Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
202/13.0GAVLC.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: NETO DE MOURA
Descritores: DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
INDÍCIOS SUFICIENTES
PROVA PESSOAL
Nº do Documento: RP20151028202/13.0GAVLC.P1
Data do Acordão: 10/28/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I- Os indícios suficientes para submissão do arguido a julgamento, devem ser particularmente qualificados permitindo concluir que existe uma forte ou séria possibilidade de condenação em julgamento.
II – Apesar de dotada de fragilidades em face da sua falibilidade e precariedade, a dúvida que poderia emergir da contraditoriedade de depoimentos pode ser superada através de prova objectiva, como as perícias.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 202/13.0GAVLC.P1
Instância Central, 3.ª Secção de Instrução Criminal, da Comarca de Aveiro
Relator: Neto de Moura

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto

IRelatório
No âmbito do processo comum que, sob o n.º 202/13.0GAVLC, corre termos pela Instância Central, 3.ª Secção de Instrução Criminal (J2), da Comarca de Aveiro, B…, melhor identificado nos autos, arguido que intervém, também, como assistente, não se conformando com o despacho de arquivamento do Ministério Público relativamente à queixa que apresentou contra C…, requereu a abertura de instrução, no termo da qual foi proferida decisão instrutória de não pronúncia (fls. 392 e segs.).
Ainda irresignado, o arguido/assistente B… recorreu dessa decisão para este Tribunal da Relação, com os fundamentos explanados na respectiva motivação, que “condensou” nas seguintes conclusões (em transcrição integral):
“Considerando que
1.ª - Não concordamos com a decisão instrutória que não pronunciou o Arguido C… pela prática de um Crime de Ofensa à Integridade Física, isto porque ao contrário do referido pelo Tribunal "a quo'', foram recolhidos indícios suficientes na fase de inquérito e na fase de instrução que permitem, com segurança pronunciar o Arguido C… pela prática de tal crime.
2.ª - Na fase de inquérito, temos a queixa de fls. 97 a 101 dos autos, apresentada pelo B… contra o C… em 12/07/2013, na qual o mesmo refere que no dia 31/05/2013, por volta das 18:30 horas, foi agredido por parte de C…, quando se encontrava no interior e no exterior da residência do mesmo. O C… virou-se para si e desferiu-lhe um murro na face do lado esquerdo por baixo do olho; o C… pretendia continuar a agredir o B… com murros e foi quando este se defendeu; contudo, a dada altura da contenda o arguido C… desferiu um murro nas partes baixas (entre as pernas) do B…, tendo este ficado combalido, com falta de ar e tonto e foi nessa altura que o B… tentou abrir a porta da casa para poder vir para o exterior, numa tentativa de evitar as agressões de que estava a ser alvo e já no exterior da habitação, o B… encostou-se a um muro e quando ali se encontrava o Arguido que veio no seu encalço, desferiu-lhe outro murro nas partes baixas (entre as pernas). Esclareceu ainda o B… que em virtude das agressões de que foi alvo por parte do Arguido C… ficou com um hematoma na zona dos lábios, uma mordedura no braço direito, um arranhão na face do lado esquerdo por baixo do olho e com várias escoriações/hematomas na zona das costelas e das costas. Daqui decorre que o C… não actuou ao abrigo da legítima defesa, mas antes agiu de forma livre, voluntária e consciente, com intenção de molestar, como queria e concretizou, o corpo e saúde do B….
3.ª - A credibilidade do B… não pode ser posta em causa, como o fez a decisão instrutória, tanto mais que o mesmo nunca negou terem existido agressões mútuas entre si e o C…, ao contrário do que a fez o C… - num primeiro momento (queixa) refere que houveram agressões mútuas e num segundo momento (ainda na fase de inquérito e na fase de instrução) já diz que apenas foi agredido e que nada fez (entenda-se, não agrediu).
4.ª - Refere a decisão instrutória erradamente que a queixa apresentada pelo B… foi apresentada quando este já sabia da existência e do teor da queixa apresentada pelo C… contra si, contudo não se entende em que se baseou o Tribunal "a quo" para chegar a tal conclusão falsa repita-se. O B… tinha, como decorre da lei seis meses a contar dos factos para apresentar queixa contra o Arguido C…, mas apresentou-a cerca de um mês e meio após os factos, isto é, no dia 12/07/2013 ponderadamente, dadas as relações familiares existentes e ainda o facto de no passado o B… ter sido agredido na cabeça com umas chancas pelo C…, ter apresentado queixa e no decurso do processo-crime, as relações familiares falaram mais alto e o assistente acabou por desistir da queixa. Apenas em 17/07/2013 (após a apresentação da queixa) é que o B… foi notificado para comparecer na GNR para ali ser ouvido na qualidade de Arguido, no dia 1/08/2013. Após a recepção de tal notificação, o B… solicitou no posto da GNR se podia ser ouvido antes da data agendada, tendo sido agendado o dia 26/07/2013 para que o mesmo fosse interrogado na qualidade de arguido, tomando assim conhecimento dos factos que lhe eram imputados.
5.ª - Não atendeu o Tribunal "a quo" devidamente ao facto de o B… no dia dos factos apresentar ferimentos e ao facto de o mesmo no dia 3/06/2013 (segunda-feira), pelas 9:15 horas, se ter deslocado ao Centro de Saúde de Sever do Vouga - fls. 163 dos autos (ainda não havia decidido apresentar queixa) onde apresentava contusões e escoriações na pálpebra inferior esquerda, no lábio superior esquerdo, na face medial do punho direito por dentada e hematoma sub parietal esquerda. Tendo, nesse dia, o B… referido ao Dr. D… que havia sido vítima de violência fisica por parte do seu cunhado no dia 31/05/2013, motivado por conflitos familiares e nessa consulta foi prescrito ao Assistente medicação - Bepanthene Plus e Paracetamol e a realização de duas incidências - RX Craneo. Relativamente à medicação, o B… adquiriu-a no próprio dia 3 de Junho de 2013, conforme recibo emitido pela E… e junto aos autos no dia 27/04/2015.
6.ª - Da prova documental junta aos autos na fase de inquérito decorre que no dia 17/07/2013, o B… recorreu ao Centro de Saúde de … com sintomas do trato urinário baixa e incapacidade em manter a erecção por dor testicular (fls. 164 dos autos). Sendo que estas queixas iniciaram-se após o episódio de agressão por parte de C…, ficando o B… com os testículos inchados e vermelhos, sofrendo lesões na região genital. Em face das dores no escroto /testículos; problemas de micção e sintomas da função sexual por parte do B…, o Dr. D… solicitou a realização de análises clínicas; ecografia prostática e das vesículas seminais, por via endocavitária e ecografias vesical supra-pubica e partes moles. No dia 1/08/2013 (fls. 165 dos autos), o B… regressou ao Centro de … com vista a mostrar os resultados dos exames solicitados ao Dr. D…, tendo a ecografia às partes moles revelado alterações as quais são compatíveis com orquite bilateral (inflamação dos testículos direito e esquerdo), podendo esta ser causa traumática.
7.ª - Na fase de inquérito foram também carreados para os autos os relatórios periciais de avaliação do dano corporal em direito penal constantes de fls. 92 a 94 (1ª relatório) e fls. 238 a 240 (2° relatório), os quais não foram atendidos pelo Tribunal "a quo", e dos quais decorre que a data da cura das lesões do B… é fixável em 01/08/2013; as lesões referidas no relatório pericial terão resultado de traumatismo de natureza contundente o que é compatível com a informação; que tais lesões determinarão em condições normais 62 dias para a cura, sem afectação da capacidade de trabalho geral e trabalho profissional e do evento não resultarão, em condições normais, quaisquer consequências permanentes.
8.ª - Da queixa apresentada por C… constante de fls. 2 a 3 dos autos, verificamos que o mesmo refere que "O ora denunciante em sua defesa, começou a medir forças com o denunciado envolvendo-se em agressões mútuas, agressões essas que ocorreram desde o interior da residência até ao exterior da mesma, cessando apenas aquando da intervenção dos vizinhos que se aperceberam da situação e os separaram.", assim não andou bem o Tribunal "a quo" ao desconsiderar o teor de tal queixa, dado que o mesmo confirma que "mediu forças" com o B…; ambos envolveram-se em "agressões mútuas", as quais ocorreram não só dentro da habitação, mas também no seu exterior e tudo cessou com a intervenção de terceiros que os separaram - é isto que consta dos autos e não pode ter qualquer outra interpretação. E não se entenda, como o fez o Tribunal "a quo" que as expressões constantes da queixa do C… são "de teor conclusivo'', dado que o C…, homem actualmente com 66 anos, quando se deslocou ao posto da GNR de Vale de Cambra para apresentar queixa referiu estes factos ao autuante e no final assinou na qualidade de denunciante.
9.ª - Quando o C… foi interrogado em sede de instrução, no dia 27 /04/2015, das 10: 16:37 às 10:38:40, tal demonstrou ter agredido o B…, quando responde à Sr. Dr. Juiz "R: Pois não sei, eu não falei nada para ele. Eu até me dava bem com ele, não o queria bater, não lhe queria fazer mal nenhum. Eu estava baixado, e ele bateu-me tanta pancada na cabeça que se não era a minha mulher eu caía mesmo para o chão."
10.ª - A única questão que se podia colocar é quem iniciou a contenda, se o C…, se o B…. Isto porque o B… refere que quem iniciou a mesma foi o C… e o C… e a testemunha F… (a qual é esposa do primeiro e embora irmã do segundo, com o mesmo se dá mal) referem que terá sido o B… a iniciar a agressão. Entender-se que a descrição dos factos por parte do C… e da esposa F… é mais credível do que a descrição dos factos feita pelo B… parece-nos, salvo melhor opinião, errada. Na verdade, esqueceu-se o Tribunal "a quo" que o C… é parte interessada no desfecho desta demanda e a testemunha F… apresenta uma relação de proximidade com o C…, em virtude do facto de ser sua esposa, e como tal também tem um especial interesse. Logo, deveria a decisão instrutória ter feito uma exigente ponderação da credibilidade dos depoimentos de ambos – C… e esposa F…. Tanto mais que a outra testemunha ocular dos factos, G… (mãe do C… e da F… e sogra do C…), infelizmente (e por razões que se desconhecem), não descreveu o que de facto aconteceu no dia, hora e local dos factos, limitando-se a afirmar que se gerou uma ligeira confusão - fls. 145 dos autos
11.ª - A testemunha F… (fls. 45 a 47 dos autos) não confirma de forma consistente e coerente a versão dos factos fornecida por C…, ao contrário do que entendeu a decisão instrutória. Isto porque deveria o Tribunal "a quo" ter atendido ao facto da testemunha em causa ser esposa do Arguido C… e embora irmã do Assistente B…, como o mesmo está de relações cortadas; ao facto dela negar que o C… agrediu o B…, ainda que fosse apenas para se defender; ao facto dela negar factos desvantajosos para o C… e que o próprio acabou por confirmar quando apresentou a queixa e, ainda que de forma ténue, aquando do seu interrogatório na fase de instrução e ao facto da mesma não confirmar totalmente a versão do C… e até apresentar contradições a nosso ver relevantes. O C… diz que foi agarrado no pescoço e por trás pelo B… e ergueu os braços para se libertar; que nunca caiu ao chão; dentro da casa foi sempre agarrado por trás e fora da casa o B… ficou de lado (veja-se o interrogatório de C… que está gravado, através do sistema digital, no dia 27/04/2015, com início às 10:16:37 às 10:38:40) e F… não refere que o C… foi agarrado no pescoço por trás; refere que o mesmo "caiu desamparado no chão" e não refere que o C… tenha assumido qualquer conduta para afastar o B… de si.
12.ª - A decisão instrutória admite como provável que as lesões que o B… apresentava foram ocasionadas na contenda, mas foi o B… a iniciar o processo de agressão física e o C… ao defender-se causou tais lesões. Embora se encontre justificação para a dentada no punho do B… na versão apresentada pelo C…, segundo o qual estava a ser agarrado com um braço na zona do pescoço e por trás, estando baixado, o certo é que para as demais lesões não se encontra justificação atenta tal versão. De facto, como poderia o C… dar murros na cara do B…, causando-lhe lesões na pálpebra inferior esquerda e no lábio superior esquerdo e dar murros na zona testicular causando-lhe lesões se o mesmo estava, segundo afirma, a ser agarrado por trás. Logo, a maior parte das lesões do B… não são compatíveis com a versão apresentada pelo C…. Assim, ao contrário do que entendeu (mal diga-se) a decisão instrutória, o C… agrediu efectivamente o B…, medindo com ele forças e não actuou em legítima defesa.
13ª. Na fase de instrução, foi interrogado o Arguido C…; inquiridas três testemunhas: H… (cuja inquirição se encontra gravado no CD, das 10:39:25 às 11:10:45, na audiência de 27 de Abril de 2015); I… (cuja inquirição se encontra gravado no CD, das 11:11:21 às 11:20:03, na audiência de 27 de Abril de 2015) e J… (cuja inquirição se encontra gravado no CD, das 11:20:35 às 11:36:14, na audiência de 27 de Abril de 2015); e junto aos autos um documento.
14.ª - Da inquirição da testemunha H… retira-se que a mesma viu o B… logo após os factos, junto a um tanque e o mesmo estava mal tratado, com a camisa aberta e ensanguentada, com uma cor muito pálida, quase a cair, a queixar-se muito das partes baixas, estando todo encolhido. Verificou ainda que o mesmo tinha o braço mordido e um corte por baixo de um olho onde saia sangue, contudo não conseguiu especificar ao Tribunal se seria do lado direito ou esquerdo da face que se encontrava o corte, o que, para o Tribunal "a quo" afectou a sua credibilidade... o que sinceramente não se compreende! A sua credibilidade ficaria afectada se a mesma dissesse que se lembrava muito bem, apontando para um lado diferente daquele onde, de facto, se encontrara o corte.
15.ª - A testemunha I… de forma clara e simples, relata que se deslocou ao local dos factos e que viu B… inclinado com as mãos nos testículos, com sangue na camisa e na cara do lado esquerdo (o que é compatível com as lesões que o mesmo apresentava e que se encontram documentadas nos autos).
16.ª - A testemunha J… referiu, com toda a consistência, que o seu marido chegou a casa com a camisa rasgada e com sangue, com um rasgo por baixo do olho esquerdo, outro rasgo no lábio, uma mordedura no braço direito e muito mal nos testículos. Que insistiu muito para que fosse ao Hospital, mas que o seu marido terá dito que não queria ir por vergonha de dizer que um familiar o tinha batido. Contudo, na segunda -feira seguinte aos factos foram ao Centro de Saúde de … face ao estado em que o mesmo se encontrava e foi medicado e o médico mando-lhe fazer exames. Nessa primeira consulta no Centro de Saúde o B… disse ao médico que tinha sido agredido. Aludiu que já outrora o seu marido havia sido agredido por C… com umas chancas e teve de ir de ambulância para o Hospital. E explicou sem pudores que o seu marido, desde a data dos factos em causa, tem problemas em urinar e dificuldades nas relações sexuais (o que não tinha antes), o que aponta para a brutalidade dos golpes sofridos na parte dos testículos e confirma que insistiu com o B… para ele apresentar queixa.
17.ª - Considerou o Tribunal "a quo" que atenta a prova existente nos autos as lesões sofridas por B… estavam intrinsecamente ligadas ao episódio em discussão, contudo tais lesões terão derivado da defesa de C… contra o ataque pelas costas perpetrado por B…. No entanto, como é que se pode aceitar que B… tenha lesões, nomeadamente nos testículos, se se encontrava a atacar C… pelas costas deste?! Como é que C… ao tentar defender-se do ataque realizado pelas costas, conseguiria atacar B… nos testículos com a brutalidade que atacou, causando-lhe dificuldades de micção e da função sexual. É de conhecimento geral que se o B… fosse golpeado nos testículos por um murro de C… necessariamente se encolheria e libertaria este último, dado o testículo ser um órgão extremamente sensível à dor. É impossível defender que B… estava a sufocar C… e simultaneamente a ser golpeado nos testículos, dado as dores infligidas num homem por um impacto nos testículos serem de tal forma profundas que imediatamente o homem perde as forças colocando-se em posição fetal para diminuir a dor.
18.ª - Os indícios são fortes no sentido de que C… cometeu, na realidade, um crime de ofensa à integridade física, não actuando a coberto de qualquer causa de exclusão da ilicitude, nomeadamente da legítima defesa”.
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Admitido o recurso (despacho a fls. 437) e notificados os sujeitos processuais por ele afectados, quer o Ministério Público, quer o arguido/assistente C… vieram responder à respectiva motivação, ambos pugnando pela sua improcedência.
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Ordenada a subida dos autos ao tribunal de recurso, e já nesta instância, na intervenção a que alude o n.º 1 do art.º 416.º do Cód. Proc. Penal, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta apôs o seu visto.
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Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo apreciar e decidir.

II - Fundamentação
O recorrente B…, na veste de assistente, pretende que o arguido C… seja pronunciado para ser submetido a julgamento pelos factos que enuncia no requerimento de abertura de instrução (RAI) e que, na sua perspectiva, preenchem a previsão da norma incriminadora do artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, configurando-se, assim, o crime de ofensa à integridade física simples.
São as conclusões pelo recorrente extraídas da motivação do recurso que, sintetizando as razões do pedido, recortam o thema decidendum (cfr. artigo 412.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal e, entre outros, o acórdão do STJ de 27.05.2010, disponível em www.dgsi.pt/jstj) e, portanto, delimitam o objecto do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso.
Tal como acontece com o encerramento do inquérito[1], normalmente, a questão central do despacho que encerra a fase de instrução é a de saber se foram recolhidos indícios suficientes (pressuposto fundamental, quer da dedução de acusação, quer da prolação de despacho de pronúncia, pois, de contrário, terá de ser arquivado o inquérito e proferido despacho de não pronúncia) da existência de crime e, na afirmativa, quem foi o seu agente e se este é punível.
As conclusões de recurso devem expressar-se através de proposições sintéticas que emanam do que se expôs e considerou ao longo das alegações e nessas proposições devem estar manifestadas, de forma clara, as razões (de facto e de direito) da discordância do recorrente relativamente à decisão recorrida, a indicação especificada dos fundamentos do recurso.
A exigência legal significa que o recorrente deve fazer uma síntese da substância da fundamentação do recurso para que o tribunal ad quem possa, facilmente, aperceber-se e apreender o que é essencial e não se disperse na apreciação do que é acessório, supérfluo ou inútil na economia da motivação.
O recorrente, manifestamente, não fez o esforço de síntese que lhe é exigível: apesar de ter formulado, “apenas”, 18 conclusões, na sua grande maioria, não são as proposições sintéticas que se espera que a motivação de um recurso contenha.
No entanto, não se mostra necessário fazer uso do poder conferido pelo n.º 3 do artigo 417.º do Cód. Proc. Penal, porquanto é fácil identificar a questão essencial que o recorrente submete à apreciação deste tribunal: se os indícios probatórios recolhidos nas fases preliminares do processo (inquérito e instrução) são de molde a justificar que se leve o arguido C… a julgamento pelos factos descritos no RAI e com o enquadramento jurídico-penal que o assistente lhes deu, ou com outro que se mostre mais correcto.
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Saber quando é que os indícios são suficientes para imputar a alguém a prática de um crime é questão que tem dividido a doutrina e a jurisprudência e por isso justifica-se que nos detenhamos um pouco sobre este ponto.
O n.º 2 do art.º 283.º do Cód. Proc. Penal (aplicável à decisão instrutória por força do disposto no art.º 308.º, n.º 2) diz-nos quando devem considerar-se suficientes os indícios recolhidos: têm essa virtualidade sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.
Ao Ministério Público e ao juiz de instrução exige-se, então, que formule um prognóstico, uma previsão sobre o que acontecerá em julgamento.
Mas a definição legal da suficiência de indícios não nos elucida sobre o significado da expressão “possibilidade razoável” de condenação e é neste ponto que divergem aqueles que têm estudado[2] o tema e também a jurisprudência.
Uma primeira posição (minoritária e que podemos considerar já ultrapassada) defende que a suficiência de indícios basta-se com a mera possibilidade (ainda que diminuta) de futura condenação em julgamento[3].
Uma posição intermédia (denominada teoria da probabilidade dominante, que, reconhecidamente, é a que tem apoio na letra da lei) considera que para acusar ou pronunciar alguém é necessário que, num juízo de prognose, se conclua que é mais provável a sua futura condenação do que a sua absolvição.
Neste sentido, pode ver-se o acórdão do STJ de 08.10.2008 (Cons. Soreto de Barros), acessível em www.dgsi.pt, em que se afirma que «possibilidade razoável» é a que se baseia num juízo de probabilidade, “uma probabilidade mais positiva do que negativa, de que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha”.
Por último, a posição que recolhe os favores da maioria da doutrina advoga ser necessário que dos indícios resulte uma forte ou séria possibilidade de condenação em julgamento.
Fala-se, a este propósito, em “possibilidade particularmente qualificada” ou de “probabilidade elevada” de condenação[4].
Importa, no entanto, realçar que autores há que não autonomizam esta posição da anterior e tanto falam em “alta probabilidade” como em “probabilidade mais forte” de futura condenação do que de absolvição do acusado.
Assim acontece com o Professor Figueiredo Dias (“Direito Processual Penal”, I, 1984, 133) que se pronuncia nos seguintes termos: “os indíci0s só serão suficientes e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando seja mais provável do que a absolvição”.
Assim também o acórdão do STJ de 16.06.2005 (Cons. Pereira Madeira), disponível em www.dgsi.pt, onde pode ler-se que “aquela «possibilidade razoável» de condenação é uma possibilidade mais razoável, mais positiva do que negativa; o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é (mais) provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido ou os indícios são os suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição”.
O Professor Castanheira Neves (“Sumários de Processo Criminal”, lições policopiadas, 1968, 38-39) vai, ainda, mais longe, defendendo que “na suficiência de indícios está contida a mesma exigência de “verdade” requerida pelo julgamento final” ou “um tão alto grau de probabilidade que faça desaparecer a dúvida (ou logre impor uma convicção)”[5].
Feita esta breve incursão pela doutrina e pela jurisprudência sobre o conceito de suficiência de indícios, estamos em condições de nos pronunciarmos sobre o caso concreto.
Antes, porém, uma clarificação se impõe.
Afirma o recorrente que, ao contrário do que decorre da decisão instrutória, o Ministério Público não acolheu a versão dos factos apresentada por C…, segundo a qual este teria sido atacado pelas costas pelo B…, tendo, nessa sequência, apenas procurado defender-se e libertar-se dele.
A precisão a fazer é esta: não é a decisão do Ministério Público ou a versão dos factos que terá acolhido que estão sob escrutínio. É, apenas, a decisão do Juiz de instrução, a decisão instrutória (de não pronúncia) que está a ser sindicada por via do recurso interposto.
A argumentação explanada na motivação do recurso é, no essencial, a mesma que o ora recorrente expendeu no requerimento de abertura de instrução e assenta em duas proposições:
- as lesões que apresentava quando recebeu assistência médica resultaram de acção agressora do C…;
- o arguido C… não agiu a coberto de qualquer causa de justificação, nomeadamente de legítima defesa; houve, sim, agressões físicas recíprocas e a questão de saber quem as iniciou deve ser esclarecida em audiência de julgamento.
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Frequentemente, os tribunais são confrontados com duas versões antagónicas dos acontecimentos e é a situação que aqui se nos depara: os elementos de prova que os autos nos proporcionam são, basicamente, as declarações, contraditórias entre si, do arguido/assistente B…, não corroboradas por qualquer outra prova pessoal, e do arguido/assistente C…, as deste, confirmadas, no essencial, pelo depoimento da sua esposa, a testemunha F….
Quando assim acontece, também é corrente a afirmação de que, havendo duas versões contraditórias entre si sobre o(s) mesmo(s) facto(s), é inevitável ou imperioso concluir por um non liquet e, consequentemente, por força do in dubio pro reo, pela absolvição (ou pela não pronúncia) do arguido.
Porém, não é - nem tem que ser - necessariamente assim. Aliás, na maioria dos casos em que há duas versões antagónicas o resultado do processo probatório não é uma dúvida insuperável que imponha a absolvição do arguido.
Sendo, porventura, aquela que maior importância assume como instrumento essencial de reconstituição dos factos (embora no processo penal não tanto como no processo civil, em que, frequentemente é a única prova existente), à prova pessoal (aqui se incluindo, não só a prova testemunhal, mas também as declarações do arguidos, do assistente e do demandante civil) são apontadas duas importantes fragilidades: a sua falibilidade e a precariedade[6].
Há quem a considere uma prova idónea para proporcionar ao juiz um conhecimento de qualidade singular e quem a caracterize como “prova relativamente sensível e fácil de receber, mas quase sempre muito delicada de apreciar” (F. Gorphe, “Apreciación judicial da las pruebas. Ensayo de um método técnico”, Temis, Bogotá, 1985, p. 221 e segs, citado por Perfecto Andrès Ibañez, Julgar, 13, cit., 169), sendo imperioso ter consciência da complexidade dos processos implícitos (percepção e memória) no acto aparentemente banal de contar o que se viu ou ouviu.
Sendo baseado em memórias empíricas, implicando uma reevocação de uma percepção (sobretudo ocular, mas também auditiva) anterior, o testemunho é particularmente vulnerável a múltiplos factores de distorção e engano que ocorrem ao longo de todo o itinerário da cognição, da memorização e da evocação.
Como é intuitivo, o mais importante desses factores é a passagem do tempo: quanto maior é o lapso de tempo decorrido desde o facto, tanto mais estará desvanecida a residual impressão mnemónica do sujeito activo do reconhecimento e, portanto, menor será a fiabilidade do resultado obtido.
Releva, ainda, o contexto em que ocorre a percepção originária: proximidade em relação ao objecto da observação, tempo de duração da observação, número de pessoas presentes no meio ambiente da observação.
A Sra. Juiz de instrução, posta perante uma “dualidade de versões”, fez uma análise cuidadosa e exaustiva das declarações dos dois protagonistas dos factos e dos depoimentos das pessoas que os presenciaram, como se constata pelo seguinte trecho da fundamentação da decisão instrutória:
“C… apresenta queixa pela ocorrência, na manhã do dia 1 de Junho de 2013, subsequente aos factos – que ambos datam das 18.30h do dia 31 de Maio de 2013 -, sendo que no próprio dia dos mesmos foi assistido no Hospital São Sebastião, em Santa Maria da Feira, apresentando um quadro clínico recheado de lesões na cabeça, cara e um dedo mindinho, parcialmente amputado por mordedura humana.
Por sua vez, B… vem a apresentar queixa apenas a 12 de Julho de 2013 – porventura assim que notificado para se apresentar na GNR a fim de ser ouvido na qualidade de arguido, o que ocorreu em 26 de Julho -, fazendo alusão a diversas lesões, não apresentando, porém, na altura, qualquer ferimento visível, o que determinou não fosse encaminhado para a realização de exame médico-legal – cfr. fls. 100.
C… negou sempre qualquer agressão e veio esclarecer que quando referiu na denúncia que se havia envolvido com B… em “agressões mútuas” queria significar que apenas se tentou defender.
E atentando na parte inicial da frase em que a expressão está inserida, pode ler-se: “o ora denunciante em sua defesa, começou a medir forças com o denunciado, envolvendo-se em agressões mútuas, (…)”.
B… apresenta uma versão dos factos segundo a qual a agressão física teria partido de C…, e ele apenas se havia defendido e tentado “proteger-se”; concretiza as seguintes agressões a si desferidas:
- um murro dirigido à sua face, do lado esquerdo por baixo do olho, que apenas o atingiu de raspão por se ter desviado;
- um murro entre as pernas, “nas partes baixas”, no interior da habitação;
- um murro entre as pernas, no exterior da habitação.
Omite qualquer acto de agressão activa a C…, apenas admitindo ter involuntariamente desferido uma pancada na cabeça daquele ao abrir a porta para tentar escapar para o exterior da habitação, e ter agarrado C… para o impedir de continuar as agressões.
Ora, salvo o devido respeito, esta descrição não merece credibilidade desde logo por contrariar o que resulta dos elementos indiciários colhidos nos autos, a começar pelo registo clínico relativo ao atendimento hospitalar de C… no próprio dia dos acontecimentos, e subsequente exame médico-legal.
Como referimos já, C… apresentava, entre outras, escoriações/feridas várias na zona da cabeça e a amputação da parte superior do dedo mindinho por mordedura humana.
Como se dá nota no relatório do exame médico-legal realizado a C…, tais lesões são compatíveis com o tipo de agressão descrita, sendo aqui de realçar, que a natureza dos ferimentos apresentados por aquele na cabeça, segundo as regras da lógica, nunca poderia ter resultado do simples bater de uma porta na cabeça, sendo antes de crer que derivou do uso por B… de uma chave entre os dedos, como referido por C… e F…, sua mulher, e irmã de B….
A verdade é que B…, tendo esperado mais de um mês para apresentar a sua queixa, já depois de tomar conhecimento da denúncia de C…, tira disso proveito, recorrendo aos vocábulos usados naquela denúncia que lhe poderiam ser favoráveis, como é o caso da expressão “medir forças”, e atribui até a C… uma expressão injuriosa semelhante àquela que contra si fora denunciada (“Ah filho da puta, que eu mato-te já!”).
Acresce ainda, em detrimento da credibilidade de B… que, como assinala o Ministério Público no respectivo despacho de arquivamento, a sua versão dos factos não é corroborada por qualquer dos testemunhos presenciais colhidos.
Assim, nem o cônjuge de C…, irmã de B…, K…, nem a mãe de ambos, L…, tão pouco M… -, imputam a C… actos de agressão sobre B….
K… confirma de forma consistente e coerente a versão dos factos fornecida na denúncia por C… e refere mesmo ter tentado afastar o seu irmão do marido, o que não conseguiu.
Segundo C…, B… havia-o preso por trás com um braço a passar no pescoço, fazendo com que lhe faltasse o ar; ao ponto de nada ouvir e apenas pensar em se libertar do cunhado.
Na realidade, é precisamente nessa posição que a testemunha M.., cuja isenção e credibilidade não está sequer posta em causa, encontra C… e B….
E mesmo N… e O…, casados um com o outro, que acorreram ao local já no final da contenda, quando estavam todos separados, referem que, embora B… tivesse a camisa cheia de sangue na parte da frente, não parecia que tivesse qualquer ferimento – fls. 74 e sgs..
Por fim, diga-se que a mãe de B…, L…, contraria a narração deste na parte em que afirma que nem C… (seu genro) nem a sua filha queriam que ela fosse para casa de B…, assim como refere ter a dada altura caído da cadeira, nada referindo quanto a ter C… deixado a mesma cair quando a levantava da cadeira.
Em suma: B… não merece, a nosso ver, credibilidade pela forma facciosa como apresenta a sua versão dos factos, a qual se mostra, além do mais, absolutamente inverosímil em vários pontos”.
Quando se aprecia a prova testemunhal e se pondera sobre o peso que pode ter na formação da convicção do julgador o depoimento de uma testemunha, é importante e necessário conhecer com precisão a posição dessa testemunha e as suas relações de interesse, de amizade ou de parentesco com os sujeitos processuais para descobrir qual é a possível vantagem que procura obter com um depoimento mentiroso.
No caso, a única testemunha que, reconhecidamente, presenciou os factos e confirma a versão do ocorrido narrada pelo arguido/assistente C… é a esposa deste, a referida F…[7], e essa relação conjugal, inevitavelmente, obriga a que se encare com alguma reserva o seu depoimento, pois dificilmente será totalmente objectiva e isenta.
No entanto, também é bem verdade que, nestas situações, a dúvida que poderá emergir dos depoimentos contraditórios acaba por ser superada através de prova objectiva.
Em determinados tipos de crimes, as evidências médicas e as conclusões das perícias, designadamente das perícias médico-legais, têm uma importância crescente, designadamente pela segurança que proporciona a prova científica e pericial.
Quando a vítima de um crime de ofensa à integridade física faz um relato verosímil da agressão e existem lesões compatíveis medicamente comprovadas (seja através da ficha clínica do hospital, seja através de exame ou perícia médico-legal), quase sempre isso é suficiente para se adquirir a certeza bastante de que a agressão ocorreu.
Não é essa a situação que aqui se apresenta, pois o recorrente não se deslocou, de imediato, a um estabelecimento de saúde para ser observado, como era de elementar bom senso e prudência que fizesse, se, realmente, ficou tão combalido como afirma.
Só ao terceiro dia (no dia 03.06.2013) é que o recorrente procurou assistência médica no Centro de Saúde de … e esse hiato temporal é uma das razões que fazem com que sejam legítimas, pelo menos, as reservas em estabelecer uma relação causal entre o ocorrido no dia 31.05.2013 e as lesões que o arguido/assistente B… apresentava nessa data.
A justificação avançada, de que tinha vergonha de dizer que foi agredido por um cunhado, não faz qualquer sentido, pois o sentimento de vergonha tanto o teria no próprio dia dos factos como ao terceiro dia e, como se verifica pelo documento clínico de fls. 163 dos autos, o recorrente não se coibiu de referir que “foi vítima de violência física por parte do seu cunhado”.
Mas há outras razões para as referidas reservas.
Como se assinalou na decisão recorrida, o recorrente apresentou queixa cerca de um mês e meio depois (no dia 12.07.2013) de terem ocorrido os factos que originaram este processo e relatou então que o arguido C… o agrediu fisicamente e que a agressão se concretizou com um murro dirigido à sua face, do lado esquerdo, por baixo do olho, que apenas o atingiu de raspão, por se ter desviado, e dois murros que o atingiram nas “partes baixas” (querendo aludir aos genitais).
De acordo com o teor da queixa apresentada, destas agressões teriam resultado as seguintes lesões (que correspondem, parcialmente, às descritas no já referido registo clínico de fls. 163): hematoma na zona dos lábios, mordedura no braço direito, arranhão na face do lado esquerdo, por baixo do olho, e escoriações/hematomas na zona das costelas e das costas.
Ora, é patente, se não a incompatibilidade, pelo menos, a incongruência entre os actos de agressão que o recorrente relatou na queixa, de que diz ter sido vítima, e aquelas lesões.
Aliás, as testemunhas N… e O…, que, como reconhece o recorrente, acorreram ao local dos factos e ainda presenciaram o que aconteceu na sua parte final, quando inquiridas na fase de inquérito, afirmaram que o B… não apresentava ferimentos aparentes, visíveis. Ora, as escoriações e os hematomas que este apresentava quando, três dias depois, foi ao Centro de Saúde de … para que lhe fossem prestados cuidados de saúde seriam, necessariamente, visíveis logo após terem sido causados.
Cabe realçar que, também a testemunha H… (indicada pelo ora recorrente no acto de apresentação da queixa e em quem este parece depositar total confiança) foi inquirida na fase de inquérito e declarou “nada saber sobre os factos descritos no presente auto” (referindo-se ao auto em que foi formalizada a queixa).
O recorrente desvaloriza, ignorando-o, esse depoimento, já que, na motivação do recurso, refere-se, apenas, ao depoimento prestado pela mesma testemunha já na fase de instrução (depoimento que transcreve na íntegra) e no qual esta afirma que, afinal, viu o B… com a cara cheia de sangue e até tinha um corte (na face), corte que o registo clínico de fls. 163 não assinala.
Dessa testemunha disse a Sra. Juiz de instrução que “assumiu uma posição claramente tendenciosa, tomando partido de B…” e até “sabia de cor dias e horas em que tinha visto C… trabalhar nas suas terras após os factos, dizendo-o de modo enfático”, mas já “não logrou explicar de forma consistente a razão pela qual, quando ouvida em inquérito (…) referiu nada saber sobre os factos”.
Ouvida a gravação do depoimento (e mesmo com a leitura da sua transcrição), a ideia que transmite é a de que tal depoimento teve ensaio prévio.
Ora, se há sistemas jurídicos em que a prévia preparação do depoimento de uma testemunha por quem a oferece é considerado um procedimento normal, no nosso ordenamento jurídico privilegia-se a espontaneidade e a sinceridade das respostas (cfr. n.º 2 do artigo 138.º do Cód. Proc. Penal). De modo que a falta de espontaneidade revelada por uma testemunha não pode deixar de afectar a sua credibilidade.
É perfeitamente normal que a mesma pessoa relate o mesmo acontecimento em termos não coincidentes em momentos temporais distintos[8].
Já não o será quando os relatos são o oposto um do outro, como acontece com os depoimentos da testemunha H… que passou do “nada saber sobre os factos” para o saber, até com algum pormenor, que lesões apresentava o B… após o ocorrido[9].
Por isso são justificadas as reservas que mereceu à Sra. Juiz de instrução o depoimento desta testemunha.
Mas não ficam por aqui as razões que tornam legítimas as dúvidas quanto à existência de nexo causal entre o ocorrido no dia 31.05.2013 e as lesões que o arguido/assistente B… apresentava.
Reportamo-nos agora às dores nos testículos e às dificuldades de micção e na função sexual de que o recorrente se queixou em 17.07.2013 (cfr. registo clínico a fls. 164), atribuindo-as à agressão (com murros desferidos pelo C…) que teria sofrido no dia 31.05.2013.
Não pode deixar de se estranhar que o recorrente só passado um mês e meio tenha sentido dores testiculares.
O que seria normal é que tivesse ficado dorido logo após a alegada agressão a murro. De resto, a testemunha H… diz que o viu “todo encolhido” e a queixar-se das “partes baixas”.
Apesar de, segundo afirma, ter ficado com “os testículos inchados e vermelhos”, não se queixou quando, no dia 03.06.2013, foi ao Centro de Saúde de … para receber cuidados médicos.
Apesar destas dúvidas, dúvidas razoáveis, a Sra. Juiz de instrução considerou verosímil que as lesões verificadas em B… tenham resultado de acção do arguido C….
Porém, dúvidas não teve de que terão sido provocadas quando o C… procurava defender-se do ataque, inesperado e traiçoeiro, que o B… lhe lançou.
Para justificar essa conclusão, discorreu assim:
“Sucede que, mesmo admitindo como provável que todas estas lesões hajam sido ocasionadas durante o episódio em discussão, face aos demais elementos indiciários colhidos nos autos, atrás analisados, tudo aponta para que tenha sido B…, de 47 anos de idade, a iniciar o processo de agressão física, surpreendendo C…, com 64 anos (17 anos mais velho) pelas costas, e quando estaria em plano inferior ao seu, o que permitiu a B… o grau de eficácia ilustrado no registo clínico do episódio de urgência em que C… foi atendido, no próprio dia dos acontecimentos.
É, por isso, de admitir como verosímil ter C… ocasionado as lesões verificadas em B… ao defender-se do ataque por este perpetrado.
Como é, aliás, do conhecimento geral, os golpes desferidos na zona testicular são normalmente eficazes na imobilização de um agressor do sexo masculino, sendo que, realizados com murros (e não pontapés) não deixam de constituir indício de que este agressor se encontra num plano superior em relação ao agredido; o que condiz com a narração de C… segundo a qual quando recebeu as primeiras agressões estava abaixado junto da sua sogra.
Segundo C…, B… tê-lo-á atacado por trás, com golpes na cabeça, agarrando-o com o outro braço na zona do pescoço, por forma que o impedia de respirar; de acordo com a sua descrição, que assoma como lógica e consistente, ficou nessa sequência abalado na sua consciência, com o sentido da audição toldado (deixou de ouvir), e só pensava em libertar-se de B…, o que, em desespero, por via da “falta de ar”, justifica que usasse os dentes para morder o punho do braço que o prendia junto ao pescoço, assim como que, com os braços e mãos, procurasse libertar-se, arranhando o agressor no rosto e tronco, golpeando-o ainda na zona testicular com murros.
E é este estado de desespero e luta pela sobrevivência que pode explicar não ter C… logo sentido a perda da extremidade superior do dedo mindinho por mordedura do seu agressor, agressão esta absolutamente compatível com a narração acabada de descrever, em que C… usava as mãos para se defender.
Ou seja, mostra-se, pois, completamente verosímil a versão de C… segundo a qual a iniciativa da agressão partiu de B…, havendo apenas procurado defender-se, o que fez usando os membros livres, braços e mãos, para ir desferindo golpes no seu agressor; o próprio B… menciona sempre agressões perpetradas por C… com as mãos (“murros”).
E tal conclusão não resultou minimamente abalada pela prova produzida em sede de instrução.
As declarações do arguido não revelaram qualquer contradição, mostrando-se fiéis à versão que deu dos factos logo com a denúncia e posteriormente reiterada em declarações”.
O raciocínio inferencial que levou a Sra. Juiz de instrução a concluir que todos os actos praticados pelo arguido C… que poderão ter atingido a integridade física do arguido/assistente B… foram-no enquanto estava a ser ilicitamente agredido por este é lógico, é fundado, é correcto.
O recorrente afirma que o tribunal “andou manifestamente mal” ao decidir não pronunciar o arguido C….
Com todo o respeito devido por tal opinião, o que se nos afigura, face aos indícios probatórios reunidos, é que o tribunal esteve manifestamente bem ao decidir-se pela não pronúncia.
A manterem-se em audiência os elementos de prova existentes, pode falar-se em quase certeza de absolvição se o arguido C… fosse levado a julgamento, pronunciado pelo crime de ofensa à integridade física simples que o recorrente lhe imputa.
A submissão a julgamento em processo crime é sempre socialmente estigmatizante e, havendo uma elevada probabilidade de absolvição, é politico-criminalmente desnecessário, e até contraproducente, o contacto com o sistema de justiça, pelo que não se justifica, de todo, uma acusação ou uma pronúncia.

III Dispositivo
Pelo exposto, acordam os juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao presente recurso e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Por ter decaído, pagará o recorrente taxa de justiça que se fixa em quatro UC´s (artigos 515.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Cód. Proc. Penal, 1.º, n.º 2, e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais).
(Processado e revisto pelo primeiro signatário, que rubrica as restantes folhas).

Porto, 28-10-2015
Neto de Moura
Maria Luísa Arantes
__________
[1] Nos termos do art.º 283.º do Cód. Proc. Penal, o Ministério Público deduz acusação quando tiverem sido recolhidos “indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente” e no art.º 308.º substituiu-se o termo “crime” por “pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança”, expressão que corresponde à definição de crime que, “para efeitos do disposto no presente Código”, se contém no art.º 1.º do Cód. Proc. Penal.
[2] Cfr. Jorge Noronha e Silveira, “O conceito de indícios suficientes no Processo Penal Português”, in “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, organizadas pela FDL e pelo C.D. de Lisboa da Ordem dos Advogados, em 2004, págs. 155 e segs., estudo de que, neste ponto, vamos servir-nos.
[3] Parece ser esta a posição de Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, vol. III, 1994, 183) quando afirma: “para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige, pois, a prova, no sentido da certeza moral da existência do crime, basta-se com a existência de indícios, de sinais da ocorrência de um crime, donde se pode formar a convicção de que existe uma possibilidade de que foi cometido o crime pelo arguido”.
[4] Assim, Jorge Gaspar (“Titularidade da Investigação Criminal e Posição Jurídica do Arguido”, Revista do Ministério Público, n.º 88, 101 e segs.), Carlos Adérito Teixeira (“Indícios Suficientes”: Parâmetros de racionalidade e “instância de legitimação”, Revista do CEJ, n.º 1, 160) e Paulo Dá Mesquita “(“Direcção do Inquérito Penal e Garantia Judiciária”, 2003, 90 e segs.).
[5] Posição perfilhada por Jorge Noronha e Silveira, estudo citado, 171, pois considera que entre juízo de probabilidade (próprio da fase de instrução) e juízo de certeza (da fase de julgamento) não existe uma diferença essencial.
Na mesma linha, parece estar António Cluny que afirma: “A decisão de acusar deve basear-se já num juízo muito próximo do que preside à decisão do juiz: Por um lado, porque ela se constitui como um pré-juízo fundado na mesma teleologia; por outro, porque a metodologia que preside à investigação incorpora valores e alguns métodos em tudo semelhantes aos usados pelo juiz com vista à decisão” (Pensar o Ministério Público Hoje”, 1997, 49).
[6] As razões são “por um lado (…), o perigo do erro na percepção e do desgaste na memória da testemunha. Mesmo em relação às testemunhas presenciais de um facto, muitas vezes ocorre, especialmente quanto aos aspectos secundários da ocorrência, que cada pessoa viu a coisa a seu modo, com versões diferentes da mesma realidade. Além disso, o tempo exerce uma acção poderosa de erosão das vivências de cada facto na memória da generalidade das pessoas (…). Por outro lado, há que contar ainda, na apreciação da prova, com o risco da parcialidade da testemunha, expresso principalmente na omissão de factos capazes de prejudicar a parte que a indicou” (Antunes Varela e outros, “Manual de Processo Civil”, 2.ª edição, 1985, 614-615; no mesmo sentido, Manuel Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, 1979, 276-277).
[7] Também a testemunha L…, respectivamente, mãe do arguido B… (e da K…) e sogra do arguido C… presenciou os factos, mas o depoimento que prestou nada esclareceu (porventura porque não quis comprometer nem um nem outro), podendo considerar-se praticamente irrelevante.
[8] Tal como não constitui uma raridade que haja discrepâncias entre o que se disse e o que ficou consignado em auto porque quem recebe os depoimentos não apreendeu correctamente o sentido da declaração prestada pelo declarante.
[9] A testemunha H… chegou a declarar (no depoimento prestado no inquérito) que no dia seguinte àquele em que ocorreram os factos (ou seja, já no dia 01.06.2013) viu o C… a fazer os trabalhos agrícolas, incluindo a conduzir um tractor agrícola. Isto apesar de as reproduções fotográficas que estão a fls. 18 e segs evidenciarem que saiu bastante maltratado do episódio violento que protagonizou.