Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6282/22.0T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Nº do Documento: RP202402226282/22.0T8PRT.P1
Data do Acordão: 02/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O enriquecimento só importará ao Direito na medida da sua relevância jurídica, no sentido de ter sido obtido à custa de outrem sem justificação juridicamente válida (sem causa).
II - Por inexistência de causa justificativa, deve entender-se a inexistência de norma, princípio ou regra, que legitime a manutenção do incremento patrimonial na esfera do enriquecido.
III - Exige-se ainda o requisito do imediatismo ou da unidade do procedimento de enriquecimento, ou seja, a deslocação patrimonial deve operar-se entre o enriquecido e o empobrecido de forma direta ou imediata, sem intervenção de um facto ou património intermédio.
IV - Não ocorre enriquecimento sem causa numa situação em que um filho beneficia de dinheiro retirado pelo pai, ilicitamente da empresa onde trabalha, quando nem sequer se alega/prova que o filho tenha instigado o pai ou se tenha conluiado com ele para tal conduta.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 6282/22.0T8PRT.P1

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

I – Resenha do processado
1. A... SPRL – Sucursal em Portugal, instaurou ação contra AA, pedindo a sua condenação:
a) a pagar/restituir à Autora o valor indevidamente creditado na sua conta, na quantia de 73.378,17 €;
b) a pagar à Autora juros vencidos desde janeiro de 2020, até esta data, no valor de 5.418,27 €, e juros vincendos à taxa legal em vigor, desde a citação, até efetivo e integral pagamento;
c) a restituir à Autora as quantias que, no decurso da presente demanda, se venham a apurar terem sido indevidamente depositadas na sua conta bancária;
Fundamentou tais pretensões no enriquecimento sem causa da Ré, no seguinte contexto: o objeto negocial da Autora consiste na compra de veículos usados na Bélgica, exportação para Portugal e, depois de devidamente legalizados e com matrícula portuguesa, são comercializados em vários stands nacionais; para celebrar os negócios em Portugal e facilitar o seu normal andamento, o legal representante da Autora, Sr. BB, com residência permanente na Bélgica, designou um seu representante em território nacional, o Sr. CC, a quem outorgou procuração com poderes especiais para efetuar negócios em nome da Autora com vários stands, bem como proceder à venda das viaturas, emitir as respetivas faturas e receber o preço/valor daquelas vendas, e ainda depositar os montantes na conta da Autora, aberta para o efeito no Banco 1....
Ficou expressamente consignado entre a Autora e o Sr. CC que este podia efetuar negócios de compra e venda dos carros importados com vários stands portugueses, mas que o produto daquelas vendas devia ser depositado, apenas e só, na conta bancária da sociedade A..., supra identificada.
No início do ano de 2021, a Autora começou a notar várias discrepâncias entre as viaturas supostamente vendidas e faturadas aos stands, e os valores creditados na sua conta bancária; a Autora solicitou os extratos bancários da sua conta e, da sua análise, concluiu que o Sr. CC movimentou a conta bancária da Autora fazendo inúmeras transferências para uma conta bancária cuja beneficiária era a sua própria filha, aqui Ré, num valor total que ronda os 73.378,17 €.
Em contestação, a Ré impugnou parcialmente a factualidade alegada; explicou que o pai lhe pediu para abrir uma conta em seu nome, ao que ela acedeu, em conta conjunta, entregando ao pai as várias formas de movimentação. A Ré nunca movimentou tais contas e nunca beneficiou das quantias aqui reclamadas. Por fim, pediu a condenação da Autora como litigante de má fé.
Proferiu-se despacho saneador, com delimitação dos factos já assentes e dos temas de prova.
A Ré reclamou dos temas de prova, o que foi indeferido.
Realizada audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que julgou a ação improcedente e absolveu a Ré dos pedidos.

2. Para assim decidir, considerou-se a seguinte factualidade:
Factos provados
1) A Autora é uma sociedade comercial, filial de uma outra sociedade sediada na Bélgica, denominada A... SPRL, cujo escopo consiste na exportação/importação de veículos automóveis para território português.
2) O objecto negocial desta A... SPRL consiste na compra de veículos usados na Bélgica, exportação para Portugal e, depois de devidamente legalizados e com matrícula portuguesa, são comercializados em vários stands nacionais.
3) Para celebrar os negócios em Portugal e facilitar o seu normal andamento, o legal representante da Autora, Sr. BB, com residência permanente na Bélgica, designou um seu representante em território nacional.
4) Neste contexto, e porque conhecia o Sr. CC, este aceitou aquela tarefa e, para o efeito, o Sr. BB outorgou uma procuração com poderes especiais a CC.
5) Através desta procuração, o Sr. CC podia efetuar negócios em nome da Autora com vários stands, bem como proceder à venda das viaturas, emitir as respetivas faturas e receber o preço/valor daquelas vendas, e ainda depositar os montantes na conta da Autora, aberta para o efeito no Banco 1..., sob o n.º ... NIB ....
6) A Autora apresentou uma denúncia-crime contra este Sr. CC e outros, cujo inquérito corre os seus termos na Comarca do Porto, Departamento de Investigação e Ação Penal de Vila Nova de Gaia – 4.ª Secção, sob o processo n.º 27/21.9P6PRT – Doc. 3.
7) A Autora instaurou ações judiciais, uma que corre os seus termos na Comarca do Porto, Juízo Central Cível da Póvoa do Varzim – Juiz 3, sob o processo n.º 197/22.9T8PVZ, e outra que corre os seus termos na Comarca de Aveiro, Juízo Local Cível de Santa Maria da Feira – Juiz 3, sob o processo n.º 363/22.7T8VFR – Docs. 4 e 5.
8) De modo a resolver a questão extrajudicialmente, a Autora enviou uma carta registada com A/R à Ré, através do seu mandatário, no dia 21/02/2022, a interpelar a Ré para a devolução/pagamento das quantias indevidamente recebidas/movimentadas para a sua conta.
9) Por sua vez, antes de levantar a carta, a Ré entrou em contacto com o mandatário da Autora para saber do assunto da missiva – e foi-lhe devidamente explicado o seu conteúdo.
10) Entretanto, a Autora sabe que a Ré levantou a carta no dia 23/02/2022, conforme consta do website dos CTT.
11) Ficou expressamente consignado entre a Autora e o Sr. CC que este podia efetuar negócios de compra e venda dos carros importados com vários stands portugueses, mas que o produto daquelas vendas devia ser depositado, apenas e só, na conta bancária da sociedade A..., supra identificada.
12) No início do ano de 2021, a Autora começou a notar várias (e graves) discrepâncias entre as viaturas supostamente vendidas e faturadas aos stands, e os valores (não) creditados na sua conta bancária, não havendo coincidência entre os veículos faturados e os valores efetivamente depositados na conta bancária da Autora.
13) Pelo que a Autora começou a desconfiar que o Sr. CC celebrava, de facto, os negócios de compra e venda dos carros da sociedade, mas, ou não recebia o valor da venda dos veículos, ou ficava com o produto da venda para si mesmo, ou seja, não creditava o valor das vendas na conta indicada pela Autora para o efeito.
14) Após ter conhecimento destes factos, a Autora solicitou ao Banco 1... o envio dos extratos bancários da sua conta, para os analisar com maior detalhe e da análise, a Autora concluiu que o Sr. CC movimentou a conta bancária da Autora, fazendo transferências para uma conta bancária cuja beneficiária era precisamente a sua própria filha, aqui Ré.
15) Sendo que as transferências bancárias em causa, importaram na quantia de €105.938,17.
16) A Autora como o seu legal representante, o Sr. BB, desconheciam, como desconhecem por completo a razão daquelas transferências bancárias da conta da A... para a conta da Ré.
17) A Autora nunca autorizou o Sr. CC a utilizar/movimentar a conta bancária supra identificada para outro fim que não fosse o comércio de veículos automóveis e respetiva movimentação de venda aos stands portugueses e, por outro lado, a Ré nunca esteve envolvida nos negócios da A....
18) De modo a resolver a questão extrajudicialmente, a Autora enviou uma carta registada com A/R à Ré, através do seu mandatário, no dia 21/02/2022, a interpelar a Ré para a devolução/pagamento das quantias indevidamente recebidas/movimentadas para a sua conta no montante de €63.878,17.
19) Por sua vez, antes de levantar a carta, a Ré entrou em contacto com o mandatário da Autora para saber do assunto da missiva – e foi-lhe devidamente explicado o seu conteúdo.
20) Entretanto, a Ré levantou a carta no dia 23/02/2022, conforme consta do website dos CTT.
21) A R. é filha de CC e à data dos factos a R. tinha 19 anos de idade, doc. 1 da contestação.
22) À data dos factos a R. frequentava a Escola ..., o 2º ano do curso de direito, sendo neste momento advogada estagiária com a cédula nº 47458p.
23) O pai da R. abandonou a casa aos 2 anos de idade da R., tendo perdido o contacto com aquele até aos 14 anos de idade, altura em que o pai voltou a Portugal, provindo do Brasil, tendo mantido raros contactos com o mesmo durante este período de tempo.
24) Aos 14 anos de idade o pai voltou a Portugal onde esteve durante 2 anos, sendo que voltou a desaparecer dos 16 aos 18 anos de idade da R.
25) Aquando dos 19 anos da Ré, em 2019, em mês que já não se lembra, o seu Pai, CC; regressado novamente a Portugal provindo de local que a Ré desconhece, procurou-a tentando a reaproximação;
26) Expôs então à sua filha, aqui Ré, não poder abrir contas bancárias, por ter tido uns problemas, constando por isso na lista do Banco de Portugal como utilizador de risco,
27) Pedindo-lhe se poderia a aqui Ré proceder à abertura de uma conta bancária em seu nome, por forma a ser utilizada por ele.
28) A Ré anuiu e abriu conta bancária no Banco 1..., conta de depósitos à ordem nº ..., a qual acabou por ser encerrada em 3 Novembro de 2020.
29) E seguidamente, a Ré procedeu à abertura de uma outra conta bancária no Banco 2..., conta de depósitos à ordem nº ..., sendo o número para eventuais questões relativas à conta bancária era o telemóvel do pai da aqui R. número ....
30) Quer quanto à primeira conta (Banco 1...), quer quanto à segunda conta (Banco 2...) a Ré titulava individualmente as mesmas, tendo solicitado, a fim de entregar ao seu Pai, cartão de multibanco e respetivo PIN, acessos à internet banking e mobile banking.
31) Todos os meios que a Ré solicitou ao Banco, por forma à movimentação da conta, foram entregues ao seu Pai, CC, de forma a este poder com estes meios utilizar as contas como se do seu titular se tratasse.
32) O que fez para agradar ao seu Pai, por forma a conseguir aproximar-se novamente deste, pessoa que muito queria que não mais a abandonasse.
33) O Pai da Ré é amigo de longa data do BB, representante legal da sociedade aqui Autora e era amigo de longa data da família do Pai da Ré, conhecendo igualmente esta.
34) Todo o enquadramento do Pai da Ré no que concerne à sua relação familiar, nomeadamente, à sua filha, aqui Ré, eram do conhecimento do BB.
35) Soube, entretanto, a Ré, já na pendência da presente ação, que o seu Pai foi condenado judicialmente pelo cometimento de variados crimes, encontrando-se atualmente a cumprir pena de prisão efetiva no estabelecimento prisional ....
36) E tornou, entretanto, a Ré conhecimento, que os desaparecimentos do seu Pai, que se verificaram na sua infância, se deram pela necessidade deste em abandonar o território português por estar a ser "perseguido" pela justiça.
37) Antes à emissão da procuração, já o Pai da Ré exercia os poderes de facto do BB na referida empresa, aqui A., podendo fazer tudo como se do legal representante da empresa se tratasse.
38) BB em contacto telefónico com a tia da Ré, DD, ter-lhe-á dito que, sabia perfeitamente que estas importâncias, aqui reclamadas, não teriam revertido a favor da Ré.
39) É consabido na família e núcleo de amigos, a dificuldade financeira que a Ré apresenta, pois que, nomeadamente, quanto aos estudos, teve a necessidade de obter um empréstimo bancário em 2019, junto do Banco 3..., na importância de €11.250,00 para assegurar o financiamento dos seus estudos.
40) Confrontado o documento n.º 6 da Petição Inicial, constatam-se as seguintes transferências da conta titulada pela Ré a favor da conta titulada pela Autora:
- 05.02.2020 - € 7.500,00
- 22.06.2020 - € 10,00
- 06.07.2020 - € 500,00
- 06.072020 - € 200,00
- 31.07.2020 - € 950,00
- 10.08.2020 - € 500,00
- 20.08.2020 - € 10.000,00
- 25.08.2020 - € 3.500,00
- 12.10.2020 - € 600,00
- 20.10.2020 - € 100,00
- 26.10.2020 - € 6.000,00
- 01.11.2020 - € 9.000,00
- 02.11.2020·· € 4.500,00
- 13.11. 2020 - € 9.000,00
-21.11.2020 - € 1.800,00
- 25.11.2020 - € 2.000,00
- 31.12.2020·- €100,00
Total transferido 56.260,00.
41) Consta ainda da conta bancária do Banco 1... a transferência de €350,00 para uma conta titulada pela R. AA.
42) Consta da conta Bancária do Banco 2... um levantamento ao balcão, feito a 18/03/2021, no montante de €55.000,00, o qual foi efetuado pela Ré e entregue de imediato ao pai CC.
43) Também desta conta bancária resultam várias transferências para uma outra conta de “AA” no Banco 3..., já após a conta no Banco 1... ter sido encerrada:
- 08/01/2021 - 600,00 €;
- 16/02/2021 - 425,00 €;
- 26/02/2021 - 50,00 €;
- 08/03/2021 - 450,00 €;
- 12/03/2021 - 3.000,00 €;
- 16/03/2021 - 500,00 €.
Factos não provados:
a) A Ré locupletou-se do valor de €73.378,17 e tenha enriquecido o seu património naquele montante.
b) Uma das funções do Pai da Ré seria a de "simular" uma serie de atas pouco claros e até ilícitos, quer em seu proveito, quer em aproveito da Autora bem como do seu representante legal; aros esses que, poderão com alguma facilidade serem devidamente escrutinados na pendência do presente processo.
c) A Autora tem conhecimento de que a Ré nunca beneficiou das verbas que vem agora reclamar.
d) Nenhum movimento, quer a crédito, quer a débito, atinentes às duas contas referidas em 28) e 29), foi efetuado pela aqui Ré. Todos os movimentos foram efetuados pelo seu Pai, CC.
e) BB materializou o Pai da Ré como seu "plenipotenciário", na gíria chamado de "testa de ferro" da sucursal em Portugal da empresa que detinha na Bélgica.

3. Inconformada com a decisão, dela apelou a Autora, formulando as seguintes conclusões:
1. O douto Tribunal “a quo” não fez uma análise criteriosa e rigorosa dos normativos legais aplicáveis ao presente caso, na verdade, descurou-os por completo.
2. Como tal, existe erro de julgamento grave e grosseiro, por evidente erro na apreciação dos normativos legais a aplicar ao caso concreto.
3. Mormente, houve errada apreciação dos pressupostos que envolvem a figura jurídica do enriquecimento sem causa, que não foram devidamente aplicados ao caso concreto.
4. Por este motivo, a ação interposta contra a Recorrida não podia, sem mais, ser julgada improcedente, sob pena de provocar (como já provocou) enriquecimento sem causa na esfera jurídica desta.
5. Sendo certo que a Recorrida sempre teve conhecimento dos factos que envolviam toda a vida do seu pai, que se locupletou à custa da Recorrente.
6. E, ainda assim, aceitou fazer tudo o que o seu pai lhe pedia, bem como as transferências por ele realizadas para a sua conta bancária “pessoal”.
7. A Recorrida confessa ainda que beneficiou dos valores ora em discussão, no pagamento das propinas da sua faculdade e outras despesas pessoais, sendo que da análise atenta aos vários extratos bancários, resulta também que a Ré/Recorrida realizou, com recurso àqueles montantes, viagens ao estrangeiro, compras, etc.
8. O tribunal “a quo” não valorou conforme está obrigado, as provas documentais – documentos bancários.
9. Pese embora a Recorrida seja estudante de Direito, pelo que está inteiramente a par das leis portuguesas e das legais consequências dos seus atos.
10. Assim, todos os pressupostos do enriquecimento sem causa se encontram preenchidos no presente caso, pelo que deve a prolatada sentença ser alterada.
11. Bem como devem ser alterados os factos provados n.º 28), 29), 30), 31) 32), 35), 36), 38) e 42) para factos não provados e os factos não provados n.º A) para factos provados.
12. Desta forma fica claramente provado e comprovado que a Recorrida beneficiou dos valores “roubados” à Recorrente e reclamados nesta demanda.
13. Face ao supra exposto, a sentença ora em “crise” ser revogada.
14. finalmente, a sentença ora em “crise” violou entre o mais, os dispositivos legais previstos nos art.º 615º nº 1 al. b), c) e d) do CPC; art.º 370º, 376º e 473º, art.º 6º todos do CC.
Nestes termos, e nos mais de Direito, e sempre com o mui douto suprimento de Vas. Exas., deve o presente recurso de apelação ser julgado procedente por provado com a inerente revogação da decisão recorrida e respetiva substituição por uma nova decisão, que julgue inteiramente procedente por provada a demanda da Autora.

4. A Ré contra-alegou, sustentando a improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO
5. Apreciando o mérito do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art.º 615º nº 1 al. d) e e), ex vi do art.º 666º, 635º nº 4 e 639º nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC).
No caso, são as seguintes as QUESTÕES A DECIDIR:
● Se é de proceder à reapreciação da matéria de facto
● Se a sentença padece de erro de julgamento na subsunção dos factos ao direito

5.1. Se é de proceder à reapreciação da matéria de facto
§ 1º - Como se vê das conclusões, a Recorrente limita-se a referir quais os factos que pretende ver alterados (conclusão 11ª), sem mais, pelo que não cumpre o ónus de alegação imposto no art.º 640º do CPC, designadamente a indicação dos concretos meios probatórios que impunham decisão diversa [al. b) do nº 1 do art.º 640º CPC].
Contudo, tem vindo a ser entendimento do STJ que «V - O art.º 640 nº 2 a) CPC deve ser interpretado restritivamente, no sentido de que a letra diz mais do que o seu espírito, ou seja, em face do objetivo da norma, a rejeição só se impõe quando haja total omissão da indicação das passagens da gravação de cada uma das testemunhas, e por via disso se ignore em que passagens do depoimento o recorrente se baseia. A não ser assim, a norma seria materialmente inconstitucional por violação do princípio da proporcionalidade, porque não se podendo considerar excessivo o ónus (secundário), o mesmo não sucede com a gravidade das consequências que se revela claramente excessiva e por consequência desproporcionada, quando tal deficiência não inviabiliza análise pelo tribunal, nem o contraditório da contraparte.» [1]
Neste entendimento, e porque na motivação do recurso a Recorrente lá vai aludindo aos depoimentos das testemunhas, ir-se-á proceder à reapreciação possível.
E dizemos possível porque o que consta da motivação é um arrazoado em bloco, sem descriminar nem inter-relacionar os factos com os meios de prova invocados, como se estes pudessem estribar tudo.

§ 2º - Como sabemos, a seleção da matéria de facto tem como critério reportar-se apenas a factos que interessam à boa decisão da causa, na perspetiva das várias soluções plausíveis da questão de direito.
Portanto, todos os factos que interessam à boa decisão da causa e não todos aqueles que forem alegados pelas partes. Na verdade, tendo sido alegada matéria de facto irrelevante, em qualquer das perspetivas de direito, não há que a ela atender.
O «princípio de que o juiz deve examinar toda a matéria de facto alegada pelas partes, analisando todos os pedidos formulados, está sujeito a uma restrição, e a restrição reporta-se às matérias e aos pedidos que forem juridicamente irrelevantes. Estando em causa factos irrelevantes, não faz qualquer sentido ponderar sequer a sua inserção na matéria de facto provada» [2]
Por outro lado, na seleção da matéria de facto, também se impõe uma filtragem entre o que são factos, não devendo admitir-se asserções vagas, ou conclusivas, ou integrando juízos de valor e/ou juízos normativos.
Na dicotomia facto versus direito ensinavam Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora que os factos "abrangem as ocorrências concretas da vida real", explicitando: «Dentro da vasta categoria dos factos (processualmente relevantes), cabem não apenas os acontecimentos do mundo exterior (da realidade empírico-sensível, diretamente captável pelas perceções do homem - ex propiis sensibus, visus et audictus), mas também os eventos do foro interno, da vida psíquica, sensorial ou emocional do individuo (v.g. vontade real do declarante (...); o conhecimento dessa vontade pelo declaratário; (...) o conhecimento por alguém de determinado evento concreto (...); as dores físicas ou morais provocadas por uma agressão corporal ou por uma injúria (…)»
«Embora a terminologia usada nesta área varie muito de autor para autor, o facto distingue-se do fenómeno: o facto é o acontecimento concreto da realidade empírico-sensível, em si mesmo considerado, enquanto o fenómeno pressupõe ou a dignidade científica do facto ou a sua prévia elaboração pelos instrumentos da consciência do homem. A transmissão de um direito é um fenómeno jurídico, neste sentido; a compra de A a B, que gera concretamente a transmissão, é um facto[3]
«I. Mantém-se na nossa ordem jurídica o mecanismo anteriormente previsto no artigo 646.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, devendo ser suprimida da fundamentação de facto da sentença toda a matéria dela constante suscetível de ser qualificada como questão de direito, bem como a que integre juízos conclusivos ou de valor.» [4]

§ 3º - Tendo em conta estes parâmetros, procedamos então à reapreciação pretendida.
É nosso entendimento que a sindicância da matéria de facto implica uma visão global e concertada de toda a prova produzida, não se compaginando com meros segmentos deste ou daquele meio de prova, desgarrados do respetivo contexto.
Por outro lado, invocando-se a errada apreciação do depoimento duma testemunha, não vemos como seja possível alterar/reponderar a matéria de facto sem ouvir integralmente o depoimento dessa testemunha, bem como a globalidade das demais provas produzidas.
Na verdade, a avaliação/apreciação do depoimento das testemunhas não é corretamente efetuada se for feita de forma seccionada, sabido como é que uma qualquer frase pode adquirir significados diversos consoante o contexto em que é proferida, da mesma forma que os diversos meios de prova devem ser atendidos de forma integrada, sendo muito vulgar a ocorrência de depoimentos contraditórios e até de contradições num mesmo depoimento.
Quanto ao facto não provado em a), ─ A Ré locupletou-se do valor de €73.378,17 e tenha enriquecido o seu património naquele montante ─ manifestamente que a pretensão tem de improceder, na medida em que não se trata de um facto, integrando antes uma conclusão de direito.
Trata-se da valoração jurídica da causa, atinente ao objeto essencial do litígio (o enriquecimento sem causa), só importando à conclusão a retirar na fundamentação jurídica. [5]
Se na linguagem comum “locupletar-se” já significa “enriquecer”, qualquer jurista sabe que na linguagem jurídica o vocábulo é utilizado no sentido de ilícito, um enriquecimento ocorrido em prejuízo a alguém.
Sendo a causa de pedir nesta ação o enriquecimento sem causa, uma tal asserção como a que está em análise, determinaria a solução jurídica da causa, sem mais.
Não se tratando de um facto, não deveria sequer ter sido considerado (ainda que no elenco dos “não provados”), pelo que agora se determina a respetiva eliminação.
Quanto aos factos provados 28 a 32, 35, 36 e 38, que se pretende ver não provados.
Tais factos reportam-se todos às circunstâncias em que foi aberta a conta bancária titulada em nome da Ré, mas alegadamente para ser movimentada pelo pai, pelo que se fará o seu tratamento conjunto.
Na sentença justificou-se com os documentos 3 a 6 da contestação + EE, mãe da Ré e com a falta de credibilidade de tal circunstancialismo.
A “leitura” que faz a Recorrente não colhe o nosso entendimento. É sabido, mormente pelos juristas que calcorreiam os Tribunais que, infelizmente, este tipo de situações é até bastante corrente. Existem pais que, pelas mais diversas razões se aproveitam da ingenuidade/lealdade dos filhos, manipulando-os para abertura de contas bancárias em seu nome, e até para os colocar “na gerência” de empresas. E quem lida com litígios jurídicos não desconhece os “testas de ferro”, o “dar o nome” para os mais diversos negócios, como se aprende nos bancos das Faculdades.
Nessas situações, o titular das contas só o é em termos formais, passando toda a gestão da conta e respetivos movimentos para a pessoa a quem aceitou “fazer o favor”.
A não ser assim, também não encontraria justificação a atitude do próprio gerente da Autora, amigo de longa data do pai da Ré e conhecedor dos seus problemas criminais e do contexto da respetiva família, o tenha designado como seu representante, outorgando-lhe uma procuração com poderes especiais (diríamos), já que podia efetuar negócios em nome da Autora com vários stands, bem como proceder à venda das viaturas, emitir as respetivas faturas e receber o preço/valor daquelas vendas, e ainda depositar os montantes na conta da Autora (factos provados 3 a 5, 33, 34 e 37, não impugnados). Como explicar que um homem com experiência de vida e dos negócios tenha incorrido em tal risco? Afigura-se-nos que só por razões de sentimentos de amizade/familiares e de lealdade. Exatamente a posição da Ré, no caso mais desculpável, por ser jovem de 19 anos e querer recuperar da situação de “abandono” do pai.
E não se diga que a Ré tinha conhecimento, pelo menos desde os seus 18 anos de idade, dos problemas do pai com a Justiça, bem como do facto de ele não poder ter contas bancárias em seu nome. Na nossa “leitura”, seria exatamente por ter esse conhecimento que a Ré aceitou abrir conta em seu nome, pois sabia que o pai o não podia fazer. Doutra forma, nem o pai lho pediria, nem ela teria razão para aceitar.
Por fim, também se nos oferece credível que o gerente da Autora tenha referido à tia da Ré que sabia que estas importâncias não teriam revertido a favor da Ré. Tal fica demonstrado pelo facto de ter apresentado primeiro denúncia-crime contra o pai da Ré e instaurado ações cíveis. Sabedora que quem desviou o dinheiro foi o pai da Autora, estando este preso e sem recursos para a devolução, a Autora procura por todas as formas a respetiva recuperação.
Quanto ao facto provado 42, que se pretende ver não provado.
Não está em causa o levantamento dos 55 mil euros, provado que está documentalmente, mas apenas o segmento em que após o levantamento a Ré tenha entregue ao pai tal montante.
Ora, se segundo a própria Recorrente foram efetuadas transferências para a conta da Autora, nenhuma explicação é arvorada para que tão elevada quantia tenha sido efetuada em numerário, ao invés duma transferência.
Mas, de toda a restante prova produzida, designadamente a documental, resulta que nessa data (18/03/2021), o pai da Autora já se encontrava em fuga, para o que lhe seria essencial o dinheiro “vivo” como se costuma dizer. Isso mesmo resulta da denúncia crime efetuada pelo gerente da Autora (em 21/03/2021), em que refere ter informações que o pai da Ré “se prepara para abandonar o país, com o dinheiro que desviou para a conta, pois encontra-se condenado pelo Tribunal a cumprir pena efetiva em estabelecimento prisional”.
Concluindo, improcede a pretendida alteração da matéria de facto.

5.2. Matéria de direito; erro de julgamento
Como se extrai do art.º 473º nº 1 do Código Civil (CC), aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.
Daqui decorre que o instituto do enriquecimento sem causa pressupõe a verificação de 3 requisitos: i) existência de um enriquecimento; ii) a obtenção desse enriquecimento à custa de outrem; iii) a ausência de causa justificativa para o enriquecimento.
O enriquecimento e o empobrecimento devem ser apurados de forma objetiva, pela diferença entre a situação real em que ambos se encontram e aquela em que estariam se não tivesse existido a deslocação patrimonial (situação hipotética).
Por outro lado, o enriquecimento só importará ao Direito na medida da sua relevância jurídica, no sentido de ter sido obtido à custa de outrem sem justificação juridicamente válida.
Por inexistência de causa justificativa, deve entender-se a inexistência de norma, princípio ou regra, que legitime a manutenção do incremento patrimonial na esfera do enriquecido. [6]
De acordo com as regras de direito probatório material, ao Autor compete o ónus da prova dos factos consubstanciadores do direito que se arroga (art.º 342º do CC).
E como referem Pires de Lima e Antunes Varela, «Não bastará para esse efeito, segundo as regras gerais do onus probandi, que não se prove a existência de uma causa de atribuição; é preciso convencer o tribunal da falta de causa (…).» [7]
Ao que se nos afigura, a ação estava votada ao insucesso ab initio, por falta do requisito do imediatismo - «A correlação exigida por lei entre a situação dos dois sujeitos traduz-se em regra, no facto de a vantagem patrimonial alcançada por um deles resultar do sacrifício económico correspondente suportado pelo outro.» [8]
Sobre este requisito, transcrevemos parte do recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, onde o mesmo é analisado exaustivamente, designadamente em termos das correntes doutrinárias. Aí se escreveu:
«25. O problema suscitado pelo Réu, agora Recorrente, relaciona-se com o requisito da imediação, ou da unidade do procedimento de enriquecimento.
26. Ora, o requisito da imediação ou da unidade do procedimento de enriquecimento significa que, entre empobrecimento e enriquecimento, não deve encontrar-se um facto intermédio ou, em todo o caso, não deve encontrar-se um património intermédio, de terceiro.
27. Exigir-se que a atribuição patrimonial seja directa ou imediata, ou que o procedimento por que se concretiza a atribuição patrimonial seja um procedimento unitário — exigir-se que entre o empobrecimento e o enriquecimento não haja nenhum facto intermédio, ou que entre o património empobrecido e o património enriquecido não haja nenhum património intermédio ─ é, em todo o caso, algo de controvertido.
Em favor do requisito da imediação, pronunciaram-se, p. ex., Antunes Varela, Francisco Manuel Pereira Coelho, Jorge Ribeiro de Faria e Diogo Leite de Campos. Em desfavor do requisito, pronunciou-se, p. ex., Luís Menezes Leitão.
29. Entre os dois pólos extremos, a doutrina e a jurisprudência portuguesas tendem a abandonar os critérios mais simples, de aplicação automática ou quase-automática, como sejam a regra da ausência de um facto intermédio ou a regra da ausência de um património intermédio, em favor de critérios mais complexos, por que se exige uma ponderação global ou uma valoração global, orientada, p. ex., pelo comum sentimento de justiça.
30. O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Janeiro de 1998 ─ processo n.º 97A354 ─ enunciou os critérios, mais complexos, aplicáveis aos casos em que as atribuições patrimoniais sejam só indirectas ou mediatas em termos de uma regra e de uma excepção. Em primeiro lugar, enunciou a regra ─ de que o enriquecimento há-de ser directa ou imediatamente obtido à custa do empobrecido ─ e, em segundo lugar, enuncia a excepção ─ exceptua-se os casos em que o requisito da imediação conflitue com o comum sentimento de justiça[9]
No caso, foi a própria Autora a alegar que quem retirou o dinheiro da sua esfera jurídica foi o pai da Ré, e não esta; que foi o pai da Ré quem fez as transferências bancárias para a conta bancária titulada por ela; por fim, refere apenas que “não vislumbra a Autora, o motivo para a Ré ser beneficiária daquela avultada quantia, tanto mais que, a A... não fez qualquer negócio com a Ré”.
Ou seja, segundo a própria alegação da Autora quem provocou o seu empobrecimento foi o pai da Ré.
A Autora não alegou que foi a Ré a instigar o pai a tal procedimento; apenas refere que a Ré beneficiou do dinheiro.
Em momento algum a Autora alegou que foi a Ré a instigar o pai, ou que tivesse existido conluio entre ambos para o procedimento encetado pelo pai; apenas refere que a Ré beneficiou do dinheiro, não vislumbrando o motivo.
Porém, fácil seria vislumbrá-lo já que constitui obrigação dos pais prover ao sustento dos filhos, designadamente até à conclusão do percurso escolar: art.º 1878º nº 1 e 1880º do CC.
Nessa medida, e em termos abstratos, existe norma legal a dar causa a que algumas das quantias desviadas pelo pai acabassem por beneficiar a filha. [10] Como sabemos, as responsabilidades criminal e civil são pessoais, exceto no caso de co-autoria ou cumplicidade.
 Ora, não se tendo alegado que a Ré instigou o pai, que tivesse existido conluio entre ambos para o procedimento ou que a Ré soubesse da proveniência ilícita do dinheiro, não se lhe pode obrigar à restituição do dinheiro que não foi ela a retirar.
Em termos simplistas, diremos que se um pai desvia ilicitamente dinheiro da empresa empregadora e, com ele, paga despesas da economia familiar, não se pode ir imputar a responsabilidade pelo ilícito à mulher ou aos filhos, se estes não estão sequer cientes dessa proveniência ilícita. Também a este nível, a Autora não alegou que a Ré soubesse da proveniência ilícita do dinheiro que o pai transferia para a conta aberta em seu nome, mas titulada de facto pelo pai (ver factos provados 26 a 31).
De qualquer forma, olhando a matéria de facto provada, o empobrecimento da Autora resultou da conduta do pai da Ré (ao desviar fundos em proveito próprio) e não da Ré.
No que toca ao benefício/enriquecimento obtido pela Ré, em resultado do empobrecimento da Autora, temos apenas os factos provados 41 e 43, os quais, atentos os respetivos montantes (entre € 50,00 e € 3.000,00) encontram justificação na contribuição do pai para as despesas da filha, com 19 anos e a estudar em Faculdade privada. Dado que nada se provou sobre o conhecimento da Ré sobre a ilicitude da conduta do pai.

6. Sumariando (art.º 663º nº 7 do CPC)
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III. DECISÃO
7. Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação do Porto em julgar a apelação improcedente, mantendo-se a sentença recorrida.
Custas a cargo da Apelante.

Porto, 22 de fevereiro de 2024
Isabel Silva
António Carneiro da Silva
Judite Pires
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[1] Acórdão de 21/06/2022, processo 644/20.4T8LRA.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt/, sítio a atender nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem. No mesmo sentido, acórdão de 05/07/2022, processo 3411/19.4T8CSC.L1.S1.
[2] Acórdão do STJ, de 05/02/2020, processo 4821/16.4T8LSB.L1.S2. No mesmo sentido, acórdãos de 14/03/2019, processo nº 8765/16.1T8LSB.L1.S2.
[3] In “Manual de Processo civil”, 2ª edição, 1985, Coimbra Editora, pág. 406-407 e nota (1) da pág. 407.
[4] Acórdão STJ, de 25/05/2021, processo 1011/11.6TBAGH.L1.S1.
[5] Acórdão do STJ, de 28/10/2021, processo 4150/14.8TBVNG-A.P1.S1.
[6] Cf. acórdão da Relação de Coimbra, de 02/11/2010, processo nº 1867/08.0TBVIS.C1, disponível em www.dgsi.pt/, sítio a atender nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem.
[7] “Código Civil Anotado”, vol. I, Coimbra Editora, 3ª edição, anotação ao art.º 473º, pág. 429.
[8] Pires de Lima e Antunes Varela, obra e local citados.
[9] Acórdão STJ, de 12/12/2023, processo nº 576/22.1 T8VCT.G1.S1.
[10] Este é um dos exemplos citados por Almeida Costa, “Direito das Obrigações”, 10ª edição reelaborada, pág. 501: «O enriquecimento pode também encontrar causa a sua justificativa num preceito legal. Deste modo, não se considera que enriqueça sem causa, por exemplo, o credor de alimentos que recebeu os que lhe eram devidos (…)».