Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
195/11.8TBVFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CORREIA PINTO
Descritores: COMUNHÃO CONJUGAL
BENS PRÓPRIOS
BENS COMUNS DO CASAL
PRESUNÇÃO DE COMUNHÃO
PROTECÇÃO DOS CREDORES
Nº do Documento: RP20140217195/11.8TBVFR.P1
Data do Acordão: 02/17/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Legislação Nacional: ARTº 1723º E 1724 DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: O regime do artigo 1723.º, alínea c), do Código Civil assenta na presunção de comunhão prevista no artigo 1724.º, alínea b), do mesmo diploma, em que os terceiros confiam, e visa a protecção destes; estando em discussão interesses exclusivos dos cônjuges, não há obstáculo legal a impedir a prova da conexão entre os valores próprios e o bem adquirido.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 195/11.8TBVFR.P1
5.ª Secção (Cível) do Tribunal da Relação do Porto

Sumário (artigo 713.º, n.º 7, do Código de Processo Civil):

I - A alteração da matéria de facto pela Relação deve ser realizada ponderadamente, só devendo ocorrer se, do confronto dos meios de prova indicados pelo recorrente com a globalidade dos elementos que integram os autos, se concluir que tais elementos probatórios, evidenciando a existência de erro de julgamento, sustentam, em concreto e de modo inequívoco, o sentido pretendido pelo recorrente.
II - O regime do artigo 1723.º, alínea c), do Código Civil assenta na presunção de comunhão prevista no artigo 1724.º, alínea b), do mesmo diploma, em que os terceiros confiam, e visa a protecção destes; estando em discussão interesses exclusivos dos cônjuges, não há obstáculo legal a impedir a prova da conexão entre os valores próprios e o bem adquirido.

Acordam, na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:
I)
Relatório
1. B…, intentou a presente acção de condenação, com processo ordinário, contra C…, ambos melhor identificados nos autos.
1.1 O autor alegou, em suma, ter sido casado com a ré, sob o regime de comunhão de adquiridos, casamento que entretanto foi dissolvido, por divórcio, em Setembro de 2009, ao qual se seguiram negociações com vista à partilha dos bens comuns do casal. Na pendência do casamento, a ré adquiriu uma quota social correspondente a 50% do capital da sociedade comercial “D…, L.da”; durante as negociações para a partilha dos bens, a ré sempre transmitiu ao autor que a referida quota social era um bem próprio dela, porquanto a havia adquirido com o seu dinheiro, o que levou o autor a ficar plenamente convencido de que se tratava efectivamente de um bem próprio da ré, e, por isso, insusceptível de ser partilhado subsequentemente ao divórcio.
No dia 20 de Novembro de 2009, autor e ré celebraram escritura pública de partilha parcial de bens comuns do casal, no âmbito da qual acordaram, para além do mais, adjudicar à ré a dita quota social, à qual atribuíram o valor de € 17.500,00; apesar de haverem declarado na referida escritura que o autor havia recebido da ré a quantia global de € 38.710,49, tal declaração não corresponde à verdade, porquanto o autor jamais recebeu qualquer quantia da ré a título de tornas, nem antes nem ulteriormente à celebração da escritura.
Na sequência de consulta jurídica, realizada em 22 de Janeiro de 2010, o autor tomou conhecimento de que, afinal, a referida quota social não era um bem próprio da ré, mas antes um bem comum do casal, só nesse momento se apercebendo do erro em que havia incorrido; o valor atribuído à quota social na escritura é manifestamente inferior ao seu valor real, sendo certo que tanto o autor como a ré tinham disso perfeito conhecimento; ambas as partes sabiam que o valor contabilístico da quota, à data da outorga da escritura, ascendia a cerca de € 750.000,00; sempre persuadido de que a quota social correspondia a um bem próprio da ré, o autor estava convicto de que a atribuição do valor ao bem na escritura era uma questão meramente formal, sem consequências directas no acto de partilha dos bens, sendo certo que a ré pediu ao autor que lhe fosse atribuído o valor mais baixo possível, por razões que se prenderam com a diminuição da incidência fiscal do acto de transmissão. O autor jamais teria concluído o contrato de partilha se a sua vontade não tivesse sido viciada, o que era do perfeito conhecimento da ré; a atribuição, à referida quota social, em sede de escritura, de valor inferior ao seu valor real, teve como intuito enganar a Administração Fiscal, através da diminuição da base tributável e, consequentemente, da respectiva incidência fiscal.
Concluiu formulando o seguinte pedido: deve a presente acção ser julgada procedente por provada e, em consequência, ser a escritura de partilha parcial celebrada entre autor e ré declarada nula e de nenhum efeito; sem prescindir, deve o valor atribuído à quota social transmitida na escritura de partilha parcial ser declarado simulado, com as legais consequências.
1.2 A ré contestou, começando por invocar, a título de excepção, a caducidade do direito do autor, no que concerne ao primeiro pedido deduzido, porquanto há muito mais de um ano tinha o mesmo conhecimento dos factos que invoca como fundamento da anulação. Invocou depois a falta de interesse que legitime o referido pedido de anulação, porquanto a quota social em questão é efectivamente um bem próprio da ré, em virtude de haver sido adquirida por esta, com dinheiro próprio; o autor tinha pleno conhecimento de que a quota social havia sido adquirida com dinheiro próprio da ré. Impugnou a factualidade alegada pelo autor, no que concerne aos pressupostos do pedido de declaração de nulidade fundado em alegada simulação do valor atribuído à quota social; por último, imputou ao autor litigância de má fé, reclamando a este propósito a condenação do mesmo no pagamento de multa e em indemnização a seu favor, em montante não inferior a € 3.000,00.
Concluiu no sentido de que a acção deverá ser julgada totalmente improcedente.
1.3 O autor veio responder, defendendo a improcedência das excepções invocadas; suscitou também a litigância de má fé, em relação à ré, pedindo a condenação desta no pagamento de multa e em indemnização a seu favor, em montante não inferior a € 4.000,00.
1.4 Proferido despacho saneador, aí se relegou para final a apreciação da excepção de caducidade
Realizada audiência de julgamento, veio a ser proferida sentença que começou por julgar improcedente, por não provada, a excepção de caducidade, posto o que julgou a acção totalmente improcedente, com a consequente absolvição da ré relativamente aos pedidos deduzidos pelo autor e julgou não verificada a litigância de má fé em relação a ambas as partes.
2.1 O autor, inconformado com tal decisão, veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões (transcrição integral):
A) Vem o presente recurso interposto da Douta Sentença proferida pelo Meritíssimo Tribunal a quo que julgou improcedente, por não provada, a acção de anulação de escritura proposta pelo Apelante, absolvendo a Apelada dos pedidos de anulação da escritura pública parcial celebrada entre Apelante e Apelada, bem como do pedido subsidiário de declaração de simulação do valor atribuído à quota social objecto da mesma escritura.
REAPRECIAÇÃO DA PROVA GRAVADA
B) Quanto à matéria de facto considerada provada e não provada, vem o A., ora Apelante, interpor recurso por entender que o tribunal a quo fez uma incorrecta apreciação da prova, conclusão esta que resulta claramente da análise dos documentos juntos aos autos e depoimentos testemunhais.
C) No humilde entendimento do Apelante, no caso sub specie existiu erro notório de julgamento, patenteado pela desconformidade flagrante entre os elementos de prova recolhidos e a decisão da matéria de facto.
D) Assim, e no que concerne ao dinheiro para a realização do capital social da sociedade D…, LDA., o Meritíssimo Tribunal a quo deu como provado que este era proveniente do contrato de trespasse celebrado em 30 de Junho de 1999 entre a apelada e a sociedade comercial unipessoal por quotas denominada E…, LDA. (cfr. quesito 18 da base instrutória e acta de Audiência de Julgamento para decisão da matéria de facto de 5 de Fevereiro de 2013).
E) No relatório da douta decisão proferida quanto à matéria de facto, o Meritíssimo Tribunal a quo fundamenta a resposta aos quesitos apenas no depoimento da testemunha F…, mãe da Apelada (cfr. alínea d) do ponto II da Acta da decisão da matéria de facto).
F) Assim, e tendo em linha de conta que a resposta a este quesito baseou-se apenas no depoimento prestado pela testemunha F…, importa analisar o depoimento dessa testemunha, prestado à matéria do quesito 18.º da Base Instrutória, e que se encontra documentado no registo HABILUS MEDIA STUDIO, ficheiro 20130122152850_271487_65094, nos moldes que se passam a transcrever:
G) Ora, salvo o devido respeito por melhor opinião, o Apelante não pode concordar com a valoração probatória do depoimento da testemunha F…, uma vez que o depoimento dessa testemunha, de acordo com os critérios legais de prova e as regras de repartição do respectivo ónus entre as partes em litígio, não são susceptíveis de sustentar a resposta proferida pelo Meritíssimo Tribunal a quo ao quesito 18.º da base instrutória.
H) O quesito cuja resposta nesta sede se impugna apresenta a seguinte formulação: “18.º Foi com o dinheiro proveniente do contrato de trespasse referido em J) que a Ré realizou a sua parte no capital social da sociedade aludida em E)?;
I) É certo que, conforme decorre da transcrição supra, a testemunha F… não se coíbe de, a instâncias do Mandatário da Apelada, peremptoriamente afirmar que não tem qualquer dúvida que o dinheiro aplicado pela Apelada na aquisição da quota na D…, L.da, foi o dinheiro que aquela recebeu da venda da farmácia.
J) Todavia, quando inquirido pelo Mandatário do Apelante, a testemunha revelou-se incapaz de concretizar essa afirmação, designadamente situando no tempo a aquisição da quota e a compra da casa de morada de família.
K) Mais que isso, afirmou a testemunha que o casal “tinha uma casa junto ao mar” e que “depois compraram outra”. E inquirida pelo Mandatário do Apelado se “compraram outra, mas não venderam a de …?” respondeu a testemunha “Venderam sim senhora”; sendo certo que o Mandatário do Apelado ainda insistiu: “Tem a certeza?”, ao que a testemunha perseverou “Ele vendeu essa casa de … a mim, fui eu que a comprei”.
L) Sucede que essa casa de … a que a testemunha se reporta nunca foi vendida, permanecendo no património comum do casal até à data da celebração da escritura de partilha parcial em causa nos presentes autos, outorgada em 2009, constando nessa mesma escritura como verba 2 do Activo nessa escritura.
M) Ou seja, facilmente se observa a confusão e o frágil conhecimento da testemunha sobre a realidade do património do casal dissolvido, e sobre as transformações que se verificaram nesse património ao longo do tempo, designadamente no que tange à aquisição e alienação de bens na pendência do casamento entre Apelante e Apelada.
N) Aliás, quando confrontada directamente com a questão de “se não houve parte desse dinheiro [proveniente do trespasse da farmácia realizado em 30 de Junho 1999] que tivesse sido aplicado por exemplo na habitação” a testemunha responde “Não sei, não sei, não lhe sei responder, não sei não”, demonstrando ainda um total e absoluto desconhecimento sobre os valores referentes ao trespasse e referentes à aquisição da quota na D….
O) Ou seja, mais uma vez a testemunha revela um total desconhecimento sobre a vida patrimonial, económica e financeira do extinto casal; e uma ignorância absoluta sobre os valores envolvidos nas transacções em causa, sua proveniência e seu destino.
P) Este desconhecimento continua presente ao longo da inquirição feita a instâncias do Meritíssimo Tribunal a quo, insistindo pela existência de uma compra da casa de … (compra que, conforme se deixou explanado, nunca existiu), mas desconhecendo se tal compra foi prévia ou posterior à aquisição da quota social na sociedade comercial D…, LDA., e demonstrando-se absolutamente ignorante no que tange aos valores em causa nas transacções em causa, e à gestão dos valores aí advindos pelo casal.
Q) E se é certo que a testemunha pugna pela sua convicção de que foi com o dinheiro proveniente do contrato de trespasse celebrado que foi adquirida a quota nesta sociedade comercial, porque “é algo que lhe foi transmitido pela sua filha”, mais revelando uma intensa hostilidade perante o seu ex-genro, insistindo que o Apelado só “tinha era dívidas, ele tinha era dívidas” e “ele vivia sempre à custa da minha filha”, não é menos certo que se revelou em absoluto incapaz de racionalizar esta sua convicção, trazendo ao seu depoimento factos susceptíveis de sustentar tal crença.
R) A testemunha aduziu um depoimento subjectivamente infiável e objectivamente insustentado, manifestamente vinculado a uma tese “de que o dinheiro aplicado pela Apelada na aquisição da quota na D…, L.DA foi o dinheiro que aquela recebeu da venda da farmácia”, com algum grau de efervescência emocional e desprovido de especificação fáctica.
S) A testemunha não demonstrou ter qualquer conhecimento directo dos factos em causa, designadamente sobre as mutações do património e das finanças do casal na pendência do casamento.
T) A testemunha não diz de que factos concretos retira essa sua convicção relativa à proveniência do dinheiro; designadamente, não responde a questões que seriam fundamentais para a prova do quesito em causa, nomeadamente sobre o paradeiro do dinheiro desde a data em que a farmácia foi vendida e a data da aquisição da quota na D…, e sobre a proveniência do dinheiro com que foram sendo comprados os outros bens do casal, designadamente os vários bens imóveis do casal, e os restantes bens.
U) Ou seja, não resulta do depoimento da testemunha factualidade suficiente para reconduzir, com o mínimo grau de certeza, o dinheiro do trespasse celebrado em 30 de Junho de 1999 à aquisição da quota na sociedade comercial D…, L.DA.
V) Os art.ºs 342.º e 343.º do Código Civil fazem recair sobre quem invoca um direito o ónus de comprovar os factos que o sustentam, sob pena de improcedência da pretensão aduzida.
W) Nos presentes autos, veio a Apelada alegar que foi com o dinheiro proveniente de um contrato de trespasse celebrado sobre um seu bem próprio que realizou a sua parte no capital social da sociedade D…, L.DA.
X) Todavia, a Apelada não carreou aos autos elementos susceptíveis à prova deste facto, designadamente que permitissem apurar qual o destino efectivo do dinheiro proveniente da celebração do mencionado contrato de trespasse e qual a origem real do dinheiro com o qual realizou a sua parte no capital social daquela sociedade comercial; sendo os autos absolutamente omissos em quaisquer dados susceptíveis de sustentar a canalização efectiva da entrada e saída do dinheiro em causa.
Y) Pelo que, a despeito da instrução produzida, o Meritíssimo Tribunal a quo não dispunha de meios que lhe permitissem afirmar que foi o dinheiro proveniente do contrato de trespasse que foi utilizado para a realização da parte da Apelada no capital social da sociedade comercial; ou seja, a Apelada não logrou, pois, e nesta sede, satisfazer o ónus probatório que sobre si impendia; pelo que, salvo o devido respeito por melhor opinião, deveria a douta sentença ter considerado não provado o quesito 18º.
Z) Nesta medida, e não se encontrando provado que a quota da sociedade comercial D…, L.DA, foi adquirida com valores próprios da Apelada, sempre o Mmo. Tribunal a quo teria de considerar tal quota como bem comum, nos termos do artigo 1724.º do Código Civil.
ANULABILIDADE DA ESCRITURA DE PARTILHA COM FUNDAMENTO EM ERRO SOBRE O OBJECTO DO NEGÓCIO
AA) Resulta efectivamente da matéria dada como provada na douta sentença recorrida na escritura pública de aquisição da quota social da sociedade comercial D…, L.DA, outorgada em 30 de Junho de 1999, não consta a indicação da proveniência do dinheiro da realização da quota, nos termos e para os efeitos da alínea c) do artigo 1723.º do CC; mais resultando provado que o Apelante só outorgou a escritura pública de partilha em causa por estar convicto de que a verba correspondente à quota social da “D…, L.da” era um bem próprio da Apelada.
BB) Entende o Apelante que a referida quota, por a sua aquisição não ter sido realizada de acordo com os pressupostos da referida alínea c) do artigo 1723º do Código Civil, é um bem comum do casal.
CC) O Apelante, ao celebrar a escritura de partilha, fez uma representação errónea das circunstâncias de facto e de direito que presidiram ao negócio, porquanto se encontrava, no momento em que realizou a dita escritura, plenamente convencido de que a quota social da farmácia em causa era um bem próprio da Apelada, e, portanto, sua propriedade exclusiva e insusceptível de ser partilhado.
DD) Tal representação inexacta da realidade foi-lhe induzida pela conduta da Apelada, que fez o Apelante acreditar que a quota social da farmácia se tratava de um bem próprio, fazendo-o cair em erro quanto à sua natureza legal.
EE) A Apelada sabia, e não podia deixar de saber, que, se o Apelante tivesse conhecimento que a quota social se tratava de um bem comum do casal, jamais teria celebrado a escritura de partilha parcial em causa nos presentes autos.
FF) A vontade do Apelante foi viciada em virtude de sempre ter acreditado, porquanto sempre lhe foi transmitido pela Apelada, que o bem em causa se tratava de um bem próprio da Apelada, e não de um bem comum do casal.
GG) Se o Apelante tivesse um conhecimento exacto e correcto da realidade, à data em que celebrou a escritura, e estivesse plenamente esclarecido acerca da circunstância da quota da sociedade “D…, L.DA” se tratar um bem comum, jamais teria celebrado com a R. o negócio que celebrou, e, assim, realizado a dita escritura de partilha parcial.
HH) Posto isto, entende o Apelante que a escritura outorgada é anulável, em virtude de erro sobre as qualidades essenciais do objecto do negócio, nos termos do artigo 251º do Código Civil.
II) Todavia, na douta sentença apelada, o Meritíssimo Tribunal “a quo” entendeu que a quota social em causa constituía bem próprio da Apelada, solução técnico-jurídica com a qual, salvo o devido respeito por diversa opinião, o Apelante jamais poderá concordar.
JJ) Por um lado, considerou o Mmo. Tribunal a quo que o contrato promessa de partilha, celebrado por Apelante e Apelada em 24 de Agosto de 2009, constituía “documento equivalente”, para os efeitos da alínea c) do artigo 1723º do Código Civil.
KK) Conforme resulta da matéria de facto dada como provada na douta sentença recorrida, o Apelante sempre foi induzido em erro pela Apelada, que sempre o manteve em erro quanto à qualidade do bem em causa, havendo-o sempre feito acreditar que tal bem era um seu bem próprio.
LL) Ou seja, à data em que foi celebrado o contrato promessa de partilha, o Apelante laborava ainda em erro quanto ao objecto do negócio, o que se deixa alegado com as legais consequências.
MM) Por outro lado, por ter sido celebrado tal contrato na pendência do casamento, e por via dele resultar uma manifesta desproporcionalidade na atribuição das quotas a cada um dos cônjuges, é tal contrato-promessa nulo, por violação do disposto no n.º 1 do artigo 1714º do Código Civil.
NN) Acresce que, para os efeitos da alínea c) do artigo 1723º do Código Civil, a admissibilidade de documento equivalente aplica-se apenas às situações em que não exista documento de aquisição dos bens, substituindo-o em vez de constituir uma sua alternativa.
OO) É que o documento equivalente, pela própria teleologia da norma em causa, é “documento equivalente” à aquisição, ou seja, documento que de algum modo titule o mesmo acto negocial em causa no documento de aquisição; aliás, caso assim não se considerasse, seria por demais facilitada a fraude a tal preceito, contornando-o com meros documentos que poderiam ser assinados em qualquer momento anterior ou posterior à aquisição do bem, em manifesta violação do das normas aplicáveis à comunhão.
PP) Admitir o contrato-promessa celebrado entre Apelante e Apelada como “documento equivalente” nos termos da alínea c) do artigo 1723º do Código Civil consubstancia desse modo uma alteração na composição concreta das massas patrimoniais, que por violação do disposto nos artigos 1714º, n.º 1 e 2, 1723º, alínea c) e 1724º b) do Código Civil, está ferida de nulidade.
QQ) Acresce que, e atendendo à natureza dos interesses em causa, para que o contrato em causa se pudesse considerar documento equivalente, o mesmo deveria “equivaler” também no que tange à forma, devendo ser celebrado por escritura pública; tratando-se de mero documento particular, não pode o mesmo conter declarações a que, pela sua essência, o legislador entendeu consagrar a forma pública, sob pena de nulidade.
RR) Pelo exposto, não podia o Meritíssimo Tribunal “a quo” considerar o contrato-promessa de partilha entre os cônjuges como documento equivalente para os termos da alínea c) do artigo 1723º do Código Civil.
SS) Por outro lado, entende ainda o Mmo. Tribunal a quo que tal documento deveria ser ainda valorado como meio de prova da natureza de bem próprio do dinheiro empregue na aquisição do bem, para efeitos de qualificação do bem como comum.
TT) Todavia, inúmera doutrina e jurisprudência tem vindo a considerar, e entende o Apelado que com razão, que, para efeitos de excluir da meação comum bens adquiridos na pendência do matrimónio, não é admissível qualquer prova para além da expressamente prevista na mencionada alínea c) do artigo 1723º do Código Civil.
UU) É que, efectivamente, ao admitir-se a possibilidade de a norma aqui em causa não ser aplicável na relação entre cônjuges, tal gerará uma indeterminação do conteúdo da meação do casal, totalmente desvirtuadora do regime de bens do casamento, possibilitando desde logo inúmeros mecanismos defraudadores desse regime, cuja imutabilidade o legislador tanto pugnou por salvaguardar (cf., por exemplo, o artigo 1714º do Código Civil).
VV) Uma interpretação diferente da alínea c) do artigo 1723º do Código Civil lesa, desde logo, o interesse de terceiros à estabilidade das diversas massas patrimoniais; mas também, senão sobretudo, o interesse dos cônjuges a uma precisa definição das respectivas massas patrimoniais.
WW) Não existe qualquer fundamento que indicie que esta disposição legal contém margem para qualquer excepção.
XX) A falta de menção da proveniência do dinheiro utilizado na aquisição constitui uma presunção absoluta de que os bens são comuns, não sendo, portanto, ilidível por qualquer outro meio de prova, consubstanciando-se como uma excepção “juris et de jure”.
YY) Qualquer interpretação diferente terá sempre de ser entendida como uma inadmissível interpretação contra legem, que poderá redundar num mecanismo susceptível de contornar, infundadamente, o regime legal de bens fixado na data do casamento, olvidando assim a imperatividade legal deste regime; pelo que sempre terá que se entender que a quota social da sociedade comercial D…, L.DA é um bem comum do casal.
ZZ) Ainda que não se perfilhe este entendimento, no que não se concede, é de realçar que, mesmo a jurisprudência que defende que a falta de declaração prevista na alínea c) do artigo 1723º do CC pode ser substituída por qualquer meio de prova que demonstre que o pagamento foi feito apenas com dinheiro ou bens próprios de um deles, jamais escusa a exigência prevista na segunda parte da mencionada disposição legal.
AAA) Ao abrigo da alínea c) do artigo 1723º do Código Civil, para que o bem possa ser considerado próprio de um dos cônjuges, o documento de aquisição tem de ter sempre a intervenção de ambos os cônjuges.
BBB) A ratio da alínea c) do artigo 1723º do Código Civil impõe sempre a intervenção de ambos os cônjuges, para que haja reconhecimento por parte de ambos – e muito especialmente daquele que não adquire o bem como próprio – do carácter próprio dos bens empregues.
CCC) E, quanto a tal exigência da necessidade da intervenção de ambos os cônjuges no documento de aquisição, não existe qualquer divergência jurisprudencial ou doutrinal – tanto a tese que defende que a declaração de que os bens adquiridos com dinheiro ou valores próprios tem de estar obrigatoriamente feita no documento de aquisição (juris et de jure), como a tese que defende que a prova dessa proveniência se pode fazer por outro meio (juris tantum), coincidem na exigibilidade desse pressuposto.
DDD) Ou seja, é entendimento doutrinal e jurisprudencial unânime que, para que possa existir aplicação da alínea c) do artigo 1723º do Código Civil é sempre necessária a intervenção dos dois cônjuges no documento de aquisição.
EEE) Ora, analisada a escritura de constituição da sociedade D…, L.DA, facilmente se discorre que o Apelante não teve qualquer intervenção na mesma
FFF) Pelo que, tratando-se de um documento que não teve a intervenção de ambos os cônjuges, nos termos que se deixaram explanados supra, e independentemente da tese à qual se adira sobre a natureza da presunção estabelecida na alínea c) do artigo 1723.º do Código Civil, não pode este bem integrar-se na disposição legal aí contida, por lhe faltar o pressuposto previsto na última parte da norma.
GGG) Assim, a quota social a que se refere a escritura de partilha parcial trata-se de um bem comum, nos termos e para os efeitos da alínea b) do artigo 1724º do Código Civil.
SIMULAÇÃO DO VALOR ATRIBUÍDO À QUOTA SOCIAL NA ESCRITURA PÚBLICA DE PARTILHA
HHH) Considerou a douta sentença ora em crise que se encontram preenchidos dois dos pressupostos da simulação: o da divergência entre a vontade real e a vontade declarada, e o da existência de acordo simulatório.
III) Considerou, no entanto, o Meritíssimo Tribunal a quo que não se encontra verificado o pressuposto do “intuito de enganar terceiros”, já que considerou que substancialmente, para a administração fiscal, a desconformidade entre o valor real da quota e o valor declarado não assumiu efectiva relevância; entendimento que o Apelante não pode sufragar.
JJJ) Antes de mais, realce-se que resulta provado da sentença que a Apelada pediu ao Apelante que fosse atribuído à referida quota social o valor mais baixo possível, por forma a diminuir a incidência fiscal do acto de transmissão, no que Apelante e Apelada acordaram.
KKK) A qualificação do acto como simulado basta-se com o intuito de enganar terceiros, não se exigindo que esse engano exista realmente, pelo que a mera intenção de Apelante e Apelada de diminuição da incidência fiscal do acto de transmissão, no intuito de enganar a Administração Fiscal, preenche, para os efeitos do artigo 240.º do Código Civil, o conceito de “intuito de enganar terceiros” – intuito esse que se terá de ter por verificado, independentemente do bem em causa ser qualificado como próprio da Apelada ou comum à meação conjugal.
LLL) Pelo que, da matéria dada como provada na sentença, resulta estarem preenchidos os pressupostos da simulação, nos termos e para os efeitos daquele artigo 240.º do Código Civil.
MMM) Por outro lado, não é verdade que a desconformidade entre o valor real da quota e o valor declarado não tenha assumido efectiva relevância, já que essa desconformidade gerou prejuízo substancial para a Administração Fiscal.
NNN) Desde logo porque, ao ser considerado o efectivo valor real da quota social em causa, e ao ser tal quota atribuída à Apelada, seria tal valor tributado para efeitos de mais-valias em sede de IRS.
OOO) Por outro lado, ao ser declarado o valor real da quota na escritura de partilha celebrada, que resultou provado ascender a cerca de € 150.000,00, ao invés dos € 17.500,00 que foram calculados, tal implicaria um acréscimo substancial no montante a ser recebido pela Apelada, o que desde logo causaria uma alteração dos montantes atribuídos a Apelante e Apelada, com um manifesto excesso da quota por parte da Apelada, tributável nos termos do ponto 1.1. da Tabela Geral do Imposto de Selo e da alínea a) do artigo 4.º do Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis.
PPP) Pelo que, e apesar da existência de prejuízo não constituir pressuposto da existência de simulação, a verdade é que existiu um efectivo prejuízo por parte da Administração Fiscal.
QQQ) Nestes termos, sendo a escritura de partilha parcial considerada válida – no que não se concede – sempre deveria a sentença ter declarado o valor atribuído à quota social objecto da escritura de partilha simulado e, por via disso ser corrigido o quantum das prestações fixadas pelas partes.
RRR) A douta decisão recorrida viola, pois, entre outros, o disposto nos artigos 240.º, 251.º, 342.º, 343.º, 1714.º, 1723.º alínea c) e 1724.º, todos do Código Civil, e 655.º do Código do Processo Civil, pelo que deverá ser revogada e substituída por outra que declare nula e de nenhum efeito, a escritura de partilha parcial celebrada entre Apelante e Apelada, ou, sem prescindir, que declare simulado o valor atribuído à quota social transmitida nessa escritura.»
Termina afirmando que deverá ser concedido provimento ao recurso e revogada a sentença recorrida.
2.2 A ré veio responder, concluindo que a decisão da matéria de facto quanto ao quesito 18.º deve ser mantida, litigando o apelante com evidente má fé, sujeitando a apelada a maiores despesas e incómodos, pelo que deve ser condenado em multa e indemnização a seu favor.
A exigência do artigo 1723.º, alínea c), do Código Civil tem no seu propósito a salvaguarda da confiança, da certeza e segurança das relações jurídicas de natureza patrimonial estabelecidas entre terceiros e os cônjuges; não se compreende que, estando apenas em causa interesses dos cônjuges, o cônjuge apelante, depois de reconhecer que a quota foi adquirida com dinheiro próprio da apelada e por tal bem próprio desta, possa vir pedir ao Tribunal que seja declarado o contrário do que reconhece.
Termina afirmando que a pretensão do apelante tem como pressuposto o triunfo da verdade formal sobre a verdade material, o que não se comporta nos contornos da justiça equitativa.
3. Colhidos os vistos e na ausência de fundamento que obste ao conhecimento do recurso, cumpre apreciar e decidir.
As conclusões formuladas pelo apelante definem a matéria que é objecto de recurso e que cabe aqui precisar, em face do que se impõe decidir as seguintes questões:
● A impugnação da matéria de facto (especificamente, da resposta ao quesito 18.º da base instrutória).
● A anulabilidade da escritura de partilha, por alegado erro sobre o objecto do negócio.
● A simulação do valor atribuído à quota social na escritura pública de partilha.
II)
Fundamentação
1. Factos relevantes.
1.1 Antes de avançar na apreciação das questões suscitadas em sede de motivação de recurso e com interesse para a decisão a proferir, importa considerar os factos que foram julgados provados na sentença que é objecto de recurso e que integralmente se transcrevem.
«2.1.1 (A) – Autor e Ré celebraram entre si casamento católico, sem precedência de convenção antenupcial, no dia 5 de Setembro de 1998.
2.1.2 (B) – Tal casamento foi dissolvido por divórcio decretado por decisão proferida em 25 de Setembro de 2009, já transitada em julgado, no âmbito do processo n.º 5164/2009 que correu termos na Conservatória do Registo Civil de São João da Madeira.
2.1.3 (C) – Em 24 de Agosto de 2009, Autor e Ré celebraram contrato-promessa de partilha, para separação de meações, donde consta, para além do mais, o seguinte:
“2.ª
Bem Próprio da Segunda Outorgante:
VERBA ÚNICA
Uma quota no valor de 17.500,00 € (...) na sociedade por quotas denominada D…, L.da, NIPC ………, com sede em …, …, concelho de Oliveira de Azeméis.
4.ª
a) O primeiro Outorgante reconhece, para todos os devidos e legais efeitos, nomeadamente deste Contrato, que a quota social identificada no Artigo 2º, Verba única, apesar de ter sido adquirida na constância do matrimónio, é um bem próprio da Segunda Outorgante, por ter sido adquirida com dinheiro/bens pertença desta antes do casamento.
b) Por efeito do reconhecimento expresso na antecedente alínea a), o Primeiro Outorgante compromete-se, sem qualquer contrapartida económica ou outra qualquer contrapartida, a outorgar toda a documentação e/ou escritura, nomeadamente de Partilha, se tal for necessário, para que, em termos de registo comercial, tal quota fique registada só em nome da Segunda Outorgante, no estado de divorciada” – cf. documento junto aos autos a fls. 24 a 26, que aqui se dá por inteiramente reproduzido.
2.1.4 (D) – Por escritura pública de partilha parcial, outorgada em 20 de Novembro de 2009 no Cartório Notarial de São João da Madeira, Autor e Ré declararam, para além do mais, o seguinte:
“Que o dissolvido casal, entre outros bens, é dono e legítimo possuidor do seguinte:
ACTIVO
Quota no valor nominal de dezassete mil e quinhentos euros, de que a segunda outorgante é titular no capital social de (…), da sociedade comercial por quotas que usa a firma “D…, L.da”, com sede no …, freguesia …, concelho de Oliveira de Azeméis, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Oliveira de Azeméis sob o número único de matrícula e de identificação fiscal ……….. (...).
Que atribuem a esta quota social o valor de dezassete mil e quinhentos euros.
(...).
Que procedem à respectiva partilha nos termos seguintes:
1. Ao primeiro, B…, é-lhe adjudicada a verba dois do activo (artigo urbano 1890), no montante de (...), ficando a seu cargo com toda a verba quatro e metade da verba cinco ambas do passivo, no valor global de (...).
Este outorgante leva assim a menos a quantia de cinquenta e seis mil cento e trinta e cinco euros e setenta e nove cêntimos, no activo, e leva a menos a quantia de dezassete mil quatrocentos e vinte e cinco euros e trinta cêntimos, no passivo, pelo que em tornas recebe da segunda outorgante, C…, a quantia de trinta e oito mil setecentos e dez euros e quarenta e nove cêntimos.
2. À segunda, C…, são-lhe adjudicadas: do activo – a quota social, no valor de (...) e a verba um (imóvel – artigo urbano 670), no valor de cento e sessenta e quatro mil duzentos e setenta euros, e, assume o encargo com o passivo – as verbas um, dois, três e metade da verba cinco, no montante global de duzentos e sessenta e nove mil oitocentos e cinquenta e nove euros e trinta e seis cêntimos.
(...).
Mais declarou o primeiro outorgante:
Que já recebeu da segunda as respectivas e referidas tornas a que tinha direito, ficando assim com a sua meação totalmente preenchida” – cf. documento junto aos autos a fls. 29 a 37, que aqui se dá por inteiramente reproduzido.
2.1.5 (E) – Por escritura pública outorgada no dia 1 de Setembro de 1999 no Cartório Notarial de Oliveira de Azeméis, foi celebrado entre G… e C… o contrato de sociedade da firma “D…, L.da” – cf. documento junto aos autos a fls. 59 a 63, que aqui se dá por inteiramente reproduzido.
2.1.6 (F) – Na escritura pública referida em 2.1.5) não consta a indicação da proveniência do dinheiro de realização da quota da aqui Ré C….
2.1.7 (G) – Por escritura pública de trespasse outorgada no dia 1 de Setembro de 1999 no Cartório Notarial de Oliveira de Azeméis, G… e C…, outorgando a primeira por si e ambas na qualidade de únicas sócias da sociedade comercial por quotas que usa a firma “D…, L.da”, e H…, como terceiro outorgante, declararam, para além do mais, o seguinte:
“(...).
Declarou a primeira outorgante em seu próprio nome:
Que é dona a legítima possuidora de um estabelecimento comercial de Farmácia.
(...).
Que trespassa à sociedade representada da primeira e segunda outorgantes, o identificado estabelecimento comercial, no conjunto e complexo das suas instalações, utensílios, equipamentos, mercadorias, alvarás e licenças e todos os demais direitos que o integram, designadamente o da posição de arrendatária (...).
Que este trespasse é feito pelo preço de cinquenta e cinco milhões de escudos que já recebeu da sociedade compradora a quem é dada quitação” – cf. documento junto aos autos a fls. 106 a 108, que aqui se dá por inteiramente reproduzido.
2.1.8 (H) – A sociedade comercial por quotas denominada “D…, L.da” encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Oliveira de Azeméis sob o n.º ………, desde 27 de Outubro de 1999, com o capital social de € 35.000,00, tendo como objecto a actividade de farmácia e como sócias-gerentes G… e a aqui Ré C…, cada uma delas com uma quota de €17.500,00 – cf. documento junto aos autos a fls. 22 a 23, que aqui se dá por inteiramente reproduzido.
2.1.9 (I) – Por escritura pública de trespasse outorgada em 30 de Novembro de 1994 no Cartório Notarial de Mortágua, I…, em representação da sociedade comercial por quotas denominada “J…, L.da”, declarou trespassar à ora Ré o estabelecimento comercial de farmácia que gira sob a designação “J…, L.da”, pelo preço de Esc:15.000.000$00 – cf. documento junto aos autos a fls. 64 a 70, que aqui se dá por inteiramente reproduzido.
2.1.10 (J) – Por escritura pública de trespasse outorgada em 30 de Junho de 1999 no Cartório Notarial de Tondela, a aqui Ré declarou trespassar à sociedade comercial unipessoal por quotas denominada “E…, L.da” o estabelecimento comercial de farmácia aludido em 2.1.9). pelo preço de Esc: 50.000.000$00 – cf. documento junto aos autos a fls. 71 a 73, que aqui se dá por inteiramente reproduzido.
2.1.11 (K) – Por escritura pública outorgada em 5 de Janeiro de 2000 no Cartório Notarial de Condeixa-a-Nova, foi rectificada a escritura pública mencionada em 2.1.10), “(...) no sentido de passar a constar que o mesmo estabelecimento comercial foi trespassado pelo preço de cento e treze milhões de escudos (...)” – cf. documento junto aos autos a fls. 80 a 82, que aqui se dá por inteiramente reproduzido.
2.1.12 (L) – O Autor jamais recebeu qualquer quantia de Ré a título de tornas no âmbito da escritura pública de partilha aludida em 2.1.4).
2.1.13 (1.º) – Durante as negociações tendentes à celebração do negócio mencionado em 2.1.4), a Ré sempre transmitiu ao Autor que a quota social aí descrita era seu bem próprio, por a haver adquirido com o seu dinheiro.
2.1.14 (2.º) – O Autor só assinou o contrato-promessa referido em 2.1.3) por ter ficado convencido de que tal quota social era um bem próprio da Ré.
2.1.15 (3.º) – O Autor só outorgou a escritura pública de partilha referida em 2.1.4) no pressuposto de que a quota social aí descrita pertencia exclusivamente à Ré.
2.1.16 (4.º) – O estabelecimento comercial de farmácia aludido em 2.1.7) está inserido numa zona povoada.
2.1.17 (5.º) – O valor médio de facturação anual de tal estabelecimento comercial, reportado ao período de 2005 a 2009, inclusive, ascendeu a € 1.329.121,22.
2.1.18 (6.º) – À data mencionada em 2.1.4) [20 de Novembro de 2009], Autor e Ré tinham consciência de que o valor de € 17.500,00 atribuído à quota social não correspondia ao seu valor real.
2.1.19 (7.º) – E não foi sua vontade, na realidade, atribuir-lhe tal valor.
2.1.20 (8.º) – À data mencionada em 2.1.4) [20 de Novembro de 2009], Autor e Ré sabiam que o valor contabilístico da quota social ascendia a cerca de € 150.000,00.
2.1.21 (9.º) – O Autor estava convicto de que a atribuição do valor da quota social, na escritura pública de partilha, era uma questão meramente formal, sem consequências directas no acto de partilha dos bens.
2.1.22 (10.º) – Por supor que a quota social era bem próprio da Ré.
2.1.23 (11.º) – A Ré pediu ao Autor que fosse atribuído à referida quota social o valor mais baixo possível.
2.1.24 (12.º) – Por forma a diminuir a incidência fiscal do acto de transmissão.
2.1.25 (13.º) – No que Autor e Ré acordaram.
2.1.26 (14.º) – A Ré sabia do referido em 2.1.15).
2.1.27 (18.º) – Foi com o dinheiro proveniente do contrato de trespasse referido em 2.1.10) que a Ré realizou a sua parte no capital social da sociedade aludida em 2.1.5).»
1.2 Na fixação da matéria de facto, afirmou-se a seguinte fundamentação:
«A presente decisão tem por base a convicção resultante da análise livre e crítica da prova produzida, tendo sido levado em consideração, especialmente:
a) No que concerne à matéria dos itens 1.º a 3.º e 9.º a 14.º, o sentido da decisão, para além de encontrar sustentação parcial no teor do contrato-promessa de partilha, correspondente ao documento de fls. 24 a 26, no qual a quota social em questão surge descrita como bem próprio da ré, bem assim no teor da escritura pública de partilha parcial correspondente ao documento de fls. 29 a 37, este último apenas no que respeita ao valor atribuído à quota social a que nos referimos, muito inferior ao valor contabilístico da mesma quota apurado no âmbito da prova pericial realizada nestes autos, e que a seguir nos referiremos, traduz o sentido do depoimento da testemunha K…, irmã do autor, mormente na parte em que deu conta de ter acompanhado de perto as incidências inerentes à partilha dos bens subsequente ao divórcio de autor e ré, estando certa, tendo por base as conversas que foi tendo com o autor, que este, pelo menos até à outorga da referida escritura de partilha, sempre esteve convicto de que “a farmácia seria um bem próprio da ré”, depoimento inteiramente merecedor de juízo de credibilidade, não contrariado pela produção de qualquer outro meio de prova.
b) Relativamente à matéria do item 4.º, atendeu-se ao local da situação do estabelecimento de farmácia em questão, correspondente ao …, freguesia …, concelho de Oliveira de Azeméis, conforme consta da escritura de trespasse correspondente ao documento de fls. 106 a 108, local notoriamente reconhecido por todos como estando integrado em zona povoada, o que foi também de resto afirmado pela referida testemunha K….
c) Quanto à matéria dos itens 5.º a 8.º, o sentido da decisão tem por base o teor do Relatório Pericial de fls. 154 e segs., subscrito pelos três peritos nomeados, complementado pelos esclarecimentos por estes prestados em audiência de julgamento, sendo que, no respeitante ao apurado valor real contabilístico da quota social, é razoável admitir que tanto Autor como Ré não podiam deixar de ter conhecimento que o mesmo era muito superior ao valor declarado na escritura, tendo por base as regras da experiência comum.
d) No que toca à matéria do item 18.º), o sentido da decisão traduz o sentido do depoimento da testemunha F…, mãe da ré, que demonstrou conhecimento directo dos factos, em virtude do relacionamento intenso que mantinha com a sua filha e com o autor, seu genro, dando conta ao tribunal do historial e das razões que estiveram na base do investimento em questão, afirmando peremptoriamente que o autor nunca em momento algum reuniu condições financeiras para, por si, contribuir com o quer que fosse para custear a participação da ré no capital social da sociedade em questão, chegando mesmo a dizer que o que ele tinha era sobretudo dívidas, e que sempre o mesmo teve plena consciência de que a quota social de que se fala nos autos sempre constituiu um bem próprio da ré, por ter sido adquirida com recurso a dinheiro próprio da mesma, depoimento que, não obstante a referida relação familiar, foi merecedor de juízo de seriedade e isenção, não contrariado pela produção de qualquer outro meio de prova relevante.
e) A decisão que julgou não provados factos constantes da base instrutória teve por base a circunstância de nenhum meio de prova tido por suficientemente relevante, adequado, idóneo e credível haver sido produzido capaz de justificar decisão em sentido diverso.»
2. A impugnação da matéria de facto.
2.1 Nos termos do artigo 712.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil, a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 685.º-B, a decisão com base neles proferida – cf. artigos 662.º e 639.º na redacção actual, resultante da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho.
Importa ter presente a prevalência do princípio da liberdade de julgamento, consagrado no artigo 655.º do Código de Processo Civil (artigo 607.º, n.º 5, na redacção actual), nos termos do qual o tribunal aprecia livremente as provas, decidindo segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto controvertido; não invalida a convicção do tribunal o facto de não existir uma prova directa e imediata da generalidade dos factos em discussão, sendo legítimo que se extraiam conclusões em função de elementos de prova, segundo juízos de normalidade e de razoabilidade, ou que se retirem ilações a partir de factos conhecidos.
Por isso, a alteração da matéria de facto pela Relação deve ser realizada ponderadamente, em casos excepcionais e pontuais; só deverá ocorrer se, do confronto dos meios de prova indicados pelo recorrente com a globalidade dos elementos que integram os autos, se concluir que tais elementos probatórios, evidenciando a existência de erro de julgamento, sustentam, em concreto e de modo inequívoco, o sentido pretendido pelo recorrente.
“A efectivação do segundo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto não implica a repetição do julgamento pelo tribunal de 2.ª instância – um novo julgamento, no sentido de produzir, ex novo, respostas aos quesitos da base instrutória –, mas, apenas, verificar, mediante a análise da prova produzida, nomeadamente a que foi objecto de gravação, se as respostas dadas pelo tribunal recorrido têm nas provas suporte razoável, ou se, pelo contrário, a convicção do tribunal de 1.ª instância assentou em erro tão flagrante que o mero exame das provas gravadas revela que a decisão não pode subsistir” – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21 de Junho de 2007 (disponível em www.dgsi.pt, processo 06S3540).
Assim, as disposições em causa não visam propriamente a concretização de um segundo julgamento que inclua a reapreciação global e genérica de toda a prova, tendo antes em vista um segundo grau de apreciação da matéria de facto, de modo a colmatar eventuais erros de julgamento, nos concretos pontos de facto que o recorrente assinala.
2.2 O recorrente questiona a resposta dada ao quesito 18.º, pretendendo que deveria ter-se julgado não provado.
O tribunal recorrido julgou aí provado que foi com o dinheiro proveniente do contrato outorgado em 30 de Junho de 1999, pelo qual trespassou à sociedade comercial unipessoal por quotas denominada “E…, L.da” o estabelecimento comercial de farmácia denominado “J…”, que a ré realizou a sua parte no capital social da sociedade “D…, L.da”, constituída por escritura pública outorgada no dia 1 de Setembro de 1999.
Nos termos que anteriormente se deixaram transcritos, o tribunal recorrido justificou o sentido da decisão afirmando que traduz o sentido do depoimento da testemunha F…, mãe da ré, que demonstrou conhecimento directo dos factos, em virtude do relacionamento intenso que mantinha com a sua filha e com o autor, seu genro, dando conta ao tribunal do historial e das razões que estiveram na base do investimento em questão, afirmando peremptoriamente que o autor nunca em momento algum reuniu condições financeiras para, por si, contribuir com o quer que fosse para custear a participação da ré no capital social da sociedade em questão, chegando mesmo a dizer que o que ele tinha era sobretudo dívidas, e que sempre o mesmo teve plena consciência de que a quota social de que se fala nos autos sempre constituiu um bem próprio da ré, por ter sido adquirida com recurso a dinheiro próprio da mesma. Salientou-se que o depoimento, não obstante a referida relação familiar, foi merecedor de juízo de seriedade e isenção, não contrariado pela produção de qualquer outro meio de prova relevante.
O recorrente questiona a relevância do depoimento da testemunha, pretendendo que não resulta do mesmo factualidade suficiente para reconduzir, com o mínimo grau de certeza, o dinheiro do trespasse celebrado em 30 de Junho de 1999 à aquisição da quota na sociedade comercial D…, L.da.
A audição do depoimento da testemunha confirma que a mesma manteve um relacionamento próximo com a sua filha e com o autor, seu genro, no decurso do casamento dos mesmos, salientando que estes chegaram a viver consigo, num curto período, em data posterior à compra da D… (cf. momento 11m:36s do respectivo depoimento).
É certo que a testemunha revela hesitação em alguns dos pontos do seu depoimento.
Assim, afirmando a aquisição de um apartamento, em cuja escritura estiveram presentes o autor e a ré, a testemunha, apesar de afirmar a convicção de que tal ocorreu depois da compra da farmácia, não soube precisar a data e garantir aquele facto, por não se recordar, em função do tempo entretanto decorrido (cf. 05m:28s a 05m:52s e 07m:06s a 08m:17s).
Também não soube esclarecer, quer o valor pelo qual a ré vendeu a farmácia …, no concelho de Santa Comba Dão, quer aquele pelo qual comprou, posteriormente, a quota na D…, apesar de afirmar que a farmácia de Santa Comba foi vendida por valor superior ao que foi despendido na compra da quota na farmácia de Oliveira de Azeméis (06m:36s a 07m:04s e 09m:35s a 09m:49s).
No entanto, apesar destas hesitações e desconhecimentos da testemunha, não se afigura que haja fundamento suficiente para alterar a convicção afirmada pelo tribunal recorrido.
Na verdade, a testemunha é peremptória no relato das circunstâncias em que foi adquirida inicialmente a farmácia do concelho de Santa Comba Dão, salientando que tal ocorreu quando a ré ainda era solteira e que, tendo a mesma tirado o curso e tentando procurar farmácia, a própria depoente e seu marido resolveram investir as suas poupanças nessa farmácia que lhes apareceu (01m:38s a 02m:07s e 10m:18s).
Relata também ter acompanhado sua filha, nas negociações que culminaram na aquisição da D…, para conversar com a vendedora (08m:47s a 09m:24s).
É expressiva nas razões que levaram a ré a vender a farmácia de Santa Comba Dão e a constituir sociedade e a comprar a D… (ainda em vida de seu pai, a ré queria aproximar-se de seus pais; com o pai vivo, ela sentia a necessidade de se querer aproximar; o pai faleceu entretanto, “foi uma morte súbita, e como a outra minha filha estava ainda a acabar o curso ela resolveu proteger-me e então para estar mais próximo de mim que eu fiquei sozinha, resolveu vender a parte, a farmácia em Santa Comba e vir comprar 50% em Oliveira de Azeméis que é o que tem hoje”; “ela estava lá muito bem, estava pronto, estava satisfeita; realmente depois engravidou mas ela, depois, ela engravidou depois da morte do pai; quando o pai morreu ela não me queria ver cá em cima sozinha, porque eu estava a viver sozinha, fiquei sozinha, foi assim uma morte inesperada, pronto, e ela não me quis abandonar e portanto… Nós telefonávamos, ela vinha cá cima ao fim de semana, nós telefonávamos, mas ela achava que eu não estava bem, de vez em quando dava-me assim umas crises também devido ao problema da morte súbita do pai e ela não descansou enquanto não procurou, tentou procurar”; (…) depois do pai ter falecido “ela não descansou enquanto não comprou. Porque na altura eu achava que ela ir comprar 50% ia fazer asneira na medida em que ela na outra estava a 100% mas ela achava que eu também sozinha cá em cima não estava bem e a aproximação que pronto, ela também tinha muitas saudades cá de cima” (cf. momentos 02m:07s a 02m:30s, 03m:47s a 04m:26s e 12m:10s a 13m:11s).
Regista-se também que, dando credibilidade a este relato, se verifica que decorreu um curto espaço de tempo (dois meses) entre a data em que se concretizou o trespasse da farmácia do concelho de Santa Comba Dão (30 de Junho de 1999) e aquela em que foi constituída a D… e adquirido por trespasse o respectivo estabelecimento (1 de Setembro de 1999). Este intervalo é compatível com o relato da testemunha e as motivações que determinaram a ré a trespassar uma farmácia e a adquirir parte de outra.
Salienta-se que também não se demonstrou que neste período de tempo tenha ocorrido a afectação de valores obtidos na venda da farmácia de Santa Comba Dão para outros fins ou que, para a constituição da sociedade D…, L.da, e aquisição do respectivo estabelecimento tenham sido utilizados outros meios, seja pela afectação de rendimentos do autor ou do casal, seja com recurso a crédito bancário. Também não se evidencia, quer perante o relato da testemunha, quer pelo recurso a outros meios de prova, a disponibilidade de meios financeiros por parte do autor.
Neste enquadramento, também não deixa de merecer ponderação positiva o facto do autor ter afirmado reconhecer que a quota social em causa, apesar de ter sido adquirida na constância do matrimónio, é um bem próprio da ré, por ter sido adquirida com dinheiro/bens pertença desta antes do casamento (cf. contrato-promessa de partilha, para separação de meações, outorgado por autor e ré, em 24 de Agosto de 2009, cuja cópia faz fls. 24 a 27). Não se vê que a posição assim assumida pelo autor tenha sido motivada e determinada por razões não sérias ou aproveitando qualquer fragilidade do autor, quando é certo que da mesma resulta inequivocamente a afectação exclusiva de bens da ré para a aquisição da farmácia; perante as regras da experiência comum e independentemente do conhecimento ou não de questões jurídicas, não é plausível que o autor subscrevesse tal declaração sabendo que a mesma não correspondia à verdade, isto é, que a aquisição da quota da D… se concretizou, não apenas com dinheiro/bens da ré, mas também com dinheiro/bens do casal ou do próprio autor, quando é evidente – facto notório – que, a ser verdadeiro este facto (a afectação de dinheiro/bens do casal ou do próprio autor para a aquisição da quota da D…) este ficaria seguramente prejudicado.
Ponderados os elementos que se deixam enunciados, não se vê que haja fundamento para alterar o julgamento feito pelo tribunal recorrido relativamente ao quesito 18.º, pelo que o recurso improcede nesta parte.
3. A anulabilidade da escritura de partilha, por alegado erro sobre o objecto do negócio.
O recorrente alega a este propósito que, ao celebrar a escritura de partilha, fez uma representação errónea das circunstâncias de facto e de direito que presidiram ao negócio.
Nos termos do artigo 251.º do Código Civil, o erro que atinja os motivos determinantes da vontade, quando se refira à pessoa do declaratário ou ao objecto do negócio, torna este anulável nos termos do artigo 247.º, isto é, desde que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro.
Como elemento relevante, importa começar por salientar que, nos termos anteriormente enunciados e contrariando a pretensão do recorrente, foi com o dinheiro proveniente do contrato de trespasse da J…, L.da, que a ré realizou a sua parte no capital social da sociedade D…, L.da.
O recorrente pretende que, apesar disso e porque a aquisição da quota não foi realizada de acordo com os pressupostos da alínea c) do artigo 1723.º do Código Civil, é um bem comum do casal, quer porque nada é mencionado no documento, quer porque nele não intervêm ambos os cônjuges.
A aplicação desta norma resulta do facto de autor e ré terem sido casados segundo o regime supletivo de bens, de comunhão de adquiridos.
Neste regime de bens e na parte que aqui interessa, fazem parte da comunhão os produtos de trabalho dos cônjuges e os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio, que não sejam exceptuados por lei, sendo considerados próprios dos cônjuges os bens que cada um deles tiver ao tempo da celebração do casamento, conservando essa qualidade de bens próprios os bens adquiridos ou as benfeitorias feitas com dinheiro ou valores próprios de um dos cônjuges, desde que a proveniência do dinheiro ou valores seja devidamente mencionada no documento de aquisição, ou em documento equivalente, com intervenção de ambos os cônjuges – artigos 1724.º, 1722.º, n.º 1, alínea a), e 1723.º, alínea c), do Código Civil.
É incontroverso que o autor não interveio na escritura de constituição da sociedade D…, L.da, e que nesta não consta a proveniência do dinheiro com o qual a ré realizou a sua parte no capital social da aludida sociedade.
Questiona-se então se, apesar de se ter demonstrado na presente acção que a aquisição da quota foi efectuada com dinheiro proveniente do contrato de trespasse de bem próprio da ré, o bem adquirido continua a ser bem próprio desta ou se, em resultado da omissão apontada, se deve considerar como bem comum.
A resposta, em sede de jurisprudência, não é incontroversa.
O recorrente cita diferentes acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 15 de Outubro de 1998 (processo 737/96) e de 12 de Janeiro de 1995 (processo 5809), bem como acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 7 de Dezembro de 2000, que sustentam o entendimento de que, para os fins do artigo 1723.º, alínea c), do Código Civil, não é de admitir qualquer prova da proveniência do dinheiro ou valores que não sejam a expressamente prevista nesse preceito, pelo que o bem adquirido só é incluído nos bens próprios de um dos cônjuges se tiver sido mencionada a proveniência do dinheiro com que foi adquirido no documento de aquisição ou equivalente, com intervenção de ambos os cônjuges; o incumprimento destas condições impõe que o bem seja qualificado como comum.
Assumindo o entendimento divergente, considerou-se neste Tribunal da Relação do Porto, em acórdão proferido em 20 de Dezembro de 2011, no âmbito do processo 7490/07.9TBVFR-C.P1:
“Actualmente, pensamos que a jurisprudência e, em especial, a do nosso Supremo Tribunal de Justiça, se inclina para a solução que, na doutrina, entre outros, é defendida por Pereira Coelho. Aqui, não estando em causa o interesse de terceiros, mas apenas o dos cônjuges, é permitida a prova por qualquer meio de que certo bem foi adquirido com dinheiro do cônjuge adquirente. A exigência de que a proveniência do dinheiro ou dos valores seja mencionada no documento de aquisição não se aplica quando estão em causa apenas os interesses dos cônjuges.
Para que o bem adquirido a título oneroso não entre para o património comum, refere o citado autor, «é necessário que os terceiros tenham um meio fidedigno de afastar a sua expectativa normal; este meio é a declaração inequívoca dos dois cônjuges, no momento do acto, acerca da proveniência dos valores mobilizados para a aquisição.
Sendo uma ideia de protecção de terceiros que justifica a especial exigência do artigo 1723.º, alínea c), cremos que tal só deverá aceitar-se onde o interesse de terceiros o exigir. Não estando em causa o interesse de terceiros mas única e simplesmente o dos cônjuges, nada parece impedir que a conexão entre os valores próprios e o bem adquirido seja provada por quaisquer meios.
O cônjuge que pretenda demonstrar que os valores utilizados na aquisição de um bem provieram do seu património tem de oferecer qualquer prova capaz de afastar a qualificação do novo bem como comum – qualificação que resulta da inobservância dos requisitos estabelecidos no artigo 1723.º, alínea c), e que assenta, em última análise, na presunção de comunhão do artigo 1724.º». Curso de Direito da Família, Volume I, pág. 520.
Nesta linha de pensamento, o cônjuge, casado sob o regime de comunhão de adquiridos, tendo comprado um imóvel sem mencionar na respectiva escritura a proveniência do dinheiro que entregou para o pagar, pode provar, posteriormente, que esse dinheiro era exclusivamente seu, por ter resultado da venda de um outro imóvel que era bem próprio. Assim decidiram, entre outros, os acórdãos do STJ, de 24.9.1996, BMJ 459, pág. 535; de 15.5.2001, CJ/STJ, IX, Tomo II, pág. 75; de 11.4.2002 e de 2.5.2002, em www.dgsi.pt; e de 24.10.2006, CJ/STJ, XIV, Tomo III, pág. 92.
Perfilhamos esta solução, (…) pois, estando em causa apenas relações entre os cônjuges, como sucede no caso concreto, a demonstração da qualidade de bem próprio não impõe que do documento de aquisição conste a proveniência do dinheiro para esse efeito, sendo facultada ao cônjuge/adquirente a utilização de qualquer meio de prova, com vista à obtenção da qualificação como próprio do bem adquirido na constância do casamento".
Não há razão para alterar este entendimento – que, diversamente do que afirma o recorrente, também não é contrariado pelo acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, em 13 de Julho de 2010, no âmbito do processo 1047/06-9TVPTR.P1.S1.
Este acórdão, negando a revista, confirma a decisão que havia sido proferida por este Tribunal da Relação do Porto, em 29 de Outubro de 2009, no âmbito do processo de recurso 1047/06.9TVPRT.P1 [ambos os acórdãos estão disponíveis na base de dados do IGFEJ (www.dgsi.pt)].
No acórdão proferido por este Tribunal da Relação considerou-se que o regime do artigo 1723.º, alínea c), do Código Civil assenta na presunção de comunhão prevista no artigo 1724.º, alínea b), do mesmo Código, em que os terceiros confiam, e visa a protecção destes; estando em discussão interesses exclusivos dos cônjuges, não se vê obstáculo legal a impedir a prova da conexão entre os valores próprios e o bem adquirido; porém, este regime não será aplicável se, na correspondente escritura de aquisição, intervém apenas o cônjuge a quem tal regime não aproveitaria.
Como resulta da leitura de ambos os arestos, não está aí em causa a presença de apenas um dos cônjuges, mas antes o facto de estar apenas o cônjuge a quem tal regime não aproveitaria, o que no caso dos presentes autos se traduziria na presença apenas do autor no acto em questão – o que, manifestamente, não se verifica.
Na verdade, esclarece-se no acórdão do Tribunal da Relação:
“Ora, no nosso caso, a situação que se nos apresenta não é a indicada. Tal como foi configurada a acção, quem interveio na escritura de compra e venda não foi o cônjuge, dito "adquirente", mas o seu consorte, a quem, em princípio, apenas poderia incumbir uma função de reconhecimento de que os bens eram próprios.
Não parece que este entendimento seja aceitável.
Na perspectiva da autora, quem deveria intervir necessariamente na escritura era ela própria, já que iria adquirir exclusivamente para si. Mas não interveio.
Quem interveio foi o seu consorte, o réu que, na perspectiva da acção, se pretende não adquirente. Quer dizer: o réu interveio pessoalmente, por si, na escritura para adquirir exclusivamente para o património da autora. Não pode ser!
O réu, intervindo por si, isoladamente, na escritura, poderia adquirir para si (suscitando-se então questão idêntica à que acima debatemos) ou para o casal. Não para a autora exclusivamente, para o que não teria sequer legitimidade, já que actuou por si e pessoalmente e não como representante ou mandatado para o efeito, como decorre expressamente da escritura de compra e venda (cfr. fls. 37 e 40).
Daí que se entenda que o art. 1723.º c) não tem aplicação no caso.”
No caso dos presentes autos, foi a ré quem teve intervenção directa na escritura de constituição da sociedade, na certeza de que, apesar de não constar na mesma a proveniência do dinheiro com o qual realizou a sua parte no capital social da aludida sociedade e de não ser interveniente o autor, ficou demonstrado que a aquisição da quota foi efectuada com dinheiro proveniente do contrato de trespasse de bem próprio da ré.
Por isso conclui-se que, não estando em causa interesses de terceiros, nada obsta à qualificação do bem como próprio da ré, com a consequente improcedência da pretensão do recorrente.
4. A simulação do valor atribuído à quota social na escritura pública de partilha.
A este propósito, o recorrente pretende que, para efeitos do artigo 240.º do Código Civil, se encontra preenchido o conceito de “intuito de enganar terceiros”, ao que acresce o facto da discrepância de valores entre o que consta na escritura de partilha e o valor real do bem resultar em prejuízo em termos de receitas fiscais.
O negócio simulado é nulo, ocorrendo a simulação se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante – artigo 240.º do Código Civil.
Acolhe-se aqui a fundamentação expressa na decisão recorrida:
«Da simulação absoluta, que o n.º 2 do cit. art. 240.º comina com a nulidade, distingue-se a simulação relativa, prevista no art. 241.º do mesmo Código, dispondo o seu n.º 1: “Quando sob o negócio simulado exista um outro que as partes quiseram realizar, é aplicável a este o regime que lhe corresponderia se fosse concluído sem dissimulação, não sendo a sua validade prejudicada pela nulidade do negócio simulado”.
Para que haja simulação, exige a lei três requisitos: “divergência entre a vontade real e a vontade declarada, intuito de enganar terceiros e o acordo simulatório” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª edição, p. 227).
No caso dos autos, os factos julgados provados, designadamente os que se mostram descritos sob os itens 2.1.4) e 2.1.18) a 2.1.20), dão-nos conta de que na escritura de partilha de que se fala, autor e ré atribuíram à verba correspondente à quota social em questão o valor de €17.500,00, sendo certo que ambos sabiam que tal valor não correspondia ao valor real, assim como sabiam que o valor contabilístico da referida quota ascendia a cerca de €150.000,00.
Diante de tal factualidade, evidencia-se a verificação de dois dos pressupostos da simulação: divergência entre a vontade real e a vontade declarada e acordo simulatório.
E que dizer quanto ao “intuito de enganar terceiros”? Dos factos descritos sob os itens 2.1.23) e 2.1.24) resulta que a ré pediu ao autor que fosse atribuído à quota social o valor mais baixo possível, por forma a diminuir a incidência fiscal do acto de transmissão.
Neste âmbito, a questão que se põe é, pois, se houve ou não, intuito de enganar a administração fiscal, reduzindo o valor do imposto efectivamente devido.
Procurando preencher a definição do conceito “enganar”, para efeitos do estipulado no n.º 1 do art. 240.º do CCivil, o Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão de 07/05/2009, proferido no âmbito do processo 6092/05.9TBOER-8, acessível em www.dgsi.pt/jtrl, após afastar “a relação com o intuito de prejudicar”, em consonância com a doutrina e jurisprudência preponderantes, concluiu que “para a exigência «enganar terceiros» ter significado, é necessário que o engano seja relevante, ou seja, que produza efeitos ao nível dos interesses englobados na esfera de terceiro”, entendimento que aqui perfilhamos, pois só assim resultará minimamente compreensível a tutela legislativa. Como se deixou afirmado no cit. douto acórdão, o engano de que se fala tem necessariamente de ser relevante, “desde logo porque o legislador não se ocupa de minudências ou de situações que não mereçam a tutela do Direito, isto é, sem importância à luz dos fins visados no quadro da produção normativa”.
Ora, como de resto a ré muito bem salienta nas suas alegações de direito, sendo a quota social em questão bem próprio da ré, como deixamos afirmado supra, substancialmente não existiu sequer qualquer acto de transmissão susceptível de incidência fiscal.
Substancialmente, para a administração fiscal, a desconformidade entre o valor real da quota e o valor declarado não assumiu efectiva relevância.
Nestas circunstâncias, julgamos ser de afastar, no caso, a verificação do pressuposto “enganar terceiros”, afigurando-se com maior grau de compreensibilidade, para o procedimento levado a cabo pelas partes, um possível intuito de contornar alguns problemas de ordem formal inerentes a outros modos de procedimento, mais conformes com a real situação de facto.
Improcederá também, nesta parte, a pretensão do autor.»
Perante tudo o que se deixa exposto, não havendo violação do disposto nos artigos 240.º, 251.º, 342.º, 343.º, 1714.º, 1723.º, alínea c), e 1724.º, todos do Código Civil e 655.º do Código do Processo Civil, improcede necessariamente o recurso e impõe-se a subsistência da sentença recorrida.
III)
Decisão:
Pelas razões expostas e negando provimento ao recurso, confirma-se a sentença recorrida.
Custas a cargo do recorrente.
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Porto, 17 de Fevereiro de 2014.
Correia Pinto
Ana Paula Amorim
Ana Paula Carvalho