Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
187/11.7PDVNG-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO VAZ PATO
Descritores: INSTRUÇÃO
RAI
ELEMENTO SUBJECTIVO
Nº do Documento: RP20140604187/11.7PDVNG-A.P1
Data do Acordão: 06/04/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: No requerimento de abertura de instrução, a indicação do elemento subjetivo de determinado crime pode ser feita de forma implícita, mas tem de ser inequívoca. Isso não se verifica quando, sem referência explícita a esse elemento, se afirma que o arguido se recusou a entregar determinados bens de que não é proprietário e que ele deixou num chão sujo outros bens de que não é proprietário e que por isso se deterioraram.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Pr187/11.7PDVNG-A.P1

Acordam os juízes em conferência no Tribunal da Relação do Porto

I - B…, assistente nos autos, veio interpor recurso do douto despacho do Mª Juíza do 2º Juízo Criminal de Santa Maria da Feira que rejeitou, por inadmissibilidade legal, o requerimento de abertura de instrução por ela apresentado.

São as seguintes as conclusões da motivação do recurso:
«A) No RAI são descritas as circunstâncias de tempo, modo e lugar onde foram praticados os crimes.
B) Os factos do RAI não têm de subsumir-se a uma acusação em sentido processual formal, bastando a acusação em sentido material, que delimite o objecto do processo.
C) O objecto do processo foi delimitado. Dos factos descritos decorre a tipicidade da conduta.
D) Da descrição da actuação do arguido extraem-se os elementos objectivos e subjectivos do crime.
E) Encontrando-se alegados no RAI factos suficientes e susceptíveis de permitirem ao Tribunal que, através de operações dedutivas, estabeleça a existência de dolo e a consciência da ilicitude do Arguido.
F) Carece de fundamento a decisão impugnada, que rejeitou, por inadmissibilidade legal, a instrução, sob o entendimento de que o requerimento apresentado não descrevia, ainda que de forma sintética, os factos concretos que poderiam fundamentar a aplicação ao arguido de uma pena e as circunstâncias de modo, lugar e tempo da sua prática.
G) A doutrina mais autorizada pronunciou-se quanto aos casos de inadmissibilidade legal da instrução, sustentando, a esse propósito, que “se do próprio requerimento para abertura de instrução resultar falta de tipicidade da conduta [o que não sucede no caso em apreço], a instrução não poderá nem deverá ser desde logo recusada por inadmissibilidade”.
H) Com efeito, no presente RAI foi efectuada uma narração dos factos, uma identificação clara do objecto do processo e da tipicidade da conduta do arguido, o que se evidencia, maxime, dos artigos 19.º a 34.º do RAI, que aqui se dão por integralmente reproduzidos e integrados.
I) Do referido excerto resulta ainda a referência às circunstâncias de tempo, modo e lugar onde foram praticados os crimes narrados pela Assistente.
J) Por outro lado, resulta inequívoco da descrição dos factos o elemento subjectivo do crime, e que agiu livre e conscientemente [transcrevem-se as passagens mais ilustrativas deste facto, da narração do RAI “A Ofendida, foi forçada, que tentou reaver e que o arguido impediu, …Assim, após inúmeras tentativas falhadas junto do ora Arguido, com vista a recuperar os seus bens… Fez inúmeras tentativas falhadas que o arguido impediu … chegou a estar marcada data para a entrega…Contudo, o arguido ainda não satisfeito pela humilhação infligida durante anos a fio à Ofendida, demonstrou novamente a conduta pela qual sempre se pautou, … onde de forma cruel… não deixou levar os bens… O Arguido, sabia que a deslocação para recolha dos pertences da Ofendida se iria realizar na data supra referida, sabia também, que o seu mandatário e a mandatária da Ofendida iriam estar presentes, e mesmo assim, não se coibiu de faltar ao acordado. O Arguido com a sua atitude faltou, inclusive, ao respeito … com o vil propósito de continuar a senda de humilhação com que presenteia a Ofendida de há anos a esta parte. Pois conhecia a listagem de bens, constantes de fls. 16 a 53, que lhe foi remetida atempadamente e com bastante anterioridade e aí se iam buscar e levantar. A verdade é que a Ofendida quando saiu de casa do arguido, aí deixou os seus bens, os bens que havia levado para a casa do arguido quando consigo foi morar, e os bens que ao longo de 16 anos foi comprando… e que esses bens, … continuam em casa do arguido…, que se apropriou indevidamente dos mesmos e se recusa a restituí-los à sua legitima proprietária.”]
K) Acresce ainda que, a jurisprudência autoriza a indicação dos factos em causa por remissão, constante do requerimento de abertura de instrução, para outra peça processual, desde que sejam respeitados os princípios da vinculação temática e da garantia de defesa do arguido.
L) Ora, no requerimento de abertura de instrução faz-se uma remissão explícita para o relato dos factos que consta da queixa e do requerimento da constituição de assistente. E esta indicação é inequívoca, assegurando ao arguido o pleno conhecimento dos factos que lhe são imputados, permitindo-lhe o cabal exercício dos seus direitos de defesa.
M) Decidir pela inadmissibilidade do RAI apenas por não se plasmar expressamente a fórmula habitual “o arguido agiu livre e conscientemente…”, quando da narração dos factos resulta inequívoco este elemento é, com o devido respeito, ceder a um formalismo excessivo.
N) A jurisprudência é unânime no sentido de que o RAI (i) não está sujeito a formalidades especiais, (ii) deve conter a narração, ainda que sintética dos factos essenciais ou necessários, incluindo se possível o lugar, tempo e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção, (iii) enunciação / narração dos factos que integrem o respectivo tipo legal – o que se verifica no caso concreto.
O) No que concerne ao tipo legal de furto, foram narrados factos consubstanciadores desse tipo de crime: a) ilegítima intenção de apropriação; [a recorrente alega, no RAI, que os bens são seus, e que o arguido sabia perfeitamente, e que impediu o seu levantamento, mantendo-os na sua posse contra a vontade da assistente] b) subtracção e coisa móvel alheia [a assistente relatou que o arguido se recusa a restituir os bens propriedade da assistente, deles se apoderando e dispondo] e c) valor patrimonial da coisa [a assistente refere o valor patrimonial dos bens: € 38.000,00].
P) A recusa de restituição manifestada pelo arguido e relatada pela assistente no RAI configura ainda o conceito de apropriação ilegítima típico do crime de abuso de confiança.
Q) Foram ainda alegados pela assistente factos que configuram o tipo de ilícito do crime de dano, cfr. artigo 32.º do RAI.
R) Pelo exposto, evidencia-se que foi carreada para os autos factualidade apta a integrar os ilícitos criminais aludidos.
S) A assistente imputou a prática dessa factualidade ao arguido, de forma inequívoca e se qualquer prejuízo da sua garantia de defesa.
T) Pelo que impunha-se, na prossecução do desiderato da Instrução [investigação e realização da Justiça com vista à punição de quem eventualmente possa ter cometido um crime], sob pena de denegação da Justiça devida à recorrente / assistente.»

O Ministério Público junto do Tribunal de primeira instância não respondeu à motivação do recurso.
O Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer, pugnando pelo não provimento do recurso.

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.

II – A questão que importa decidir é, de acordo com as conclusões da motivação do recurso, a de saber se o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente (ora recorrente) deve ser rejeitado, por não conter as indicações exigidas pelas disposições combinadas dos artigos 287º, nº 2, e 283º, nº 3, b), do Código de Processo Penal, ou não, por conter tais indicações.

III – É o seguinte o teor do douto despacho recorrido:
«Requerimento de abertura de instrução de folhas 670 a 688:
A assistente B… veio requerer a abertura de instrução pedindo pronúncia do arguido C…, pela prática de um crime de furto qualificado, previsto e punido 204.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal, de um crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo artigo 205.º, n.º 4, alínea b), do Código Penal, e de um crime de dano, previsto e punido pelo artigo 212.º do Código Penal (cfr. folhas 686).
Para tanto, entre o mais, articula os seguintes factos:
«A Ofendida, foi forçada, em 5 de Março de 2011, a abandonar a casa em que habitava com o Arguido, tendo apenas trazido consigo algumas roupas, sapatos, carteiras e jóias, deixando inúmeros pertences na dita habitação.
Pertences e bens esses que tentou reaver e que o Arguido impediu, nomeadamente, diversos quadros, artigos de ornamentação da casa, casacos de pele, uma capa de caxemira com gola de raposa, vestidos, casacos compridos, blazeres, calças saias, e as peças de melhor qualidade e valiosas constantes de fls. 156 a 53 dos autos.
Assim, após inúmeras tentativas falhadas junto do ora Arguido, com vista a recuperar os seus bens, a Ofendida através da sua mandatária, Dra. D…, entrou em contacto com o Dr. E…, ilustre mandatário do Arguido, de forma a obter uma solução extrajudicial para recuperar os bens que são seus por direito.
Foi assim possível, através dos ilustres mandatários supra referidos, chegar a um consenso e agendar a data de 30 Novembro de 2011 para o levantamento dos bens da Ofendida que ainda se encontravam, e encontram, na casa do Arguido.
A Ofendida elaborou um dossier com fotografias dos seus bens que ai se encontravam (na casa do arguido) e constantes a fls 16 a 53 dos autos, dossier que entregou atempadamente aos supra referidos mandatários.
Os bens constantes a fls 16 a 53 pertencem á Ofendida, são seus, alguns comprou-os em data muito anterior á do início do relacionamento com o arguido, levando-os para casa deste quando com ele foi viver, outros comprou-os na pendência do relacionamento e outros eram peças de família.
Os bens identificados no supra referido dossier deveriam ter sido entregues à Ofendida no dia 30/11/2011.
E chegado o dia 30/11/2011, a Ofendida contratou a empresa "F…” para retirar e transportar todos os seus bens de casa do ora Arguido.
Assim, no dia 30 de Novembro de 2011, dois funcionários da empresa "F…", G… e H…, acompanhados da mandatária da Ofendida, Dra. D…, e do mandatário do Arguido, Dr. E…, deslocaram-se a casa do Arguido para proceder ao levantamento dos bens pertencentes á Ofendida
Contudo, o Arguido ainda não satisfeito pela humilhação infligida durante anos a fio à Ofendida, demonstrou novamente a conduta pela qual sempre se pautou, e apenas permitiu o acesso a um anexo de um outro prédio, situado uns metros abaixo da sua residência, onde de forma cruel se limitou a deixar espalhadas pelo chão, quais meros trapos, algumas das roupas que a Ofendida tinha deixado ficar na habitação, e um quadro, ou seja, nada mais foi possível retirar e transportar de casa do arguido, porque este não deixou.
O Arguido, sabia que a deslocação para recolha dos pertences da Ofendida se iria realizar na data supra referida, sabia também, que o seu mandatário e a mandatária da Ofendida iriam estar presentes, e mesmo assim, não se coibiu de faltar ao acordado.
O Arguido com a sua atitude faltou, inclusive, ao respeito aos Ilustres mandatários apenas com o vil propósito de continuar a senda de humilhação com que presenteia a Ofendida de há anos a esta parte.
Pois conhecia a listagem de bens, constantes de fls. 16 a 53, que lhe foi remetida atempadamente e com bastante anterioridade e aí se iam buscar e levantar.
A verdade é que a Ofendida quando saiu de casa do arguido, aí deixou os seus bens, os bens que havia levado para a casa do arguido quando consigo foi morar, e os bens que ao longo de 16 anos foi comprando, e os seus bens pessoais, casacos, peles, e ainda os constantes de fls. 16 a 53 dos autos e que esses bens, eram de valor superior a €38.000,00 (trinta e oito mil euros), e continuam em casa do arguido, que se apropriou indevidamente dos mesmos e se recusa a restituí-los à sua legitima proprietária.
No dia 30.11.2011, na diligência referida supra no art. 27o, o arguido apenas tinha deixado no chão de um anexo, um chão cheio de óleo e todo preto e sujo, meia dúzia de roupas e uma capa de pele, que ficaram irremediavelmente estragados e um quadro
A verdade é que, com a sua conduta o arguido contribuiu também para a deterioração irremediável de maior parte das roupas que decidiu espalhar pelo chão do anexo da casa.» (transcrição).
*
Cumpre apreciar.
Em traços gerais, começaremos por dizer que, a instrução destina-se, consoante os casos, ou a comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou a proceder ao controlo judicial da decisão do Ministério Público de arquivar, sempre tendo em vista a submissão ou não da causa a julgamento (artigo 286.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
A instrução, como diz Mouraz Lopes (José Mouraz Lopes, “Garantia Judiciária no Processo Penal, do Juiz e da Instrução”, Coimbra Editora, 2000, página 69), «surge, assim, essencialmente como função garantística. Garantística fundamentalmente perante uma autoridade autónoma que detém o poder de acusar ou arquivar, obedecendo naturalmente a critérios de legalidade, mas que não deixa de estar, diríamos de uma maneira provocatória, no lado acusatório, em conflito com o cidadão».
Compulsada a matéria de facto que a assistente verte no requerimento de abertura de instrução, afigura-se-nos que o mesmo não é admissível.
Na realidade, parece que a assistente aduz tão somente as razões que – no seu entender – deveriam ter conduzido à dedução de acusação por parte do Ministério Público, apreciando a prova produzida em sede de inquérito, mas não descrevendo os concretos factos integradores dos tipos de ilícito penal em causa – mormente os elementos objectivos dos tipos legais.
Efectivamente, considerando a factualidade que sinteticamente consta do requerimento de abertura de instrução de folhas 670 a 688, não se vislumbra a imputação de qualquer comportamento do arguido que possa ser qualificado como um crime de furto qualificado, nem tão pouco como consubstanciador de um crime de abuso de confiança, sendo certo que quanto ao crime de dano, para além de também não existirem factos suficientes parece que a assistente labora em erro já que tal crime consta da acusação pública.
Na verdade, no requerimento em apreço, não há qualquer referência ao tempo, modo e local onde teriam sido praticados os pretensos crimes.
Por conseguinte, bem se vê que a assistente nada descreve, nada relata, limitando-se a dizer que quando saiu da habitação que fora em tempos a casa de morada de família dela e do arguido, aí deixou diversa roupa, jóias e outros objectos, sendo certo que não descreve um único item, remetendo para uma suposta listagem que – ainda que se admitisse a descrição por remissão para um documento dos autos (o que nos parece dúbio num crime em que a essência do tipo de ilícito é a coisa alheia) – não tem qualquer correspondência com a numeração das folhas dos presentes autos, concluindo a narração com um inócuo: «O Arguido, sabia que a deslocação para recolha dos pertences da Ofendida se iria realizar na data supra referida, sabia também, que o seu mandatário e a mandatária da Ofendida iriam estar presentes, e mesmo assim, não se coibiu de faltar ao acordado.
O Arguido com a sua atitude faltou, inclusive, ao respeito aos Ilustres mandatários apenas com o vil propósito de continuar a senda de humilhação com que presenteia a Ofendida de há anos a esta parte.», ou seja, nem sequer aduz claramente qualquer comportamento de apropriação, descrevendo apenas um incumprimento.
Concluindo, não existe factualidade objectiva imputada ao arguido, não se conseguindo sequer “adivinhar” a que tipo legal (repetimos: no plano objectivo), a assistente pretende referir-se, já que não descreve uma concreta acção ou omissão, que não seja o que poderá constituir um mero incumprimento contratual ou até uma má fé processual.
De facto, em face de tão parca factualidade não é aqui possível reconhecer os elementos típicos do crime de furto, nem tão pouco do crime de abuso de confiança.
Para além do mais, relativamente à dimensão subjectiva dos ilícitos o requerimento de abertura de instrução é totalmente omisso, não existindo qualquer referência factual, ainda que de forma insípida, ao modo de imputação, ficando inclusivamente por saber se a imputação seria dolosa.
Como tal, sabido como é que a responsabilidade penal não é objectiva, à conduta eventualmente imputável ao denunciado não poderia vir a ser reconhecida qualquer relevância criminal.
Ora, nos termos do disposto no artigo 309.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam uma alteração substancial dos descritos no requerimento de abertura de instrução, prevendo o artigo 303.º do mesmo código as consequências da alteração não substancial e substancial dos factos descritos no requerimento de abertura de instrução constatada no decurso desta.
A este requerimento aplica-se, nos termos preceituados pelo n.º 2 do artigo 287.º, do Código de Processo Penal, o previsto no n.º 3, al.as b) e c) do mesmo normativo.
Impõe-se, assim, ao assistente requerente da abertura de instrução (obviamente em caso de arquivamento) um especial cuidado na selecção dos factos pelos quais pretende ver o arguido pronunciado, especificamente, tendo em vista a verificação dos elementos objectivos e subjectivos do tipo legal cuja prática imputa àquele.
À assistente impunha-se proceder a uma imputação de factos – qual verdadeira acusação – ao arguido, o que não fez, não se conseguindo sequer alcançar – repita-se – qual a concreta acção que ao arguido é imputada, não podendo o tribunal substituir-se àquela requerente da abertura de instrução nessa tarefa, sob pena de nulidade da decisão instrutória que pronuncie o arguido.
Com efeito, a acusação (artigo 283.º) constitui a charneira entre o inquérito e o julgamento. Trata-se duma consequência do princípio da estrutura acusatória do processo: a actividade do tribunal só pode ser exercida se um determinado conjunto de factos lhe for submetido por um órgão independente do julgador. Acusação e defesa são, assim, dois pólos dialécticos que não podem subsistir um sem o outro (Cunha Rodrigues). Consequentemente, o direito de defesa é, desde logo e antes de tudo, um direito a ser ouvido. Segundo tal princípio, nenhuma decisão pode ser tomada contra o arguido sem que este tenha tido a possibilidade de discuti-la, e isto em condições de plena liberdade e igualdade com os restantes actores processuais, designadamente o Ministério Público, que é o titular da acção penal. A defesa tem de estar, pois, numa situação de paridade relativamente à acusação. Nomeadamente, o processo não pode ser remetido para julgamento sem que o seu objecto tenha sido delimitado num documento (a acusação ou requerimento acusatório) que indique taxativamente os factos que o tribunal pode apreciar; e o arguido deve ter também a oportunidade de produzir um documento (a contestação) que contrarie o anterior. O arguido pode em julgamento questionar toda a matéria acusatória, sendo aí que o princípio do contraditório ganha a sua maior expressão, traduzindo-se no direito que o arguido tem de ser ouvido, de se defender e, designadamente, de se pronunciar sobre as alegações, as provas, os actos ou quaisquer iniciativas processuais da acusação. O princípio acusatório protege o arguido na medida em que lhe assegura que uma condenação só poderá ter sucesso se dois órgãos da administração da justiça — o acusador e o tribunal —, independentemente um do outro, chegarem ao convencimento de que ele é culpado (Roxin).
O artigo 283.º impõe (nº 3) que a acusação contenha, sob pena de nulidade: a) as indicações tendentes à identificação do arguido; b) a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; c) a indicação das disposições legais aplicáveis (…).
In casu, é o requerimento de abertura de instrução que vai necessariamente ser sujeito a comprovação judicial. Como tal, deve conter todos os elementos de uma acusação, de sobremaneira a matéria de facto que consubstancie o ilícito que se pretende imputar ao arguido.
Com efeito, regendo-se o processo penal pelos princípios do acusatório e do contraditório, a necessidade de uma tal demarcação tem subjacentes duas ordens de fundamentos, – um inerente ao objectivo imediato da instrução: a comprovação judicial da pretensa indiciação (que, para que se possa demarcar o âmbito do objecto específico desta fase do processo e para que o arguido se possa defender, tem que reportar-se a imputação de factos possa defender, tem que reportar-se a imputação de factos concretos delimitados) e – outro implícito a uma finalidade mediata mas essencial no caso de se vir a decidir pelo prosseguimento do processo para julgamento: a demarcação do próprio objecto do processo, reflexo da sua estrutura acusatória com a correspondente vinculação temática do Tribunal, que, por sua vez, na medida em que impede qualquer eventual alargamento arbitrário daquele objecto, constituindo uma garantia de defesa do arguido, possibilita a este a preparação da defesa, assim salvaguardando o contraditório (acórdão da Relação de Lisboa, de 10.10.2002, CJ, 2002, IV, 132).
Não obstante a exigência de narração da factualidade imputada ao arguido, a acusação, à semelhança de qualquer outro texto, mesmo que não jurídico, não pode ser lida e interpretada sectorialmente e em função de frases isoladas, mas antes globalmente. Nessa medida, é lícito ao tribunal explicar com pormenores os factos constantes do despacho acusatório e dar como assente matéria de facto que é mero desenvolvimento dos factos que dele constavam, desde que não saia do âmbito do seu conteúdo fáctico, nem com essa pormenorização agrave a posição processual do arguido. (Acórdão do STJ de 7 de Maio de 1997; BMJ-467-419).
Na instrução o juiz encontra-se limitado pelos factos descritos na acusação ou no requerimento instrutório: o juiz não decide nunca os termos da acusação, decide unicamente sobre a acusação já deduzida; está vinculado na pronúncia aos termos da acusação, tal como ela foi deduzida, ou ao requerimento instrutório do assistente. Mas o juiz pode arredar factos que constem da acusação ou do requerimento do assistente, e que entenda não se encontrarem indiciados, bem como rectificar factos. Se o juiz entender que se indiciam outros factos além dos acusados e que constituam uma alteração substancial, “recusa a acusação, não pronuncia o arguido”. E se o entendimento dado pela lei ao princípio do acusatório impede que o juiz ordene ao Ministério Público que deduza acusação em conformidade com os factos que considera indiciados, essa será, porém, a consequência natural e normal, a menos que em novas diligências de inquérito se ilida aquela indiciação”. Existindo duas ou mais acusações, como por vezes acontece, por ex., a do Ministério Público acompanhado pelo assistente, «(…) o juiz pode apenas acolher uma delas, quando entre si sejam incompatíveis, ou ambas, quando sejam complementares, mas não pode pronunciar o arguido por factos que sejam substancialmente distintos dos constantes numa daquelas acusações sob pena de nulidade da decisão instrutória (…).» (Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III, p. 154).
Ora, vista a inexistente descrição factual do requerimento para abertura de instrução não se torna possível admiti-lo.
Na realidade, uma ausência de narração da factualidade torna impossível o exercício eficaz de qualquer direito de defesa pois que não se encontram minimamente circunscritos no tempo e no espaço os factos imputados, nem sequer se consegue minimamente apreender o respectivo conteúdo fáctico por ausência da devida concretização.
Efectivamente, como já se disse, da leitura do requerimento em apreço não se apreende em concreto quando e quais terão sido os factos praticados, sendo certo que nada é dito quanto à impossibilidade de determinação. Concluindo. Conquanto o requerimento para a abertura de instrução não esteja sujeito a formalidades especiais, a verdade é que a lei adjectiva penal estabelece algumas exigências, impondo se indiquem, em síntese, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que se pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar – artigo 287.º, n.º 2.
Por outro lado, sendo a instrução requerida pelo assistente, como no caso vertente se verifica, certo é que ao respectivo requerimento, por força da parte final do n.º 2 do artigo citado, é ainda aplicável o disposto no artigo 283.º, n.º 2, alíneas b) e c), o que significa que o mesmo terá de conter, sob pena de nulidade: narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; indicação das disposições legais aplicáveis.
Daqui decorre que enquanto a falta ou omissão das exigências previstas na 1ª parte do n.º 2, do artigo 287.º, faz incorrer o requerimento para a abertura de instrução em mera irregularidade (artigo 118.º, n.º 2), a falta ou omissão das exigências previstas na 2ª parte daquele dispositivo faz incorrer o requerimento para a abertura da instrução em nulidade (artigos 287.º, n.º 2 segunda parte, 283.º, n.º 3, als.b) e c) e 118.º, n.º1, do Código de Processo Penal).
Por outro lado, em face de tudo o que foi expendido quanto à estrutura do nosso processo penal e à especial função da acusação, cremos que não é lícito ao tribunal a reformulação de tal requerimento em sede de decisão instrutória ou mesmo o proferimento de um convite ao aperfeiçoamento, porquanto tal corresponderia à afirmação de um cariz inquisitório, que há muito não é caracterizador do nosso processo penal, uma vez que impenderia sobre o juiz de instrução não só a comprovação da decisão acusatória mas também o próprio exercício da acção penal (ver, por todos, Acórdão do Tribunal Constitucional 358/04, de 19 de Maio, DR, 2ª série, n.º 150, 28.07.2004).
Efectivamente, o convite ao aperfeiçoamento encontra-se previsto para o processo civil, processo de partes e interesses privados, enquanto no processo criminal nos movemos no domínio do interesse público, alicerçado numa estrutura acusatória (cfr. o n.º 5 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa), a qual resultaria totalmente subvertida caso se admitisse esse convite ao aperfeiçoamento, ao que acresceria uma dilação (e, logo, também aqui, subversão) do prazo para requerer a abertura de instrução.
Tal entendimento veio, de resto, a ser afirmado pelo Supremo Tribunal de Justiça, conforme acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/05, de 12 de Maio de 2005, publicado no DR I-A, de 4 de Novembro de 2005, no qual se fixou a seguinte jurisprudência: «Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.».
***
*
Em face do exposto, por inadmissibilidade legal, decido rejeitar o requerimento de abertura de instrução da assistente B….
Custas pela rejeição a cargo da assistente, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UC.
Notifique.»

IV – Cumpre decidir.
Vem a assistente alegar que o requerimento de abertura de instrução por ela apresentado obedece às exigência das disposições conjugadas dos artigos 287º, nº 2, e 283º, nº 3, b), do Código de Processo Penal, razão pela qual não deveria ter sido rejeitado.
Destes preceitos decorre que o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente deve conter a «narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deva ser aplicada».
A necessidade de indicação dos factos imputados ao arguido não é um mero prurido formalista, decorre das exigências do princípio da vinculação temática, o qual é corolário do princípio do acusatório, por um lado, e, por outro lado, do princípio do contraditório e do respeito pelas garantias de defesa do arguido (ver artigo 32º, nº 1 e nº 5, da Constituição).
O princípio da vinculação temática exige a delimitação clara do objeto do processo através da qual se traçam as fronteiras da actividade cognitiva e decisória do tribunal. Só desse forma se respeitam, por um lado, as exigência da estrutura acusatória do processo, impedindo que o tribunal tome a iniciativa de investigar e decidir para além do que lhe é solicitado pela acusação. E só dessa forma se respeitam, por outro lado, as exigências do princípio do contraditório e as garantias de defesa do arguido, pois só assim pode este saber de que factos tem de se defender e em função deles delinear a sua estratégia de defesa.
Se o requerimento de abertura de instrução não delimita o objeto do processo, nunca poderá conduzir, à luz dos princípios básicos referidos, à pronúncia do arguido, sendo, por isso, a instrução legalmente inadmissível.
Considera o douto despacho recorrido que o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente não contem a narração dos factos imputados ao arguido, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 287º, nº 2, e 283º, nº 3, b), do Código de Processo Penal, o que conduz à sua nulidade e impõe a sua rejeição. Considera esse despacho que nesse requerimento não é descrito qualquer comportamento do arguido que possa ser qualificado como crime de furto qualificado ou abuso de confiança (quanto ao crime de dano, a assistente laborará em erro, pois ele já consta da acusação pública); que nele não é aduzido qualquer comportamento de apropriação, mas apenas um incumprimento; que nele não há qualquer referência ao tempo, modo e local onde terão sido praticados os pretensos crimes; que nele não são descritos os bens objeto desses crimes, sendo que, ainda que se admitisse a descrição por remissão para um documento dos autos (o que será dúbio, pois a essência do tipo de ilícito é a coisa alheia), a remissão que dele consta alude a uma numeração de folhas que não tem correspondência com a numeração dos autos; e que ele é totalmente omisso quanto ao elemento subjetivo dos crimes, ficando inclusivamente por saber se a imputação seria dolosa.
Vejamos.
Já noutros acórdãos por nós subscritos (de 30 de novembro de 2011, proc nº 278/09.4PRPRT.P1, e de 24 de outubro de 2012, processo nº 291/10.9PAVFR.P1, ambos acessíveis em www.dgsi.pt), a que alude a recorrente na motivação do seu recurso considerámos, em homenagem à justiça material e contra excessivas exigências formalistas, que a indicação no requerimento de abertura de instrução dos factos imputados ao arguido pode ser feita por remissão para outras peças processuais e que a indicação do elemento subjetivo do crime pode ser feita de forma implícita (mesmo prescindindo da fórmula clássica: «agiu livre, voluntária e conscientemente, sabendo que a sua conduta não era permitida»). No entanto, por exigências substanciais de respeito pelo princípio do acusatório e pelas garantias de defesa do arguido (aqui já não se trata de mero formalismo), a imputação dos factos, objetivos e subjetivos, externos e internos, tem de ser clara e inequívoca, não pode dar lugar a dúvidas.
No requerimento de abertura de instrução ora em apreço, não podemos dizer que não é imputada a prática de factos concretos ao arguido, nem que não há qualquer referência o tempo, lugar e modo onde terão sido praticados os crimes em causa. É imputada ao arguido a recusa de entrega de determinados bens propriedade da assistente em 30 de novembro de 2011, em casa do arguido. Poderia ser admissível a identificação dos bens em causa por remissão para uma listagem junta aos autos se essa identificação fosse claramente percetível e não desse lugar a dúvidas (o que, porém, não se verificará neste caso, de acordo com o douto despacho recorrido, pois se alude a uma numeração de folhas que não tem correspondência com a numeração dos autos).
No que se refere ao elemento subjetivo, poderá considerar-se implícito na descrição dos factos imputados ao arguido que ele agiu livre e conscientemente e que sabia que os bens em causa não lhe pertenciam (seria quase impossível que assim não fosse). Já não pode considerar-se, porém, e ao contrário do que alega a recorrente na motivação do recurso, que tal se verifique em relação à intenção de apropriação, que é elemento típico dos crimes de furto (ver artigo 203º, nº 1, do Código Penal) e de abuso de confiança (ver artigo 205º, nº 1, do mesmo Código). Alega a recorrente na motivação do seu recurso que essa intenção está subjacente à recusa de entrega dos bens. Mas não tem razão. A intenção de apropriação é a intenção de integrar definitivamente no seu património determinado bem, é a a intenção de o “fazer seu”. À recusa de entrega não subjaz necessariamente essa intenção. Pode essa recusa traduzir uma intenção de retenção dos bens como forma de pressão para exigir determinado comportamento da parte do proprietário dos mesmos (situação que se verifica até com alguma frequência em situações de conflito análogas à dos presentes autos), sem que haja o propósito de integrar esses bens definitivamente no seu património. Ou pode estar subjacente a uma recusa de entrega a simples intenção de uso temporário desses bens. Face a uma recusa de entrega de bens alheios, podemos estar perante um crime de furto (furtum rei) ou um crime de abuso de confiança, mas também um crime de furto de uso, ou um simples ilícito civil.
A omissão da indicação deste facto interno impediria, de qualquer modo, no respeito pelo princípio da vinculação temática, a pronúncia do arguido pelos crimes de furto e abuso de confiança que lhe são imputados.
Quanto ao crime de dano, há que considerar o seguinte.
Os factos a este respeito imputados ao arguido no requerimento de abertura de instrução não se confundem (ao contrário do que parece dar a entender o douto despacho recorrido) com os factos descritos na acusação pública como integrantes do outro crime de dano que nesta é imputado ao arguido.
No entanto, e por um lado, é muito imprecisa a descrição dos factos supostamente integradores do crime de dano imputado ao arguido nesse requerimento. Diz-se que o arguido deixou «no chão de um anexo, um chão cheio de óleo e todo preto e sujo, meia dúzia de roupas e uma capa em pele, que ficaram irremediavelmente estragados e um quadro» e que ele «com a sua conduta contribuiu também para a deterioração irremediável da maior parte da roupa que decidiu espalhar pelo chão do anexo da casa». Fica sem saber-se que “meia dúzia de roupa” está em causa, qual a “maior parte” dessa roupa que ficou irremediavelmente deteriorada e por que motivo ela ficou irremediavelmente deteriorada, e não apenas suja. A precisão destes elementos é uma exigência da correta delimitação do objeto do processo.
E também a este respeito há uma completa omissão da referência explícita ao elemento subjetivo do crime. Se pode considerar-se implícita a afirmação de que o arguido sabia que os bens em causa não lhe pertenciam, isso já não se verifica, de forma inequívoca, em relação à consciência e intenção de danificar os objetos em questão. A descrição objetiva da conduta em causa (o ato de deixar os objetos em questão num chão sujo, de onde terá resultado a sua deterioração) é perfeitamente compatível com uma atuação negligente, como poderá ser compatível com uma atuação dolosa em qualquer das suas modalidades (artigo 14º do Código Penal). E só esta atuação dolosa faria integrar a conduta em causa num crime de dano (ver artigos 13º e 212º do Código Penal). Também a referência inequívoca a este elemento subjetivo seria imprescindível para a correta delimitação do objeto do processo.
Deve, assim, concluir-se que o douto despacho recorrido, ao rejeitar o requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal desta (artigo 287º, nº 3, do Código de Processo Penal), não é merecedor de reparo.
Deve, pois, ser negado provimento ao recurso.

A assistente deverá ser condenada em taxa de justiça (artigo 515º, nº 1, b), do Código de Processo Penal e Tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais)

V – Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso, mantendo o douto despacho recorrido.

Condenam a assistente em 3 U.C.s de taxa de justiça.

Notifique

Porto, 4/6/2014
(processado em computador e revisto pelo signatário)
Pedro Vaz Pato
Eduarda Lobo