Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4455/23.7T8AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ IGREJA MATOS
Descritores: AÇÃO DE RECONHECIMENTO DA EXISTÊNCIA DE CONTRATO DE TRABALHO
COMPETÊNCIA TERRITORIAL
TRIBUNAL DO TRABALHO
Nº do Documento: RP202402274455/23.7T8AVR.P1
Data do Acordão: 02/27/2024
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I - A ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho decorrente do disposto no artigo 15.º-A da Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro que regula o procedimento a adotar em caso de inadequação do vínculo que titula a prestação de uma atividade em condições correspondentes às do contrato de trabalho deve ser intentada pelo Ministério Público no juízo do trabalho da área territorial onde a pessoa em causa presta a respetiva atividade.
II - Estando em causa uma lei especial e face ao nela preceituado, a presente exceção impõe-se à regra geral do art. 13º n.º 1 do Cód. de Processo de Trabalho que determina ser competente territorialmente o juízo do trabalho do domicílio do réu.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 4455/23.7T8AVR.P1

I – Relatório
Em causa nos autos uma ação para reconhecimento da existência de contrato de trabalho contra a R. A..., Unipessoal, Ld.ª, com sede na Avenida ..., ...., ..., ..., em Lisboa intentada pelo Ministério Público na sequência de uma participação enviada pela Autoridade para as Condições de Trabalho.
Instaurada em Aveiro e distribuída ao Juízo do Trabalho de Aveiro - Juiz 1, por este foi o tribunal em causa declarado incompetente em razão do território para conhecer do processo, determinando-se o seu envio ao Juízo do Trabalho de Lisboa.
O argumento invocado assenta no que, sucintamente, se descreve:
- a regra geral relativamente à competência territorial dos tribunais de trabalho, por força do disposto no art. 13º n.º 1 do Cód. de Processo de Trabalho, indica que as acções devem ser propostas no juízo do trabalho do domicílio do réu;
- no caso concreto, está afastada a possibilidade prevista no art. 14º n.º 1 do citado código - das ações emergentes de contrato de trabalho contra a entidade patronal poderem ser instauradas pelo trabalhador no juízo do trabalho do seu domicílio ou no do lugar da prestação de trabalho - porque a ação não é instaurada pelo trabalhador, mas pelo Ministério Público, no exercício de uma competência própria, deferida por lei, e não em patrocínio do trabalhador.
- sabe-se também que o art. 15.º-A n.º 3 da Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro não indica qual é o tribunal territorialmente competente para conhecer da ação que venha a ser instaurada na sequência da participação aí prevista, mas apenas que essa participação deve ser remetida pela ACT aos serviços do Ministério Público junto do tribunal do lugar da prestação da atividade.
- donde, entendeu-se, na falta de regra especial em matéria de competência territorial para conhecer da ação para reconhecimento da existência de contrato de trabalho, valer a regra geral contida no art. 13º n.º 1 do Cód. de Processo de Trabalho, de que deve ser proposta no juízo do trabalho do domicílio do réu, “in casu”, na Avenida ..., ...., ..., ..., em Lisboa.
A ré A..., Lda. interpôs a presente reclamação a qual cumpre apreciar e decidir.
Alega, em síntese, o que segue:
- a incompetência em razão do território, nas ações de reconhecimento de existência de contrato de trabalho, não pode ser conhecida oficiosamente, na medida em que a incompetência relativa, in casu, não se enquadra na situação do artigo 19.º, n.º 1 do CPT, nem em nenhuma das situações previstas no artigo 104.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 1.º, n.º 2, a) e do artigo 19.º, n.º 2 do CPT;
- ainda que assim não fosse, o Juízo do Trabalho de Aveiro do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro é territorialmente competente de acordo com o disposto n.º 3 do artigo 15.º-A da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro.

II - Fundamentação Aplicável
Independentemente da questão de apurar se a exceção decretada é, ou não, de conhecimento oficioso, entendemos, até pela proliferação de ações idênticas interpostas ao longo do território nacional e relativas a este mesmo réu, numa perspetiva de fixar uma orientação uniforme sobre esta matéria que possa servir como referente para casos idênticos e também tendo em conta as funções de gestão macro cometidas aos presidentes dos tribunais superiores, iremos procurar conhecer substancialmente do conflito principal.
“In casu”: o de saber se, neste tipo de ações para reconhecimento da existência de contrato de trabalho interpostas pelo Ministério Público, a partir de uma participação remetida pela Autoridade para as Condições de Trabalho, o tribunal territorialmente competente deverá ser o do domícilio do réu ou o tribunal onde é prestada a atividade alegadamente acobertada por um contrato de trabalho.
Aventemos, desde já, que dissentimos da interpretação plasmada na decisão reclamada entendendo ter sido a presente ação corretamente proposta no Tribunal de Trabalho de Aveiro, aliás com o assentimento concordante das partes, demandado incluído.
Procuremos explicar porquê.
Presentemente, na ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, a instância inicia-se com o recebimento da participação – artigo 26.º, n.º 6 do CPT – a remeter aos serviços do Ministério Público junto do juízo do trabalho da “área de residência do trabalhador”, conforme decorria do artigo 15.º-A, n.º 3, da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro. Já desde então foi criada uma norma especial, que afasta o regime da competência territorial a que alude a seção II, do capítulo II, título II, do CPT.
Entretanto, a partir de 1 de agosto de 2017, data de entrada em vigor das alterações introduzidas pela Lei n.º 55/2017, de 17 de julho, a participação dos factos será remetida para os serviços do Ministério Público junto do Juízo do Trabalho do lugar da prestação da atividade.
Nestes termos, de acordo com o n.º 3 do artigo 15.º-A da Lei n.º 107/2009, que prevê o procedimento a adotar em caso de inadequação do vínculo que titula a prestação de uma atividade em condições correspondentes às do contrato de trabalho e que veio a originar apresente ação para reconhecimento de existência de contrato de trabalho, a ACT deve remeter “(…) participação dos factos para os serviços do Ministério Público junto do tribunal do lugar da prestação da atividade, acompanhada de todos os elementos de prova recolhidos, para fins de instauração de ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho.”.
Depois, sequencialmente, esclarece o n.º 1 do artigo 186.º-K do Código do Processo do Trabalho que “após a receção da participação prevista no n.º 3 do artigo 15.º-A da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, o Ministério Público dispõe de 20 dias para propor ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho”.
Ou seja, os serviços do MP recebem a participação e dispõem de um prazo que é exigente para logo proporem a ação correspondente.
Não faria legalmente sentido que a ação fosse proposta pelo MP noutra comarca que não a que recebeu a participação até pela dificuldade operacional que tal opção implicaria num procedimento que o legislador quis expedito.
No nosso caso, o serviço do Ministério Público que recebeu a participação foi o serviço do Ministério Público do Juízo do Trabalho de Aveiro, que se encontra integrado na procuradoria do juízo especializado do trabalho de Aveiro, sedeado na Comarca de Aveiro – cfr. artigo 73.º, n.º 2 do Estatuto do Ministério Público. Nesta comarca, exerce as suas competências, obviamente, o Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro devendo a ação ser interposta na jurisdição especializada laboral da comarca de Aveiro.
Neste sentido, “ex abundanti”, atente-se na sequência pormenorizada constante do citado artigo 15º:
Procedimento a adotar em caso de inadequação do vínculo que titula a prestação de uma atividade em condições correspondentes às do contrato de trabalho
1 - Caso o inspetor do trabalho verifique, na relação entre a pessoa que presta uma atividade e outra ou outras que dela beneficiam, a existência de características de contrato de trabalho, nos termos previstos nos n.os 3 e 4 do artigo 2.º, lavra um auto e notifica o empregador para, no prazo de 10 dias, regularizar a situação, ou se pronunciar dizendo o que tiver por conveniente.
2 - O procedimento é imediatamente arquivado caso o empregador faça prova da regularização da situação do trabalhador, designadamente, mediante a apresentação do contrato de trabalho ou de documento comprovativo da existência do mesmo, reportada à data do início da relação laboral, mas não dispensa a aplicação das contraordenações previstas no n.º 2 do artigo 12.º e no n.º 10 do artigo 12.º-A do Código do Trabalho.
3 - Findo o prazo referido no n.º 1 sem que a situação do trabalhador em causa se mostre devidamente regularizada, a ACT remete, em cinco dias, participação dos factos para os serviços do Ministério Público junto do tribunal do lugar da prestação da atividade, acompanhada de todos os elementos de prova recolhidos, para fins de instauração de ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho.
4 - A ação referida no número anterior suspende até ao trânsito em julgado da decisão o procedimento contraordenacional ou a execução com ela relacionada.
A nosso ver, não existe, portanto, uma lacuna legal, pelo contrário erigiu-se uma cadeia procedimental que se pretende rigidamente fixada.
Como se refere na reclamação em apreço, a lei tomou a opção, sensata em termos de eficácia, de conferir ao Tribunal do lugar da prática da infração, que será o lugar da prestação da atividade, a competência não somente para decidir sobre a impugnação judicial de contraordenação laboral como também para decidir sobre a existência de contrato de trabalho.
Aliás, note-se que, em rigor e repetindo-nos, uma vez recebida em juízo a participação -registada e distribuída nos serviços judiciais – logo se inicia, se fixa, a instância (art. 26.º, n.º 6, do CPT) sendo depois apresentada ao Ministério Público aquela participação para efeito de elaboração, sendo o caso, da petição inicial.
Esta é a conclusão que resulta a única consentânea com o explicitado na lei.
Como refere José Joaquim Fernandes de Oliveira Martins, em “A Ação Especial de Reconhecimento da Existência de Contrato de Trabalho – Vinho Velho em Odres Novos”, JULGAR Online n.º 25, 2015, página 206, a propósito deste artigo 15º “retira-se deste normativo que a Secção do Trabalho territorialmente competente para a apreciar esta ação é o da “área de residência do trabalhador” (hoje, por força da Lei n.º 55/2017, de 17 de julho, a área da prestação da atividade), para cujos serviços do MP deve ser remetida a respetiva participação, à qual devem ser juntos todos os elementos de prova obtidos pela ACT (verbi gratia, cópia de contratos celebrados, recibos de prestação de serviços, mapas de horários a cumprir pelo “prestador de serviços”, etc.).
E, atento o teor deste artigo, considera-se que deve ser elaborada uma participação por trabalhador, para facilitar a elaboração da posterior petição inicial e até por poderem ser competentes em razão do território várias secções do trabalho, sem prejuízo de, depois de instauradas as subsequentes ações, se poderem apensar, antes da fase de julgamento, as diversas ações pendentes com vista a uma maior economia processual.”
Naturalmente que estas várias secções do trabalho seriam todas de uma mesma comarca, como poderá ser o caso em Aveiro.
Neste mesmíssimo sentido, na mesma revista Julgar, Cristina Martins da Cruz em “A ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho 2013- 2021: de iure condito e de iure condendo”, Julgar Online, abril de 2022, p. 11 defende que a remessa da participação dos factos para os serviços do Ministério Público junto do Juízo do Trabalho do lugar da prestação da atividade deverá ser a regra a aplicar, uma vez que, num paralelo relevante, “concentra num único tribunal, o julgamento da ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho e da apreciação de um eventual recurso da decisão final no processo contraordenacional, cujo juízo do trabalho competente sempre seria, tal como designado pelo artigo 34.º do RPCOLSS, o do lugar em cuja área territorial se haja verificado a contraordenação (e não o da residência do trabalhador)” - daí quiçá a alteração operada em 2017.
Consabidamente, existem centenas de ações interpostas contra este mesmo réu de natureza idêntica à presente; ora, tal como defende na sua reclamação o réu em causa “a remessa das centenas de ações de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, que se encontram a correr por todo o país, para o juízo do trabalho do domicílio da Ré, no caso, Lisboa, seria um enorme esforço de mobilização dos meios disponíveis que comportaria, necessariamente, o congestionamento dos recursos alocados ao Juízo do Trabalho de Lisboa.” Acrescentamos mesmo: um possível colapso.
A lei quis tratar esta questão localmente, por iniciativa dos serviços públicos a quem foi entregue essa missão, incluindo o Ministério Público; impõe-se que também em sede do órgão de soberania – tribunais – se concretize esse desiderato legislativo que incorpora, além do mais, uma clara mais valia gestionária, valor omnipresente nas decisões proferidas pela presidência de tribunais.

III - Decisão
Pelo exposto, decide-se:
- julgar a presente reclamação procedente, revogando-se o despacho sob escrutínio, e determinando-se que a presente ação prossiga no Juízo do Trabalho de Aveiro - Juiz 1.
Sem custas.
Notifique devendo a secção social enviar cópia desta decisão a todos os Exmos. Srs. Desembargadores a ela pertencentes.

Porto, 27 de Fevereiro de 2024
José Igreja Matos
[Presidente do Tribunal da Relação do Porto]