Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3297/20.6T8OAZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULA LEAL DE CARVALHO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
DESCARACTERIZAÇÃO
NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
NEXO DE CAUSALIDADE
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RP202307123297/20.6T8OAZ.P1
Data do Acordão: 07/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; CONFIRMADA A SENTENÇA
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO SOCIAL
Área Temática: .
Sumário: I - Para que se verifique a causa de exclusão do direito à reparação prevista na al. b), do nº 1, do art. 14º, Da Lei 98/2009, é necessário que o evento seja imputado, mediante o estabelecimento do nexo de causalidade, exclusivamente, ao comportamento grosseiramente negligente do sinistrado.
II - O ónus de alegação e prova dos factos integradores da descaracterização do acidente de trabalho recaem sobre a entidade responsável pela reparação do mesmo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Procº nº 3297/20.6T8OAZ.P1

Relator: Paula Leal de Carvalho (Reg. nº 1340)
Adjuntos: Des. Rui Penha
Des. Jerónimo Freitas





Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório

AA, patrocinado pelo Ministério Público, propôs a presente ação declarativa de condenação, processo especial emergente de acidente de trabalho, contra A..., Unipessoal, Lda, pedindo a condenação desta no seguinte:
I - O capital de remição de uma pensão anual e vitalícia no montante de €331,49, devida a partir de 17-4-2021, calculada com base na retribuição anual ilíquida de €11.988,30 e na IPP de 3,9502%.
II - A quantia de €6.276,61, a título de indemnização pelo período de incapacidade temporária absoluta sofrido.
III - A quantia de €25,00, respeitante a despesas de transporte com as suas deslocações obrigatórias ao GML de Entre Douro e Vouga e a este Juízo do Trabalho de Oliveira de Azeméis.
IV - Juros de mora já vencidos e os vincendos, à taxa legal de 4%, contados a partir do vencimento das obrigações e até efetivo e integral pagamento.
Para tanto alegou, em síntese, que sofreu um acidente de trabalho de que resultaram lesões que exigiram tratamentos e deixaram sequelas, pelo que tem direito às prestações pedidas.

A Ré contestou alegando, em síntese, que o acidente ocorreu por negligência grosseira do A.

Foi proferido despacho saneador, enunciado o objeto do litígio, consignada a matéria de facto assente e elencados os temas da prova e, realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que decidiu nos seguintes termos:
“Pelo exposto, julgo procedente a ação e, em consequência, declaro que o autor sofreu um acidente de trabalho em 17 de julho de 2020 que lhe determinou uma incapacidade de 3,9502% com consolidação das lesões em 16 de abril de 2021 e, por conseguinte, condeno a ré a pagar ao autor as seguintes quantias:
O capital de remição de uma pensão anual e vitalícia, no valor de €331,49, a vencer-se a partir de 17 de abril de 2021 e acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde essa data até integral pagamento;
A quantia de €6.276,61, a título de indemnização por incapacidades temporárias, acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde o vencimento de cada prestação mensal até integral pagamento; e
A quantia de €25 a título de despesas de deslocação, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde o dia seguinte à tentativa de conciliação até integral pagamento.
Mais condeno a ré no pagamento das custas.
Valor da causa: €11.657,82.”

Inconformada, a Ré recorreu, tendo formulado as seguintes conclusões:












O Recorrido contra-alegou, tendo formulado as seguintes conclusões:
“1. Decorre da motivação de recurso que considera a recorrente ter ocorrido erro de julgamento notório e grave quanto aos factos, não quanto aos provados dado que não impunha especificadamente nenhum deles, mas porque considera que à matéria de facto provada devem ser aditados outros.
2. Assim, não indicando o recorrente os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, pois transcreve a totalidade dos factos provados da sentença, limitando-se a dizer que a estes haverá que aditar aqueles, incumpre o ónus que sobre si impende, nos termos do artigo 640.º, n.º1, alínea a) do Código de Processo Civil aqui aplicável por força do artigo 1.º, n.º2, alínea a) do Código de Processo do Trabalho.
3. Do depoimento da testemunha BB, decorre que a mesma não presenciou o evento, encontrava-se no interior da oficina a cerca de 10 metros, apenas se tendo apercebido da sua ocorrência, já depois do mesmo ter sucedido quando ouviu o sinistrado a pedir para desligar o carro.
4. Apenas viu que o sinistrado ficou com os dedos ensanguentados, sabendo que tinha ficado com os dedos presos na correia da ventoinha, mas não tendo visto como isso sucedeu (vide depoimento BB, minuto 06m30s), tendo dito claramente não saber se foi o sinistrado que ali colocou voluntariamente os dedos, nomeadamente para a reparação (vide depoimento BB, minuto 08h25m).
5. Ou seja, este depoimento de modo nenhum infirma o depoimento de parte prestado pelo A. (declarações de AA, gravadas no sistema HabilusMedia Studio) e que esclareceu que o acidente ocorreu no exterior da oficina quando o seu patrão CC o chamou para o ajudar a fazer o diagnóstico de um carro que fazia um barulho, tendo para tanto, se debruçado sobre a viatura e apoiou-se com as mãos no chassis, altura em que a sua mão esquerda escorregou e caiu sobre a correia que, como o carro estava em funcionamento, lhe apanhou a mão.
6. Efetivamente, no minuto 02m20s das declarações do A., questionado sobre se foi com a mão à correia disse claramente que não, admitindo que pudesse ter as mãos um pouco sujas de óleo porque nesse dia já tinha estado a limpar ferramentas e que poderia ter sido isso que fez com que a palma da mão deslizasse.
7. Questionado sobre onde se apoiou disse que tinha sido no chassis na parte interior, não se tendo apoiado em nenhuma peça amovível ou que se estivesse a mexer (minuto 06m35 e minutos 10m55s), tendo dúvidas que as fotografias juntas aos autos digam respeito à viatura em causa ou à situação da viatura em causa no momento do evento.
8. Mas mais do que isso, não só este depoimento não afasta as declarações do A., única pessoa que efetivamente o presenciou, dado que os demais presentes só se aperceberam quando já estava com a mão ensanguentada, como não foi feita qualquer prova dos factos que a recorrente entende estarem provados, isto é, o de que o sinistrado colocou voluntariamente a mão na correia em funcionamento.
9. Efetivamente, a prova desses factos indicados acima não resulta de maneira alguma do depoimento da testemunha indicada que em momento nenhum o afirma, muito pelo contrário diz claramente não saber se foi o sinistrado que ali colocou voluntariamente os dedos, nomeadamente para a reparação (vide depoimento BB, minuto 08h25m), nem qualquer outra prova foi produzida nesse sentido.
10. Efetivamente, tal versão ventilada pelo recorrente nem sequer se sustenta confrontada com as regras da experiência comum. Em primeiro lugar, todos afirmam - A., R. e testemunha - que o A. estava ali apenas para fazer o diagnóstico, não para reparar a viatura naquele local, estava tão só à entrada da oficina, o que nunca lhe foi pedido, nem aquele pretendia fazer, nem faria sentido que o fizesse, muito menos colocando voluntariamente a sua mão desprotegida numa correia em funcionamento, o que repugna qualquer pessoa comum por ser evidente que tal ato resultaria obviamente em lesão física.
11. E mais, mesmo que o A. o tivesse feito numa tentativa extremamente audaciosa de tentar consertar a viatura desse modo, dificilmente o faria daquele modo dado que, como o A. esclareceu é destro (declarações do A., minuto 14h55m) e a mão acidentada foi a esquerda. Ora, não faz sentido nesta teoria que uma pessoa destra querendo reparar arrojadamente a viatura daquele modo colocasse a mão esquerda e não a direita.
12. Consequentemente, encontram-se demonstrados todos os elementos exigidos pelo artigo 8.º da Lei n.º 98/2009 de 04.09 e que integram o conceito de acidente de trabalho, inexistindo qualquer facto que determine a sua descaracterização nos termos do artigo 14.º do mesmo diploma legal, pelo que os danos resultantes daquele acidente devem ser indemnizados, nos exatos termos determinados na sentença, isto é, não tendo a entidade patronal a responsabilidade infortunística transferida para nenhuma seguradora com o competente contrato de seguro, respondendo a mesma pelo pagamento do capital de remição da pensão fixada em função da retribuição anual e do coeficiente de incapacidade permanente parcial, da indemnização devida pelos períodos de incapacidade temporária absoluta e despesas de deslocação.
*
Em face do exposto, entendemos que o tribunal recorrido apreciou corretamente os factos e o direito aplicável, pelo que deve ser negado provimento ao recurso interposto pelo recorrente, mantendo-se a decisão recorrida, (…)”

O Ministério Público não emitiu parecer uma vez que patrocina o A.

Colheram-se os vistos legais.
***
II. Decisão da matéria de facto proferida pela 1ª instância
Na 1ª instância foi proferida a seguinte decisão quanto à matéria de facto:
“1. Factos provados:
1. No dia 17-7-2020, pelas 9:40 horas, nas instalações da ré, em Albufeira, o autor foi vítima de acidente.
2. Em 17-7-2020, o autor trabalhava então, como mecânico de automóveis, sob as ordens, direção e fiscalização da ré, mediante vencimento mensal de €705,00, percebido 14 vezes ao ano, acrescido de €135,30 x 11 meses de subsídio de alimentação.
3. Em virtude das lesões sofridas, esteve afetado de incapacidade temporária absoluta (ITA), no período de 18-7-2020 a 16-4-2021(273 dias).
4. Na perícia de avaliação do dano corporal, o Perito do GML de Entre Douro e Vouga fixou a consolidação médicolegal das lesões no dia 16-4-2021 e, mercê das referidas sequelas, arbitrou ao autor um coeficiente de desvalorização de 3,9502%, a título de IPP.
5. O autor nada recebeu da ré a título de indemnização pelos períodos de incapacidade temporária sofridos.
6. Gastou a quantia de €25,00 em despesas de transporte, com as suas deslocações obrigatórias ao referido GML e a este Juízo do Trabalho de Oliveira de Azeméis.
7. À data do acidente, a ré não tinha transferida para qualquer seguradora a responsabilidade infortunística derivada de sinistros ocorridos com o autor no exercício das suas referidas funções de mecânico de automóveis.
8. Na tentativa de conciliação, realizada a 2-3-2022, o autor concordou com o coeficiente de desvalorização que lhe foi atribuído pelo Perito do GML de Entre Douro e Vouga. Reclamou da ré o pagamento do capital de remição de uma pensão anual e vitalícia no montante de €331,49, devida a partir de 17-4-2021, calculada com base na retribuição anual ilíquida de €11.988,30 e na IPP de 3,9502%. Mais reclamou o pagamento da quantia de €25,00, relativa a despesas de transporte com as aludidas deslocações obrigatórias, bem assim como da quantia de €6.276,61, respeitante a indemnização pelo período de incapacidade temporária absoluta sofrido. Por sua vez, a ré aceitou a existência do acidente, a categoria profissional e a retribuição do autor. Porém, não aceitou a caracterização do acidente como de trabalho, o nexo de causalidade entre o mesmo e as lesões sofridas, bem assim como a data da consolidação médico-legal das lesões, o período de ITA e o coeficiente de desvalorização arbitrado pelo Perito do GML de Entre Douro e Vouga e, consequentemente, nada aceitou pagar ao mesmo, a título de capital de remição ou a qualquer outro título.
9. O referido acidente consistiu em, quando efetuava o diagnóstico de uma viatura, ao aproximar-se para verificar de onde vinha um barulho, ficou com a mão esquerda entalada na correia auxiliar do motor.
10. O motor do veículo estava a trabalhar e as correias da ventoinha e da bomba de água estavam em movimento.
11. Em consequência do acidente, o autor sofreu esfacelo do 4º e 5º dedos da referida mão, foi assistido no Centro de Saúde de Albufeira e sucessivamente transferido para o Hospital de Faro e para o Centro Hospitalar de Lisboa Norte, onde foi submetido a intervenção cirúrgica para correção dos esfacelos (a do 4º dedo pela técnica cross-finger com enxerto do 3º dedo) e, como sequela daquele evento, apresenta:
- Diminuição da força de preensão da mão;
- no 4º dedo: complexo cicatricial com zonas de pele luzidia, indolor, abrangendo a face dorsal das falanges intermédias e distal e face palmar da falange intermédia, medindo 4 cm de maiores eixos; perda de substância do bordo medial da falange distal e da unha; falange distal em flexão permanente condicionando deformidade em martelo; anquilose da articulação interfalângica distal; funcionalmente não consegue enrolar completamente o dedo.
- no 5º dedo: complexo cicatricial indolor, distrófico, com pontos enegrecidos, abrangendo a face dorsal das falanges intermédia e distal, com perda de substância da falange distal e fragmento de unha distrófica, medindo 4 cm de eixo maior por 2 cm de eixo menor; cicatriz estendendo-se da face palmar do 4º espaço interdigital até à face palmar da falange proximal, medindo 3 cm de comprimento; falange distal em flexão permanente condicionando deformidade em martelo; anquilose da articulação interfalângica distal; funcionalmente não consegue enrolar completamente o dedo.
-3º dedo: complexo cicatricial irregular, indolor, na face dorsal da falange intermédia, medindo 2 cm de eixo maior por 2 cm de eixo menor; sem rigidez das articulações metacarpofalângica e interfalângicas.

2. Factos não provados:
1. Ao apoiar a mão esquerda na longarina, esta estava com óleo e a mão escorregou.
2. O autor estava a verificar a folga da corrente da ventoínha e da bomba de água.
3. O autor foi avisado para usar luvas e não o fez.”
***
III. Objeto do recurso

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, não sendo lícito ao tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo porém as matérias que sejam de conhecimento oficioso, (arts. 635, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC aprovado pela Lei 41/2013, de 26.06, aplicável ex vi do art. 1º, nº 2, al. a), do CPT aprovado pelo DL 295/2009, de 13.10, alterado, designadamente, pela Lei 107/2019).
Assim, são as seguintes as questões suscitadas pelo Recorrente:
- Impugnação da decisão da matéria de facto;
- Descaracterização do acidente como acidente de trabalho por negligência grosseira do sinistrado.
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IV. Fundamentação

1. Impugnação da decisão da matéria de facto

A recorrente impugna a decisão da matéria de facto, pretendendo que seja aditada à decisão da matéria de facto os pontos 11, 12, 13 e 14 referidos nas conclusões do recurso, o que sustenta no depoimento da testemunha BB, cujo excerto transcreve, com indicação dos minutos da gravação.
O Recorrido invoca o incumprimento do disposto no art. 640º, nº 1, al. a), do CPC por, pese embora a Recorrente refira o que pretende que seja dado como provado, não ter indicado, todavia, os factos de cuja decisão discorda.
Nos termos do citado preceito o Recorrente, sob pena de imediata rejeição da impugnação da decisão da matéria de facto, deve, para além dos demais requisitos, indicar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, requisito este que, como entendemos, deve ser cumprido também nas conclusões uma vez que são estas que delimitam o objeto do recurso.
No caso, a matéria que a Recorrente pretende que seja dada como provada foi alegada na contestação (cfr. designadamente arts. 6, 7 e 8), sendo que o nº 11 que a Recorrente pretende que seja aditado, consta, no essencial, do nº 2 dos factos não provados, pelo que, em bom rigor deveria a Recorrente ter aludido a tal ponto. Não se nos afigura, contudo, que tal omissão seja determinante da rejeição do recurso, sendo que, do aditamento referido pela Recorrente, logo, e sem esforço ou dúvida, se retira que está a impugnar o nº 2 dos factos não provados.
Quanto ao mais, a matéria pretendida não consta da decisão da matéria de facto, pelo que, pese embora devesse a Recorrente ter-se reportado aos arts. da contestação a que a mesma se reporta, eles são facilmente identificáveis e, tendo ainda em conta a simplicidade e facilidade de apreensão do concreto objeto da discordância, mormente através da indicação dos pontos que pretende que sejam dados como provados e que foram cumpridos os demais requisitos, não se vê que haja razão para a rejeição da impugnação, sendo que a apreciação do cumprimento de tais requisitos deve, também ser pautada por um juízo de proporcionalidade.
Assim, não se rejeita a impugnação.

1.1. Importa referir que à decisão da matéria de facto, seja da provada, seja da não provada, deverão ser levados factos e não já matéria de direito, conclusiva ou contendo juízos de valor.
Com efeito:
Dispõe o art. 607º, nºs 3 e 4, do CPC/2013, referentes à sentença, também aplicável aos procedimentos cautelares, que “3. Seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os facos que considera provados (…)” e “4. Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, (…)”.
De acordo com o Professor José Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, 4ª Edição, págs. 206 a 215:
“(…)
a) É questão de facto tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior;
b) É questão de direito tudo o que respeita à interpretação e aplicação da lei;
(…)
Entendemos por factos materiais as ocorrências da vida real, isto é, ou os fenómenos da natureza, ou as manifestações concretas dos seres vivos, nomeadamente os actos e factos dos homens.
(…)”
Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, 1982, Almedina, diz que “(…). A aplicação da norma pressupõe, assim primeiro, a averiguação dos factos concretos, dos acontecimentos realmente ocorridos, (…), Esses factos e a averiguação da sua existência ou não existência constituem, respectivamente, os factos e o juízo de facto – juízo histórico dirigido apenas ao ser ou não ser do facto.
(…).
Igualmente indiferente é a via de acesso ao conhecimento do facto, isto é, que ele possa ou não chegar-se directamente, ou, somente através de regras gerais e abstractas, ou seja, por meio de juízos empíricos (as chamadas regas da experiência). (…).”.
Na jurisprudência, entre muitos outros, relevantes são os Acórdãos do STJ de 21.10.09, in www.dgsi.pt (Processo nº 272/09.5YFLSB), que, a propósito do art. 646º, nº 4, do anterior CPC refere que “(…) É assim, como se observou no Acórdão desde Supremo de 23 de setembro de 2009, publicado em www.dgsi.pt (Processo n.º 238/06.7TTBGR. S1), «[n]ão porque tal preceito, expressamente, contemple a situação de sancionar como não escrito um facto conclusivo, mas, como tem sido sustentado pela jurisprudência, porque, analogicamente, aquela disposição é de aplicar a situações em que em causa esteja um facto conclusivo, as quais, em retas contas, se reconduzem à formulação de um juízo de valor que se deve extrair de factos concretos objeto de alegação e prova, e desde que a matéria se integre no thema decidendum.»
Só os factos concretos — não os juízos de valor que sejam resultado de operações de raciocínio conducentes ao preenchimento de conceitos, que, de algum modo, possam representar, diretamente, o sentido da decisão final do litígio — podem ser objeto de prova.
Assim, ainda que a formulação de tais juízos não envolva a interpretação e aplicação de normas jurídicas, devem as afirmações de natureza conclusiva ser excluídas da base instrutória e, quando isso não suceda e o tribunal sobre elas emita veredicto, deve este ter-se por não escrito. (…)».
Importa, todavia, ter também em conta, designadamente, o entendimento preconizado pelo STJ no seu Acórdão de 24.09.2008, in www.dgsi.pt, Proc. 07S3793, a propósito do seguinte ponto da decisão de facto que em tal processo havia sido dada como provada: “todas as funções estão preenchidas por pessoal especificamente formado, não existindo vagas cujas funções possam ser atribuídas ao A.”. Aí se entendeu que tal resposta contém ou traduz um sentido de facto, revelando dados ou ocorrências de vida real, “não lhe retirando essa natureza, a circunstância de se estar, digamos, perante uma resposta ampla ou de síntese, que fez um “apanhado” de dados diversos, certamente equacionados e abordados em sede de julgamento”.
E também o Acórdão do STJ de 14.07.2021, Proc. 19035/17.8T8PRT.P1, in www.dgsi.pt, do qual se retira que mesmo que a resposta, tendo embora uma componente conclusiva, se ainda assim tiver um substrato de facto relevante, não deve ser tido como não escrito, referindo em tal aresto o seguinte:
“(…)
Mas mesmo sem ir tão longe e admitindo que o Tribunal possa excluir factos genuinamente conclusivos, importa ter em conta que, como já referiu este Supremo Tribunal:
“Torna-se patente que o julgamento da matéria de facto implica quase sempre que o julgador formule juízos conclusivos, obrigando-o a sintetizar ou a separar os materiais que lhe são apresentados através das provas. Insiste-se: o que a lei veda ao julgador da matéria de facto é a formulação de juízos sobre questões de direito, sancionando a infração desta proibição com o considerar tal tipo “[de juízos como não escritos. Conforme já pusemos em relevo noutra ocasião (Ac. de 7.4.05, proferido na Revª 186/05, subscrito pelos mesmos juízes deste), não pode perder-se de vista que é praticamente impossível formular questões rigorosamente simples, que não tragam em si implicados, o mais das vezes, juízos conclusivos sobre outros elementos de facto; e assim, desde que se trate de realidades apreensíveis e compreensíveis pelos sentidos e pelo intelecto dos homens, não deve aceitar-se que uma pretensa ortodoxia na organização da base instrutória impeça a sua quesitação, sob pena de a resolução judicial dos litígios ir perdendo progressivamente o contacto com a realidade da vida e assentar cada vez mais em abstrações (e subtilezas jurídicas) distantes dos interesses legítimos que o direito e os tribunais têm o dever de proteger. E quem diz quesitação diz também, logicamente, estabelecimento da resposta, isto é, incorporação do correspondente facto no processo através da exteriorização da convicção do julgador, formada sobre a livre apreciação das provas produzidas” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/11/2007, processo n.º 07A3060, NUNO CAMEIRA).
Importa, pois, verificar se o facto mesmo com uma componente conclusiva, não tem ainda um substrato relevante para o acervo dos factos que importam para uma decisão justa.
(…)”

1.1.1. No caso:
O nº 12 que a Recorrente pretende que seja dado como provado [“12. E, contrariamente às regras da arte, e aquilo que um trabalhador e mecânico diligente deve fazer, nunca pode verificar a folga da corrente da ventoinha, ou da bomba de água com o motor a trabalhar”] tem natureza meramente conclusiva e/ou de direito, sem substrato fático que lhe permita ser considerado como um facto, pelo que nunca poderia ser levado à decisão da matéria de facto provada, pelo que nesta parte se indefere a impugnação.
E o mesmo se diga quanto ao nº 13, na parte em que se refere que “(…) de forma grosseiramente negligente e voluntaria, […]”, que é um juízo conclusivo e jurídico, pelo que também nesta parte se indefere a impugnação.
A impugnação é, contudo, admissível, quanto ao segmento em que se refere “13. A. (…), foi com a mão verificar a folga das correntes quando o motor estava a trabalhar” e, bem assim, quanto ao segmento em que se refere que “O acidente não resultou da mão do A. ter escorregado, mas da tentativa de verificação intencional da folga da correia da ventoinha”.
É de esclarecer que no nº 1 dos factos não provados já consta que: “1. Ao apoiar a mão esquerda na longarina, esta estava com óleo e a mão escorregou”. Não obstante, de um facto ser dado como não provado, não resulta a prova do facto contrário, ou seja, no caso, da circunstância de se ter dado como não provado que a mão escorregou, resulta apenas que é como se o facto não existisse, ficando-se sem saber se escorregou ou não. Ora, assim sendo, mantém pertinência a impugnação da Recorrente ao pretender que seja dado como provado que a mão não escorregou.
Quanto ao nº 14 que a Recorrente pretende aditar é o mesmo totalmente conclusivo, contendo matéria de direito, pelo que nunca poderia ser levado aos factos provados, impugnação que, assim, se indefere.

Assim, e em conclusão, apreciar-se-á da impugnação no que concerne à seguinte factualidade:
- “ O A. pretendeu verificar se a correia da ventoinha e da bomba de água estava sem folga e devidamente apertada”;
-“O A. (…), foi com a mão verificar a folga das correntes quando o motor estava a trabalhar”;
- “O acidente não resultou da mão do A. ter escorregado, mas da tentativa de verificação intencional da folga da correia da ventoinha”.

1.2. Na fundamentação da decisão da matéria de facto foi referido o seguinte:
“A questão que se coloca é a de saber como ocorreu o acidente. Só o gerente da ré e o sinistrado depuseram diretamente sobre esta questão, pois a testemunha BB só foi ao local com os gritos do sinistrado e já nem o viu com a mão presa e a testemunha DD não estava presente. O gerente da ré e o sinistrado estão de acordo nos seguintes factos: estavam a fazer o diagnóstico do veículo para verificarem de onde vinha um barulho, para o que tinham que ter o motor a trabalhar com as correias em movimento, não estavam a fazer a reparação e o sinistrado ficou com os dedos presos nas correias. Existe alguma divergência quanto ao que aconteceu: o sinistrado diz que se apoiou com a mão esquerda na longarina e como a mão tinha óleo escorregou e ficou entalada na correia; enquanto o gerente da ré diz que o acesso a essa longarina é difícil e, por isso, só pode ter sido propositado. Não existem elementos de prova que apoiem as versões apresentadas, parecendo-nos que é muito mais lógico que o sinistrado tenha apoiado a mão no interior do veículo, em algum local, que escorregou, do que ter-se aleijado propositadamente. É certo que as fotografias apresentadas [que não podemos confirmar se são do veículo em causa, pois o sinistrado teve dúvidas e a testemunha BB referiu que se tratava de um carro cinzento e o carro da fotografia parece azul] mostram que o acesso à referida longarina tem alguns tubos no caminho e, por isso, a colocação da mão não era direta, mas o sinistrado também não disse que a sua mão escorregou lá para dentro, mas que colocou a mão propositadamente na longarina e, então, é que ela escorregou, o que afasta a dificuldade do evento ter decorrido como descreve, na medida em que tinha primeiro que passar pelos tubos e colocar a mão e, só então, esta escorregava, não escorregando diretamente até à correia auxiliar do motor. Por estes motivos e com estas dúvidas, só consideramos provados os elementos comuns das versões apresentadas e não os elementos divergentes.
No resto, não foi produzida qualquer prova.”

2. A Recorrente invoca o excerto do depoimento da testemunha BB, que transcreve, tendo-se procedido à audição integral do seu depoimento, assim como se procedeu à audição integral das declarações de parte prestadas pelo A. e pelo legal representante da Ré, CC, tendo-se também observado as fotografias juntas aos autos pela Ré na audiência de julgamento (que o A., nas suas declarações, referindo embora que o veículo era um Mitsubishi, disse não ter a certeza se corresponderia à viatura em causa).
E, da conjugação da referida prova, não resulta, com a necessária segurança, que o acidente tivesse ocorrido nos moldes ou pela razão invocada pela Ré e, muito menos, que o A. o tivesse feito de propósito a magoar-se, como disse ou insinuou o legal representante da Ré nas suas declarações de parte. Na melhor das hipóteses para a Ré, o A. teria colocado a mão junto da correia na tentativa de verificar a corrente e sua folga mas, ainda assim, a prova feita não permite, com a necessária segurança, concluir que assim tenha sido e que não pudesse o acidente ter ocorrido da forma descrita pelo A.
E, salienta-se, era à Ré que competia o ónus da prova de que o acidente correu da forma que descreve na medida em que, com isso, o atribuiu a negligência grosseira e exclusiva do A., visando a descaracterização do acidente. Ora, nos termos do art. 414º do CPC, a dúvida sobre a realidade de um facto resolve-se contra a parte em que o facto aproveita ou seja, no caso, contra a Ré.
E, no caso e como referido, da prova produzida não resulta, com a necessária segurança, que o acidente tenha ocorrido nos moldes descritos pela Ré, concordando-se, no essencial, com a fundamentação aduzida na sentença recorrida e nas contra-alegações. A testemunha BB não presenciou o acidente, apenas tendo acorrido ao local quando ouviu o sinistrado a pedir para desligarem o carro. E, sendo embora certo que tenha afirmado que seria difícil a mão chegar ao local com uma “escorregadela” e que o local onde se encontrava a correia da ventoinha estar “um bocado escondido”, tem tubagens nessa zona e uma capa de proteção que cobre “um bocadinho aquilo (…) mais acima”, questionado sobre se para chegar àquele local teriam de ser desviadas peças e tubos disse que “não necessariamente”. E, por outro lado e embora haja referido não ter visto óleo (o A. também não disse que havia óleo, o que disse é que tinha a mão suja de óleo), questionado sobre se “não viu qualquer sinal de que tenha ali sido apoiado, por exemplo, a mão e que tenha escorregado”, respondeu que “sim ele teria lá as mãos porque o carro tinha pó e estava lá algumas dedadas, mas eu não vi”. Acresce que, sendo o A. dextro, como afirmou, seria mais natural que, se se tivesse pretendido proceder a alguma melhor verificação ou reparação, aproximando a mão da correia, o tivesse feito com a mão direita e não com a esquerda.
É de referir que o legal representante da Ré também não viu como, concretamente, se deu o acidente já que estava ele dentro da viatura, tando o capot aberto. Não se pode, todavia, deixar de notar que, se ele, como referiu, quando ligou o ar condicionado e verificou qual o problema (origem do ruído) e disse ao A., pela janela do carro, que já não era preciso ver, que já tinha detetado o problema, então mais lógico, nessa sua versão, seria que tivesse então logo desligado o carro.
O certo é que não se nos afigura que, de forma segura, se possa formar a convicção de que seria impossível que a mão do A. haja entrado em contacto com a correia da forma inadvertida como ele descreve e que tal apenas poderia ocorrer se ele, intencionalmente, tivesse colocado a mão junto à correia (com o propósito de melhor verificar a folga da correia da ventoinha e, muito menos, com o propósito de intencionalmente se magoar).
Improcede assim a impugnação da decisão da matéria de facto.

2. Da descaracterização do acidente como acidente de trabalho por negligência grosseira do sinistrado

Tem esta questão por objeto saber se o acidente que vitimou o A. proveio, exclusivamente, de negligência grosseira sua, assim o defendendo a Recorrente.

2.1. Sob a epígrafe “Descaracterização do acidente”, dispõe o art. 14º da Lei 98/2009, de 04.09 que:
1 - O empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que:
a) For dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pela entidade empregadora ou previstas na lei;
b) Provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado.
c) (…)
2 - Para efeitos do disposto no alínea a) do número anterior, considera-se que existe causa justificativa da violação das condições de segurança se o acidente de trabalho resultar do incumprimento de norma legal ou estabelecida pelo empregador da qual o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento ou, tendo-o, lhe fosse manifestamente difícil entendê-la.
3 Entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.
Tal preceito corresponde, sem alterações significativas, ao que dispunham os seus antecessores: arts. 7º da Lei 100/97, de 13.09 e 8º do DL 143/99, de 30.04, mantendo-se actual a doutrina e jurisprudência firmadas no âmbito destes diplomas.
No caso, está em causa o art. 14º, nºs 1, al. b) e 3, resultando dessa al. b) que para que o acidente caia sob a sua alçada necessário é que ele provenha de negligência grosseira do sinistrado e que esta seja a causa exclusiva do mesmo.
E, quanto a esta causa de descaracterização, como é pacífico na doutrina e jurisprudência, para que ocorra negligência grosseira, não basta a culpa leve, como negligência, imprudência, distração, imprevidência ou comportamentos semelhantes, exigindo-se um comportamento temerário, indesculpável, reprovado por elementar sentido de prudência.
A negligência consubstancia-se na omissão de um dever objetivo de cuidado ou de diligência adequados, segundo as circunstâncias concretas de cada caso, a evitar a produção de um determinado evento.
Porém, a negligência pode assumir gravidade diferente, sendo usual a distinção entre a negligência consciente e inconsciente e, em função da intensidade da ilicitude (a violação do cuidado objetivamente devido) e da culpa (violação do cuidado que o agente é capaz de prestar segundo os seus conhecimentos e capacidades pessoais), entre a negligência lata ou grave, leve e levíssima.
Na negligência consciente, o agente prevê a produção do resultado lesivo como possível, mas por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria crê na sua não verificação; na inconsciente, o agente, por inconsideração, descuido, imperícia ou inaptidão, não concebe a possibilidade do resultado lesivo se verificar, podendo e devendo embora prevê-lo e evitar a sua verificação.
Exigindo a lei, como pressuposto da descaracterização, a negligência grosseira, «o legislador está a afastar implicitamente a simples imprudência, inconsideração, irreflexão, impulso leviano que não considera os prós e os contras. (…). A negligência lata ou grave confina com o dolo e parece ser, sem dúvida, a esta espécie de negligência que se refere o legislador ao mencionar a negligência grosseira: é grosseira, porque é grave e por ser aquela que in concreto não seria praticada por um suposto homo diligentissimus ou bonus pater-familias.» - cfr. Carlos Alegre, in Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Regime Jurídico Anotado, 2ª edição, a págs. 63.
A própria lei, no nº 3 do art. 14º [tal como já o entendia o antecedente art. 8º, nº 2, do DL 143/99], aponta para uma negligência particularmente grave, considerando como negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau.
Como se refere no Ac. do STJ de 29.11.05, proferido na Revista nº 1924/05-4 (Proc. nº 124/2000., do TT Porto, 1º Juízo, 3ª Secção), «a figura da negligência grosseira corresponde a uma negligência particularmente grave, qualificada, atento, designadamente, o elevado grau de inobservância do dever objetivo de cuidado e de previsibilidade da verificação do dano ou do perigo.».
E, citando o Acórdão do STJ de 05.03.2016, in www.dgsi.pt, nele se refere que:
“Trata-se da consagração da doutrina que se foi firmando no domínio da Lei nº 2127, de cuja base VI, nº 1, alínea b) resultava que não dava direito a reparação o acidente de trabalho que proviesse, exclusivamente, de falta grave e indesculpável da vítima, pois segundo a doutrina que se foi firmando, com foros de unanimidade, no domínio desta LAT, só assumia esta natureza um comportamento temerário do sinistrado, inútil para o trabalho, indesculpável e reprovado pelo mais elementar sentido de prudência, vendo-se neste sentido os acórdãos do STJ de 20/9/88, BMJ 379/527 e de 12/5/99, BMJ 487/208.
Também para a descaracterização do acidente de trabalho à luz da alínea b), do nº 1, do artigo 14º da actual LAT, o legislador optou claramente pela modalidade mais grave da culpa, pois só uma falta grave, indesculpável e exclusiva da vítima é que é apta a produzir tal efeito, não tendo esta virtualidade os comportamentos do sinistrado que constituam meras imprudências, inconsiderações, irreflexões ou leviandades.
Efectivamente, a culpa consiste na omissão reprovável de um dever de diligência, que é de aferir em abstracto – cfr. Vaz Serra, RLJ, 11º – 151, podendo nela distinguirem-se três graus:
- culpa levíssima, que é aquela que só as pessoas extremamente diligentes podem evitar;
- o de culpa leve, que é aquela em que não cairia uma pessoa de vigilância ou diligência média;
- o de culpa grave, que é aquela em que o agente usa de uma diligência abaixo do mínimo habitual, procedendo como pessoa extremamente desleixada
- Por outro lado, e para Galvão Teles, Direito das Obrigações 274, 4ª edição, quer a culpa grave quer a leve correspondem a condutas de que uma pessoa normalmente diligente – o bonus pater - se absteria, consistindo a diferença entre elas em que a primeira só por uma pessoa particularmente negligente se mostra susceptível de ser cometida, apresentando-se por isso como uma culpa grosseira, correspondente à “magna negligentia” dos romanos.
- Já dissemos que para a descaracterização do acidente de trabalho à luz da alínea b) do artigo 14º da LAT, o legislador optou claramente pela modalidade mais grave da culpa, pois só a negligência grosseira e exclusiva do sinistrado é que é apta a produzir tal efeito.
- Por isso e desde logo temos que afastar da descaracterização do acidente aqueles comportamentos da vítima que constituam meras imprudências, inconsiderações irreflexões ou leviandades, pois é preciso que o comportamento do sinistrado assuma o alto grau de censura e reprovação correspondente ao exigido para a negligência grosseira.”.
Mais se exige, para que se verifique a causa de exclusão prevista na al. b), do nº 1, do art. 14º, que o evento seja imputado, mediante o estabelecimento do nexo de causalidade, exclusivamente, ao comportamento grosseiramente negligente do sinistrado, o que implica a prova de que nenhum outro facto concorreu para a sua produção.
Por fim, cumpre referir que constitui jurisprudência pacífica que o ónus de alegação e prova dos factos integradores da descaracterização do acidente de trabalho (porque impeditivas do direito à reparação – art. 342º, nº 2, do Cód. Civil) recaem sobre a entidade responsável pela reparação do mesmo.

2.2. Na sentença recorrida referiu-se o seguinte:
“O artigo 14.º, da LAT, trata a questão da descaracterização do acidente de trabalho, reconduzindo-se à questão de saber em que medida o comportamento culposo do sinistrado assume relevância na medida em que permite a definição da esfera de risco assumida pelo próprio sinistrado.
Nos termos do n.º 1 da referida norma «O empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que: a) For dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei; b) Provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado; c) Resultar da privação permanente ou acidental do uso da razão do sinistrado, nos termos do Código Civil, salvo se tal privação derivar da própria prestação do trabalho, for independente da vontade do sinistrado ou se o empregador ou o seu representante, conhecendo o estado do sinistrado, consentir na prestação.
Por sua vez, o n.º 2, estabelece que se considera «que existe causa justificativa da violação das condições de segurança se o acidente de trabalho resultar de incumprimento de norma legal ou estabelecida pelo empregador da qual o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento ou, tendo-o, lhe fosse manifestamente difícil entendê-la».
Acresce que o n.º 3 precisa o conceito de negligência grosseira como «o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão».
Não resultaram provados os factos de que depende a descaracterização do acidente, pois na realidade não sabemos exatamente o que aconteceu, apenas que o sinistrado estava a fazer o diagnóstico de uma avaria e, para isso, o motor do veículo tinha que estar a funcionar e, nessa tarefa, de alguma forma, os seus dedos ficaram presos numa correia auxiliar do motor, não resultando que o sinistrado estivesse a verificar a folga de qualquer correia ou a tentar arranjar o que quer que seja numa correia diretamente com as mãos e, muito menos, que o tenha feito propositadamente.
Em suma, consideramos que não há lugar à descaracterização do acidente de trabalho.”

2.3. O A. fez prova dos pressupostos do direito à reparação do acidente de trabalho de que foi vítima, quais sejam: a ocorrência de um acidente no local e tempo de trabalho, a existência de lesões e o nexo de causalidade entre as lesões de que padece e o mencionado acidente.
Cabia, pois, à Ré o ónus da prova dos factos de que resultasse que o acidente proveio, exclusivamente, de negligência grosseira do A. (art. 342º, nº 2, do Cód. Civil), prova essa que aquela não fez, mais se concordando com a sentença recorrida. Com efeito, a procedência do recurso passava pela procedência da impugnação da decisão da matéria de facto, pelo que, improcedendo esta, improcede igualmente a questão da invocada descaracterização do acidente como acidente de trabalho por virtude da alegada negligência grosseira e exclusiva do sinistrado (art. 14º, nº 1, al. b), da Lei 98/2009, de 04.09).
Improcedem, assim e sem necessidade de considerações adicionais, as conclusões do recurso.
***
V. Decisão

Em face do exposto, acorda-se em julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pela Recorrente.

Porto, 12.07.2023
Paula Leal de Carvalho
Rui Penha
Jerónimo Freitas