Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
376/22.9T8OVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MÁRCIA PORTELA
Descritores: ABUSO DE DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
Nº do Documento: RP20240305376/22.9T8OVR.P1
Data do Acordão: 03/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Uma conduta para ser integradora do “venire” terá de, objetivamente, trair o “investimento de confiança” feito pela contraparte, importando que os factos demonstrem que o resultado de tal conduta constituiu, em si, uma clara injustiça.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 376/22.9T8OVR.P1





Acordam no Tribunal da Relação do Porto



1. Relatório
A... – Sociedade de Mediação Imobiliária, Lda., NIPC ...09, intentou acção declarativa, com processo comum, contra AA, NIF ...70, e BB, NIF ...58, pedindo a sua condenação a pagarem-lhe a quantia de €10.000,00, acrescida de juros à taxa comercial até integral pagamento.

Alegou para tanto, e em síntese, que celebrou com os RR. contrato de mediação imobiliária relativo a imóvel da propriedade deles, que levou a cabo promoção do imóvel e que, tendo obtido compradores para o mesmo, que fizeram oferta de compra aceite pelos RR., que vieram posteriormente recusar a venda.

Contestaram os RR., admitindo os contactos relativos à promoção e efectivação de venda e a venda a terceiros, mas negando a vigência, à data dos ditos contactos e venda, do contrato de mediação junto pela A. como causa de pedir.

Procedeu-se a julgamento, tendo sido proferida sentença que, julgando a acção improcedente, absolveu os RR. do pedido.
Inconformada, apelou a A., apresentando as seguintes conclusões:
Matéria de Facto
1ª – A autora entende que, nos factos provados na douta sentença recorrida, deviam ter sido considerados provados outros factos que por ela foram alegados na petição ou resultam dos documentos posteriormente juntos aos autos. Esses factos são relevantes, no entendimento da autora, para as várias soluções de direito quanto à questão em análise nos autos, e pelas razões que invocou na parte expositiva destas alegações e que considera reproduzido
2ª – No facto provado sob o nº 16 deve constar a data em que a autora pediu aos réus os seus elementos de identificação (24/05/2021)
3ª – Esse facto (data) resulta provado pelos documentos nºs 7 e 8 juntos com a petição inicial e não impugnados pelos réus
4ª – Deve constar dos factos provados que os réus e CC e DD celebraram, por documento escrito de 20/06/2021, um contrato promessa de compra e venda da mesma fracção com o valor de venda de €100.000,00
5ª – Esse facto deve ser considerado provado pelo documento junto pelos réus em 11/04/2023 (e posterior junção do original) e que constitui confissão destes.
6ª – Deve ser considerado provado e constar do elenco dos factos provados que os réus sabiam que os interessados ca compra da fracção tinham aceitado as condições de venda dos réus e pretendiam compra a fracção para sua habitação.
7ª – Esse facto foi alegado pela autora no artigo 50º da petição inicial.
8ª – Esse facto deve ser considerado provado pelo depoimento da testemunha EE que mereceu total credibilidade ao Tribunal.
O depoimento dessa testemunha encontra-se gravado no Ficheiro áudio 20230525152222_4136579_28703308 entre as 15:22:24 e as 15:52:34 e respeitante à sessão do dia 25/05/2023
Quanto a esse facto o depoimento da testemunha encontra-se gravado de Min. 12:01 a Min.12:37; de Min. 16:14 a Min. 16:56 e de Min. 18:29 a Min. 19:01, nos termos referidos na parte expositiva destas alegações e que se considera integralmente reproduzido.
Matéria de Direito
9ª – Tendo por base os factos provados a acção devia ter sido considerada totalmente procedente.
10ª – Autora e réus celebraram um contrato de mediação imobiliária respeitante a uma fracção autónoma pertencente a estes e o que se aprecia nos autos era um contrato em regime de não-exclusividade
11ª – A actividade de mediação imobiliária da autora, no âmbito do contrato que celebrou com os réus, consistia na procura de interessados na compra da fracção que lhes pertencia e pelo preço pretendido ou que viessem a aceitar.
12ª – A autora promoveu a referida venda através de vários meios e, em consequência, dessa promoção encontrou interessados na compra pelo preço indicado pelos réus
13ª – Nos termos do referido contrato de mediação imobiliária foi acordado entre autora e réus o pagamento da remuneração àquela de €10.000,00 com IVA incluído.
14ª – Os réus aceitaram a venda aos interessados angariados pela autora, tendo enviado a esta os elementos em falta para a celebração e assinatura do contrato-promessa de compra e, posteriormente, venda por escritura ou documento particular autenticado.
15ª – Após o envio desses documentos, os réus comunicaram á autora que não pretendiam vender a referida fracção aos mencionados interessados.
16ª – O preço da compra e venda da fracção acordado entre autora e réus era de €190.000,00, correspondente a € 180.000,00 (líquidos) para os réus e €10.000,00 (com IVA incluído) para pagamento da remuneração da autora.
17ª – Em 20.06.2021 os réus assinaram um documento escrito de contrato-promessa de compra e venda com terceiros (que não os angariados pela autora) prometendo vender essa mesma fracção pelo preço de €100.000,00 e, em 28.07.2021, declararam vender a esses terceiros, pelo preço de €100.000,00, a referida fracção.
18ª – Os interessados na compra da fracção surgiram por causa das diligências de promoção da venda realizadas pela autora. Há um nexo de causalidade entre a actividade da autora e a concretização do negócio
19ª – A formalização quer do contrato-promessa de compra e venda quer da compra e venda só não ocorreu por culpa dos réus. 20ª – A remuneração da autora é devida com a conclusão do negócio visado pelo exercício da mediação (artº 19º, nº 1 da Lei nº 15/2013 de 08 de Fevereiro))
21ª – No entanto, esse requisito não deixa de se preencher (ainda que em regime de não exclusividade) quando o cliente da mediadora se recursa, sem qualquer fundamento, a formalizar o contrato-promessa de compra e venda.
22ª – Os réus, com a sua conduta, quiseram apenas furtar-se ao pagamento da remuneração que era devida á autora. Dessa forma os réus não actuaram de acordo com o princípio da boa fé contratual (artº 227º, nº\ 1 CC). Essa ausência de boa fé é ostensiva, face aos factos provados e documentos nos autos.
23ª – Os réus aceitaram a venda aos interessados angariados pela autora pelo preço de €190.000,00 sendo €180.000,00 (líquidos) para os réus e, depois declararam vender a terceiros a mesma fracção por €100.000,00 que declararam ter recebido.
24ª – A actuação dos réus teve como único objectivo furtar-se ao pagamento da remuneração á autora.
25ª – Se se considerasse - o que só se admite por mera cautela - que não tinha havido culpa dos réus, o seu comportamento integra abuso de direito (artº 334º CC)
26ª – A douta sentença recorrida considerou que também não haveria lugar a responsabilidade pré-contratual dos réus, não tendo legitimidade para pedir indemnização nessa sede. Com o devido respeito não é esse o entendimento da autora.
27ª – O instituto da responsabilidade pré-contratual tutela a legítima confiança de cada uma das partes de que as negociações e conclusão do negócio são conduzidas de acordo com a boa fé.
28ª – A responsabilidade pré-contratual invocada é a resultante do contrato de mediação celebrado entre autora e réus e não a resultante do contrato de compra e venda entre os réus e os interessados nessa compra.
29ª – Havia o dever jurídico dos réus de conclusão do negócio e pagamento da remuneração. Esse dever foi violado e com culpa intensa e presumida (artº 799º CC) dos réus. Trata-se de indemnização pelo dano positivo.
30ª – A autora requereu nos autos que fosse dado conhecimento ao Ministério Público do contrato promessa de compra e venda celebrado pelos réus e terceiros juntamente com os elementos dos autos por haver manifestação de actuação criminal e tal não foi ordenado.
31ª – A douta sentença recorrida não fez correcta aplicação e interpretação do disposto nos artºs 2º e 17º, nº 1 da Lei 15/2013 de 08 de Fevereiro e artºs 1154º, 227, nº 1, 334º e 799º todos do Código Civil.
32ª – A presente apelação deve ser julgada procedente e, em consequência os réus condenados no pedido deduzido pela autora.

Contra-alegaram os RR., pugnando pela manutenção do decidido.


2. Fundamentos de facto

A 1.ª instância considerou provados os seguintes factos:

1. A A. dedica-se à atividade de mediação imobiliária e é titular da licença de mediação imobiliária n.º 1725 emitida pelo IMPIC em 04.03.1997;

2. No exercício dessa atividade A. e RR. outorgaram, mediante aposição das suas assinaturas autógrafas, o documento escrito denominado “contrato de mediação imobiliária”, a fls. 13v. a 14, dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, o qual tinha como objecto imediato a angariação de interessados na compra da fracção autónoma designada pela letra “F”, destinada a habitação do prédio em regime de propriedade horizontal situado na Rua ..., freguesia ..., do concelho de Ovar, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...81;

3. O preço pelo qual os RR. pretendiam vender essa fracção era de €200.000,00;

4. O contrato foi celebrado no regime de exclusividade e pelo prazo de 12 meses renovando-se automaticamente por iguais e sucessivos períodos de tempo, caso não
fosse denunciado por qualquer das partes através de carta registada com aviso de recepção ou outro meio equivalente, com a antecedência mínima de 10 dias em relação ao seu termo;

5. Os RR. obrigaram-se a pagar à A., a remuneração de 5% calculada sobre o preço pelo qual o negócio de compra e venda viesse a ser efetuado, a que acresceria de IVA à taxa de 23%;

6. O total dessa remuneração seria pago na altura da celebração da escritura pública de compra e venda;

7. Em 17.07.2020, os RR. enviaram à A. o escrito a fls. 14 v, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, mediante o qual declararam denunciar o referido contrato no regime de exclusividade para o seu termo;

8. Após ter recebido a referida carta, a A. e RR. acordaram na manutenção da vigência do acordo referido no ponto 2, alterando-se para o regime de não exclusividade o preço do imóvel para €190.000,00;

9. A A. promoveu a divulgação e promoção da venda a fracção dos RR. através de colocação de anúncio de venda na sua página na internet, colocação de fotografia da fracção na montra de exposição de imóveis seu estabelecimento comercial, colocação de placa na fracção a anunciar a venda, publicação de “fliers” e contactos pessoais com interessados;

10. Na sequência, e por causa dessas diligências de promoção de venda, a A. foi contactada por vários interessados e conseguiu encontrar interessados na compra da referida fracção: FF e GG;

11. Estes interessados apresentaram uma proposta de compra da referida fracção pelo preço de €180.000,00, sendo o valor de sinal de €20.000,00 e o restante a pagar no acto da celebração da compra e venda que seria outorgada até 31.08.2021;

12. A A., através do seu consultor imobiliário HH, comunicou, pelo telefone, ao R. marido tal proposta de compra;

13. Nesse contacto telefónico o R. marido transmitiu ao mencionado HH que aceitava a proposta.

14. Passados dois ou três dias o R. marido contactou o mesmo HH e disse-lhe que a mulher não concordava com aquele valor e que queriam receber €180.000,00 líquidos;

15. Face a isso, a A. reuniu com os interessados na compra, os quais aceitaram comprar a fracção por €190.000,00 sendo €180.000,00 para entregar aos RR. e €10.000,00 com IVA incluído, para comissão da A., que esta aceitou;

16. Na sequência desse acordo a A. pediu aos RR. para eles enviarem os seus elementos de identificação para poder ser elaborado o contrato promessa de compra e venda e a indicação do IBAN para onde ser transferido o valor do sinal.

17. No dia 24.05.2021, o R. marido telefonou a HH, mediador da A., comunicando que já tinha vendido a casa e que não assinava contrato promessa de compra e venda com os interessados na compra e venda FF e GG;

18. Por documento particular com termo de autenticação de 28.07.2021, a fls. 21 a 25, dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, os RR. declararam vender a CC e DD, pelo preço de €100.000,00 a fracção referida no ponto 2, dos factos provados;

19. Com base nesse documento de aquisição a referida fracção foi registada a favor dos compradores na Conservatória do Registo Predial pela Ap. ...71 de 2020.07.28.
*

Factos não provados:

Não há factos não provados com interesse para a decisão a proferir.

3. Do mérito do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1 CPC), salvo questões do conhecimento oficioso não transitadas (artigos 608.º, n.º 2, in fine, e 635.º, n.º 5, CPC ), consubstancia-se na seguintes questões:

─ impugnação da matéria de facto;

─ responsabilidade pré-contratual por ruptura injustificada das negociações;

─ abuso do direito;


3.1. Da impugnação da matéria de facto

Cumpridos que estão os ónus processuais estabelecidos no artigo 640.º CPC, importa conhecer da impugnação da matéria de facto.

1. Pretende a apelante que no ponto 16 da matéria de facto, relativo ao pedido de envio de elementos celebração do contrato-promessa, passe a constar a data em que
tal ocorreu (24.05.2021) e que consta dos doc. n.ºs 7 e 8 juntos com a petição inicial, não impugnados.

Opuseram-se os apelados, dizendo que os documentos em causa foram impugnados no artigo 22.º da contestação, bem como foram impugnados os factos suportados por tais documentos (artigos 30.º a 32.º da contrastação); que se esta matéria tivesse resultado, efectivamente, assente e confessada pelos apelados, teria sido considerada assente no despacho saneador, e não foi; que a data não tem qualquer relevância, e muito menos face ao que ficou provado no ponto 17 da matéria de facto provada; e que se a apelante pretende pôr em causa datas deveria ter posto em causa a data constante do ponto 17 dos factos assentes (24.05.2021).
Apreciando:
Os docs. n.ºs 7 e 8 juntos com a petição inicial consistem em dois emails trocados entre a apelante e o apelado, em 24.05.2021: através do primeiro a apelante solicita o envio do cartão do cidadão (porque o que ele tinha fornecido estava caducado) e o IBAN para onde pretendia que fosse transferido o sinal; pelo segundo o apelado envia cópia do cartão do cidadão e informa que enviará o IBAN no dia seguinte.
As objecções dos apelados não procedem.
A impugnação dos dois documentos constante do artigo 22.º da contestação não se prende com a genuinidade dos documentos, mas apenas quanto ao alcance que a apelante pretendia emprestar-lhes; do despacho saneador não constam factos fixados mas apenas temas da prova; a data releva para o estabelecimento de uma rigorosa cronologia dos factos; é à apelante que cabe eleger os pontos da matéria de facto que pretende impugnar.
Por relevar para a apreciação do recurso, o ponto 16 da matéria de facto provada passa a ter a seguinte redacção:
16. Na sequência desse acordo, em 24.05.2021, a A. pediu aos RR. para eles enviarem os seus elementos de identificação para poder ser elaborado o contrato promessa
de compra e venda e a indicação do IBAN para onde ser transferido o valor do sinal.
2. Defende a apelante que deve constar dos factos provados que os apelados e CC e DD celebraram, por documento escrito de 20.06.2021, um contrato promessa de compra e venda da mesma fracção com o valor de venda de €100.000,00, conforme documento por eles junto em 11.04.2023.
Opuseram-se os apelados, alegando que tal facto não foi alegado na petição inicial, e que não assiste razão à apelante ao pretender que, com tal inclusão, se conclua ter sido mentira a venda comunicada à apelante pelo apelado, unicamente, em virtude da data em que os apelados celebraram o documento escrito com CC e DD. Pois poderiam ter celebrado outro que, entretanto, se gorou. E que não é apenas a data da celebração de um contrato promessa que, por si só, estabelece vínculos contratuais.
Apreciando:
A circunstância de o facto não ter sido alegado pela apelante na petição inicial (eventualmente por desconhecimento) não obsta a que seja considerado, atento o princípio da aquisição processual (artigo 525.º CPC).
Relevando para o estabelecimento da cronologia dos factos, adita-se o seguinte ponto da matéria de facto provada, sob o n.º 17.º -A:
17.º-A: Os apelados e CC e DD celebraram, por documento escrito de 20.06.2021, um contrato promessa de compra e venda da mesma fracçã,o com o valor de venda de €100.000,00.
3. Entende a apelada dever ser considerado provado e constar do elenco dos factos provados, conforme alegado no artigo 50.º da petição inicial que os apelados sabiam que os interessados na compra da fracção tinham aceitado as condições de venda dos RR. e pretendiam compra a fracção para sua habitação. Convoca o depoimento da testemunha EE que mereceu total credibilidade ao Tribunal.
Defendem os apelados que tal facto, para além de não estar provado, não permite a alteração da decisão.
Na lógica da consideração de todos os factos relevantes de acordo com as várias soluções plausíveis de direito importa apreciar.

A testemunha indicada, que teve participação directa no facto, já que foi ele quem estabeleceu o contacto com o apelado, confirmou tê-lo informado os clientes interessados na aquisição do imóvel tinham aceitado as condições de venda, e que apenas após a aceitação pelos apelados é que diligenciou pela elaboração do contrato-promessa de compra e venda.

Assim, adita-se o seguinte facto ao elenco dos factos provados:

Os apelados sabiam que os interessados na compra da fracção tinham aceitado as condições de venda dos RR.

3.2. Da responsabilidade pré-contratual por ruptura injustificada das negociações
Resumindo a questão aos termos mais simples, no âmbito de um contrato de mediação imobiliária sem exclusividade, celebrado entre apelante e apelados, qualificação que não merece contestação, a apelante encontrou interessados na compra do imóvel, que aceitaram as condições propostas, mas a venda não se concretizou por desistência dos apelados, que venderam o imóvel a terceiros, por preço inferior.
A apelante intentou acção de condenação contra os apelados, pedindo a sua condenação no pagamento da comissão acordada, tendo a sentença recorrida julgado a acção improcedente com a seguinte fundamentação:
A autora funda o seu pedido na execução, por sua parte, de todos os atos que constituíam a sua obrigação por força dum contrato de mediação, exigindo dos réus a contraprestação acordada ou indemnização por responsabilidade pré-contratual.
Resultou provado que, sendo a autora uma sociedade comercial que tem como objeto social o exercício de mediação imobiliária, celebrou a mesma, no exercício da sua atividade comercial, com os réus, o escrito denominado “contrato de mediação imobiliária”, a fls. 13v., a 14, dos autos, mediante o qual se obrigou a diligenciar no sentido de conseguir interessado na compra de imóvel da propriedade destes, pelo preço de €200.000, mediante o pagamento de remuneração correspondente de 5% do valor da venda, acrescida de IVA à taxa legal em vigor.
Tal contrato foi celebrado pelo período de 12 meses, em regime de exclusividade e renovava-se automaticamente por iguais e sucessivos períodos, caso não fosse denunciado com a antecedência mínima de 10 dias em relação ao seu termo.
Posteriormente, em 17/07/2020, os réus remeteram à autora o escrito a fls. 14v., dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, mediante o qual declararam denunciar o dito contrato, com efeitos a partir de 23/08/2020.
Posteriormente ainda, em 10/10/2020, mediante a aposição, pelo réu marido, do documento a fls. 15, dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, acordaram as partes manter em vigor o acordo de fls. 13v., a 14, mas alterando o preço de venda para €190.000, e passando para o regime de não exclusividade.
Na vigência do acordado e na sequência das diligências feitas pela autora, esta angariou compradores para o imóvel, transmitiu ao réu marido as propostas destes, que este aceitou, para depois recusar contratar com eles, tendo os réus vendido o imóvel a terceiros.
O contrato de mediação imobiliária celebrado entre autora e réus e cuja validade e consequência jurídicas ora se apreciam, constitui uma modalidade do contrato de prestação de serviços, regulado no artigo 1154.º e ss., do Código Civil, encontrando-se submetido ao regime jurídico especialmente criado pela Lei n.º 15/2013, para regular tal atividade, que o n.º 1 do seu artigo 2.º define consistir na procura, por parte das empresas, em nome dos seus clientes, de destinatários para a realização de negócios que visem a constituição ou aquisição de direitos reais sobre bens imóveis, bem como a permuta, o trespasse ou o arrendamento dos mesmos ou a cessão de posições em contratos que tenham por objeto bens imóveis.
Provada a celebração e validade do contrato, mas sabendo-se que o negócio visado não foi celebrado, há que apreciar se da vinculação contratual assumida pelos réus e da atividade da autora resulta o surgimento da obrigação, na esfera jurídica destes, de pagar a remuneração estabelecida no contrato.
Assente que não vigorava entre as partes o regime de exclusividade, há que considerar a cláusula 6.ª, n.º 1, do contrato, a qual remete para o regime legal contido na Lei n.º 15/2013, a qual, no que respeita à remuneração, no caso de não ser estipulada a cláusula de exclusividade, determina no n.º 1 do artigo 19.º que a «remuneração da empresa é devida com a conclusão e perfeição do negócio visado pelo exercício da mediação ou, se tiver sido celebrado contrato-promessa e no contrato de mediação imobiliária estiver prevista uma remuneração à empresa nessa fase, é a mesma devida logo que tal celebração ocorra».
Daqui decorre que a remuneração do mediador é condicionada pela celebração do
contrato visado no caso de contrato de mediação, ou seja, aquele a celebrar entre os réus e os prospetivos compradores, angariados pela autora pelo que, não tendo a mesma ocorrido, não se gerou a obrigação de pagar a comissão pela angariação.
Também se nos afigura não haver lugar à responsabilização dos réus pela via da má fé
contratual ou responsabilidade pré-contratual, conforme defende a autora, pois nem da lei nem do contrato celebrado decorre para os réus a obrigação de celebrar a venda com os prospetivos compradores angariados pela autora ou a proibição de, por si ou recorrendo a outro angariador, promoverem e realizarem a venda a terceiros, pelo que a sua conduta não preenche, em nosso ver, ilícito por violação contatual ou legal.
Por fim, a conduta de aceitar uma proposta de compra e, de seguida, recusar contratar, é passível, efetivamente, de fazer o vendedor incorrer em responsabilidade pré-contratual, mas para com os prospetivos compradores, não já para com a mediadora, posto que não é esta a destinatária de tal declaração negocial, falecendo-lhe, por isso, legitimidade para peticionar indemnização nessa sede.

Apreciando:
A remuneração do mediador tem regimes distintos conforme se trate de contrato de mediação imobiliária com ou sem exclusividade, o que se compreende atendendo a que no contrato com exclusividade implica um investimento mais substancial por parte do mediador.
Assim, nos termos do artigo 19.º, n.º 1, da Lei n.º 15/2013, de 08 de Fevereiro,
A remuneração da empresa é devida com a conclusão e perfeição do negócio visado pelo exercício da mediação ou, se tiver sido celebrado contrato-promessa e no contrato de mediação imobiliária estiver prevista uma remuneração à empresa
nessa fase, é a mesma devida logo que tal celebração ocorra.

No caso concreto, o negócio promovido não se concretizou, por que os apelados se recursaram a celebrar o negócio, vendendo o imóvel a terceiros. Por essa razão, a lei não reconhece ao mediador o direito à remuneração, sendo irrelevante que a celebração não tenha ocorrido por razões imputáveis aos apelados.
Com efeito, tal remuneração apenas seria devida se o contrato tivesse sido celebrado no regime de exclusividade (na altura dos factos vigorava o regime de não exclusividade, embora o contrato tivesse inicialmente sido celebrado no regime de exclusividade).
É o que dispõe o n.º 2 do citado artigo 19.º:
É igualmente devida à empresa a remuneração acordada nos casos em que o negócio visado no contrato de mediação tenha sido celebrado em regime de exclusividade e não se concretize por causa imputável ao cliente proprietário ou arrendatário trespassante do bem imóvel.
Do confronto dos n.ºs 1 e 2 deste artigo resulta claramente que a não celebração do contrato por motivos imputáveis ao cliente proprietário só confere direito à remuneração no caso de ter sido contratado o regime de exclusividade.
Não assiste, assim, razão à apelante quando pretende ter direito à remuneração nos termos do artigo 19.º da Lei n.º 15/2013 (conclusões 18.ª a 21.ª).
Trata-se de uma contingência deste tipo de contrato. Como refere Higina Orvalho Castelo, Contrato de Mediação - Estudo das prestações principais, https://run.unl.pt/handle/10362/13121, pg. 269,
Por causa desta circunstância que coloca a remuneração na dependência da celebração do contrato visado, o mediador corre um risco específico de não ser remunerado, mesmo tendo cumprido escrupulosamente a sua prestação. Este risco é intrínseco ao contrato de mediação e criado por estipulação contratual, querido pelas partes. Quer o contrato de mediação seja legalmente atípico, quer esteja configurado na lei como um contrato em que a remuneração esteja sujeita à referida álea, trata-se sempre, em cada contrato concreto, de uma escolha das partes.
Não colhe igualmente o argumento de que os apelados quiseram se furtar ao pagamento da remuneração por que celebraram contrato com terceiros, e não com os clientes angariados pela apelante (neste caso, sim, a apelante teria direito à remuneração). E não foi sequer alegado qualquer contribuição da apelante para a angariação dos compradores, caso em que teria direito à remuneração.
Como observa Higina Orvalho Castelo, op. cit., pg. 272,
Celebrando-se o contrato visado com uma pessoa diferente da indicada pelo mediador, o nexo de causalidade serve tanto para afastar o direito à remuneração, como para o afirmar. Em regra, sendo o contrato celebrado com pessoa diferente da angariada, a atividade do mediador não estará conexionada ao contrato e o mediador não terá direito a ser remunerado. Salvo acordo em contrário, o cliente pode celebrar o contrato com terceiro por si encontrado sem intervenção do mediador, sem ter de lhe pagar remuneração, mesmo nos casos em que o contrato de mediação tinha sido celebrado com cláusula de exclusividade. O fundamento da inexistência do dever de remunerar encontra-se, neste caso, na falta de nexo de causalidade entre a atuação do mediador e a celebração do contrato visado797. Porém, pode suceder que, apesar de celebrado com pessoa diferente da angariada pelo mediador, exista um nexo causal entre a atividade do mediador e a celebração do contrato por o novo interessado ter, graças a uma qualquer relação com o angariado, celebrado o contrato apenas para frustrar o direito do mediador à remuneração, beneficiando o angariado do contrato a final celebrado de modo semelhante ao que beneficiaria se o tivesse celebrado pessoalmente798. Neste caso, a celebração com pessoa diversa da angariada pelo mediador não é impeditiva do nascimento do direito à remuneração.
Não assiste, pois, à apelante o direito a receber a remuneração nos termos do artigo 19.º da Lei 15/2013.
Invocou ainda a apelante em seu benefício o instituto da responsabilidade pré-contratual, consagrado no artigo 217.º CC, sob a epígrafe Responsabilidade pré-contratual, cujo n.º 1, dispõe:
Quem negoceia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte.
A recusa em celebrar o contrato com os clientes angariados pela apelante é susceptível de fazer incorrer os apelados em responsabilidade pré-contratual por ruptura injustificada nas negociações perante aqueles, mas não perante a apelante.
Diz a apelante, na conclusão 28.ª, que a responsabilidade pré-contratual invocada é a resultante do contrato de mediação celebrado com os apelados, mas relativamente a esse contrato nada foi alegado que possa enquadrá-lo na previsão do artigo 227.º CC.
Da celebração do contrato de mediação imobiliária não resulta para o proprietário
cliente a obrigação de celebrar qualquer contrato.
Nesse sentido se pronuncia Higina Orvalho Castelo, op. cit., pg. 387:
No contrato de mediação simples, não se celebrando o contrato visado, ainda que por causa imputável ao cliente, não nasce o direito à remuneração, pois o cliente mantém intacta a sua liberdade de contratar (balizada apenas, nos termos gerais, perante o terceiro, pelo dever de boa fé nas negociações, e perante o mediador, pela proibição do abuso de direito).

3.3. Do abuso do direito
Alegou a apelante que, para a eventualidade de se considerar que não houve culpa dos apelados, que o seu comportamento integra abuso de direito (artigo 334.º CC), sem desenvolver minimamente a sua alegação. Sem indicar qual a modalidade de abuso de direito invocada, nem que factos integram essa sua pretensão, o que legitimaria a improcedência de tal questão, não fora o caso de se tratar de questão de conhecimento oficioso.
Apreciando:
O instituto do abuso de direito obteve consagração legal no Código Civil de 1996, cujo artigo 334.º dispõe que é abusivo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

Este artigo, ao dispensar a consciência por parte daquele que exerce o direito de que o faz por forma a exceder os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, consagra a concepção objectivista do abuso do direito, como sublinham Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Coimbra Editora, vol. I, 4.ª edição, pg. 298. O que não significa, como sublinham estes autores, «que ao conceito de abuso do direito consagrado no art. 334º sejam alheios factores subjectivos, como, por exemplo, a intenção com que o titular tenha agido».
A adjectivação do excesso pela lei —exceda manifestamente — significa que o preenchimento da conduta abusiva para este efeito não se basta com um excesso no exercício do direito — necessário se torna que seja manifesto, flagrante, intolerável, inadmissível para a consciência jurídico-social prevalecente em dado momento.
Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, Almedina, vol. I, Parte Geral,
tomo I, pg. 198 e ss., estabelece uma tipologia de comportamentos abusivos, elencando os seguintes:
1. venire contra factum proprium;
2. inalegabilidades formais;
3. suppressio e surrectio;
4. tu quoque;
Segundo este autor, em Do abuso do direito: estado das questões e perspectivas, em www.oa.pt,

… o princípio da confiança surge como uma mediação entre a boa fé e o caso concreto. Ele exige que as pessoas sejam protegidas quando, em termos justificados, tenham sido levadas a acreditar na manutenção de um certo estado de coisas. Várias razões depõem nesse sentido. Em termos antropológicos e sociológicos, podemos dizer que, desde a sedentarização, a espécie humana organiza-se na base de relacionamentos estáveis, a respeitar. No campo ético, cada um deve ser coerente, não mudando arbitrariamente de condutas, com isso prejudicando o seu semelhante. Juridicamente, a tutela da confiança acaba por desaguar no grande oceano do princípio da igualdade e da necessidade de harmonia, daí resultante: tratar o igual de modo igual e o diferente de forma diferente, de acordo com a medida da diferença (75). Ora, a pessoa que confie, legitimamente, num certo estado de coisas não pode ser tratada como se não tivesse confiado: seria tratar o diferente de modo igual.

(…)
Na base da doutrina e com significativa consagração jurisprudencial, a tutela da
confiança, apoiada na boa fé, ocorre perante quatro proposições. Assim:

1.ª Uma situação de confiança conforme com o sistema e traduzida na boa fé subjectiva e ética, própria da pessoa que, sem violar os deveres de cuidado que ao caso caibam, ignore estar a lesar posições alheias;
2.ª Uma justificação para essa confiança, expressa na presença de elementos objectivos capazes de, em abstracto, provocar uma crença plausível;
3.ª Um investimento de confiança consistente em, da parte do sujeito, ter havido um assentar
efectivo de actividades jurídicas sobre a crença consubstanciada;
4.ªA imputação da situação de confiança criada à pessoa que vai ser atingida pela protecção dada ao confiante: tal pessoa, por acção ou omissão, terá dado lugar à entrega do confiante em causa ou ao factor objectivo que a tanto conduziu.

Adverte, no entanto, o autor:

Estas quatro proposições devem ser entendidas dentro da lógica de um sistema móvel). Ou seja: não há, entre elas, uma hierarquia e o modelo funciona mesmo na falta de alguma (ou algumas) delas: desde que a intensidade assumida pelas restantes seja tão impressiva que permita, valorativamente, compensar a falha.

A modalidade que aqui poderia estar em causa seria o venire contra factum proprium, em virtude de o apelado ter aceite uma proposta efectuada por clientes angariados pela apelante e depois se ter recusado a assinar o contrato-promessa, alegando ter vendido o imóvel a terceiros, o que veio a suceder. Trata-se efectivamente de comportamentos contraditórios, mas isso é insuficiente para gerar responsabilidade civil, exigindo-se a verificação de outros pressupostos para que se possa imputar o abuso do direito, designadamente o investimento de confiança.
Com efeito, e como refere Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, Almedina I, tomo IV, pg. 283, não existe uma proibição genérica de contradição de comportamentos por parte do titular do direito, sendo variadas as razões que podem levar à adopção de determinado comportamento contraditório com outro anteriormente manifestado. Acresce que não podemos esquecer que o cliente proprietário não tem obrigação de celebrar o contrato com o cliente angariado pela mediadora, e que apenas em caso ter sido convencionada exclusividade é que responde pela remuneração se o negócio se frustrar por facto que lhe seja imputável.
Nas palavras da decisão singular do STJ, de 08.06.2019, Lopes do Rego, www.dgsi.pt.jstj, proc. n.º 3161/04.6TMSNT.L1.S1, com sublinhado nosso.
É sempre necessário que a conduta anterior tenha criado na contraparte uma situação de confiança, que essa situação de confiança seja justificada e que, com base nessa situação de confiança, a contraparte tenha tomado disposições ou organizado planos de vida de que lhe surgirão danos irreversíveis.”
Está ínsita a ideia de “dolus praesens”.
O conceito de boa fé constante do art. 334º do Código Civil tem um sentido ético, que se reconduz às exigências fundamentais da ética jurídica, “que se exprimem na virtude de manter a palavra dada e a confiança, de cada uma das partes proceder honesta e lealmente, segundo uma consciência razoável, para com a outra parte, interessando as valorações do circulo social considerado, que determinam expectativas dos sujeitos jurídicos” (Almeida Costa, Direito das Obrigações, 9ª ed., pags. 104-105).
Como se julgou neste STJ (Ac. de 1.3.2007 – 06 A4571): Para haver abuso do direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”, é necessário saber se a conduta do pretenso abusante foi no sentido de criar, razoavelmente, uma expectativa factual, sólida, que poderia confiar na execução dos contratos promessa.
Uma conduta para ser integradora do “venire” terá de, objectivamente, trair o “investimento de confiança” feito pela contraparte, importando que os factos demonstrem que o resultado de tal conduta constituiu, em si, uma clara injustiça.
Ou seja, tem de existir uma situação de confiança, justificada pela conduta da outra parte e geradora de um investimento, e surgir uma actividade, por “factum proprium” dessa parte, a destruir a relação negocial, ao arrepio da lealdade e da boa fé negocial, esperadas face à conduta pregressa.
Não se busca o “animus nocendi” mas, e como acima se acenou, apenas um comportamento anteriormente assumido que, objectivamente, contrarie aquele” (Ac. STJ, de 15.5.2007, www.dgsi.pt).
Ora, no caso dos autos não é possível vislumbrar qualquer investimento de confiança por parte da apelante. A recusa de celebração do contrato-promessa com os clientes angariados, após a aceitação, ocorreu num curto espaço de tempo, e a actividade desenvolvida pela empresa mediadora foi a actividade normal nesses casos, correspondendo a não celebração do negócio aos riscos da sua actividade.
A actuação dos apelados, não tendo sido a mais correcta, não atinge, atentas as características do de mediação imobiliária, o patamar de gravidade suficiente para considerá-lo abusivo.
Improcede, por essa razão, a arguição de abuso do direito.
*

Consta o seguinte da conclusão 30.ª:
A autora requereu nos autos que fosse dado conhecimento ao Ministério Público do contrato promessa de compra e venda celebrado pelos réus e terceiros juntamente com os elementos dos autos por haver manifestação de actuação criminal e tal não foi ordenado.
Não se percebe o propósito desta conclusão no recurso da sentença, sendo certo que nada impede a apelante de dar conhecimento dos factos que entender ao MP.
Assim, nada a decidir quanto a esta conclusão.



4. Decisão
Termos em que, julgando a apelação improcedente, confirma-se a decisão recorrida.

Custas pela apelante (artigo 527.º CPC).






Porto, 05 de Março de 2024
Márcia Portela
João Diogo Rodrigues
Maria Eiró