Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
42003/20.8YIPRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA PAULA AMORIM
Descritores: DEVER DE SIGILO
TELECOMUNICAÇÕES
DISPENSA DO DEVER DE SIGILO
INCIDENTE
Nº do Documento: RP2021022242003/20.8YIPRT-A.P1
Data do Acordão: 02/22/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: INCIDENTE DE DISPENSA DO DEVER DE SIGILO
Decisão: DEFERIDO
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - As operadoras de telecomunicações estão sujeitas a sigilo profissional em relação à indicação da morada do assinante, que solicitou a confidencialidade dos seus dados, sendo legítima a escusa em fornecer tais elementos ao tribunal.
II - Visando a informação solicitada tão só promover a citação pessoal da requerida/ré sem que tal procedimento possa afetar a confiança do público nos serviços de telecomunicações, nem a reserva de intimidade da vida privada, deve prevalecer o interesse público da administração e realização da justiça, dispensando-se o sigilo para este concreto fim.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Sigilo-Telecomunicações-42003/20.8YIPRT
SUMÁRIO[1] (art. 663º/7 CPC):
.....................................................
.....................................................
.....................................................
***
Acordam neste Tribunal da Relação do Porto
(5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)
I. Relatório
No presente incidente de dispensa do dever de sigilo solicitou o juiz do tribunal de 1ª instância, em apenso próprio, a dispensa de sigilo profissional, ao abrigo art. 135.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, ex vi art. 417.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, perante a escusa apresentada pela empresa de telecomunicações B…, SA (…), a respeito da informação sobre a morada da sua cliente, ré nos autos.
*
Cumpre apreciar e decidir.
*
II. Fundamentação
1. Delimitação do objeto do incidente
A questão a decidir consiste em saber se deve ser ordenado o levantamento do sigilo profissional relativamente à informação sobre a morada da ré, solicitados pelo juiz do tribunal “a quo“ à sociedade B…, SA (…), para promover a citação da ré.
*
2. Os factos
Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os seguintes factos que resultam dos autos:
- C… S.A.” instaurou contra D…, com domicílio na rua …, .., … procedimento de injunção;
- Frustrada a citação e remetidos os autos à distribuição, veio a autora requerer a citação através de agente de execução;
- Em 08 de julho de 2020 proferiu-se despacho que ordenou a pesquisa da morada da ré na base de dados e que após obter tal informação se solicitasse junto do agente de execução a citação da ré por contacto pessoal;
- Promovida a citação por contacto pessoal, por agente de execução, no endereço indicado nas Bases de Dados, foi lavrada certidão negativa;
- O Autor veio requerer ao abrigo do art. 519ºCPC que se oficiasse junto de entidades prestadoras de serviços essenciais pela indicação do atual endereço da ré, nomeando para o efeito a E…, F…, B…, G…;
- Por despacho de 10 de setembro de 2020 foi determinado que, caso não fosse apurada a morada atual da ré, nas bases de dados disponíveis, se oficiasse às entidades indicadas pela autora, para informar aos autos a morada daquela;
- Nas pesquisas efetuadas não se obteve nova morada e oficiou-se junto das entidades indicadas pela autora que, com exceção de B…, vieram prestar informação no sentido de desconhecerem o endereço da ré ou indicarem o endereço que já consta dos autos;
- Oficiada nesses mesmos termos, veio a “B…, S.A.” recusar a prestação da informação solicitada, invocando que a mesma se encontra coberta pelo sigilo nas comunicações e pelo sigilo profissional, nos termos dos artigos 34.º, n.º 1, da CRP, 4.º, n.º 1, da Lei 41/2004, de 18-08 e 48.º, n.º 1, al. i), da Lei 5/2004, de 10-02, em virtude de a cliente ter solicitado a confidencialidade dos seus dados, aquando da subscrição dos serviços telefónicos.
- A autora veio requerer a citação edital da ré;
- Em 06 de janeiro de 2021 proferiu-se o despacho que se transcreve:
“ # 14-12-2020 – Ofício:
No âmbito da presente acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias, em que é autora “C… S.A.” e é ré D…, com vista a se proceder à citação desta, foi determinado que, caso não fosse apurada a morada actual da mesma, nas bases de dados disponíveis, se oficiasse às entidades indicadas pela autora, para informar aos autos a morada daquela – cf. despacho de 10-09-2020.
Oficiada nesses termos, veio a “B…, S.A.” recusar a prestação da informação solicitada, invocando que a mesma se encontra coberta pelo sigilo nas comunicações e pelo sigilo profissional, nos termos dos artigos 34.º, n.º 1, da CRP, 4.º, n.º 1, da Lei 41/2004, de 18-08 e 48.º, n.º 1, al. i), da Lei 5/2004, de 10-02, em virtude de a cliente ter solicitado a confidencialidade dos seus dados, aquando da subscrição dos serviços telefónicos.
Ora, nos termos do disposto no artigo 417.º, do Código de Processo Civil:
«1 - Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, (…).
2 - Aqueles que recusem a colaboração devida são condenados em multa, (…).
3 - A recusa é, porém, legítima se a obediência importar:
a)Violação da integridade física ou moral das pessoas;
b) Intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações;
c) Violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no n.º 4.
4 - Deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.».
Assim, por força do disposto no 135.º, do Código de Processo Penal, sendo invocada escusa quanto à prestação de determinada informação solicitada judicialmente, como sucede no caso em apreço, cabe ao Tribunal perante o qual a mesma foi suscitada apurar se tal recusa é, ou não, legítima.
Sendo ilegítima, ordenará a prestação de informação solicitada.
Concluindo-se, porém, pela legitimidade da escusa, caberá ao tribunal superior àquele onde o incidente foi suscitado (ou o pleno das secções criminais, no caso do incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça) apreciar se deve haver quebra do segredo profissional, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante.
A intervenção pode ser suscitada pelo juiz, oficiosamente, ou a requerimento.
No que concerne ao dever de sigilo por parte das operadoras de comunicações móveis, «há que distinguir entre o dever de sigilo propriamente dito e a simples confidencialidade de certos dados, ligados exclusivamente, à "esfera pessoal simples dos cidadãos", isto é, aqueles dados que dizem respeito à identificação, residência, profissão, entidade empregadora, situação patrimonial. Aqui, o carácter sigiloso deriva, apenas, da circunstância de o interessado ter manifestado a oposição à sua publicitação, relevando, por conseguinte, no plano dos simples interesses pessoais que não contendem com a esfera privada íntima.».1 [1 Acórdão da Relação de Lisboa de 29-06-2006, Proc. 4949/2006-6, em www.dgsi.pt.]
Assim, ao contrário do sustentado pela “B…”, o âmbito de aplicação do artigo 4.º, n.º 1, da Lei 41/2004, não abrange a informação solicitada, já que os dados respeitantes à morada dos assinantes não constituem dados de tráfego ou de comunicação, mas antes dados de base.2 [2 Neste sentido, acórdão da Relação do Porto de 10-09-2014, Proc. 1953/00.4JAPRT-B.P1, em www.dgsi.pt. ]
Por outro lado, é a própria lei civil que prevê, nos artigos 236.º e 418.º do Código de Processo Civil, que o Tribunal:
apure, junto de quaisquer entidades ou serviços, qual a última morada do réu a citar
e que determine a prestação de informação relativa à residência de alguma parte em causa pendente, quando tal se revele essencial ao regular andamento do processo, sendo certo que tais normativos legais não fazem qualquer distinção entre entidades públicas ou privadas, ao contrário do propugnado pela “B…”.
Porém, ainda assim, atento o disposto nos artigos 4.º - 1) e 5.º, n.º 1, do Regulamento Geral sobre a Protecção de Dados (RGPD) 10.º e 20.º, da Lei n.º 58/2019, de 8 de Agosto, 48.º, n.º 1, al. l), da Lei n.º 5/2004, de 10 de Fevereiro, e 2.º, n.º 1, al. g) e n.º 3, e 5.º, da Lei 41/2004, de 18 de Agosto, tendo a ré solicitado a confidencialidade dos seus dados, aquando da subscrição dos serviços telefónicos, impõe-se concluir que a “B…” pode escusar-se a prestar a informação solicitada, invocando sigilo profissional.
E, fazendo-o, impõe-se seguir o caminho traçado pelo citado artigo 135.º do Código de Processo Penal.3[3 Neste sentido: acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 06-02-2020, Processo: 18479/16.7T8LSB-B.L1-2, Relator: CARLOS CASTELO BRANCO, e de 05-05-2020, P. 5002/16.2T8LRS-A.L1-7, Relator: CONCEIÇÃO SAAVEDRA; acórdãos da Relação de Évora de 12-04-2018, P. 2112/16.0T8EVR-A.E1, R. Elisabete Valente, e de 04-06-2020, P. 130866/18.5YIPRT-A.E1, R. José António Moita, todos disponíveis em www.dgsi.pt.]
Ora, no caso em apreço afigura-se-nos que a informação relativa à morada da ré se assoma, em concreto, essencial para o prosseguimento dos autos, na medida em que:
não se logrou citar a mesma, até ao momento, não se tendo apurado nas bases de dados disponíveis qual a morada actual do mesmo (apenas aquelas onde se frustrou a citação pessoal),
a citação edital só pode ser utilizada quando não for possível localizar o paradeiro do réu - artigos 225.º, n.º 6 e 236.º do Código de Processo Civil.
Todavia, sendo de considerar a recusa da prestação da informação solicitada à “B…” legítima, é ao Tribunal da Relação que incumbe proceder à ponderação dos interesses envolvidos no presente caso.
Pelo exposto, julga-se legítima a recusa da “B…, S.A.” em prestar a informação que lhe foi solicitada, relativa à morada da ré e, consequentemente, suscita-se a intervenção do Venerando Tribunal da Relação do Porto, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 135.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, ex vi artigo 417.º, n.º 4, do Código de Processo Civil.
*
Organize apenso com todo o processado, aí abrindo conclusão.
*
Notifique”.
*
3. O direito
No presente incidente de dispensa do dever de sigilo profissional está em causa apurar se é legítimo que B…, SA (…), invoque o sigilo de comunicações e sigilo profissional, para não
prestar as informações solicitadas e a ser legítima a escusa, se nas concretas circunstâncias se justifica a quebra de sigilo profissional.
A B…, SA (…), ainda que terceiro em relação ao processo, está obrigada ao dever de cooperação – art. 417º/1 CPC.
O dever de cooperação para a descoberta da verdade consagrado no art. 417º/1 CPC determina que:
“Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados.”
A recusa de colaboração faz incorrer o faltoso nas sanções previstas no nº2 do citado preceito – multa, inversão do ónus da prova.
Contudo, nos termos do art. 417º/3 CPC, a recusa mostra-se legitima nas seguintes circunstâncias:
“ a) Violação da integridade física ou moral das pessoas;
b) Intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações;
c) Violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no nº 4. “
No nº 4 determina-se o procedimento a seguir quanto à legitimidade da escusa e dispensa do dever de sigilo profissional ou de funcionários públicos invocado, remetendo-se para as normas do processo penal:
“ 4. Deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado. “
Quanto à possível quebra dos deveres de sigilo propriamente dito, a lei de processo remete inteiramente para o estatuído no Código de Processo Penal sobre tal tema, por se entender que não seria viável estabelecer no âmbito das ações cíveis um sistema mais facilitado ou menos solene de apreciação das escusas apresentadas.
No domínio do processo penal, o art. 135º/3 CPP prevê o procedimento a adotar e competência para a decisão, nomeadamente, o critério a seguir na apreciação do pedido de dispensa de sigilo (ressalvadas as possibilidades do segredo religioso e do segredo de Estado – art. 135 e 137º CPP).
Estatui o art. 135º/3 CPP
“1 - Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.
2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento.
3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
4 - Nos casos previstos nos n.os 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável.
5 - O disposto nos n.os 3 e 4 não se aplica ao segredo religioso.
Suscitada a escusa, como refere LOPES DO REGO podem configurar-se três situações:
- invocada a escusa e havendo dúvidas fundadas sobre a invocação, é ao juiz da causa (sublinhado nosso) que compete proceder às averiguações necessárias e – caso conclua pela ilegitimidade da escusa – determinar a forma de cooperação requerida;
- sendo a escusa fundada em sigilo efetivamente existente, é ao tribunal imediatamente superior (sublinhado nosso) àquele em que o incidente se tiver suscitado que incumbe decidir da efetiva prestação da cooperação requerida, com preterição do dever de sigilo, face ao princípio da prevalência do interesse preponderante;
- estando em causa sigilo profissional, a decisão do tribunal ( sublinhado nosso ) é tomada ouvido o organismo representativo da profissão com ele relacionada, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a tal organismo seja aplicável[2].
Decorre do art. 135º/4 CPP que a escusa com fundamento em sigilo profissional efetivamente existente deve ser suscitada junto do Tribunal de 1ª instância e cumpre ao Tribunal da Relação decidir o incidente de dispensa do sigilo “ segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos”.
Neste quadro legal constata-se existirem duas situações distintas:
- as de legitimidade de escusa; e
- as de ilegitimidade de escusa da prestação de informações às autoridades judiciárias.
A escusa é legítima quando resulta do cumprimento de um dever legal, no caso o dever de confidencialidade.
A escusa é ilegítima quando o facto ou elemento solicitado não estiver compreendido no âmbito do sigilo profissional ou quando tiver havido consentimento do sujeito passivo.
O nº 2 do art. 135ºCPP reporta-se ao caso da ilegitimidade da escusa, o que pode ocorrer quando os elementos em causa não estão legalmente cobertos pelo segredo ou porque houve autorização do titular.
Prevê a norma nessa hipótese que o próprio tribunal onde ela é efetuada ordena, oficiosamente ou a pedido, a prestação das informações.
Nas situações de legitimidade da escusa, a qual resulta de os elementos estarem abrangidos pelo segredo e não existir autorização, a obtenção das informações já não poderá ser determinada sem a ponderação dos interesses que se mostram em confronto: de um lado, os interesses protegidos pelo segredo profissional; do outro, os interesses na realização da justiça, a ser efetuado no âmbito do incidente de quebra do segredo profissional, o qual deverá ser suscitado no tribunal imediatamente superior àquele onde a escusa tiver ocorrido.
Estando em causa informações a prestar por operadora de serviços de telecomunicações, decorre do regime legal a que está subordinada tal atividade, que as entidades que o exploram, como a sociedade B…, SA., estão sujeitas ao sigilo das comunicações e ao sigilo profissional.
No caso presente considerou o juiz do tribunal “a quo” não ser legítima a escusa com fundamento em segredo de comunicações, porque as informações pretendidas não se inserem no que se tem qualificado como “dados de tráfego” ou “dados de conteúdo”, por se enquadrarem nos “dados de base”. Porém, considerou-se legítima a escusa em relação do dever de segredo profissional, mas necessária a sua dispensa para efeito de promover os ulteriores termos do processo.
Cumpre ter presente o seguinte quadro legal.
Dispõe o artigo 34º da Constituição da República Portuguesa que:
1 - O domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis; […]
4 - É proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal”.
Prevê o artigo 48º, nº 1, da Lei nº 5/2004, de 10/02 (Lei das Comunicações Eletrónicas na versão mais recente em vigor conferida pela Lei nº 92/2017, de 31/07), o seguinte:
1 - Sem prejuízo da legislação aplicável à defesa do consumidor, a oferta de redes de comunicações públicas ou serviços de comunicações electrónicas acessíveis ao público é objecto de contrato, do qual devem obrigatoriamente constar, de forma clara, exaustiva e facilmente acessível, os seguintes elementos: […]
l) Indicação expressa da vontade do assinante sobre a inclusão ou não dos respectivos elementos pessoais nas listas telefónicas e sua divulgação através dos serviços informativos, envolvendo ou não a sua transmissão a terceiros, nos termos da legislação relativa à protecção de dados pessoais”;
Preceitua, por seu turno, o artigo 4º, nº 1, da Lei 41/2004, de 18/08, relativa “ao tratamento de dados pessoais e à proteção da privacidade no sector das comunicações electrónicas” (que não foi objeto de alteração por parte da versão mais recente do diploma conferida pela Lei 46/2012, de 29/08), que:
“1- As empresas que oferecem redes e ou serviços de comunicações electrónicas devem garantir a inviolabilidade das comunicações e respectivos dados de tráfego realizadas através de redes públicas de comunicações e de serviços de comunicações electrónicas acessíveis ao público”.
O REGULAMENTO (UE) 2016/679 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 27 de abril de 2016 relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados e que revoga a Diretiva 95/46/CE (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados) passou a prever
Artigo 4.o Definições
Para efeitos do presente regulamento, entende-se por:
1) «Dados pessoais», informação relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável («titular dos dados»); é considerada identificável uma pessoa singular que possa ser identificada, direta ou indiretamente, em especial por referência a um identificador, como por exemplo um nome, um número de identificação, dados de localização, identificadores por via eletrónica ou a um ou mais elementos específicos da identidade física, fisiológica, genética, mental, económica, cultural ou social dessa pessoa singular;
2) «Tratamento», uma operação ou um conjunto de operações efetuadas sobre dados pessoais ou sobre conjuntos de dados pessoais, por meios automatizados ou não automatizados, tais como a recolha, o registo, a organização, a estruturação, a conservação, a adaptação ou alteração, a recuperação, a consulta, a utilização, a divulgação por transmissão, difusão ou qualquer outra forma de disponibilização, a comparação ou interconexão, a limitação, o apagamento ou a destruição;
3) «Limitação do tratamento», a inserção de uma marca nos dados pessoais conservados com o objetivo de limitar o seu tratamento no futuro;
[…]
7) «Responsável pelo tratamento», a pessoa singular ou coletiva, a autoridade pública, a agência ou outro organismo que, individualmente ou em conjunto com outras, determina as finalidades e os meios de tratamento de dados pessoais; sempre que as finalidades e os meios desse tratamento sejam determinados pelo direito da União ou de um Estado-Membro, o responsável pelo tratamento ou os critérios específicos aplicáveis à sua nomeação podem ser previstos pelo direito da União ou de um Estado-Membro;
[…]
9) «Destinatário», uma pessoa singular ou coletiva, a autoridade pública, agência ou outro organismo que recebem comunicações de dados pessoais, independentemente de se tratar ou não de um terceiro. Contudo, as autoridades 4.5.2016 L 119/33 Jornal Oficial da União Europeia PT públicas que possam receber dados pessoais no âmbito de inquéritos específicos nos termos do direito da União ou dos Estados-Membros não são consideradas destinatários; o tratamento desses dados por essas autoridades públicas deve cumprir as regras de proteção de dados aplicáveis em função das finalidades do tratamento; […]
Art. 5ªPrincípios relativos ao tratamento de dados pessoais
1.Os dados pessoais são:
a)Objeto de um tratamento lícito, leal e transparente em relação ao titular dos dados («licitude, lealdade e transparência»);
b) Recolhidos para finalidades determinadas, explícitas e legítimas e não podendo ser tratados posteriormente de uma forma incompatível com essas finalidades; o tratamento posterior para fins de arquivo de interesse público, ou para fins de investigação científica ou histórica ou para fins estatísticos, não é considerado incompatível com as finalidades iniciais, em conformidade com o artigo 89.o, n.o 1 («limitação das finalidades»);
c) Adequados, pertinentes e limitados ao que é necessário relativamente às finalidades para as quais são tratados («minimização dos dados»);
d) Exatos e atualizados sempre que necessário; devem ser adotadas todas as medidas adequadas para que os dados inexatos, tendo em conta as finalidades para que são tratados, sejam apagados ou retificados sem demora («exatidão»); 4.5.2016 L 119/35 Jornal Oficial da União Europeia PT (1)Diretiva (UE) 2015/1535 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de setembro de 2015, relativa a um procedimento de informação no domínio das regulamentações técnicas e das regras relativas aos serviços da sociedade da informação (JO L 241 de 17.9.2015, p. 1).
e) Conservados de uma forma que permita a identificação dos titulares dos dados apenas durante o período necessário para as finalidades para as quais são tratados; os dados pessoais podem ser conservados durante períodos mais longos, desde que sejam tratados exclusivamente para fins de arquivo de interesse público, ou para fins de investigação científica ou histórica ou para fins estatísticos, em conformidade com o artigo 89.o, n.o 1, sujeitos à aplicação das medidas técnicas e organizativas adequadas exigidas pelo presente regulamento, a fim de salvaguardar os direitos e liberdades do titular dos dados («limitação da conservação»);
f) Tratados de uma forma que garanta a sua segurança, incluindo a proteção contra o seu tratamento não autorizado ou ilícito e contra a sua perda, destruição ou danificação acidental, adotando as medidas técnicas ou organizativas adequadas («integridade e confidencialidade»);
2.O responsável pelo tratamento é responsável pelo cumprimento do disposto no n.o 1 e tem de poder comprová-lo («responsabilidade»).
Art. 38º
5.O encarregado da proteção de dados está vinculado à obrigação de sigilo ou de confidencialidade no exercício das suas funções, em conformidade com o direito da União ou dos Estados-Membros.
O regulamento foi transposto para a ordem jurídica interna pela Lei 58/2019 de 08 de agosto, que garante a execução interna do referido Regulamento, na qual se passou a prever:
- Artigo 2.º - Âmbito de aplicação
1 - A presente lei aplica -se aos tratamentos de dados pessoais realizados no território nacional, independentemente da natureza pública ou privada do responsável pelo tratamento ou do subcontratante, mesmo que o tratamento de dados pessoais seja efetuado em cumprimento de obrigações legais ou no âmbito da prossecução de missões de interesse público, aplicando –se todas as exclusões previstas no artigo 2.º do RGPD.
Artigo 10.º Dever de sigilo e confidencialidade
1 - De acordo com o disposto no n.º 5 do artigo 38.º do RGPD, o encarregado de proteção de dados está obrigado a um dever de sigilo profissional em tudo o que diga respeito ao exercício dessas funções, que se mantém após o termo das funções que lhes deram origem.
2 - O encarregado de proteção de dados, bem como os responsáveis pelo tratamento de dados, incluindo os subcontratantes, e todas as pessoas que intervenham em qualquer operação de tratamento de dados, estão obrigados a um dever de confidencialidade que acresce aos deveres de sigilo profissional previsto na lei.
Artigo 20.º - Dever de segredo
1 - Os direitos de informação e de acesso a dados pessoais previstos nos artigos 13.º a 15.º do RGPD não podem ser exercidos quando a lei imponha ao responsável pelo tratamento ou ao subcontratante um dever de segredo que seja oponível ao próprio titular dos dados.
2 - O titular dos dados pode solicitar à CNPD a emissão de parecer quanto à oponibilidade do dever de segredo, sem prejuízo do disposto no Capítulo VII.
Perante este quadro legal, a jurisprudência, com apoio no Parecer nº 21/2000 do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República, (publicado no DR II série, de 08/08/2000), citado por B…, SA (…), tem defendido, com argumentos que acolhemos, que as informações respeitantes à morada do utente/assinante consideram-se dados pessoais, mas que apenas estão a coberto do sigilo profissional, quando o cliente requeira a confidencialidade dos seus dados. Excluem-se do âmbito do sigilo das comunicações, por não se tratarem de “dados de tráfego” ou “dados de conteúdo”.
O conteúdo do direito ao sigilo da correspondência e de outros meios de comunicação privada abrange não só a correspondência postal como a que é veiculada por telecomunicações.
Nos termos do art. 34º/4 da Constituição da República Portuguesa o direito ao sigilo das telecomunicações implica a proibição de devassa do seu conteúdo e da sua divulgação por quem a elas tenha acesso, designadamente, os empregados dos serviços de telecomunicações para quem decorre o dever de sigilo profissional.
Com a proibição de ingerência tem-se em vista a salvaguarda da liberdade de comunicar e a proibição de nela intervir.
O Código Penal incriminou condutas violadoras do direito dos cidadãos à comunicação reservada – ao sigilo das comunicações. Tanto a intromissão na vida privada mediante acesso às comunicações telefónicas como a violação da correspondência e das telecomunicações constituem infrações tipificadas no Código Penal (art. 192 e 194 CP).
A inviolabilidade da correspondência e de outros meios de comunicação está, por seu turno, relacionada com a reserva de intimidade da vida privada a que se reporta o artigo 26.º da Constituição da República Portuguesa.
O direito à intimidade da vida privada, como garantia de resguardo, de reserva, de proteção, supõe a faculdade de impedir a revelação de factos relativos à vida íntima e familiar, de
requerer a cessação de algum eventual abuso e o ressarcimento dos danos derivados da divulgação de um facto respeitante à vida privada.
Só no domínio do processo penal é que a lei ordinária pode prever restrições à referida garantia, motivada pela necessidade de perseguição criminal e de obtenção de provas, apesar de carecerem de avaliação pelas autoridades judiciárias em termos de necessidade, adequação e proporcionalidade. Violado que seja o princípio da menor intervenção possível e da proporcionalidade, há de a prova assim obtida ser considerada nula (artigos 32.º, n.º 8, da Constituição e 189.º do Código de Processo Penal).
O sigilo das comunicações, ao nível do Código de Processo Penal, sofre as limitações que decorrem do disposto nos artigos 187.º e 190.º do diploma.
Como decorre do aludido parecer os “dados de tráfego” e os “dados de conteúdo”- interceção, gravação ou registo de conversações ou comunicações e de divulgação de documentos ou informações, que, sendo inerentes à própria comunicação, permitam identificar, posteriormente, os intervenientes numa ligação, bem como o local, a data, a hora e a duração ou conteúdo de uma mensagem - constituem o núcleo essencial para efeito de proteção do sigilo das comunicações.
Na tese do parecer, não parece que o mesmo critério deva ser aplicado aos “dados de base”.
No Parecer n.º 21/2000 ponderou-se que “[a]inda que se torne aceitável que os dados de tráfego se encontrem equiparados aos dados de conteúdo, que constituem o núcleo mais fundamental da própria comunicação, para efeito de protecção do sigilo das telecomunicações, não é de todo evidente que o mesmo critério deva ser aplicado aos dados de base.
Os dados de base respeitam à identificação dos emissores ou destinatários das chamadas telefónicas - evidenciando assim a mera conexão a uma rede pública de telecomunicações -, e não são susceptíveis de revelarem ou identificarem uma comunicação.
É possível detectar uma diferença de grau entre a protecção de dados de tráfego (e, por maioria de razão, os dados de conteúdo) e a dos dados de base.
Ao passo que aqueles, sendo gerados por uma ligação telefónica, estão abrangidos pela própria confidencialidade da comunicação (…), em relação a estes, o sigilo profissional que recai sobre os trabalhadores e responsáveis das empresas de telecomunicações deriva de um direito (que o utilizador pode ou não exercer) de impedir a divulgação dos respectivos dados de identificação (…).
Ainda que se encontrem cobertos por um sistema de confidencialidade, que tenha sido solicitado pelo próprio assinante, os interesses em causa são de natureza privatística ou contratual - o utilizador pode pretender não figurar numa lista de assinantes para se não colocar na contingência de receber de terceiros comunicações que não deseje -, e não assumem a dignidade que lhes permita conferir a protecção constitucional do sigilo das comunicações.
A confidencialidade dos referidos documentos, quando subsistente por efeito da relação contratual entre o operador e o utilizador, deverá por isso ceder perante o dever de colaboração com a administração da justiça […].”
Os “dados de base” respeitam à identificação dos emissores ou destinatários das comunicações, evidenciando, assim, a mera conexão a uma rede pública de telecomunicações, e não são suscetíveis de revelarem ou identificarem uma comunicação.
Os interesses em causa são de natureza privatística ou contratual e não assumem a dignidade que lhes permita conferir a proteção constitucional do sigilo das comunicações. Por isso, em relação aos dados de base, ainda que cobertos pelo sistema de confidencialidade a solicitação do assinante, tendo em consideração que o sigilo profissional em causa releva de um simples interesse pessoal do utilizador que não contende com a respetiva esfera privada íntima, os correspondentes elementos de informação deverão ser comunicados, a pedido de qualquer autoridade judiciária, em ordem ao prevalecente dever de colaboração com a justiça.
Como se observa no citado parecer: “[o] carácter sigiloso dos dados deriva, nessa hipótese, da circunstância de o interessado ter manifestado a oposição à sua publicitação (que poderia ocorrer, designadamente por via da inclusão em listagens de assinantes), relevando, por conseguinte, no plano dos simples interesses pessoais que não contendem com a esfera privada íntima. A divulgação dessas informações, dentro dos limites consentidos pelos fins da actividade instrutória no âmbito do processo civil, não afecta a confiança do público nos serviços de telecomunicações, nem a reserva de intimidade da vida privada.
Nesse caso, deve prevalecer o interesse público fundamental subjacente ao dever de cooperação com a administração da justiça. E se as entidades requisitadas, na ponderação dos valores em presença, vierem a invocar escusa, com base no disposto na alínea c) do n.º 3 do artigo 519.º, funciona então o mecanismo previsto no artigo 135.º do Código de Processo Penal, por força da remissão operada pelo n.º 4 daquele artigo”.
Assim, os chamados dados de base, tais como o endereço do assinante, exteriores ao acionamento de comunicações em concreto, não se integram na previsão do n.º 4 do art.º 34.º da CRP, nem da alínea b) do n.º 3 do art.º 417.º do CPC. Pelo que a eventual escusa por parte dos operadores de telecomunicações na prestação de informações atinentes a esses dados deverá ter o tratamento previsto nos artigos 417.º n.º 4 do CPC e 135.º do CPP.
Esta interpretação tem sido acolhida na jurisprudência do Tribunal Constitucional, entre outros, Ac. no Tribunal Constitucional no Acórdão nº 486/2009, de 28 de setembro de 2009 e Acórdão n.º 403/2015, de 27 de agosto de 2015, publicado no D.R., I série, de 17.9.2015.
Na jurisprudência dos Tribunais das Relações seguiu-se esta interpretação, entre outros, nos Ac. Rel. Porto 25 de setembro de 2002, Proc. 0141415; Ac. Rel. Lisboa 12 de abril de 2018, Proc. 18479/16.7T8LSB-A.L1-2; Ac. Rel. Lisboa 05 de maio de 2020, Proc. 5002/16.2T8LRS-A.L1-7; Ac. Rel. Évora 12-04-2018, Processo 2112/16.0T8EVR-A.E1; Ac. Rel Lisboa 06 de fevereiro de 2020, Proc. 18479/16.7T8LSB-B.L1-2, Ac. Rel. Évora 04 de junho de 2020, Proc. 130866/18.5YIPRT-A.E1, todos acessíveis em www.dgsi.pt .
Conclui-se que nos serviços de telecomunicações distinguem-se três espécies de dados: os relativos à conexão à rede, ditos dados de base; os dados funcionais necessários ao estabelecimento de uma ligação ou comunicação e os dados gerados pela utilização da rede (por ex. localização do utilizador e do destinatário, duração de utilização, data e hora, frequência) chamados dados de tráfico; e os dados relativos ao conteúdo da comunicação ou da mensagem, os dados de conteúdo.
Os dados de base constituem os elementos necessários ao acesso à rede, designadamente através da ligação individual e para utilização própria do respetivo serviço; como dados de natureza pessoal, o seu titular deve ter sobre eles o direito de reserva, quando solicitada a sua confidencialidade.
Os elementos de informação relativos aos dados de base (designadamente a identificação do utilizador e sua morada), tendo em consideração que o sigilo profissional em causa releva de um simples interesse privado do utilizador, que não contende com a sua esfera privada intima, deverão ser comunicados, a pedido de qualquer autoridade judiciária.
Tendo sido deduzida escusa, deverá seguir-se o regime processual do incidente previsto no artigo 135º do Código de Processo Penal, cabendo exclusivamente ao tribunal a decisão do incidente.
No caso presente, verifica-se que os elementos solicitados pelo tribunal de 1ª instância à operadora “B…” respeitante ao endereço da ré, constituem meros “dados de base” que não têm a tutela do sigilo de comunicações. Porém, estão a coberto do sigilo profissional, atendendo ao caráter de confidencialidade que o assinante lhes atribuiu e por se tratarem de dados pessoais, mostra-se justificado o incidente de dispensa do dever de sigilo profissional e a sua dispensa passa pela consideração do principio da prevalência do interesse preponderante.
Desta forma, na avaliação do interesse que em concreto irá prevalecer refere o Juiz Conselheiro Supremo Tribunal de Justiça LOPES DO REGO que: “ cumpre ao Tribunal actuar segundo critérios prudenciais, realizando uma cautelosa e aprofundada ponderação dos delicados e relevantes interesses em conflito: por um lado, o interesse na realização da justiça e a tutela do direito à produção da prova pela parte onerada; por outro lado, o interesse tutelado com o estabelecimento do dever de “sigilo“, maxime “o interesse da contraparte na reserva da vida privada, a tutela da relação de confiança que a levou a confiar dados pessoais ao vinculado pelo sigilo e a própria dignidade do exercício da profissão.
[…] Daqui decorre que a dispensa do invocado sigilo dependerá sempre de um juízo concreto, fundado na específica natureza da acção e na relevância e intensidade dos interesses da parte que pretende obter prova através daquela dispensa[…][3] “.
Verificando-se um conflito entre dever de sigilo profissional que impende sobre a operadora de telecomunicações e o de cooperação para a realização da justiça, que visa satisfazer interesses bem mais relevantes, mesmo no âmbito do processo civil, deverá o mesmo ser dirimido no sentido da quebra ou levantamento de tal segredo.
Essa solução está conforme a uma certa hierarquização dos direitos garantidos constitucionalmente e em consonância com as normas atinentes à colisão de direitos, insertas no artº 335° do Código Civil, aplicáveis, porque, “in casu”, a quebra do sigilo afeta interesses privados e visa a realização da justiça num caso em que também se discutem interesses dessa ordem, se bem que, aqui, a ênfase tenha de ser posta no interesse público dos tribunais disporem de todos os elementos para decidirem de acordo com a verdade das coisas; ou seja, de um lado temos particulares que gozam do direito à reserva da vida privada e dos dados pessoais [arts. 26°, 1 e 2, 35°, 4 e 7, da Constituição da República Portuguesa (CRP), e 80° Cód. Civil], e, do outro, também particulares a quem tem de ser garantido o “acesso ao direito e aos tribunais, para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos”, impondo-se assegurar-lhes que a causa em que são partes “seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo”, de modo a que se apure a “verdade” e se consiga a “justa composição do litígio” (artºs 20°, 1 e 4, da CRP, 2°, 265°, 3, 266° e 519° do Código de Processo Civil)[4].
Mas a questão tem de colocar-se, ainda, e com maior ênfase, num outro plano onde cumpre considerar o interesse público na administração da justiça, constitucionalmente cometida aos tribunais (artºs 20°, 1, 4 e 5, e 202°, 1 e 2, da CRP). Ora, integrando a administração da justiça uma das funções soberanas do Estado, mal se entenderia que lhe fossem postos entraves em nome de interesses privados[5].
Não resulta dos factos apurados, que a situação em causa esteja a coberto de qualquer limite ao dever de confidencialidade.
Nestas circunstâncias ordenar a realização da diligência viola o dever de confidencialidade, o que constitui uma nulidade, nos termos do art. 201º/1, conjugado com o art.417º/3 c) CPC.
Resulta de igual forma, dos factos apurados, que os elementos solicitados se mostram relevantes para garantir a promoção da ação, com a citação pessoal da requerida/ré.
Por outro lado, tais elementos estão devidamente determinados e definidos – fornecer o endereço para efeitos de citação pessoal no âmbito da presente ação.
É patente a colisão entre o interesse público de administrar a Justiça e o interesse privado da requerida/ré de ver garantida a confidencialidade dos seus dados pessoais, com o correlativo dever da B…, SA (…) manter o sigilo, sendo certo, que o interesse privado da requerida/ré nem sequer contende com a sua esfera privada íntima, com a reserva de intimidade da vida privada.
O acesso a informação sobre a morada da requerida/ré tem apenas e só a finalidade de permitir a sua citação pessoal, o que até é do seu interesse na perspetiva do melhor exercício do contraditório, garantia, entre outras, de um processo judicial equitativo.
Acresce o facto de se terem realizado várias diligências com o objetivo de concretizar a citação pessoal e sem sucesso, não se tendo apurado nas bases de dados disponíveis qual a morada atual da requerida (apenas aquelas onde se frustrou a citação pessoal). A citação edital só pode ser utilizada quando não for possível localizar o paradeiro do réu - artigos 225.º, n.º 6 e 236.º do Código de Processo Civil -, como se observa no despacho proferido no tribunal em 1ª instância.
A necessidade da justa composição do litígio, de modo a que se realize a Justiça, no caso concreto, exigem que se dispense B…, SA (…) do dever de confidencialidade, a fim de que prontamente possa remeter ao tribunal os elementos solicitados pelo tribunal.
Ponderando tais aspetos é de considerar que visando a informação solicitada tão só promover a citação pessoal da requerida/ré sem que tal procedimento possa afetar a confiança do público nos serviços de telecomunicações, nem a reserva de intimidade da vida privada, deve prevalecer o interesse público da administração e realização da justiça, dispensando-se o sigilo para este concreto fim.
Neste sentido e perante idêntica situação de facto, se pronunciaram os Ac. Rel. Évora 12/04/2018, Proc. 2112/16.0T8EVR-A.E1 e Ac. Rel. Évora 04 de junho de 2020, Proc. 130866/18.5YIPRT-A.E1.
Observa-se no Ac. Relação de Évora de 12/04/2018, Proc. 2112/16.0T8EVR-A.E1 (acessível em www.dgsi.pt.):“[n]o caso dos autos justifica-se a quebra do sigilo […] pelo que o fornecimento da morada do cliente, embora determine a violação de um sigilo profissional, não importará qualquer intromissão na vida privada da referida cliente ou qualquer violação de outro direito consagrado”[…]
“O interesse na boa administração da justiça apresenta-se, na situação concreta, superior ao decorrente do dever de confidencialidade e a informação solicitada é necessária para o correto andamento do processo, mantendo-se intangível o núcleo essencial daquilo que constitui o dever de sigilo propriamente dito”.
No Ac. Rel. Évora 04 de junho de 2020, Proc. 130866/18.5YIPRT-A.E1 (acessível em www.dgsi.pt) considerou-se:
“[…]convém lembrar duas importantes normas consagradas na CRP, designadamente o artigo 20º, nº 1, que nos diz que: “1- A todos é assegurado o acesso ao Direito e aos tribunais para defesa dos seus interesses legalmente protegidos …”, bem como o artigo 202º, quando estabelece no seu nº 2 que:
“2- Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados.”
Assim, sopesando nos pratos da balança os supra indicados interesses em jogo somos em crer que, com a estrita finalidade acima ressalvada de viabilizar a citação pessoal do Requerido para a acção contra si intentada, deve prevalecer o interesse público da administração e realização da justiça, por notoriamente se situar, do ponto de vista social, em patamar superior, não resultando da “violação”
do interesse subjectivo daquele em manter sob sigilo a sua morada beliscada a reserva de intimidade da vida privada, nem sequer a confiança do público nos serviços de telecomunicações”.
Em conclusão dispensa-se B…, SA (…) do dever de confidencialidade - sigilo profissional -, para prontamente remeter ao tribunal os elementos solicitados pelo tribunal a respeito do endereço da requerida/ré, para o efeito de concretizar a sua citação pessoal no processo.
*
Nos termos do art. 527º CPC as custas são suportadas pela parte vencida a final.
*
III. Decisão:
Face ao exposto decide-se deferir o incidente e nessa conformidade, ao abrigo do art. 417º, 4 do Código de Processo Civil e art.135º/3 do Código de Processo Penal, dispensar B…, SA (B…) do dever de confidencialidade devendo fornecer ao Proc. 42003/20.8YIPRT, Comarca de Aveiro, Juízo de Competência Genérica de Vagos a indicação do endereço da ré/requerida que conste das respetivas bases de dados, para o efeito de promover a citação pessoal para os termos da ação.
*
Custas pela parte vencida a final.
*
Porto, 22 de fevereiro de 2021
(processei e revi – art. 131º/6 CPC)
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
______________________
[1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico de 1990, com exceção dos textos transcritos.
[2] CARLOS FRANCISCO DE OLIVEIRA LOPES DO REGO Comentários ao Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 1999, pag. 363.
[3] CARLOS FRANCISCO DE OLIVEIRA LOPES DO REGO Comentários ao Código de Processo Civil, ob. cit., pag. 363-364
[4] Cfr. Proc. 3553-06.6TJVNF-D.P1-291-11TRP – publicado em www.dgsi.pt
[5] Proc. 120-C/2000.C1 – www. dgsi.pt