Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
35/17.4GALSD-C.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA LUÍSA ARANTES
Descritores: LIQUIDAÇÃO DA PENA DE PRISÃO
PERDÃO
CONTAGEM
Nº do Documento: RP2024022135/17.4GALSD-C.P1
Data do Acordão: 02/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL / CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Para o cálculo do meio, dos dois terços e dos cinco sextos da pena, o perdão da pena deve ser descontado na pena originária e não no cumprimento da pena.

[Sumário da responsabilidade da Relatora]
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 35/17.4GALSD-C.P1

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO

Nos autos de processo comum n.º35/17.4GALSD que correm termos no Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este, Juízo Central Criminal de Penafiel, Juiz 2, por acórdão proferido em 14/4/2021, o arguido AA foi condenado na pena única de 6 anos e 9 meses de prisão.

Por decisão proferida em 18/10/2023, transitada em julgado, foi declarado perdoado um ano de prisão nos termos da Lei n. º38-A/2023, de 2 de agosto, sob a condição resolutiva prevista no art.8.º, n.º1, da citada Lei, à pena de 6 anos e 9 meses de prisão aplicada ao arguido.

O Ministério Público junto do Juízo Central Criminal de Penafiel, Juiz 2, procedeu nos autos a nova liquidação da pena de prisão, face à aplicação do perdão, indicando as datas em que são atingidos o meio, os dois terços, os cinco sextos e o termo da pena, e promoveu o cumprimento do disposto no ar. 477.º do C.P. Penal.

Conclusos os autos, o Sr. Juiz a quo proferiu, em 4/12/2023, o seguinte despacho:

“Do cômputo da pena

Considerando que o arguido já se encontrava em cumprimento de pena à ordem do presente processo, atendendo a que a liquidação da pena a realizar não oferece (a nosso ver) especiais dificuldades e sem prejuízo de o arguido poder reclamar da mesma, dispensa-se o contraditório relativamente à promoção do Ministério Público com a ref. 93712179 de 29.11.2023 (fls. 177) e, desde já, se procede ao cômputo da pena do arguido.

1.

1.1. AA foi condenado na pena única de 6 anos e 9 meses de prisão, pena que resulta do cúmulo jurídico de penas que lhe foram aplicadas nos seguintes processos (cf. ref. 85208264 de 144.4.2021 [fls. 102-123]):

– no processo comum coletivo n.º 35/17.4GALSD, do Juízo Central Criminal de Penafiel – Juiz 2; e

– no processo comum singular n.º 517/16.5GALSD, do Juízo Local Criminal de Lousada (onde o arguido havia sido condenado na pena de 12 meses de prisão substituída por 72 períodos de prisão por dias livres).

1.2. Foi-lhe, entretanto, perdoado um ano de prisão (cf. ref. 93201871 de 18.10.2023 [fls. 174-175]).

2.

2.1. O condenado encontra-se privado à ordem do presente processo, na sequência de mandado de ligamento emitido no âmbito do processo comum coletivo n.º 35/17.4GALSD, do Juízo Central Criminal de Penafiel – Juiz 2 (ref. 72007573 de 25.6.2021 [fls. 140-141]), desde o dia 23.6.2021.

2.2. O condenado sofreu os seguintes períodos de privação de liberdade que, nos termos do artigo 80.º do Código Penal, importa descontar:

– entre 30.9.2020 (cf. fls. 47) e 23.6.2021 (data em que, como se assinalou, foi colocado à ordem do presente processo) em cumprimento de pena à ordem do processo comum coletivo n.º 35/17.4GALSD, do Juízo Central Criminal de Penafiel – Juiz 2, o qual integra o cúmulo).

2.3. Cumpriu, na íntegra, a pena (de prisão substituída por 72 períodos de prisão por dias livres) em que foi condenado no âmbito do no processo comum singular n.º 517/16.5GALSD, do Juízo Local Criminal de Lousada, havendo, então, que a descontar.

3. Pelo exposto, considerando o disposto nos artigos 477.º, n.º 2 e n.º 4 e 479.º do Código de Processo Penal, considera-se que, relativamente à pena aplicada a AA:

– o meio da pena ocorreu a 14 de agosto de 2022

– os dois terços da pena ocorrerá a 30 de julho de 2023;

– os cinco sextos da pena ocorrerá a 15 de julho de 2024; e

– o termo da pena será em 30 de junho de 2025.

Comunique ao condenado e ao seu defensor (artigo 477.º, n.º 4 do Código de Processo Penal).

Em face do que promove o Ministério Público, cumpra-se o disposto no artigo 477.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, observando-se o disposto no artigo 35.º da Portaria n.º 280/2013, de 26 de agosto.

Remeta ainda certidão da presente decisão e da promoção quer antecede.

Consigna-se que o condenado se encontra a cumprir pena no Estabelecimento Prisional ....”

Inconformado com o assim decidido, o Ministério Público interpôs recurso, extraindo da motivação, as seguintes conclusões (transcrição):

1. Na reformulação da liquidação de pena, ora em crise, por força da aplicação do perdão de um ano de pena de prisão, a que alude a Lei n° 38-A/2023, de 2 de Agosto, ao arguido AA, o Mmo. Juiz a quo, no cálculo da pena, e no que concerne à data em que o arguido atingiria o cumprimento das datas relevantes para a concessão da liberdade condicional, deveria ter considerado que a pena a cumprir é de 6 anos e 9 meses de prisão, e ter descontado a cada um desses períodos, um ano de prisão.

2. A liquidação de pena operada pelo Mmo. Juiz a quo — o meio da pena ocorreu a 14 de agosto de 2022; os dois terços da pena ocorrerá a 30 de julho de 2023; os cinco sextos da pena ocorrerá a 15 de julho de 2024; e o termo da pena será em 30 de junho de 2025 - mostra-se errada.

3. Da liquidação de pena operada pelo Mmo. Juiz, ora em crise, por força da aplicação de um ano de perdão, alcança-se, salvo melhor opinião, na medida em que o raciocínio não se mostra devidamente demonstrado, que foi considerado um tempo de pena de 5 anos e 9 meses, ou seja, iniciada a pena a 30 de Setembro de 2020.

4. Presume-se que terá o Mmo. Juiz descontado à pena o ano que se mostrava já cumprido, como resulta da liquidação de pena, e não à execução da pena que se cifrava em 6 anos e 9 meses.

5. O desconto a que alude o art. 80° do Código Penal opera não em relação ao quantum da pena, que se mantém imutável, mas antes à sua execução. Foi aliás, esse o raciocínio que presidiu à primitiva liquidação de pena e que mereceu a concordância judicial.

6. A pena originária de 6 anos e 9 meses de prisão em que o arguido foi condenado nestes autos mantem-se, não se estando assim perante uma nova pena de prisão de 5 anos e 9 meses de prisão a cumprir pelo arguido (por força do aludido perdão de 1 ano de prisão de que beneficiou).

7. A pena de prisão em que o arguido foi condenado nestes autos, pena de 6 anos e 9 meses de prisão, mantém a sua autonomia e o perdão de 1 ano de prisão de que o arguido beneficiou por aplicação da Lei n° 38-A/2023 de 2 de Agosto não constitui a aplicação de uma nova pena de prisão, pois apenas consubstancia uma medida de clemência que tem repercussão na execução da pena de prisão a cumprir pelo arguido, seja no cumprimento da totalidade da pena de prisão, seja no cumprimento de 1/2 da pena de prisão, seja no cumprimento de 2/3 ou no cumprimento de 5/6 da pena de prisão.

8. No essencial tudo se resume a considerar a pena de prisão perdoada como se de pena cumprida se tratasse, sem prejuízo de posterior revogação do perdão na eventualidade de não cumprimento da condição resolutiva.

9. Depois de aplicado o perdão de pena de prisão a que alude a Lei n° 38-A/2023 de 2 de Agosto, a pena de prisão originária mantém a sua autonomia, pois não foi aplicada uma nova pena de prisão com a aplicação do perdão a que alude esta Lei, razão pela qual as datas calculadas para o 1/2, os 2/3, os 5/6 e o termo da pena de prisão devem ser efetuadas com referência à dita pena originária.

10. Não vemos razões para o arguido poder beneficiar do perdão de 1 ano de prisão que lhe foi concedido caso cumpra a totalidade da pena de prisão em que foi condenado nestes autos (descontado, como é óbvio, 1 ano de prisão que lhe foi perdoado) e já não poder beneficiar de tal medida de clemência na sua plenitude, ou seja, pelo período de 1 ano, caso cumpra apenas 1/2, 2/3 ou 5/6 da pena de prisão em que foi condenado nestes autos.

11. Não se vislumbra motivo para que o arguido fique prejudicado com a liquidação da pena de prisão a fazer apenas computando 5 anos e 9 meses de prisão uma vez que com esta liquidação o arguido teria de cumprir mais 8 meses de prisão no caso de cumprimento de 1/2 da pena de prisão, teria de cumprir mais 4 meses de prisão no caso de cumprimento de 2/3 da pena de prisão, e mais 2 meses de prisão, no caso de cumprimento de 5/6 da pena.

12. Tudo aconselha, pelo menos levando em consideração o princípio do regime mais favorável ao arguido, que se liquide a pena de prisão a cumprir pelo arguido como sendo de 7 anos e 6 meses de prisão, levando-se depois em consideração o perdão de 1 ano de prisão de que o arguido beneficiou, perdão este que irá incidir sobre os períodos de tempo que vierem a ser encontrados para o 1/2, os 2/3, os 5/6 e o termo da pena de prisão.

13. A contagem da pena operada com a referência 93712179, a 29 de Novembro de 2023, encontra-se correcta, devendo, assim, ser determinada a correcção da liquidação da pena nos seguintes moldes:

a) - o termo da pena ocorrerá a 30 de Junho de 2025;

b) - metade do cumprimento da pena foi atingido a 14 de Fevereiro de 2022;

c) - 2/3 do cumprimento da pena foram alcançados a 30 de Março de 2023;

d) - 5/6 do cumprimento da pena serão volvidos a 15 de Maio de 2024.

14. O douto despacho recorrido viola o disposto nos arts. 477.°, n.° 2 e n.° 4 e 479.°, do Código de Processo Penal; o disposto no art. 30, n° 1, da Lei n° 38-A/2023, de 2 de Agosto e o disposto nos arts. 61° e 80°, n° 1, do Código Penal.

TERMOS em que

Concedendo VV. Exas. provimento ao presente recurso, revogando a douta decisão sob recurso, determinando, outrossim, a homologação da pena nos termos preconizados pelo Ministério Público na liquidação operada a 29 de Novembro de 2023,

farão inteira JUSTIÇA

Não há resposta do arguido.

Remetidos os autos ao Tribunal da Relação do Porto, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de o recurso merecer provimento (referência 17630240).

Cumprido o disposto no art.417.º, n.º2, do C.P.Penal, não foi apresentada resposta.

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência.

II – FUNDAMENTAÇÃO

É entendimento uniforme da jurisprudência dos tribunais superiores que o âmbito do recurso é delimitado pelo teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso.

Atentas as conclusões apresentadas, a questão a apreciar é saber se assiste razão ao recorrente quanto aos termos da liquidação da pena que defende, ou seja, o perdão de um ano de prisão deve ser descontado ao cumprimento da pena e não à pena propriamente dita.

Para a decisão a proferir, há que atender às seguintes ocorrências processuais:

- o arguido foi condenado, por acórdão proferido em 14/4/2021, na pena única de seis anos e nove meses de prisão, que englobou as penas que lhe foram aplicadas nos seguintes processos:

No processo comum coletivo n.º35/17.4GALSD, do Juízo Central Criminal de Penafiel, Juiz 2,

No processo comum singular n.º517/16.5GALSD do Juízo Local Criminal de Lousada, onde o arguido foi condenado na pena de 12 meses de prisão substituídos por 72 períodos de prisão por dias livres.

- O arguido cumpriu na íntegra a pena de prisão substituída por 72 dias de prisão por dias livres,

- Por decisão proferida em 18/10/2023, foi perdoado um ano de prisão, sob a condição resolutiva prevista no artigo 8.º, n.º1, da Lei n.º38-A/2023, de 2/8

- O arguido encontra-se privado da liberdade desde 30/9/2020 à ordem do processo n.º35/17.4GALSD


*

Como salienta o Ac.R.Coimbra de 6/3/2013[1]“o instituto do desconto prevê a possibilidade de que o arguido possa ver descontado, no cumprimento da pena de prisão em que venha a ser condenado, o tempo sofrido em medidas de privação de liberdade – como a detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação – que lhe tenham sido aplicadas (cfr. o art. 80º do Código Penal), e em pena anterior que venha a ser substituída por outra (cfr. o art. 81º do mesmo Código), ainda que as medidas processuais ou a pena anterior, pelo mesmo ou pelos mesmo factos, tenham sido sofridas pelo agente no estrangeiro (cfr. o art. 82º do mesmo Código Penal).”

O âmbito do desconto, previsto nos arts.80.º a 82.º do C.Penal, incide sobre as  privações da liberdade e opera quanto ao cumprimento da pena. Em conformidade, no despacho recorrido procedeu-se ao desconto dos 12 meses de prisão cumpridos.

In casu, o recorrente insurge-se quanto ao facto do Sr.Juiz a quo não ter descontado um ano de perdão ao cumprimento da pena, mas ter antes feito incidir o perdão de um ano de prisão sobre a pena única aplicada de 6 anos e 9 meses de prisão.

Salvo o devido respeito por opinião contrária não assiste razão ao recorrente.

O cálculo do meio, dos dois terços e dos cinco sextos da pena tem por objetivo a concessão da liberdade condicional (art.61.º do C.Penal), sendo que a aferição desta se reporta ao tempo de prisão efetivamente cumprido pelo arguido, porque só deste modo o tribunal de execução das penas pode avaliar a evolução do comportamento do arguido durante a execução da pena.

Por isso, como salienta Paulo Pinto de Albuquerque[2], para cálculo do meio, dos dois terços e dos cinco sextos da pena “não deve considerar-se como tempo de cumprimento da pena o período em que o condenado não esteve efectivamente privado da liberdade, quer por ter beneficiado do perdão, quer por se ter ausentado ilegitimamente da prisão ou da habitação. Mas o tribunal da execução das penas já deve considerar como tempo de cumprimento efectivo de pena o período de prisão preventiva ou de obrigação de permanência na habitação descontado na sentença condenatória, bem como qualquer período de ausência legítima da prisão ou da habitação, pois nestes casos o tribunal de execução das penas já está em condições de proceder ao juízo de prognose sobre o condenado com base na avaliação do modo como ele se comportou durante o tempo de privação da liberdade”. Neste sentido se pronunciou o Ac.STJ de 14/6/2001, in SATJ, 42, 54..

Contrariamente ao sustentado pelo recorrente, afigura-se-nos que o Ac.R.Porto de 12/9/2007, citado no recurso, não trata de uma situação similar à dos presentes autos, pois reporta-se à revogação do perdão, em que os cálculos do meio, dos dois terços e dos cinco sextos da pena para aplicação da liberdade condicional devem ser feitos levando em conta a parte da pena já cumprida e  a pena a cumprir  é a execução da parte da pena de prisão ainda não cumprida.

Revertendo ao caso presente, tendo o arguido sido condenado na pena única de seis anos e nove meses de prisão e tendo beneficiado de um ano de perdão, é o tempo efetivamente a cumprir – 5 anos e 9 meses de prisão – que cabe considerar para determinação do meio, dos dois terços e dos cinco sextos da pena.

Ao cumprimento da pena, caberá descontar o período de doze meses de privação da liberdade.

Concluindo, não merece censura a liquidação da pena efetuada pelo Sr.Juiz a quo que descontou um ano de perdão na pena originária de seis anos e nove meses de prisão e no cumprimento da pena a aplicada no processo n.º517/16.5GALSD.

O recurso tem, assim, de improceder.

III – DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam os juízes na 1ªsecção criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando o despacho recorrido.

Sem custas (art.522.º do C.P.Penal).

(texto elaborado pela relatora e revisto por todos os signatários)


Porto, 21/2/2024
Maria Luísa Arantes
Luís Coimbra
Maria Joana Grácio
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[1] P.308/09.0TASCD-B.C1, relatado pelo Desembargador Luís Coimbra, in www.dgsi.pt
[2] Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2ªedição, Universidade Católica Editora, pág.246