiu no corte de um limoeiro, a Recorrente funda aparentemente a sua discordância na circunstância de não se ter apurado quem plantou o mesmo…

Ora, perfeitamente irrelevante essa objecção, sendo certo que nada tendo resultado também quanto às condições de “abandono” ou falta de produtividade da árvore em causa, em termos de não ressaltar já a desrazoabilidade ou arbitrariedade da fixação equitativa do dano emergente.

III.

Pelo exposto, nega-se provimento à apelação, confirmando a decisão recorrida.

Custas do recurso pela recorrente.

Notifique.

Porto, 22 de Fevereiro de 2024
Isabel Peixoto Pereira
Isabel Silva
Aristides Rodrigues de Almeida
______________
[1] In Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4ª edição, pág.164.
[2] Cfr. ainda diversos Acs. do STJ, aludidos na ob. citada, págs. 161 a 165.
[3] Abrantes Geraldes, ob. citada, págs. 165-166.
[4] Ob. citada, págs. 274 e 277.
[5] Segundo Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. IV, pág. 569, prova livre “quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais pré-estabelecidos, isto é, ditados pela lei.”
[6] O princípio da livre apreciação dos meios probatórios resulta, ainda, em sede de direito probatório material, no que se refere à prova por declarações de parte (não confessórias), à prova testemunhal, à prova por inspeção e à prova pericial, do estipulado nos arts. 361º, 389º, 391º e 396º, todos do C. Civil.
[7] Estudos sobre o Novo Código de Processo Civil, Lex, 1997, pág. 348.
[8] Por todos, o Ac. do STJ de 01.07.2010, proc. n.º 4740/04.7TBVFX-A.L1.S1, relator Bettencourt de Faria, acessível em www.dgsi.pt.
[9] Cfr. Ana Luísa Geraldes, Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol. I, pág. 609.
[10] Correcção/rectificação oficiosa, sem alteração do conteúdo, mas eliminando a menção conclusiva ao que resulta legalmente da inscrição, ao invés, como deve sê-lo, à inscrição mesma.
[11] Correcção/rectificação oficiosa a partir agora do teor da certidão do Registo Predial junta aos autos.
[12] Correcção/integração oficiosa a partir já da consideração do articulado de aperfeiçoamento da petição judicialmente estimulado, por forma a acautelar a executoriedade da decisão.
[13] Assacando à petição inicial a não invocação do instituto da usucapião (do que se cuidará em sede própria), quando se considere agora a causa de pedir da pretensão reconvencional, verifica-se que a Recorrente/Reconvinte é quem se reconduz tão só à presunção registral, mediante a alegação de que a parcela em discussão é parte integrante ou componente do seu imóvel, conforme facto controvertido indemonstrado sob a alínea f).
[14] Menos feliz já a redacção desta, ainda quando se atente no menor cuidado na evitação de matéria conclusiva ou mesmo jurídica.