Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
470/09.1TAFLG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FRANCISCO MOTA RIBEIRO
Descritores: CRIME DE BURLA TRIBUTÁRIA
MEIOS ENGANOSOS
DOMÍNIO DO ERRO
IDONEIDADE DO MEIO EMPREGUE
Nº do Documento: RP20160928470/09.1TAFLG.P1
Data do Acordão: 09/28/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 691, FLS.201-208)
Área Temática: .
Sumário: No crime de burla tributária, estando em causa uma "burla por palavras ou declarações expressas", é à luz da conduta do arguido e do conteúdo dessas declarações, que deverá ser apreciada a existência por parte deste do "domínio do erro" que provoca a acção enganosa idónea a causar o enriquecimento do agente e o empobrecimento da administração.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 470/09.1TAFLG.P1 – 4.ª Secção
Relator: Francisco Mota Ribeiro
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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto
1. RELATÓRIO
1.1 Por sentença de 19/05/2015, após realização da audiência de julgamento, no Proc.º nº 470/09.1TAFLG.P1 - que correu termos na Secção Criminal, J-1, da Instância Local de Felgueiras, Comarca do Porto Este, foi o arguido B… condenado pela prática de um crime de burla tributária agravada, previsto e punido pelo art.º 87º, nºs 1 e 2, do RGIT, na pena de 300 dias de multa, à taxa diária de € 7,00, e ainda condenado, juntamente com a sociedade C…, Unipessoal, Lda., a pagar ao demandante cível, Instituto da Segurança Social, IP, a quantia de € 9.285,89, acrescida de juros vencidos desde a citação e vincendos, calculados nos termos do art.º 16º do DL nº 411/91, de 17/10, e art.º 3º do DL nº 73/99, de 16/03, até efetivo e integral pagamento.
1.2. De tal sentença interpôs o arguido recurso, apresentando motivação que termina com as seguintes conclusões:
“1) – Entende o recorrente que a matéria de facto dada como provada é insuficiente para que o arguido, ora recorrente, seja condenado.
2) – Os elementos constitutivos do crime de burla tributária não se mostram preenchidos.
3) – Violou, assim, a douta sentença, o preceituado no art.º 87º do RGIT e nº 2 do art.º 410º do Código de Processo Penal.
Termos em que, concedendo-se provimento ao presente recurso, absolvendo-se o arguido dos factos e do crime que foi julgado e condenado, farão V. Exas. Inteira e sã justiça.”
1.3. O recurso foi admitido pelo despacho de 08/07/2015, de fls. 753.
1.4. O Ministério Público respondeu ao recurso, de fls. 759 a 776, concluindo pela sua improcedência, com as seguintes conclusões:
1 - Por sentença datada de 19 de maio de 2015, o arguido B… foi condenado como autor da prática de um crime de burla tributária agravada, previsto e punido pelo artigo 87º, nºs 1 e 2 do RGIT, na pena de 300 dias de multa, à taxa diária de € 7,00, num total de € 2.100,00;
2 – O recorrente considera que a decisão recorrida enferma do vício a que alude o artigo 410º, nº 2, al. a), do CPP (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada).
3 – A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada deve resultar dos factos dados como assentes, isto é do texto da sentença/acórdão. “A insuficiência da matéria de facto para a decisão (art.º 410, nº 2, al. a), do CPP), implica a falta de factos provados que autorizam a ilação jurídica tirada; é uma lacuna de factos que se revela internamente, só a expensas da própria sentença, sempre no cotejo com a decisão (…)”.
4- A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, deve resultar dos factos dados como assentes, isto é, do texto do acórdão.
Como se disse no recente Acórdão do STJ, de 6/10/2011, proferido no processo número 88/09PESN-L1S1, “A insuficiência da matéria de facto para a decisão (art.º 410º, nº 2, al. a), do CPP), implica a falta de factos provados que autorizam a ilação jurídica tirada; é uma lacuna de factos que se revela internamente, só a expensas da própria sentença, sempre no cotejo com a decisão (…)”.
5 – A insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem – absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. - e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista a sua importância para a decisão, por exemplo, para a escolha ou determinação da pena.
6 – É a nosso ver evidente que o vício invocado pelo recorrente, com tal enquadramento jurídico (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – al. a) do nº 2 do art.º 410º do CPP) se não verifica, porque os factos dados como provados na douta sentença recorrida, permitem a ilação jurídica tirada, ou seja, a condenação do arguido pela prática de um crime de burla tributária.
7 - O crime de burla tributária, aqui em causa, está estruturado como um crime de resultado, aparecendo como um verdadeiro tipo de burla especial, em que o processo típico é de execução vinculada (e não livre), mas, simultaneamente, estabelece elementos integradores mais formais.
8 - São elementos constitutivos deste crime de burla tributária os seguintes:
- Uso de erro ou engano sobre os factos, provocado por meios fraudulentos, como falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante;
- Que sejam aptos ou idóneos a determinar a administração tributária ou a administração da segurança social a efetuar atribuições patrimoniais das quais resulte enriquecimento do agente ou de terceiro.
- No caso do crime de burla tributária ser gravado pelo nº 2 do artigo 87º exige-se ainda que a atribuição patrimonial seja de valor elevado, isto é de valor superior a 50 UC, avaliadas à data da prática do facto – art.º 202º, al. a), do Código Penal, aplicável ex vi do art.º 3º, al. a), do RGIT, sendo que no caso o valor da UC para o triénio 2004-2006 foi de € 89,00 (acendendo 50 UC a € 4.450,00), tendo em 2007 se elevado a € 96,00 (passando então o valor elevado a cifrar-se acima dos € 4.800,00) – cfr. Art.º 6º do DL nº 212/89, de 30/06, (atualmente o valor da UC para vigorar no ano 2015 é de € 102,00, sendo assim considerado valor elevado o que excede o montante de € 5.100,00).
- Como escrevem Jorge Lopes de Sousa e M. Simas Santos, in Regime Geral das Infrações Tributárias Anotado, 2ª Edição, p. 547, aproxima-se este tipo legal do crime de burla previsto no art.º 217º do Código Penal, no entanto, não refere expressamente o erro ou engano provocado, elementos que, não obstante, estão presentes na referência aos meios fraudulentos, os suscetíveis de provocar astuciosamente o tal erro ou engano. De acordo com a configuração do tipo, exige-se o uso de um meio fraudulento “ativo”, ou seja, uma conduta astuciosa comissiva que diretamente induz o erro ou engano e não uma mera conduta omissiva do agente.
10 - Atenta a factualidade provada, verifica-se o preenchimento inequívoco dos elementos constitutivos do crime de burla tributária agravada em relação ao arguido.
11 – Afigura-se-nos não assistir qualquer razão ao arguido.
12 – Operou assim a douta sentença na sábia subsunção jurídica e aplicação do direito.
13 – Não tendo sido violadas quaisquer disposições legais.”
1.5. O Senhor Procurador-Geral-Adjunto emitiu o parecer de fls. 785, no qual sustentou que o recurso não merece provimento.
1.6. Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
1.7. Tendo em conta os fundamentos do recurso interposto pelo arguido e os poderes de cognição deste tribunal, tendo em conta ademais que o recurso visa apenas matéria de direito, importa apreciar e decidir as seguintes questões:
- Insuficiência ou não, para a decisão, da matéria de facto dada como provada;
- Falta de preenchimento de todos os elementos constitutivos do crime de burla, e mais precisamente da idoneidade dos meios fraudulentos usados pelo arguido para determinar a efetivação de atribuições patrimoniais por parte da Segurança Social.
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.2 Factos a considerar
2.2.1 Na sentença condenatória proferida nos autos, e no que releva para a decisão sobre o mérito do presente recurso, foi considerada provada a seguinte factualidade:
1) O arguido B… foi o representante legal da sociedade C… Unipessoal, Lda., onde exerceu a gerência de facto e de direito desde a sua constituição;
2) A sociedade C… Unipessoal, Lda., pessoa coletiva com o NIPC … … …. é uma sociedade por quotas, tendo a mesma por objeto a prestação de serviços de limpeza, e outros, e sede na Avenida …, em … -Felgueiras;
3) Em data não concretamente apurada, mas posterior à data da celebração do contrato mencionado abaixo, em 7) (29-12-2004), o arguido B…, em representação e como gerente da sociedade arguida, resolveu obter à custa do erário público, nomeadamente à custa da Segurança Social Portuguesa, a isenção de dispensa temporária do pagamento de contribuições para a Segurança Social, relativas aos postos de trabalho apoiados pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP);
4) Para lograr alcançar tal objetivo, B…, sempre em representação da sociedade e como gerente da sociedade arguida, engendrou um estratagema, nomeadamente aproveitando o facto de D… (como auxiliar da ação educativa) e E… (como cozinheira) trabalharem no Jardim de Infância denominado “F…”, propriedade da companheira do arguido, G…, Jardim de Infância este ao qual o arguido tinha acesso aos dados contabilísticos;
5) Assim, na execução do seu plano criminoso de enganar os Serviços da Segurança Social, o arguido B… emitiu falsamente os recibos de vencimento mensal das trabalhadoras acima referidas com o timbre da empresa arguida, como se as mesmas fossem, de facto, suas trabalhadoras, mencionando em tais recibos a categoria profissional de “empregada de limpeza”, o que efetivamente não eram;
6) No dia 26-06-2004 o arguido B…, como legal representante da empresa arguida, requereu a concessão de incentivos abrangidos pelo programa de estímulo à oferta de emprego (PEOE) no Centro de Emprego de …;
7) Tal pedido de concessão de incentivos foi deferido, tendo, no dia 29-12-2004, sido assinado o respetivo contrato de concessão de incentivos financeiros, entre o Centro de Emprego de …, em representação do Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP) e B…, por si e como o legal representante da sociedade arguida;
8) Após a celebração de tal contrato, o arguido B…, como legal representante da sociedade arguida, requereu nos Serviços da Segurança Social a isenção temporária do pagamento de contribuições para a Segurança Social, o qual foi deferido pelo período de 34 meses, com o início no mês de abril de 2005;
9) Com a sua conduta, o arguido B… logrou obter a dispensa temporária de pagamento de contribuições a cargo da entidade empregadora, resultante da aplicação da taxa de 23,75% à base da incidência correspondente às remunerações de:
- H…, no período compreendido entre 04/2005 a 08/2005 e 12/2005, no valor global de € 451,70;
- E…, no período compreendido entre 04/2005 e 08/2007, valor global de € 2.630,39;
- D…, no período compreendido entre 04/2005 a 08/2007, no valor global de € 2.936,48;
- I…, no período compreendido entre 04/2005 11/2007, no valor global de 3.247,32;
10) O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, com o propósito de obter um benefício patrimonial a que não tinha direito, como obteve, visando simultaneamente causar um prejuízo ao Estado, nomeadamente à Segurança Social portuguesa, como causou, bem sabendo que a sua conduta era contrária à lei;
11) O arguido tinha plena consciência de que a sua conduta era proibida e punida por lei;
12) E… à data dos factos exercia de facto as funções de cozinheira no Jardim de Infância “F…”, sendo a sua entidade patronal a então companheira do arguido, G…;
13) O arguido foi gerente da sociedade arguida desde a sua constituição e registo em 22-10-2004 a 02-09-2009, data em que registou cessação de funções por renúncia;
14) O arguido, enquanto legal representante da sociedade arguida, emitiu os recibos de vencimento de folhas 673 a 710, para cujo teor se remete e que aqui se dá por integralmente reproduzido;
15) Do contrato referido 7), junto a fls. 87 e ss., para cujo teor se remete e que aqui se dá por integralmente reproduzido, consta uma cláusula (cláusula nº 9) com o seguinte teor: “Pelo presente contrato os segundos contratantes obrigam-se… a não requerer a isenção e dispensa temporária do pagamento de contribuições para a segurança social relativos aos postos de trabalho apoiados, bem como outros apoios que revistam a mesma natureza e finalidades”;
16) A fls. 672 consta um Quadro de contribuições elaborado pela Segurança Social referente a G…, E…, D… e I…, com valor de soma no total de € 9.721,33, para cujo teor se remete e que aqui se dá por integralmente reproduzido;
17) Com a sua conduta livre, voluntária e consciente, o arguido atuou também com o propósito de obter um benefício patrimonial a favor da sua companheira G…, efetiva entidade patronal das trabalhadoras D… e E…, acima identificadas, o que sabia proibido e punido por lei;
18) H… e I… eram efetivamente funcionários da sociedade arguida nos períodos acima referidos.
2.2 Fundamentos fáctico-conclusivos e jurídicos
2.2.1. – Da insuficiência ou não, para a decisão, da matéria de facto dada como provada
O arguido sustenta a sua pretensão, de ver revogada a sentença proferida pelo Tribunal a quo, na existência do vício de insuficiência da matéria de facto provada, a que alude o art.º 410º, nº 2, al. a), do CPP, por no seu entender os factos dados como provados não poderem levar ao preenchimento dos elementos constitutivos do crime de burla tributária, nos termos em que os considerou preenchidos o Tribunal recorrido.
Dispõe o art.º 410º, nº 2, al. a), do CPP que, “mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) a insuficiência da matéria de facto provada.”
A correta interpretação de tal normativo implica, antes de mais, que tenhamos, subjacente à apreciação crítica que ele implica, uma perfeita ou adequada noção do objeto do processo, isto é do conjunto de factos ou de questões, cuja determinação é dada em primeira linha pela acusação ou pronúncia, bem como pela contestação ou pela defesa ou ainda pela discussão da causa, e sobre os quais vai assentar a vinculação temática do tribunal e, em concreto, os poderes de cognição do juiz, de modo a poder afirmar-se que aquilo que o tribunal investigou ou os factos sobre os quais fez incidir o seu poder/dever de decisão e, no fundo, constituem ou formam o objeto do seu julgamento, são aqueles que constituíam o objeto do processo, de molde a poder também afirmar-se que fora do seu julgamento não ficou nenhum desses factos que importava conhecer, dando-os como provados ou não provados, tanto faz, pois o que importa é que não fique de fora da sua apreciação qualquer facto relevante para a decisão da causa, quer haja sido carreado pela acusação, quer pela defesa, ou haja vindo ao processo no âmbito dos poderes de investigação e conhecimento oficioso do tribunal. Só se existir algum desses factos, que hajam sido carreados ao processo, mas não tenham sido objeto de apreciação pelo Tribunal, é que poderemos concluir pela insuficiência da decisão sobre a matéria de facto provada (ou não provada), porquanto nela não foram vertidos todos os factos relevantes para a respetiva decisão[1].
Ora, no caso dos autos não é disso que se trata: o recorrente não alega que falte na matéria dada como provada ou não provada qualquer facto relevante para a decisão do mérito da causa, não apontando a existência de qualquer omissão ou lacuna na decisão da matéria de facto, ou que o tribunal, usando dos seus poderes/deveres, tivesse deixado de investigar qualquer facto relevante para a decisão do mérito da causa. O que o recorrente faz, concordando, embora tacitamente, com os factos dados como provados, e não alegando a existência de quaisquer outros que pudessem ter sido objeto de decisão por parte do tribunal recorrido, é manifestar a sua discordância com a qualificação jurídica que o tribunal deles faz, em termos de imputação jurídico-penal dos mesmos ao arguido, enquanto autor de um crime de burla tributária agravada, p. e p. pelo art.º 87º, nºs 1 e 2, do RGIT, concluindo que tais factos, ao contrário do decidido, não são constitutivos de tal tipo-de-ilícito criminal. Ou seja, submete ao Tribunal de recurso uma mera questão de qualificação jurídica dos factos dados como provados[2] e não já a da sua insuficiência, perante um dado objeto do processo, em relação a eles, e a priori, estabelecido. Sendo, portanto, a insuficiência dos factos que diz haver para a condenação, não uma insuficiência em sentido técnico, á luz do art.º 410º, nº 2, al. a), do CPP, mas no sentido de que a partir deles não é possível concluir pelo cometimento do crime por que o arguido foi condenado.
Razão por que deverá ser julgado improcedente o recurso, no que toca ao apontado vício de insuficiência da matéria de facto dada como provada, que o recorrente pretende sustentar à luz do art.º 410º, nº 2, al. a), do CPP.
2.2.2. Da falta de preenchimento de todos os elementos constitutivos do crime de burla, e mais precisamente da idoneidade dos meios fraudulentos usados pelo arguido para determinar a efetivação de atribuições patrimoniais por parte da Segurança Social.
Centremos então agora a nossa atenção sobre a verdadeira essência do recurso interposto pelo recorrente. Isto é, saber se, face aos factos dados como provados, estão ou não preenchidos todos os elementos constitutivos do crime de burla tributária agravada e, mais precisamente, a idoneidade dos meios fraudulentos empregues para determinar a efetivação das prestações patrimoniais dos autos. Sendo que, neste verdadeiro segmento do recurso, o que está efetivamente em causa, segundo o recorrente, é não se poder concluir da matéria de facto dada como provada que a conduta por si adotada pudesse ser apta ou idónea a determinar a administração da Segurança Social a conceder os benefícios solicitados pelo arguido, nos termos em que o fez, e já que, defende, “como elemento constitutivo do crime de burla tributária, além do erro ou engano, provocado por meios fraudulentos, mostra-se necessário que os mesmos sejam aptos e idóneos a determinar a efetivação de atribuições patrimoniais….” e “o uso de recibos de vencimento pretensamente falsos, não era, ‘de per si’, suficiente para enganar ou induzir em erro a Segurança Social.” Ou seja, coloca o recorrente o epicentro da sua discordância na impossibilidade, face aos factos dados como provados nos autos, de se considerar positivamente preenchido o requisito, defendido por alguns autores[3], da idoneidade do meio empregue para enganar a administração, determinando-a a realizar a prestação.
Sob a epígrafe “burla tributária”, estabelece o nº 1 do art.º 87º do RGIT que “Quem, por meio de falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou outros meios fraudulentos, determinar a administração tributária ou a administração da segurança social a efetuar atribuições patrimoniais das quais resulte enriquecimento do agente ou de terceiro é punido com prisão até três anos ou multa até 360 dias.” Acrescentando-se no nº 2 do mesmo artigo que se a atribuição patrimonial for de valor elevado, a pena é de prisão de cinco anos ou multa até 360 dias.
Como refere Germano Marques da Silva[4], o crime de burla tributária, embora com especificidades relevantes, foi estruturado nos moldes do correspondente ao crime de burla do art.º 217º do CP, e teve em vista pôr termo à discussão que até aí se verificava na doutrina e na jurisprudência sobre se o comportamento constitutivo do crime de burla comum, quando tivesse por finalidade uma prestação de natureza tributária, se enquadraria ainda no âmbito da fraude fiscal ou seria punível como crime comum. E não havendo quaisquer divergências quanto aos elementos objetivos do tipo-de-ilícito do art.º 87º, designadamente o “uso de engano sobre factos por meio de falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou outros meios fraudulentos – entendendo-se aqui como meios fraudulentos qualquer outro meio enganoso, além, portanto, das falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante -, nem sobre o elemento da determinação da administração tributária ou da segurança social a efetuar atribuições patrimoniais que levaram ao enriquecimento do agente ou de terceiro, tais divergências já surgem quanto ao facto de saber se, entre estes tais elementos, além de uma relação de causalidade, terá ou não de existir uma idoneidade dos meios fraudulentos empregues para determinar a administração a proceder às atribuições patrimoniais indevidas.
É certo que no tipo-de-ilícito comum, previsto no artigo 217º, nº 1, do CP, se refere expressamente o “erro ou engano astuciosamente provocado”, que aparentemente se poderá considerar afastado na construção do tipo do art.º 87º, porquanto este parece bastar-se com o mero erro ou engano provocado, nos termos ou pelos meios aí descritos (falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou outros meios fraudulentos), sendo defensável, porém, que embora a referência expressa à astúcia, na descrição do tipo, esteja aí ausente, ela subjaz à descrição dos meios que aí é feita e, sobretudo, à natureza fraudulenta dos mesmos[5]. Não é, no entanto, o sentido e alcance das normas relativas à descrição dos elementos constitutivos do tipo, supra referidas, que aqui está em causa, mas sim a relação de idoneidade ou não que entre esses elementos possa haver, e mais precisamente saber se só haverá crime se os meios fraudulentos usados forem idóneos à determinação da administração tributária ou da administração da segurança social em efetuar a atribuição patrimonial ao agente ou a terceiro. Isto não obstante poder afirmar-se, tautologicamente, que a idoneidade dos meios usados resultaria já do facto de os mesmos serem fraudulentos, em si mesmo considerados, pois situações haverá em que na sua apreciação isolada, sem a necessária visão unitária dos factos e sem a perceção do contexto em que se gera a conduta do agente, a respetiva conduta poderá até parecer inócua, pelo menos de um posto de vista jurídico-penal. Acontece, porém, que se forem avaliadas as circunstâncias em que o agente atuou, delas ressaltará sempre a assunção por parte deste de uma conduta que se caracteriza normalmente pelo recurso natural a uma “economia de esforço”, pautada por uma adequação dos meios empregues às especificidades do caso e, nomeadamente, do agente[6]. Por isso mesmo, e no que toca ao funcionamento e à utilização dos meios enganosos ou fraudulentos e à sua idoneidade para provocar o enriquecimento do agente ou de terceiro, bem como o correlativo empobrecimento da administração, e estando nós perante a possibilidade de uma “burla por palavras ou declarações expressas”, tais palavras ou declarações, mais do que a configuração externa que possam ter, em si, ou quando isoladamente consideradas, será a sua valoração, à luz da conduta adotada pelo agente, bem como do conteúdo comunicacional que a essa mesma conduta revela e representa para o burlado e para a determinação do comportamento deste, que deverá ser tida em conta, e globalmente considerada, em termos de se poder concluir que tal conduta, no caso concreto, traduz um “domínio do erro” por parte do agente, isto é do estado de erro e do circunstancialismo em que o burlado se encontra, e que por isso acaba por atuar em ordem a satisfazer os objetivos visados por aquele, e em termos tais que se pode concluir que o comportamento do agente viola flagrantemente o princípio da boa fé, em sentido objetivo, no sentido de “refletir uma deslealdade tida por inadmissível no comércio jurídico”[7], revelando-se por isso idóneo a produzir o resultado pretendido. E exemplos disso, ou dessa idoneidade entre a conduta adotada, em termos de previsão típica, e o resultado alcançado, são precisamente, como acontece no caso dos autos, “a apresentação de documento falso ou de documento que, não sendo falso, não fundamenta (ou não fundamenta ainda) determinada pretensão”, designadamente “a solicitação de subsídios ou comparticipações para despesas não efetuadas”[8].
Ora, foi isso que precisamente se passou no caso dos autos: o arguido, aproveitando-se da confiança e da boa-fé criada junto dos serviços administrativos da segurança social, usando para o efeito recibos de vencimento mensal das trabalhadoras D… e E…, que emitiu falsamente, fazendo deles constar que as mesmas prestavam serviços à sociedade arguida, “C… Unipessoal, Lda.”, mencionando inclusivamente que eram empregadas de limpeza, quando efetivamente trabalhavam, a primeira como auxiliar de ação educativa e a segunda como cozinheira, para o Jardim de Infância ”F…”, propriedade da companheira do arguido, colocando em tais documentos o timbre da sociedade arguida, da qual era sócio-gerente, fazendo assim crer, de uma forma verosímil e convincente, mas falsamente, que aquelas eram trabalhadoras da sociedade arguida, vindo depois, por via disso e de requerimento que apresentou na Segurança Social, a obter a isenção temporária do pagamento de contribuições, no valor de € 5.566,87, que teriam de ser pagas se não fosse a conduta supra referida, com a qual pretendia beneficiar, e beneficiou, a sua companheira, verdadeira entidade patronal das referidas trabalhadoras, e em prejuízo da segurança social. Ou seja, ao contrário do defendido pelo recorrente, este desenvolveu de facto uma conduta ativa que consubstancia o uso de meio fraudulento, através do qual não só determinou a Segurança Social a efetuar atribuição patrimonial a que o arguido sabia não ter direito, nem a sua com companheira, e da qual resultou um enriquecimento à custa do Estado (Segurança Social), como também o procedimento adotado se revelou objetivamente idóneo, pelas razões supra aduzidas, a provocar uma tal determinação. Sendo irrelevante para o caso saber se, de um ponto de vista formal, a relação laboral relativa ás referidas trabalhadoras só poderia ter sido juridicamente demonstrada por contrato de trabalho, e já que o que está em causa é o procedimento fraudulento usado e saber se o mesmo, no contexto comunicacional concreto, e na visão unitária dos factos por ele gerada, permitiu ou não ao arguido um domínio do erro relativamente à administração, de tal modo que esta, face às declarações sucessivamente prestadas pelo arguido, podia ou não contar, e com suficiente intensidade, com a verdade das mesmas, confiando minimamente nelas, de molde também a considerar-se que a mesma administração usou de um grau de exigência e cuidado adequados ao procedimento em causa, em sentido objetivo, relativamente à bondade da pretensão deduzida pelo arguido. E quanto a isso não temos dúvidas de que tal aconteceu, e fundamentalmente porque o arguido emitiu declarações formais, escritas, com timbre da sociedade arguida, das quais resultavam claramente que as referidas trabalhadoras tinham um vínculo laboral com aquela sociedade, criando e mantendo desse modo um domínio sobre o erro, que lhe é exclusivamente imputável, sendo que a omissão da exigência da entrega formal dos contratos de trabalho, que eventualmente devesse ter lugar, apenas pode ser vista como uma situação fáctica contextual e integrante da própria situação de erro, de que o arguido foi o principal autor, e de que se aproveitou, e, nessa medida, só a si imputável, assim como o aproveitamento patrimonial indevido que daí retirou a favor da sua companheira.
Razão por que, e verificado que está o preenchimento dos demais elementos objetivos e subjetivos do tipo de ilícito em causa, nos termos que constam da fundamentação da sentença recorrida, que aliás não foi posto em causa pelo recorrente, deve ser julgado improcedente o recurso, também nesta parte.
2.3 Responsabilidade pelo pagamento de custas
Uma vez que o arguido decaiu totalmente no recurso que interpôs, é responsável pelo pagamento da taxa de justiça e dos encargos a que a sua atividade deu lugar (artigos 513.º e 514.º do Código de Processo Penal.
Nos termos do disposto nos art.º 8º, nº 9, Regulamento das Custas Processuais e a Tabela III a ele anexa, a taxa de justiça varia entre 3 a 6 UC, devendo ser fixada pelo juiz tendo em vista a complexidade da causa, dentro dos limites fixados pela tabela iii.
Tendo em conta a complexidade do processo, julga-se adequado fixar essa taxa em 3 ½ UC, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
3. DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 2.ª secção deste Tribunal da Relação em:
a) Julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido B.
b) Condenar o recorrente no pagamento das custas do recurso, com taxa de justiça que se fixa em 3 ½ UC, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
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Porto, 28 de Setembro de 2016
Francisco Mota Ribeiro
Borges Martins
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[1] Neste sentido, Conselheiro Pereira Madeira, in Código de Processo Penal Comentado, Reimpressão, Almedina, Coimbra, 2014, p. 1357 e sgs., aí se sublinhando, a dado passo, que “quando se afirma, como se vê fazer muitas vezes, que a matéria de facto provada é insuficiente para a condenação pelo tribunal, não se está a proceder à invocação deste vício, antes, em suma, a afirmar que o tribunal errou na aplicação do direito aos factos provados, o que nada tem a ver com vícios da matéria de facto.” Veja-se ainda Ac. do STJ, de 27/11/2013, Pº nº 2239/11.4JAPRT.P1.S1, in http://www.dgsi.pt/jstj.
[2] ) E deste modo perante um erro de aplicação do direito aos factos, sendo comum a confusão existente entre o que se traduz num vicio de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, em sentido técnico, e a insuficiência dos factos provados para a qualificação jurídica com os mesmos pretendida – Cfr. Conselheiro Pereira Madeira, Ibidem.
[3] Discordando Jorge Lopes de Sousa e Simas Santos, in Regime Geral das Infrações Tributárias anotado, 4ª Edição, Áreas Editora, Lisboa, 2010, p. 601, ao considerarem que que “se o engano é produzido e se lhe segue o enriquecimento ilegítimo não há lugar a indagações sobre a idoneidade do meio empregue, considerada abstratamente”. Sendo que opinião contrária tem Germano Marques da Silva, in “Direito Penal Tributário, Universidade Católica Editora, Lisboa 2009, p. 191, e Carlos Teixeira e Sofia Gaspar, in Comentário das Leis Penais Extravagantes, Vol. 2, Universidade Católica Editora, Lisboa 2009, Lisboa, 2011, p. 413.
[4] Idem, p. 190.
[5] Assim o entendem Jorge Lopes de Sousa e Simas Santos, obra citada, p. 600.
[6] ) Cfr. A. M. Almeida Costa, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, p. 294 e sgs..
[7] A. M. Almeida Costa, idem, p. 217.
[8] ) A. M. Almeida Costa, idem, p. 302.