Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0433943
Nº Convencional: JTRP00037132
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores: CAUSA DE PEDIR
ALTERAÇÃO
Nº do Documento: RP200407150433943
Data do Acordão: 07/15/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: .
Sumário: I - Através de um articulado superveniente pode ser invocada uma nova causa de pedir ou uma nova excepção.
II - A alteração da causa de pedir baseada em factos supervenientes (ut artigo 506 do Código de Processo Civil) não está sujeita às condições exigidas pelo artigo 273.
III - A ampliação do pedido referida no artigo 273, do Código de Processo Civil, deve estar contida virtualmente no pedido inicial.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

I- RELATÓRIO

No .....º Juízo Cível (.....ª Secção da Comarca do Porto,
A............................, propôs acção declarativa de condenação com processo sumário contra B.........................., com sede na Avenida da ........., Lisboa.

Pede a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de 2.907.635$00, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação e até integral pagamento, correspondente ao valor em que computa os danos patrimoniais e não patrimoniais por si sofridos, provocados culposamente pelo condutor do veículo de matrícula ..-..-LT, seguro na Ré, em consequência de acidente de viação que descreve e que envolveu o seu motociclo de matrícula LM-..-.. .

Citada a Ré, veio a mesma contestar, sustentando uma versão do acidente oposta à do Autor em termos tais que fazem cair sobre o mesmo, enquanto condutor do motociclo de matrícula LM-..-.., toda a censura pela produção do sinistro, conforme factualismo que para tanto enuncia, concluindo pela sua absolvição.
Citado igualmente o Instituto da Solidariedade e Segurança Social, veio o mesmo pedir a condenação da Ré no pagamento da quantia de E 447,32, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até integral reembolso, correspondente à quantia que pagou ao Autor, relativa ao período em que o mesmo esteve incapacitado para o trabalho.

Notificada a Ré, veio a mesma contestar, impugnando a matéria de facto articulada pelo Instituto da Solidariedade e Segurança Social, concluindo pela sua absolvição.

Oportunamente foi proferido despacho saneador o qual teve o Tribunal por competente, o processo por o próprio, as partes por capazes e legítimas.

Procedeu-se à selecção da matéria de facto assente e à organização da base instrutária.

Produzida que foi prova pericial no IML do Porto -- exame médico ao autor, requerida por este a fim de serem esclarecidas as questões de facto constantes dos pontos da base instrutória que indica (cfr. cfr. fls. 76 verso) - e notificado do relatório desse exame, veio o autor, (fls. 180/181) deduzir articulado superveniente, bem como ampliar o pedido inicialmente deduzido na p.i,.
Alega, em suma, que por força do aludido relatório do IML veio a ter conhecimento de que, em consequência do sinistro, ficou a padecer de uma incapacidade permanente geral de 5%, pelo que por virtude desse dano pretende um acréscimo da peticionada indemnização em € 5.000 quanto a danos morais e em € 72.469,93 pela perda da capacidade de ganho emergente de tal incapacidade.

A ré, não obstante aceitar a superveniência dos factos alegados pelo autor, entende que não é possível a ampliação do pedido, por extemporânea, sempre impugnando a factualidade alegada pelo autor no dito requerimento.

Por despacho de fls. 201/202, o Mmº Juiz, não obstante aceitar que o articulado superveniente é tempestivo, indeferiu a requerida ampliação do pedido feita nesse articulado superveniente, assim rejeitando tal articulado superveniente “por ser manifesto que os factos nele articulados não interessam à boa decisão da causa” (fls. 202).

Inconformado, o autor interpõe recurso de agravo para esta Relação, apresentando as pertinentes alegações que remata com as seguintes

CONCLUSÕES:
“1. O articulado superveniente deduzido pelo A. mostra-se legal e tempestivo, contendo apenas factos constitutivos do direito do A.
2. Como tal, devia ter sido admitido e servir de base a uma correspondente alteração da causa de pedir e consequente inclusão desses factos na base instrutória.
Desta alteração e mediante a prova que vier a ser feita deverá ser admitida a consequente modificação do pedido como desenvolvimento do pedido indemnizatório inicial (novos danos na opinião de Antunes Varela).
Ou, quando assim se não entenda, como modificação conjunta da causa de pedir e do pedido nos termos do art. 273 nº 6 do CPC).
Não decidindo assim, o despacho recorrido além de violar o art. 569 do C. Civ. interpreta erradamente o art. 273 nºs 2 e 6 do CPC.
Além destas violações o despacho recorrido coloca-se em posição gritante contra o principio da economia processual que preside aos artigos 506 e 273 do CPC e ao art. 569 do CC.

TERMOS EM QUE NA PROCEDÊNCIA DESTE AGRAVO, DEVE SER ADMITIDO O ARTICULADO SUPERVENIENTE E A CONSEQUENTE MODIFICAÇÃO OBJECTIVA DA PRESENTE INSTÂNCIA.

ASSIM SE FARÁ
JUSTIÇA”

Não foram apresentadas contra alegações no agravo.

Entretanto - porque o supra referido agravo foi recebido para subir com o primeiro recurso que subisse imediatamente nos próprios autos - o processo seguiu com a realização da audiência de julgamento da causa (fls. 209 ss), tendo o tribunal respondido à matéria de facto da base instrutória sem qualquer reclamação (fls. 213 a 217).

Foi, então, elaborada a sentença final, julgando-se a acção improcedente, com a absolvição da ré do pedido (fls. 222).

De novo inconformado, agora com tal sentença, veio o autor dela interpor recurso - de apelação--, apresentando as pertinentes alegações que termina com as seguintes

“CONCLUSÕES:
1. A “Facti specie" transposta para a sentença recorrida e que serviu de base à decisão de mérito é, antes de mais, contraditória e inconciliável entre si, o que eventualmente dará lugar à aplicação do art.712 nº 4 do C.P.C.
2. Não se compreende realmente que, descendo ambos os veículos intervenientes no acidente a Avenida da Boavista em direcção ao mar, seguindo a mota do A. à frente e o automóvel ligeiro atrás, seja possível ao A cortar a linha de trânsito do automóvel.
3. O Tribunal da 1ª Instância, dando como não provadas as versões do acidente alegadas pelas partes, optou por aderir a uma 3ª versão do sinistro que não foi alegada pelas partes, e que contraria não só factos assentes por confissão das partes, mas também diversos elementos constantes dos autos como é o caso da participação do sinistro elaborada pela Polícia de Segurança Pública do Porto.
4. Para fazer vingar a sua tese, o Tribunal socorreu-se do depoimento de duas testemunhas (C............ e D..............) cujos depoimentos não merecem crédito, quer pelas contradições que contêm entre si, quer por apresentar, o primeiro, uma versão do sinistro, não alegada e inconciliável com factos já provados no processo.
5. Na verdade, o depoimento da testemunha C.............. é frontal e inconciliável, não só com o que consta das alíneas C) e D) dos factos assentes, mas contraria também o depoimento da testemunha D.............. que afirma circular, na altura, integrada na caravana referida na alínea D) citada.
6- Mas o mesmo depoimento revela falhas graves a respeito da mota do A referindo-lhe características que ela não tem e negando outras que ela tem, afirmando ainda que a colisão na moto foi lateral o que está em oposição ao alegado pelas partes, ao que consta da referida participação, ao que se vê nas fotografias da moto, ao orçamento da reparação dos respectivos danos e às lesões sofridas pelo A.
7- Por seu turno o depoimento da testemunha D.............. cheio de "falhas de memória" e de incertezas contradiz em Juízo aquilo que revelou ao agente da PSP que tomou conta da ocorrência.
8- Estes dois depoimentos, não podem, por tudo isto, merecer mais crédito do que o depoimento da testemunha presenciar E.......................... que, salvo um pequeno pormenor justificável, apresenta um depoimento lógico, consentâneo e seguro.
9. Por outro lado, as respostas do Tribunal aos quesitos 14 e 15 da BI devem ter- se por não escritas nos termos do art. 646 nº 4 do C.P.C. por tais quesitos conterem matéria conclusiva ou de direito.
10. Acresce que deve ser dada resposta positiva ao artigo 1º da B I pelo facto de a testemunha E..................., a única que depôs sobre esse assunto, ter visto a mota do A. com o pisca pisca ligado quando inflectia para a esquerda e não ter sido desmentida por ninguém.
11. Mas admitindo que os factos provados tal como estão se devam manter, sempre o Tribunal, por falta de explicação da dinâmica do acidente, deveria condenar ambos os condutores intervenientes pelo risco e dentro da proporção de cada um nos termos do art. 506 do C. C.
12. Entende porém o Autor que a matéria de facto tal como deve ser decidida, aponta para a revogação da decisão recorrida e em consequência a condenação da ré no pedido.
13. A sentença recorrida violou os artigos 653º nº2, 646º nº4 do CPC e artº 506º do C. Civil.

TERMOS EM QUE ASSIM JULGANDO SE FARÁ
JUSTIÇA”.

Contra-alegou a apelada, sustentando a manutenção da sentença recorrida.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

II. 1. AS QUESTÕES:
Tendo presente que:
- O objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (arts. 684º, nº3 e 690º, nºs 1 e 3, do C. P. Civil);
- Nos recursos se apreciam questões e não razões;
- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,

as questões suscitadas pela autora-- no agravo e na apelação - consistem no seguinte:

NO AGRAVO:
Se devia ter sido admitido o articulado superveniente e a ampliação do pedido.

NA APELAÇÃO:
Impugnação da matéria de facto;
Errada aplicação do direito.

Vejamos.

II. 2. FACTOS PROVADOS:

Na primeira instância, foram dados como provados os seguintes factos:
a) No dia 18 de Outubro de 1998, pelas 22h20m, ocorreu um acidente de viação na Avenida da Boavista, Porto, no entroncamento com a Rua António Aroso, na faixa de rodagem por onde se faz a circulação dos veículos que viajam de nascente para poente, no qual foram intervenientes o motociclo da marca Kawasaki, LM-..-.. conduzido pelo Autor e o veículo automóvel da marca Audi ..-..-LT, propriedade da F................... - Aluguer de Automóveis, conduzido no momento do sinistro por G.................., que o havia alugado no regime de aluguer sem condutor.
b) Na noite do acidente chovia encontrando-se o piso molhado e escorregadio. c) O Autor circulava no sentido nascente - poente com destino à Rua António Aroso.
d) A condutora do LT circulava à retaguarda do Autor integrada na caravana da comitiva dos representantes da Argentina que nos visitavam por causa de uma cimeira política que se realizou nesta cidade.
e) No local do acidente, a Av. da Boavista tem duas sub-faixas de rodagem, uma para cada sentido de trânsito, separadas por uma placa central.
f) A parte da faixa de rodagem destinada ao sentido de trânsito do veículo segurado na Ré, tem duas vias de trânsito.
g) Do lado esquerdo da sub-faixa de rodagem em que circulava o veículo da segurada da Ré, existe uma abertura no separador central.
h) C) veículo ligeiro LT da segurada da Ré seguia na via de trânsito da esquerda, atento o seu sentido de marcha.
i) O Autor cortou a linha de marcha do ligeiro.
j) Não obstante ainda ter travado, a condutora do ligeiro não logrou evitar o embate com o motociclo, atenta a curta distância entre os dois veículos e a rapidez da manobra do Autor.
1) A condutora do LT embateu na traseira do motociclo fazendo tombar o Autor por terra.
m) O choque deu-se em plena faixa de rodagem junto ao separador central por onde circulam os eléctricos tendo, após o mesmo, o Autor sido projectado para a frente e o motociclo um pouco para cima da linha descendente do eléctrico.
n) O Autor, logo após o acidente, foi transportado para o Hospital Pedro Hispano onde recebeu tratamento hospitalar.
o) Alguns momentos após a ocorrência do acidente, o Autor ficou desorientado.
p) O Autor sofreu um traumatismo da bacia de que resultou fractura do ramo isquiopúbico direito, provocada pela queda após o embate e uma luxação no ombro esquerdo.
q) E teve que ficar em repouso total de 19 de Outubro a 30 de Novembro de 1998.
r) O Autor é uma pessoa enérgica, com enorme capacidade de trabalho.
s) Ainda hoje sente fortes dores no ombro.
t) E já não joga ténis nem futebol como habitualmente fazia.
u) O Autor é médico e, nessa qualidade, presta serviço em diversas instituições.
v) O Autor exerce funções como médico no Lar do Comércio, auferindo à data do acidente o vencimento mensal de 104.000.$00.
x) Durante o período de tempo em que esteve ausente do serviço, entre 19. 10.98 e 30.11.98, o Autor deixou ali de ganhar 118.175$00.
z) O Autor, como médico, presta serviços de medicina na empresa H............ .
aa) Por ter ficado impedido de trabalhar durante o período de repouso a que foi sujeito em consequência do acidente, deixou de ganhar a quantia de 67.500$00.
bb) O Autor exerce funções no Hospital Distrital de Vila do Conde.
cc) Durante o período de tempo em que esteve ausente do serviço, após o acidente, deixou de receber subsídio de alimentação no valor de 15.000$00, correspondentes a 25 dias úteis de ausência.
dd) O motociclo em que circulava o Autor sofreu danos em toda a sua estrutura.
ee) Para a sua reparação teria sido necessária a aplicação de diversas peças que compõem o "corpo" do motociclo tais como a carnagem frontal, lateral e traseira e ainda um guiador esquerdo, tubos de escape, piscas e farolins, entre outras peças.
ff) A reparação orçamentada do motociclo perfaz o montante de 1.325.177$00. gg) O motociclo LM, antes do acidente, encontrava-se em bom estado de conservação.
hh) Foi atribuído ao salvado o valor de esc. 100.000$00.
ii) Resultaram ainda do acidente danos nas calças e no capacete que o Autor usava.
jj) A data do acidente, a responsabilidade civil pelos danos emergentes de acidente de viação causados pelo veículo ..-..-LT, havia sido transferida para a Ré, através do contrato de seguro titulado pela apólice de seguro nº 980001, conforme documento de fls. 32 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
11) O Autor é beneficiário do Instituto de Solidariedade e Segurança Social, com o nº 075105055.
mm) O Instituto de Solidariedade e Segurança Social pagou ao Autor o subsídio de doença no valor de 447,32 euros relativo ao período decorrido entre 19.10.98 a 30.11.98, conforme certidão de fls. 52 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

III. O DIREITO:

Vejamos, então, das questões suscitadas nas conclusões das alegações dos recursos.

Como se dispõe no artº 710º, nº1, CPC, havendo apelação e agravo que com ela tenha subido, o seu julgamento é feito “pela ordem da sua interposição” - in casu, portanto, deve ser julgado em primeiro lugar o agravo.
Por outro lado, o agravo deve ser apreciado atento o nº 2 do mesmo normativo legal.

III. 1. DO AGRAVO:
Como vimos, a questão em apreciação consiste em saber se devia, ou não, ter sido admitido o articulado superveniente e ampliação do pedido, como pretendido pelo autor/agravante no seu requerimento de fls. 180/181.
Vejamos.

Relativamente aos articulados supervenientes, rege o artº 506º do CPC.
Trata-se de articulados que são utilizados para a alegação de factos que, atenta a sua superveniência, não puderam ser invocados nos articulados normais.
Tal superveniência pode ser objectiva ou subjectiva: - é objectiva quando os factos ocorreram posteriormente ao momento da apresentação do articulado da parte (artº 506º-2-1ª parte); - é subjectiva quando a parte só tiver conhecimento de factos ocorridos depois de findar o prazo de apresentação do articulado (artº 506º-2-2ª parte).
No que tange à superveniência subjectiva, o nº 4 do mesmo normativo dispõe que o articulado superveniente deve ser rejeitado quando, por culpa da parte, ele for apresentado fora de tempo, isto é, quando a parte não tenha tido conhecimento do facto por culpa própria.
Diga-se, desde já, que só o desconhecimento atempado do facto assente numa negligência grave deve obstar à sua alegação em articulado superveniente.
In casu, atento que o facto novo só com o exame médico à pessoa do autor foi conhecido, é manifesto que tal negligência não pode ser imputada ao autor.

No que tange à tempestividade da dedução do articulado superveniente, razão assiste ao despacho recorrido, quando sustenta ser tempestiva tal dedução - pois que o articulado foi apresentado nos 10 dias posteriores à notificação da data designada para a realização da audiência de discussão e julgamento, sendo certo que não teve lugar a audiência preliminar (cfr. artº 3º-b) do cit. artº 506º, CPC e fls. 156 a 164- o facto novo consta do relatório do IML, como se vê de fls. 159, qual seja, a incapacidade permanente geral do autor , de 5%).
Foi, portanto, tempestiva a dedução do aludido articulado superveniente.

Haverá outro motivo para a rejeição do aludido requerimento?
Não o cremos.

Há que, desde logo, referir o reflexo do incidente no que concerne à causa de pedir.
A presente demanda visa a atribuição de indemnização por danos emergentes de acidente de viação.
Ora, no que tange à causa de pedir nos acidentes de viação, como é sabido, é a mesma complexa, na qual se combinam vários actos ou factos jurídicos, todos eles indispensáveis à obtenção do efeito jurídico pretendido, isto é, à caracterização da obrigação de indemnizar com o correspondente direito à indemnização (neste sentido, entre outros, os Acs. STJ in Bol. M. J. 207º-155, 210º-116 e 288-394 e Prof. Vaz Serra, e Prof. Vaz Serra, RLJ , ano 103º, pág. 511 e ano 105, a pág. 219. O Prof. Antunes Varela, porém, veio definir de forma clara a sua posição, assegurando que neste tipo especial de acções, a causa de pedir abrange todos os pressupostos da obrigação de indemnizar, ut Das Obrigações em Geral, vol. I, pág. 562. Ver, ainda, o Prof. Alberto dos Reis, Cód. Proc. Civil Anot., vol. V, pág. 56 e Lopes Cardoso, Rev. Trib. , ano 93º, a pág. 387).
Saliente-se que sempre que se invoque, na mesma acção, a culpa e o risco, ainda que a título subsidiário, estamos perante uma causa de pedir múltipla, constituída pelos factos jurídicos correspondentes às duas situações, isto é, por duas causas de pedir complexas.
Referimo-nos à causa de pedir porque, sem dúvida, com a dedução do articulado superveniente, veio o autor, não só ampliar o pedido - como melhor se verá à frente --, mas, também, alterar a causa de pedir, pois, ao alegar a existência do aludido coeficiente de incapacidade (que só com o exame médico do IML veio ao de cima), alega factos novos constitutivos do seu direito de indemnização.
Ora, através de um articulado superveniente pode ser invocada uma nova causa de pedir ou uma nova excepção. Um exemplo é nos dado por Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, pág. 300: “Suponha-se , por exemplo, que o autor reivindica a propriedade sobre uma coisa com base num contrato de compra e venda e que, durante a pendência da causa, se torna herdeiro do alegado vendedor; aquele demandante pode invocar este novo título sucessório”.
Acrescenta, ainda, o autor que vimos citando: “Esta alteração da causa de pedir baseada em factos supervenientes” - superveniência que, como dissemos, pode ser objectiva ou subjectiva , sendo in casu subjectiva - “ não está sujeita às condições exigidas pelo artº 273º” (sobre a relevância dos factos supervenientes na alteração da causa de pedir, cfr. M. Teixeira de Sousa, Partes, págs. 189 segs.) - sublinhado nosso.
No caso presente, o autor/agravante, através do articulado superveniente em apreciação, veio alterar a causa de pedir, e podia fazê-lo, como dissemos - sendo que a nova factualidade só foi por si conhecida bem depois de elaborada a base instrutória.

Portanto, não só o articulado superveniente apresentado pelo autor foi tempestivo, como em nada é alterada a sua admissibilidade pela circunstância de aí se alterar a causa de pedir - podendo, por outro lado, desde já, adiantar-se que, ao contrário do que sustenta o Sr. Juiz a quo, os factos ali alegados são importantes à boa decisão da causa, designadamente no que tange à eventual indemnização a arbitrar ao autor lesado.

Questão diferente da alteração da causa de pedir é a atinente ao pedido: podia o autor ampliá-lo nos termos em que o fez?
Dúvidas não há de que com o articulado superveniente o pedido - de indemnização - acabou, efectivamente, por ser ampliado.
Ora, o artº 273º, CPC, dispõe que - passado o prazo da réplica, naturalmente --, pode o pedido ser ampliado “até ao encerramento da discussão em primeira instância se a ampliação for o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo”.
Entendeu-se no despacho recorrido que se não verificava tal condicionalismo para a ampliação do pedido inicial.
Sem razão, porém, salvo o devido respeito.
Cremos, com efeito, que o pedido que se pretende ampliar é um desenvolvimento, ou, pelo menos, uma consequência, do pedido primitivo, pois que foi precisamente na sequência do exame médico-legal feito à pessoa do autor para aferir da existência dos danos inicialmente peticionados causados pelo acidente na sua pessoa que se veio a revelar a existência da verificada incapacidade permanente.
É este, aliás, também o entendimento do Prof. Antunes Varela, Manual cit., a pág. 281, da 2ª ed., onde se escreve: “Dá-se esta última hipótese” - de ampliação do pedido como uma consequência do pedido inicialmente formulado - “quando, v.g., na acção de indemnização, baseada em acidente de viação ou em agressão ilícita, se pediu a quantia correspondente ao valor dos danos conhecidos no momento da propositura da acção e, mais tarde, mas antes de encerrada a discussão em 1ª instância, se toma conhecimento da verificação de novos danos, e se pretende aumentar o montante da indemnização de acordo com o valor dos novos danos apurados”.

Por outro lado, o facto de a dedução do articulado superveniente implicar uma alteração simultânea do pedido e da causa de pedir não impede a admissibilidade do mesmo articulado.
Saliente-se, antes de mais, que no caso sub judice está o autor/requerente a levar a efeito uma alteração da causa de pedir, mas com base em factos que, embora existentes à data da instauração da acção, só chegaram ao seu conhecimento após a realização da perícia.
Está-se, assim - como já referimos -- em face de alteração da causa petendi através da alegação de novos factos constitutivos do direito à indemnização que cabe ao autor -- alegação essa que é, portanto, tempestiva e formalmente válida.
Trata-se de um procedimento legal, como ensina Lebre de Freitas (Cód. de Proc. Civil Anotado, vol.I, pág. 484 - igualmente citado pelo agravante --, em comentário ao artº 273º CPC), quando escreve que “2- Sem prejuízo do regime de alegação dos factos supervenientes (artº 506º), o nº1 circunscreve à réplica o momento processual em que é admissível ao autor alterar ou ampliar a causa de pedir individualizada na petição inicial....”
Portanto, podia o autor, em articulado superveniente, ampliar ou alterar - como alterou, a causa de pedir.
E podia, por via de articulado superveniente - como salientámos supra -- alterar de forma simultânea, não só a causa de pedir, como também o pedido.
Primeiro, porque a modificação simultânea do pedido e da causa de pedir foi possibilitada de forma expressa pela nova redacção dada ao artº 273º, do CPC, pelo Dec.-Lei nº 329-A/95, em especial o seu nº 6. Veio-se, com esse nº, resolver uma vexatio quaestio da lei anterior, permitindo-se, agora, tal alteração simultânea do pedido e da causa de pedir (já assim entendiam Anselmo de Castro, DPC, págs. 168/169 e Antunes Varela, Manual de Proc. Civil, ps. 281/282 e RLJ 109º, p. 220; em sentido contrário entendiam, v.g., Manuel de Andrade, Noções, 159 e Alberto dos Reis, Comentário, III, 94-95 e Acs. STJ in BMJ 242-220 e 310-287).
Segundo, porque sempre assiste ao autor a possibilidade de “no decurso da acção reclamar quantia mais elevada, se o processo vier a revelar danos superiores aos que foram inicialmente previstos” (artº 569º, CC).
Assim, também, é sustentado por Eurico Heitor Consciência, “Sobre Acidentes de Viação e Seguro Automóvel”, Almedina, págs. 143/144, onde se escreve que “...nas acções de indemnização, o montante do pedido pode ser ampliado até ao encerramento da discussão em primeira instância, com a alegação, por ex., de que o processo revela danos superiores aos previstos aquando da propositura da acção, porque a ampliação terá de ser desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo-cit. artº 273º” - aí fazendo referência ao já referido artº 569º do CC e se citando Vaz Serra, in RLJ, ano 108º, a pág. 233).

Refira-se que o Prof. Alberto dos Reis, Comentário ao C.P.Civil, vol. 3º, a pág. 93, a respeito da ampliação do pedido referida no artº 273º, nº2, CPC, diz qual é, em tais casos, o limite de qualidade e nexo: a ampliação há-de ser o desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo; quer dizer, a ampliação há-de estar contida virtualmente no pedido inicial.
Cremos ser, também, a situação sub judice.

Portanto, razão tem o agravante quando refere que “ou entendendo-se de uma maneira, ou de outra, a solução prática final sempre deverá ser a mesma: Admissão do articulado superveniente e consequente alteração da causa de pedir e, em função desta alteração, a modificação peticionada do pedido.
A não se entenderem as coisas assim, teria o autor de intentar contra a ré nova acção para reclamar a indemnização devida pelo dano, o que, além de pouco sensato, revelaria um desperdício processual e no qual podia correr o risco de ficar indemne, por exemplo, se tivesse decorrido já o prazo prescricional”.
Não alvejamos porque razão assim não deva ser.

Do exposto se entende assistir razão ao agravante, pelo que o Mmº Juiz a quo deveria ter admitido o articulado superveniente, (bem assim a aí pretendida ampliação do pedido) prosseguindo os autos os seus termos normais, designadamente fazendo aditar à base instrutória os factos vertidos no mesmo articulado superveniente que possam interessar à boa decisão da causa, designadamente o alegado “profundo desgosto” do autor (por ter ficado a padecer de uma incapacidade permanente geral de 5%), a alegação de que o autor “era uma pessoa saudável e físicamente bem constituída”, etc., etc. (cfr. Factualidade vertida em especial nos arts. 2º a 4º do requerimento em questão- fls. 180 e verso).

III. 2. DA APELAÇÃO:

Obviamente que com o provimento do agravo, prejudicado fica o conhecimento do mérito da apelação, já que, v.g., a atribuição de eventual indemnização ao autor/apelante (em caso de se lhe vir a dar razão total, ou parcial, quanto à causa do acidente - questão a apreciar posteriormente, mas que, numa primeira e superficial apreciação, nos não parece tão líquida como se retratou na decisão recorrida, pois, como refere o apelante, talvez o acidente não tivesse ocorrido caso o veículo ..-..-LT circulasse mais devagar...?) depende, naturalmente, da prova a fazer sobre a matéria alegada no articulado superveniente e de ampliação do pedido.

CONCLUINDO:
Através de um articulado superveniente pode ser invocada uma nova causa de pedir ou uma nova excepção.
A alteração da causa de pedir baseada em factos supervenientes (ut artº 506º CPC) não está sujeita às condições exigidas pelo artº 273º.
A ampliação do pedido referida no artº 273º, CPC, deve estar contida virtualmente no pedido inicial.

IV. DECISÃO:

Termos em que acordam os Juizes da Secção Cível do tribunal da Relação do Porto em, concedendo provimento ao agravo:
Revogar o despacho recorrido (fls. 201 a 202), o qual deve ser substituído por outro que admita o articulado superveniente (e a ampliação do pedido) com a subsequente adição na base instrutória dos factos supra aludidos (que interessam à boa decisão da causa) e posterior julgamento quanto a eles, após prévio convite às partes para apresentação das provas que entendam pertinentes, lavrando-se a final nova resposta à matéria de facto com subsequente prolação de sentença final.
Não conhecer do mérito da apelação, por prejudicado, atento o provimento ao agravo.

Custas pela parte vencida a final.
Porto, 15-07-04
Fernando Baptista Oliveira
Manuel Dias Ramos Pereira Ramalho
António Domingos Ribeiro Coelho da Rocha