Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6312/16.4T8MAI.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CORREIA PINTO
Descritores: LEGADO
LEGATÁRIO
PODERES
Nº do Documento: RP201903086312/16.4T8MAI.P1
Data do Acordão: 03/08/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS, N.º691, FLS.366-374)
Área Temática: .
Sumário: I - Cada um dos cônjuges tem a faculdade de dispor, para depois da morte, dos bens próprios e da sua meação nos bens comuns, sem prejuízo das restrições impostas por lei em favor dos herdeiros legitimários.
II - Encontrando-se o legado na posse de terceiro, o legatário pode reivindicar directamente deste a coisa legada, contanto que esta seja coisa certa e determinada.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 6312/16.4T8MAI.P1
5.ª Secção (3.ª Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto
Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil):
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Acordam os juízes subscritores, no Tribunal da Relação do Porto:
I)
Relatório
B…, residente na Rua …, …, …, Maia, intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, contra C…, S.A., com sede na Avenida …, .., …. - … Lisboa, sendo ainda chamada ao processo, como interveniente principal, do lado passivo, Santa Casa da Misericórdia D…, com sede na Rua …, …, no Porto, todas melhor identificadas nos autos.
1.1 A autora alega que, em 4 de Outubro de 2012, E…, à data casada com F…, sob o regime da comunhão geral de bens, fez testamento público através do qual legou à autora, ou aos seus descendentes se a mesma não pudesse ou não quisesse aceitar, todo o dinheiro que tivesse, esteja ou não depositado ou aplicado em instituições bancárias ou outras.
A senhora E… veio a falecer no dia 30 de Dezembro de 2012, deixando como único herdeiro o seu marido, pois não tinha descendentes nem ascendentes vivos. Por sua vez, o marido faleceu em 22 de Dezembro de 2014, no estado de viúvo, sem ter deixado descendentes, ascendentes, irmãos, sobrinhos ou primos que lhe sucedessem.
À data do seu próprio óbito, a senhora E… era titular, na ré, de uma conta de depósito à ordem e de uma conta de depósito a prazo, entretanto vencida (e cujo capital e juros, em 29 de Agosto de 2014, foram depositados na referida conta à ordem), para além de uma conta de activos financeiros e de um seguro (também este já vencido e com capital e juros depositados na mesma conta à ordem).
O dinheiro com o qual foram constituídas as referidas contas e aplicações de capital era bem comum do casal formado pela testadora e respectivo marido, pelo que, por força do aludido testamento, a autora é legatária de metade desse valor.
Por se tratar de coisa certa e determinada da herança de E…, a autora pode exigir directamente da ré a sua entrega.
Sucede que apesar de ter reclamado o valor em causa, a ré recusou-se a entregar o mesmo, exigindo da autora, para além do mais, a apresentação de uma escritura de habilitação de herdeiros que ateste a qualidade que invoca, o que a autora, por não ser herdeira, não tem legitimidade para promover.
Conclui formulando pedido nos seguintes termos:
«Deverá ser julgada provada e procedente a presente acção, devendo a R. ser condenada a entregar à autora o valor de €184.591,84, em cumprimento do testamento da Senhora D. E… de que é única beneficiária, com juros de mora contados desde 2/2/16, data segura a partir da qual se considera ter sido interpelada a R.»
1.2 A ré contestou, começando por afirmar os diferentes saldos das contas mencionadas pela autora, nas datas da contestação e do óbito de E….
Alega que a autora não comprovou o pagamento do imposto devido ou a sua isenção.
Sustenta, em síntese, que a autora, enquanto legatária, não tem direito ao valor que reclama como se este constituísse um bem concreto e determinado da herança da dita E…. Os depósitos em causa integram o património comum do casal formado pela testadora e pelo seu marido, entretanto também já falecido, o qual, enquanto herdeiro legitimário, sempre teria direito, para além da sua própria meação, a metade do valor correspondente à meação do seu cônjuge pré-falecido. Acresce que enquanto não estiver delimitado e separado o património de ambos os cônjuges, não terá a autora direito a uma qualquer parte determinada de bem ou direito que integre a mencionada herança.
Defende ainda a verificação de uma situação de litisconsórcio do lado passivo, a demandar a intervenção principal do Estado Português, enquanto herdeiro do marido da testadora.
Subsidiariamente, caso se entenda que não ocorre situação de litisconsórcio necessário passivo, suscita a necessidade de oposição provocada do Estado Português, representado pelo Ministério Público.Conclui afirmando que a autora deve ser convidada para fazer intervir, ao lado da ré, o Estado Português, único herdeiro do co-titular das contas e herdeiro da testadora e, a não se entender assim, deve ser admitida a oposição provocada do Estado Português representado pelo Ministério Público, citando-se o mesmo nos termos do artigo 339.º Código de Processo Civil, devendo a final ser a acção julgada parcialmente provada e procedente entregando-se à autora os valores depositados que se entenda pertencerem-lhe mas só depois de cumpridas as obrigações fiscais e sem custas pela ré que nenhum facto ilícito praticou nem deu causa à acção.
1.3 Foi proferido despacho a convidar «a autora a, no prazo de 10 dias, vir aos autos sanar a sua ilegitimidade processual, por preterição de litisconsórcio necessário, mediante o competente incidente de intervenção principal provocada do Estado Português, representado pelo Ministério Público, sob pena de se julgar verificada a excepção de ilegitimidade do lado activo».
Na sequência da notificação deste despacho, a autora veio dar conta da existência de um testamento pelo qual o marido da testadora havia ele próprio instituído como sua única herdeira a Santa Casa da Misericórdia D….
Foi então deduzido pela autora incidente de intervenção principal provocada da Santa Casa da Misericórdia D…, perante o que foi admitida a sua intervenção principal, do lado passivo.
A Santa Casa da Misericórdia D…, citada, não apresentou contestação, vindo entretanto informar que, tendo sido designada herdeira testamentária de F…, aceitou a herança a benefício de inventário, pelo que instaurou entretanto o correspondente processo de inventário, que corre termos sob o número 324/18, no Cartório Notarial da Dra. G…, conforme comprovativo que anexa; justificou o facto de não juntar certidão de habilitação de herdeiros de E… nem de F… por não dispor das mesmas.
Realizada tentativa de conciliação, aí foi requerida pela interveniente Santa Casa da Misericórdia D… a suspensão da presente instância, com fundamento na pendência de processo de inventário por óbito do cônjuge de E…; esse requerimento teve a oposição da autora e foi indeferido, por se concluir que não existia fundamento legal para a pretendida suspensão.
No prosseguimento dos autos foi realizada audiência prévia.
Pela interveniente Santa Casa da Misericórdia D… fora entretanto requerida, pelas razões que expõe e de onde resulta a alegada existência de conta bancária no banco H…, a notificação da autora para que informe se intentou acção de conteúdo similar contra este banco e, em caso afirmativo, a apensação das acções, nos termos do disposto no artigo 267.º do Código de Processo Civil. Este requerimento teve a oposição da autora, em audiência prévia, e aí foi indeferido por se considerar que, permitindo o estado do processo o conhecimento imediato do mérito da causa, não subsistia fundamento legal, ou sequer interesse prático, na apensação requerida.
Ainda em audiência prévia, considerando que o «processo contém já todos os elementos que, com a necessária segurança, permitem, desde já, conhecer o mérito da causa», foi proferida sentença que, pelos fundamentos de facto e de direito que enuncia, concluiu com decisão que julgou a acção improcedente, por não provada, e absolveu a ré do pedido.
2.1 A autora, inconformada com esta decisão, interpôs o recurso de apelação que aqui se aprecia, concluindo assim a respectiva motivação:
«1.ª - Na douta sentença recorrida, foi negada à recorrente a pretensão de entrega da quantia de €184.591,84 em cumprimento do testamento da senhora D. E… de que a Autora é única beneficiária, com juros de mora contados desde 2/2/16 por parte da C….
2.ª - Com o fundamento de que a recorrente não adquiriu directamente, por via do testamento, a titularidade daqueles depósitos ou aplicações que, assim, deverão ser relacionados, no aludido processo de inventário, como um direito de crédito da herança da dita E….
Não pode, portanto, reivindicá-los de terceiro (no caso da aqui Ré «C…, S.A.»), com fundamento no disposto no artigo 2279.º do CC.
3.ª - Não pode concordar a recorrente, porém, com esta argumentação.
4.ª - Na verdade, no testamento outorgado à recorrente, a testadora legou-lhe todo o dinheiro que tivesse à sua morte, estivesse, ou não, depositado, ou aplicado.
5.ª - Sendo certo que, de acordo com o n.º 1, do artigo 1685.º, do CC, cada um dos cônjuges tem a faculdade de dispor, para depois da morte, dos bens próprios e da sua meação nos bens comuns.
6.ª - O testamento que é objecto da acção deve ser interpretado no sentido de que a testadora não quis dispor de mais do que a sua meação nos bens comuns.
7.ª - E, não, como faz a sentença recorrida, de que a testadora quis dispor da totalidade dos depósitos existentes na C….
8.ª - Por isso, sendo metade do valor dos depósitos na C… quantia certa e determinada.
9.ª - Podia a mesma ser directamente reivindicada pela recorrente da C…, ao contrário do que foi
decidido.
10.ª - Mesmo que se considere que metade do valor das quantias depositadas e aplicadas na C… é património comum do casal.
11.ª - A sua disposição mortis causa, pela testadora, é convertível automaticamente no valor correspondente, em dinheiro.
12.ª - O qual só pode ser exigido à C…, entidade onde as quantias se encontravam depositadas ou aplicadas.
13.ª - Aliás, não podia ser de outra forma porque, na data da propositura da acção, desconhecia a recorrente que o marido da testadora tinha deixado um herdeiro testamentário.
14.ª - Acresce que a contra-interessada, Santa Casa da Misericórdia D…, foi admitida no processo como parte principal e, não obstante, não apresentou contestação, não se opondo, dessa forma ao pedido da recorrente.
15.ª - Com o devido respeito, foram violados, por erro de aplicação do direito aos factos, os artigos 1685.º e 2279.º, do Código Civil.»
Termina afirmando que, dando-se provimento do presente recurso e determinando-se a entrega das quantias peticionadas à recorrente, se fará inteira Justiça.
2.2 Não foram apresentadas contra-alegações.
3. Na ausência de fundamento que obste ao conhecimento do recurso, cumpre apreciar e decidir.
As conclusões formuladas pela apelante definem a matéria que é objecto de recurso e que cabe aqui precisar, traduzindo-se na seguinte questão:
■ Determinar se a autora/recorrente tem o direito de obter da ré, C…, por via da presente acção, o valor que reclama, em execução de legado.
II)
Fundamentação
1. Factos relevantes.
Antes de avançar na apreciação da questão suscitada em sede de motivação do recurso e com interesse para a decisão a proferir, importa considerar os factos que foram julgados provados na sentença que é objecto de recurso, que a recorrente não questiona e que integralmente se transcrevem.
«Com fundamento no acordo das partes, resultante da posição convergente expressa nos articulados respectivos, e nos documentos juntos aos autos, considero provados os seguintes factos com relevo para a decisão da causa:
1) No dia 4 de Outubro de 2012, na respectiva residência, sita na Avenida …, n.º …., na freguesia …, do município da Maia, perante a senhora notária, Licenciada G…, com cartório sito na Rua …, n.º …, …, sala …, na Maia, a Senhora D. E…, casada com F… sob o regime da comunhão geral de bens, fez o testamento público – cuja cópia está junta a fls. 7 e segs., com o teor que aqui se dá por integralmente reproduzido – pelo qual legou à Autora, ou aos seus descendentes, se a mesma não pudesse ou quisesse aceitar, todo o dinheiro que tivesse, esteja ou não depositado ou aplicado em instituições bancárias ou outras;
2) A senhora D. E… faleceu no dia 30 de Dezembro de 2012;
3) Como seu único herdeiro deixou o marido, F…, pois não tinha descendentes nem ascendentes vivos;
4) Por sua vez, o marido da testadora faleceu em 22/12/14, no estado de viúvo, sem ter deixado descendentes, ascendentes, irmãos, sobrinhos ou primos que lhe sucedessem;
5) Por testamento público lavrado no dia 25 de Agosto de 1999, no Cartório Notarial do Porto – cuja cópia está junta a fls. 71 e segs. com o teor que aqui se dá por integralmente reproduzido – o referido F… instituiu como sua única herdeira a esposa E… e, para a hipótese de esta não lhe sobreviver, e só neste caso, instituiu como herdeiro a «Santa Casa da Misericórdia D…»;
6) Na data do óbito da referida testadora, era a mesma titular das seguintes contas de depósito bancário na Ré, com os indicados saldos:
- …………. (conta à ordem) = €145.817,88;
- …………. (activos financeiros) = €18.500,00 valor;
- …………… (conta a prazo) = €60.000,00 que foram transferidos para a conta à ordem em 29/8/2014.
- Apólice n.º ../…….. – C1… = €150.000,00 que foi transferido, num total de 153.295,60 euros para a conta à ordem em 24/2/2016;
7) À data de hoje – 9/3/2017 [1] – essas contas exibem os seguintes saldos:
- ………… (conta à ordem) = €350.691,94
- ………… (activos financeiros) = 25 Obrigações C… com o valor de €24.242,50
- ………… (conta a prazo) = €0,00 -> porque venceu em agosto de 2014 e o saldo foi transferido para a conta à ordem
- “Apólice n.º ../…….. – C1… €0,00-> foi feito um investimento de €150.000,00 que se venceu em Fevereiro de 2016”, transferindo-se para a conta à ordem.
8) Por carta de 2 de Fevereiro de 2016, cuja cópia está junta a fls. 15vs. e 16, com o teor que aqui se dá por integralmente reproduzido – a Autora solicitou à Ré a entrega da quantia de €184.341,84 ali depositada, correspondente ao valor que lhe foi legado pela dita E…;
9) A Ré recusou e por carta datada de 29.02.2019, exigiu à Autora, além do mais, a apresentação de uma escritura de habilitação de herdeiros como condição da entrega do legado;
10) A Santa Casa da Misericórdia D… instaurou processo de inventário por óbito de F…, o qual corre termos sob o n.º 324/18 no Cartório Notarial da Dra. G….»
2. Determinar se a autora/recorrente tem o direito de obter da ré, C…, por via da presente acção, o valor que reclama, em execução de legado.
2.1 Importa começar por considerar o quadro legal pertinente para aferir se há ou não fundamento para a pretendida alteração da decisão que é objecto do recurso.
No livro do direito da família, no âmbito das normas referentes ao casamento e aos regimes de bens, o artigo 1732.º do Código Civil estabelece que, se o regime de bens adoptado pelos cônjuges for o da comunhão geral, o património comum é constituído por todos os bens presentes e futuros dos cônjuges, que não sejam exceptuados por lei, incluindo-se nesta excepção os bens incomunicáveis enunciados no artigo 1733.º.
No âmbito do direito das sucessões, sucessão testamentária, o artigo 2252.º do Código Civil estabelece que, se o testador legar uma coisa que não lhe pertença por inteiro, o legado vale apenas em relação à parte que lhe pertencer, salvo se do testamento resultar que o testador sabia não lhe pertencer a totalidade da coisa, pois, nesse caso, observar-se-á, quanto ao restante, o preceituado no artigo anterior, quanto ao legado de coisa pertencente ao onerado ou a terceiro (n.º 1) e que pode determinar a nulidade do legado; mas estas regras não prejudicam o disposto no artigo 1685.º quanto à deixa de coisa certa e determinada do património comum dos cônjuges (n.º 2 do artigo 2252.º).
Nos termos do artigo 1685.º do Código Civil, cada um dos cônjuges tem a faculdade de dispor, para depois da morte, dos bens próprios e da sua meação nos bens comuns, sem prejuízo das restrições impostas por lei em favor dos herdeiros legitimários (n.º 1). A disposição que tenha por objecto coisa determinada do património comum apenas dá ao contemplado o direito de exigir o respectivo valor em dinheiro (n.º 2). Pode, porém, ser exigida a coisa em espécie se esta, por qualquer título, se tiver tornado propriedade exclusiva do disponente à data da sua morte [n.º 3, alínea a)]; se a disposição tiver sido previamente autorizada pelo outro cônjuge por forma autêntica ou no próprio testamento [n.º 3, alínea b)]; ou se a disposição tiver sido feita por um dos cônjuges em benefício do outro [n.º 3, alínea c)].
No âmbito do direito das sucessões, o artigo 2265.º do Código Civil estabelece que, na falta de disposição em contrário, o cumprimento do legado incumbe aos herdeiros (n.º 1); o testador pode, todavia, impor o cumprimento só a algum ou alguns dos herdeiros, ou a algum ou alguns dos legatários (n.º 2), sendo que, os herdeiros ou legatários sobre quem recaia o encargo ficam a ele sujeitos em proporção dos respectivos quinhões hereditários ou dos respectivos legados, se o testador não tiver estabelecido proporção diversa (n.º 3).
Entretanto, encontrando-se o legado na posse de terceiro, o legatário pode reivindicar directamente deste a coisa legada, contanto que esta seja coisa certa e determinada – artigo 2279.º do Código Civil.
2.2 O tribunal recorrido, perante este quadro legal e os factos que julgou provados (factos acima transcritos e que a recorrente não questiona), concluiu que a autora não tem o direito de obter da ré, por via da presente acção, o valor que reclama, em execução do legado que lhe foi feito por E….
Importa salientar que não se declara na sentença recorrida que, perante o testamento em causa e o legado aí afirmado, a autora esteja totalmente desprovida de quaisquer direitos; antes e apenas que não tem o direito de os exercer perante a ré nos termos pretendidos na presente acção, de obter directamente da ré o valor cujo pagamento reclama.
Para o efeito, pondera-se na sentença recorrida que, «face ao regime de bens do casamento de E… e de F…» (regime da comunhão geral), «é inequívoco que os depósitos e aplicações financeiras identificadas no ponto 6) dos factos provados, objecto do legado instituído por aquela E…,
integravam, em comum, o acervo patrimonial do casal formado por esta e pelo seu cônjuge sobrevivo (artigos 1732.º e seguintes do Código Civil). (…) O património comum dos cônjuges é um património que tem como titulares, em conjunto, ambos os cônjuges. Ao contrário do que sucede na compropriedade, cada um deles não é titular de uma quota sobre o conjunto dos bens comuns, não tem uma fracção do direito sobre os bens de que possa dispor livremente. O património comum pertence a ambos os cônjuges em bloco e nenhum deles dispõe de qualquer direito próprio específico sobre qualquer dos bens que integram o conjunto do património comum (…).
Deste modo, não podia a dita E… dispor testamentariamente, como fez, como se fosse coisa exclusivamente sua, “todo o dinheiro que estivesse ou seja depositado ou aplicado em instituições bancárias ou outras”.
Na realidade apenas poderia dispor dos seus bens próprios ou da sua meação nos bens comuns, conforme preceitua o n.º 1 do artigo 1685.º do Código Civil (cf. também o disposto no n.º 2 do artigo 2252.º do Código Civil).
Tendo efectuado um legado de coisa certa e determinada do património comum, por força do regime específico previsto no citado artigo 1685.º do Código Civil, tal disposição apenas poderia valer como uma atribuição em espécie se se verificasse alguma das hipóteses prevista no n.º 3 da mesma norma.
No caso em apreço, não se verifica nenhuma dessas situações, designadamente a prévia autorização do outro cônjuge, por documento autêntico, ou exarada no próprio testamento [al. b) do n.º 3 do artigo 1685.º do Código Civil], pelo que o legado em causa não pode valer em espécie.
Todavia, o n.º 2 do artigo 1685.º atribui ao beneficiário do legado o direito de exigir o respectivo valor em dinheiro. Neste caso, estaremos perante um caso de legado de valor.
Ao estabelecer que o legado vale como legado de valor, o citado n.º 2 do artigo 1685.º do Código Civil determina uma conversão legal do legado de coisa comum. A solução contemplada nesta norma é, pois, a da transformação sistemática da disposição em substância no legado pecuniário correspondente. (…)»
No caso em apreço, havendo a disposição de bens que integravam a comunhão conjugal e não se demonstrando qualquer das excepções previstas no n.º 3 do artigo 1685.º do Código Civil, mormente a autorização do cônjuge sobrevivo da testadora, a autora legatária apenas poderá exigir, do herdeiro do cônjuge sobrevivo (obrigado ao seu cumprimento nos termos do artigo 2265.º do Código Civil), o valor pecuniário equivalente aos depósitos e aplicações financeiras legadas.
«Tal valor, (…) pelas razões supra expostas, corresponderá em princípio – e sem prejuízo de eventual redução por inoficiosidade – à totalidade do valor daqueles depósitos e aplicações e não a uma qualquer proporção calculada com base na referida meação e quota legítima do cônjuge sobrevivo.»
Na sentença recorrida expressa-se o entendimento de que a autora poderá fazer valer esse seu direito através do processo comum, mas que também poderá intervir como interessada no processo de inventário já instaurado, onde certamente se procederá, de forma cumulada, à partilha da herança da dita E… [artigos 4.º, n.º 2, e 18.º, n.º 1, alíneas b) e c) do Regime Jurídico do Processo de Inventário, estabelecendo a primeira destas normas, relativamente à legitimidade para requerer ou intervir no inventário, que existindo herdeiros legitimários, os legatários e os donatários são admitidos a intervir em todos os actos, termos e diligências susceptíveis de influir no cálculo ou determinação da legítima e implicar eventual redução das respectivas liberalidades e a estabelecendo a segunda norma que é permitida a cumulação de inventários para a partilha de heranças diversas quando se trate de heranças deixadas pelos dois cônjuges ou uma das partilhas esteja dependente da outra ou das outras].
Ainda na sentença recorrida, pelas razões enunciadas em condensação final, afirma-se que não parece é que «a autora possa exigir da aqui ré, C…, o cumprimento de tal legado, mediante a entrega de parte do numerário constante os referidos depósitos e aplicações.
De facto, pelas razões já expendidas atinentes ao regime do citado artigo 1685.º do Código Civil, a Autora legatária está impedida de exigir o cumprimento daqueles legados em espécie.
Não adquiriu directamente, por via do testamento, a titularidade daqueles depósitos ou aplicações que, assim, deverão ser relacionados, no aludido processo de inventário, como um direito de crédito da herança da dita E….
Não pode, portanto, reivindicá-los de terceiro (no caso da aqui Ré «C…, S.A.»), com fundamento no disposto no artigo 2279.º do Código Civil».
Conclui-se na sentença recorrida que, pelas razões que se deixam enunciadas e sendo esta a única pretensão que a autora pretende fazer valer através da presente acção, deve improceder.
Caso estivéssemos perante um bem/objecto material, se o legado feito à autora se reportasse a um concreto bem, móvel ou imóvel que integrasse o património comum e que não fosse dinheiro, afigura-se que seria pacífico e incontroverso o entendimento afirmado na sentença recorrida.
Na verdade, perante o regime de bens que vinculava E… e F… e o disposto nos artigos 1732.º e seguintes do Código Civil, o património comum pertencia a ambos os cônjuges em bloco, não dispondo nenhum deles de qualquer direito próprio específico sobre qualquer dos concretos bens que integravam o conjunto do património comum. E… não podia então dispor em testamento, como se fosse coisa exclusivamente sua, de qualquer concreto bem, dado que apenas poderia dispor dos seus bens próprios – que não seria o caso – ou da sua meação nos bens comuns, conforme decorre dos artigos 1685.º e 2252.º do Código Civil. Mas, tendo disposto de bem comum e estando perante coisa certa e determinada do património comum, operava o artigo 1685.º, n.º 2, do Código Civil, dando ao contemplado o direito de exigir, não o concreto bem em causa, mas antes o respectivo valor em dinheiro. Neste caso, como se afirma na sentença recorrida, já não estaríamos perante um concreto bem que pudesse ser reivindicado perante terceiros, estaríamos antes perante um direito de crédito sobre a herança de E…, pelo que não podia ser reivindicado de terceiro (no caso da aqui ré, da C…, S.A.), com fundamento no disposto no artigo 2279.º do Código Civil.
Contudo, não é essa a situação que se verifica no caso em apreciação. Na verdade, está aqui em causa, apenas e sempre, um concreto valor em dinheiro, reportado ao testamento de E… e à sua titularidade.
À data do óbito, ocorrido em 30 de Dezembro de 2012, era a mesma titular de diferentes contas de depósito bancário na ré, acima mencionadas e totalizando o valor de €374.317,88.
Perante o regime de bens do casamento – regime da comunhão geral, com as normas específicas dos artigos 1732.º a 1734.º do Código Civil – é pacífico que a titularidade da testadora se restringia a metade deste valor, ascendendo portanto ao montante de €187.158,94 – sendo o remanescente propriedade do respectivo cônjuge.
Entretanto, tendo presente que a senhora D. E…, falecida no dia 30 de Dezembro de 2012, deixou como seu único herdeiro o marido, F…, pois não tinha descendentes nem ascendentes vivos, vindo este a falecer depois de completados quase dois anos, em 22 de Dezembro de 2014, impõe-se considerar o que a este propósito dispõe o Código Civil, artigos 2031.º (a sucessão abre-se no momento da morte do seu autor e no lugar do último domicílio dele), 2156.º e 2157.º (entende-se por legítima a porção de bens de que o testador não pode dispor, por ser legalmente destinada aos herdeiros legitimários, sendo estes o cônjuge, os descendentes e os ascendentes, pela ordem e segundo as regras estabelecidas para a sucessão legítima, constando esta dos artigos 2131.º a 2155.º) e 2158.º (a legítima do cônjuge, se não concorrer com descendentes nem ascendentes, é de metade da herança).
Por força de testamento lavrado por F…, este instituiu como herdeiro a Santa Casa da Misericórdia D…, interveniente nos presentes autos.
A herança é constituída pelo património positivo e negativo – bens e dívidas – da pessoa que morreu.
Não consta nos autos o concreto património em causa. É certo que a Santa Casa da Misericórdia D… instaurou processo de inventário por óbito de F…, a correr termos em cartório notarial. Apesar disso e do facto deste processo de inventário não se reportar directamente à herança de E…, não é afirmado nos presentes autos, quer pela ré C…, quer pela interveniente Santa Casa da Misericórdia D…, que o legado em causa ultrapassa a quota disponível, em violação da legítima, para cujo cálculo releva o disposto no artigo 2162.º do Código Civil.
Às rés cabia o ónus da prova, enquanto facto impeditivo/restritivo do direito da autora (artigo 414.º do Código de Processo Civil).
Conclui-se então que não há razão impeditiva da pretensão da autora, sendo legítima a reivindicação perante a ré, face ao disposto no artigo 2279.º do Código Civil, antes mencionada.
Ao valor em causa acrescem juros de mora, sendo os mesmos devidos à taxa legal, desde o trânsito em julgado da presente decisão, atentas as razões que determinaram a omissão da ré.
A concretização do pagamento por parte da ré, C…, pressupõe o prévio cumprimento das obrigações fiscais.
III)
Decisão:
Pelas razões que se deixam expostas, julga-se parcialmente procedente o recurso e, nessa conformidade, revoga-se a decisão recorrida e profere-se decisão nos seguintes termos:
- Condena-se a ré, C…, a entregar à autora o valor de €184.591,84 (cento e oitenta e quatro mil quinhentos e noventa e um euros e oitenta e quatro cêntimos), em cumprimento do testamento de E… de que é única beneficiária, com juros de mora contados à taxa legal, desde a data de trânsito em julgado da presente decisão e até integral pagamento.
- Absolve-se a ré do pedido relativamente ao remanescente pedido pela autora a título de juros de mora.
Custas a cargo de autora e ré, na proporção do decaimento.
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Porto, 8 de Março de 2019.
Correia Pinto
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
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[1] A referência à “data de hoje – 9/3/2017…” reporta-se à apresentação da contestação pela ré.