Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1240/21.4T8AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA PAULA AMORIM
Descritores: PROCESSO DE INVENTÁRIO
COMPETÊNCIA
TRIBUNAL
CONSERVATÓRIA DE REGISTO CIVIL
Nº do Documento: RP202201241240/21.4T8AVR.P1
Data do Acordão: 01/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - As alterações introduzidas pela Lei 117/2019 de 13 de setembro criaram um regime de repartição de competências quanto à tramitação do processo de inventário, sem excluir em qualquer caso o recurso ao tribunal judicial. Apenas torna obrigatória a sua instauração no tribunal nas situações previstas no art. 1083º/1 CPC.
II - O inventário para partilha dos bens comuns do casal, na sequência de divórcio decretado na competente conservatória do registo civil, pode ser instaurado, por escolha do requerente, no tribunal ou no cartório notarial, nos termos do art. 1087º/2 CPC.
III - Optando o requerente por instaurar o processo no tribunal, determina-se o tribunal competente por aplicação do regime previsto no art. 80º CPC
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Inventário-Divórcio-Competência-1240/21.4T8AVR.P1
*
*

SUMÁRIO[1] ( art. 663º/7 CPC ):
……………………..
……………………..
……………………..

Acordam neste Tribunal da Relação do Porto (5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)

I. Relatório
Em 16 de abril de 2021 deu entrada no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo de Família e Menores de Aveiro - Juiz 2 requerimento inicial de inventário para partilha de bens comuns do casal na sequência de divórcio nos termos do art. 1082º/d) CPC, no qual figura como:
- REQUERENTE: B…, divorciada, natural da …, portadora do Cartão de Cidadão N.º …… …. válido até ..-..-2022 emitido pela República Portuguesa, Contribuinte Fiscal N.º ………, residente na Rua …….., nº .., ….-… Freguesia de …., Concelho de Ílhavo; e
- REQUERIDO: C…, natural da Freguesia de …., Concelho de Ílhavo, portador do Cartão de Cidadão N.º ……. …. válido até ../../2022, emitido pela República Portuguesa, Contribuinte Fiscal N.º ………, residente na Rua ……., nº .., ….-… ……, Concelho de Ílhavo.
Alegou para o efeito que A e R contraíram matrimónio em .. de Agosto de 1995, sob o regime de bens da comunhão de adquiridos, o qual foi dissolvido por decisão proferida no processo de divórcio por mútuo consentimento nº …/2018 em ../../2018 pela Conservatória do Registo Civil de Ílhavo, transitada em julgado no mesmo dia, a qual decretou o divórcio. A e R. tem património ativo e passivo, nomeadamente um bem imóvel sito na freguesia da ……, concelho de Ílhavo e passivo resultante dos empréstimos bancários contraídos na pendência do matrimónio.
A e R. tinham um acordo verbal para divisão do património conjugal que passava por:
a) ser adjudicada à A. o prédio urbano e as dívidas ao banco contraídas para a aquisição/construção da casa de morada de família, na condição de ser retirada a responsabilidade bancária do R. nos empréstimos; e
b) ao R. era adjudicada a dívida referente ao empréstimo pessoal.
O R. não quer cumprir o acordo e não se entendem quanto à partilha do património comum.
Termina por indicar para o cargo de cabeça-de-casal o requerido, por ser o cônjuge mais velho.

Proferiu-se despacho em 19 de abril de 2021 (ref. Citius 115705338) com os fundamentos e decisão que se transcrevem:
“Nos termos do disposto no artigo 1083.º do Código de Processo Civil, na redação dada pela Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro, o processo de inventário é da competência exclusiva dos tribunais judiciais sempre que o inventário constitua dependência de outro processo judicial.
De outro modo, fora dos casos de competência exclusiva dos tribunais judiciais o processo pode ser requerido, à escolha do interessado que o instaura ou mediante acordo entre todos os interessados nos tribunais judiciais ou nos cartórios notariais.
Assim, nos casos em que não existe processo judicial de que o proposto inventário seja dependência, nomeadamente quando o divórcio foi decretado em Conservatória do registo Civil, trata-se de inventário que de modo meramente facultativo pode ser proposto em tribunal judicial.
A Lei de Organização do Sistema Judiciário não fixa qual o Juízo de Família e Menores territorialmente competente. Tal competência resulta, quanto aos inventários ainda tramitados nos cartórios notariais, do disposto no artigo 3º nº 7 do Regime Jurídico do Processo de Inventário. Pelo contrário quanto aos inventários instaurados após a revogação daquele Regime (operada pelo artigo 10º da Lei 117/2019) não existe qualquer norma que fixe a competência territorial dos Juízos de Família e Menores.
De outro modo, a competência territorial dos tribunais com a competência material para os restantes inventários – visando a partilha de heranças – foi prevista na lei que estabelece no artigo 72º-A (redação da referida Lei 117/2019) que é competente o tribunal do lugar da abertura da sucessão e critérios subsidiários e ainda no nº4 do artigo 12º da mesma Lei. Conclui-se, assim, que atenta a revogação do RJPI, não existe norma que fixe a competência territorial entre os Juízos de Família e Menores para a tramitação dos processos de inventários subsequentes a divórcio decretado nas CRCivil.
A competência material dos Juízo de Família e Menores é a que resulta do elenco taxativo previsto no art. 122º da LOSJ. Relativamente aos processos de inventário, prevê o nº2 apenas que os juízos de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos.
O referido artigo 122º não foi objeto de qualquer alteração, sendo que as competências a que se refere o artigo 122º nº2 – competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência da separação de bens ou divórcio - eram apenas as competências residuais excecionalmente atribuídas ao Juiz no Regime Jurídico do Processo de Inventário (entretanto, como se disse, revogado relativamente a processos novos) e não a competência para a tramitação de todo o processo de inventário.
Em síntese:
- não tendo a Lei 117/2019 atribuído expressamente competência material aos Juízos de Família e Menores para a tramitação dos processos de inventário subsequentes a divórcio decretado nas Conservatórias do Registo Civil e,
- não tendo a referida Lei fixado o tribunal territorialmente competente para esses processos e não tendo, finalmente, o artigo 122º nº2 da LOSJ sido objeto de qualquer alteração – assim mantendo a referência apenas às competências previstas no Regime Jurídico do Processo de Inventário entretanto revogado, o referido artigo 122º nº2 deve, também, considerar-se tacitamente revogado pela Lei 117/2020 nos exatos termos em que a mesma lei revogou o Regime Jurídico do Processo de Inventários, isto é, mantendo apenas aplicável o regime (e por consequência o nº2 do art.122º) relativamente aos processos de inventário ainda pendentes nos Notários.
Em suma, fora dos casos de competência exclusiva dos tribunais para os processos de inventário – inventário dependente de outro processo judicial – em que a competência dos Juízos de Família e Menores resulta, por conexão, da competência material para os autos principais, os Juízos de Família e Menores não têm competência material para os processos de inventário, nomeadamente para os subsequentes a divórcio ou separação realizados nas Conservatórias do Registo Civil. Relativamente a estes inventários não tendo a lei (seja a Lei 117/2019 seja a LOSJ) atribuído competência aos tribunais de Família e Menores existe um regime imperativo de competência dos cartórios notariais, devendo o artigo 1083º nº2 do CPC (na redacção da referida Lei) ser restritivamente interpretado, apenas se aplicando aos inventários para partilha de herança, como, de resto, resulta ainda do ali disposto no nº3 quanto ao critério para remessa dos autos ao tribunal em caso de divergência - «interessados que representem mais de metade da herança» - critério absolutamente inviável quanto aos inventários para partilha de bens comuns decorrente de divórcio ou separação.
Acresce que a permitir a competência facultativa dos Juízos de Família sem que a lei estabeleça (e não estabelece) qualquer critério de competência territorial seria abrir a porta a uma insustentável e arbitrária atribuição de competência a certo Juízo de Família (um verdadeiro «fórum shopping») mesmo que sem qualquer conexão com as partes ou o local onde pendeu o processo de divórcio.
No caso dos autos o inventário é requerido na sequência de divórcio decretado em Conservatório do Registo Civil.
Atento o exposto, nos termos do disposto nos indicados artigos 122º da LOSJ (a contrário), e dos artigos 1083ºnº1, 2 e 3 e 96º, 97 e 99º nº1 do CPC julga-se este Juízo de Família e Menores materialmente incompetente para a tramitação dos presentes autos, indeferindo-se liminarmente a PI.
Custas pela A”.

A requerente veio interpor recurso do despacho.

Nas alegações que apresentou a apelante formulou as seguintes conclusões:
1. Nos termos da Lei nº 117/2019, de 13.9 ( que veio revogar o regime jurídico do processo de inventário da Lei nº 23/2013, de 5.3, aprovando um novo regime do inventário notarial e reintroduzindo no Código de Processo Civil o inventário judicial - arts. 1082º a 1135º), mostra-se estabelecida a repartição de competências para a tramitação do inventário entre os tribunais judiciais e os cartórios notariais, delimitando o art. 1083º do C.P.C. os casos em que o processo de inventário é da competência exclusiva dos primeiros.
2. O art. 1083.º do CPC atribui competência exclusiva aos tribunais judiciais em determinadas circunstâncias ali elencadas, não resultando (muito pelo contrário), qualquer competência exclusiva atribuída aos cartórios notariais para a tramitação dos processos de inventário subsequentes a divórcios decretados nas conservatórias.
3. O art. 1083º nº 2 do CPC não diferencia quais são os “demais casos” e entendemos que não quis o Legislador excluir daqui os divórcios decretados na Conservatória.
4. Instaurado nos tribunais judiciais processos de inventário subsequente a divórcio decretado na conservatória, são competentes para a sua tramitação as secções de família e menores, nos termos do artigo 122º, nº 2, da LOSJ, que atribuiu àquelas secções a competência para os inventários instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação do casamento.
5. Não existindo norma que atribua competência em razão do território, caberá lançar mão do disposto no artigo 80º nº 1 do CPC, sendo competente o tribunal de família e menores do domicilio do réu.
6. Entendemos que o Juízo de Família e Menores de Aveiro é o Tribunal competente em razão da matéria para apreciar e decidir sobre o processo de Inventário porque a Requerente assim o escolheu.
7. A Sentença a quo proferida nestes autos pelo Juízo de Família e Menores fez uma errada interpretação do art. 1083.º do CPC e violou também o art. 122.º, n.º2 da LOSJ e 80º nº 1 do CPC.
Termina por pedir que se julgue o recurso procedente, por provado, revogando-se a sentença a quo e substituindo-a por outra que julgue competente em razão da matéria o Juízo de Família e Menores de Aveiro, devendo estes autos de Inventário aí prosseguir os seus termos até final.

Não foi apresentada resposta ao recurso.

O recurso foi admitido como recurso de apelação.

Dispensaram-se os vistos legais.

Cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 639º do CPC.
A questão a decidir consiste em determinar se o tribunal de família e menores é competente para tramitar e julgar o inventário para partilha de bens comuns, subsequente a divórcio decretado na conservatória do registo civil.
2. Os factos
Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os termos do relatório.
3. O direito
- Da competência em razão da matéria -
Nas conclusões de recurso o apelante insurge-se contra a decisão que julgou o Tribunal de Família e Menores de Aveiro incompetente em razão da matéria para tramitar e julgar o processo de inventário para partilha de bens comuns, na sequência de divórcio por mútuo consentimento decretado na competente conservatória do registo civil.
A questão a decidir consiste em determinar se ao abrigo do atual regime do processo de inventário, perante as alterações introduzidas pela Lei 117/2019 de 13 de setembro, o tribunal de família e menores tem competência em razão da matéria para julgar estas ações, quando o divórcio foi decretado na competente conservatória do registo civil ou se o regime previsto no art. 122º/2 da Lei da Organização do Sistema Judiciário ( Lei 62/2013 de 26 de agosto) impõe uma interpretação restritiva do regime previsto no art. 1083º/2 CPC.
A competência do tribunal constitui um pressuposto processual que resulta do facto do poder jurisdicional ser repartido, segundo diversos critérios, por numerosos tribunais.
A competência abstrata de um tribunal designa a fração do poder jurisdicional atribuída a esse tribunal.
A competência concreta do tribunal, ou seja, o poder do tribunal julgar determinada ação, significa que a ação cabe dentro da esfera de jurisdição genérica ou abstrata do tribunal.
A competência em razão da matéria distribui-se por diferentes espécies ou categorias de tribunais que se situam no mesmo plano horizontal, sem nenhuma relação de hierarquia (de subordinação ou dependência ) entre elas.
Neste domínio funciona o princípio da especialização, de acordo com o qual se reserva para órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do direito[2].
A “insusceptibilidade de um tribunal apreciar determinada causa que decorre da circunstância de os critérios determinativos da competência não lhe concederem a medida de jurisdição suficiente para essa apreciação”, determina a incompetência do tribunal[3].
Nos termos do art. 211º da Constituição da República Portuguesa, os tribunais judiciais constituem a regra dentro da organização judiciária e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais. Gozam de competência não discriminada.
Daqui decorre que os restantes tribunais, constituindo exceção, têm a sua competência limitada às matérias que lhes são especialmente atribuídas.
A competência do tribunal em razão da matéria determina-se por referência à data da instauração da ação e afere-se em razão do pedido e da causa de pedir tal como se mostram estruturados na petição[4].
A incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria constitui exceção dilatória que pode ser conhecida em qualquer estado da causa e deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal em qualquer estado do processo até ao trânsito em julgado da sentença – artigos 96.º e 97.º, n.º 2 CPC.
Nos termos do art. 99º/1 CPC a verificação da incompetência absoluta implica a absolvição do réu da instância ou o indeferimento em despacho liminar, quando o processo o comporta.
Na situação concreta a petição deu entrada a 16 de abril de 2021 na Secção de Família e Menores de Aveiro. A requerente peticiona o inventário para partilha dos bens comuns do casal na sequência de divórcio que foi decretado na conservatória do registo civil.
Atendendo à data da instauração da ação tem plena aplicação o novo regime do processo de inventário previsto na Lei 117/2019 de 13 de setembro.
Como se sabe é a lei substantiva que define os direitos, mas é a lei processual que estabelece o meio ou forma de os exercer ( art. 2º/2 CPC).
A Lei 117/2019 de 13 de setembro, que entrou em vigor no dia 01 de janeiro de 2020 ( art. 15º) veio reintroduzir no Código de Processo Civil o regime do inventário judicial.
Resulta do disposto no art. 1082º CPC que o processo de inventário cumpre entre outras as seguintes funções: partilhar bens comuns do casal.
O processo de inventário constitui o meio próprio para partilhar os bens comuns do casal.
Nos termos do art. 1133º/1 CPC decretada a separação judicial de pessoas e bens ou o divórcio, ou declarado nulo ou anulado o casamento, qualquer dos cônjuges pode requerer inventário para partilha dos bens comuns.
O processo de inventário judicial constitui o meio processual próprio para obter a partilha dos bens comuns do casal por cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges com fundamento numa das situações previstas no preceito; vigore entre os cônjuges um regime de bens diverso do da separação; inexistência de acordo quanto à forma de efetuar a partilha.
Contudo, a Lei 119/2019 de 13 de setembro, veio estabelecer uma repartição de competências quanto à tramitação do processo de inventário.
O art. 1083º/1 CPC passou a prever que “o processo de inventário é da competência exclusiva dos tribunais judiciais:
a)nos casos previstos nas alíneas b) e c) do nº2 do art. 2102º do Código Civil;
b) sempre que o inventário constitua dependência de outro processo judicial;
c)q uando o inventário seja requerido pelo Ministério Público”.
Determina o nº2 do mesmo preceito que: ”nos demais casos, o processo pode ser requerido, à escolha do interessado que o instaura ou mediante acordo entre todos os interessados, nos tribunais judiciais ou nos cartórios notariais”.
Tratando-se de divórcio ou de separação judicial decretados por sentença judicial, a competência para o inventário é exclusiva dos tribunais judiciais, nos termos do art. 1083º/1 b) CPC conjugado com o art. 206º/2 CPC.
Nas situações em que o processo de inventário é decorrência de decisão de divórcio ou separação por mútuo consentimento proferida na Conservatória do Registo Civil o requerente pode optar entre o tribunal judicial competente e o cartório notarial, nos termos do art. 1083º/2 CPC.
Neste caso, optando a parte, por instaurar o processo no tribunal judicial deve atender-se ao critério do art. 80º CPC, para determinar o tribunal competente em razão do território, pois a lei não estabeleceu qualquer norma especial sobre tal matéria.
Como observa ABRANTES GERALDES:” [n]este caso, embora o inventário ainda encontre nessa decisão a sua motivação, o cônjuge requerente pode optar entre o cartório notarial (art. 1083º/2 CPC) ou o juízo de família e menores que for territorialmente competente em função do critério definido pelo art. 80º”[5].
O mesmo AUTOR defende, ainda, “como a competência para aquelas ações de estado (divórcio, separação ou anulação de casamento) é atribuída aos juízos de família e de menores (sem prejuízo da competência atribuída às conservatórias do registo civil quanto ao divórcio ou separação por mútuo consentimento), compete-lhes também tramitar, por apenso, os inventários subsequentes, quer por via do art.122º/2 da LOSJ, devidamente adaptado ao facto de ter sido restaurada a competência dos tribunais judiciais para o processo de inventário, quer por via do art. 206º/2 (competência por conexão)”[6].
Efetivamente, o art. 122º/2 da Lei da Organização do Sistema Judiciário – Lei 62/2013 de 26 de agosto, com a redação da Lei 40-A</2016 de 22 de dezembro) prevê:
“ Os juízos de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos”.
São os juízos de família e menores os tribunais competentes em razão da matéria para a tramitação e julgamento do processo de inventário para partilha dos bens comuns do casal na sequência de divórcio decretado na conservatória do registo civil, caso seja esse o tribunal territorialmente competente por aplicação da regra do art. 80º CPC.
Argumenta-se na decisão recorrida que a norma do art. 122º/2 da Lei da Organização do Sistema Judiciário foi criada no pressuposto da competência dos cartórios notariais para a tramitação do processo de inventário e não sofreu qualquer alteração com as alterações introduzidas pela Lei 117/2019 de 13 de setembro, o que justifica uma interpretação restritiva do art. 1083º/2 CPC, excluindo da competência dos tribunais os processo de inventário para partilha dos bens comuns na sequência do divórcio decretado na conservatória do registo civil.
Nos termos do art. 9º/3 CC na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
A alteração legislativa foi motivada “pela frustração dos objetivos que o legislador se propusera alcançar com a desjudicialização operada pela Lei 23/13” e ainda, “perante objeções que se suscitaram em torno do princípio constitucional da reserva do juiz”[7].
Perante a dimensão da alteração operada, com a reintrodução do regime do processo de inventário judicial, necessariamente esteve presente na mente do legislador as situações em que o processo de divórcio correu os seus termos na conservatória do registo civil.
As alterações introduzidas pela Lei 117/2019 de 13 de setembro criaram, como se referiu, um regime de repartição de competências quanto à tramitação do processo de inventário, sem excluir em qualquer caso o recurso ao tribunal judicial. Apenas torna obrigatória a sua instauração no tribunal nas situações previstas no art. 1083º/1 CPC.
A redação do art. 122º/2 da Lei de Organização do Sistema Judiciário garante tal regime concorrente, na medida em que não só prevê a competência dos tribunais de família e menores para a tramitação do processo, como ainda, prevê a intervenção do juiz no processo, quando este seja instaurado no cartório notarial.
Uma interpretação restritiva da norma contida no art. 1083º/2 CPC não tem apoio na lei e ignora as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada, aspetos a ter presente na sua interpretação ( art. 9º/2 CC).
Conclui-se que ao abrigo do art. 1087º/2 CPC pode o interessado requerer no tribunal competente processo de inventário para partilha dos bens comuns na sequência de divórcio por mútuo consentimento decretado na conservatória do registo civil.
Neste sentido se pronunciou o Ac. TRP 24 de maio de 2021, Proc. 171/20.0T8ILH.P1 (acessível em www.dgsi.pt) subscrito pela aqui relatora e 1º adjunto na qualidade de 1º e 2º adjuntos.
No caso concreto, a requerente veio requerer o inventário para partilha dos bens comuns, na sequência do divórcio por mútuo consentimento decretado na conservatória do registo civil, por não existir acordo quanto à partilha e ter vigorado no casamento o regime de comunhão de adquiridos.
O requerido reside em Ílhavo. O Município de Ílhavo faz parte da área de competência territorial da Secção de Família e Menores da Instância Central do Tribunal de Aveiro.
Tendo presente o pedido e causa de pedir, a Secção de Família e Menores de Aveiro é competente em razão da matéria para julgar o presente processo, nos termos do art. 122º/2 da Lei de Organização do Sistema Judiciário, conjugado com o art. 80º/1 CPC, art. 68º/1 h) Anexos – Mapa III do Regulamento da Organização do Sistema Judiciário ( DL 49/2014 de 27 de março) e art. 1082º/d), 1087º/2 e 1133º CPC.

Nos termos do art. 527º CPC não são devidas custas por a decisão ser proferida a título oficioso.

III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e revogar o despacho e nessa conformidade, julgar competente em razão da matéria a Secção de Família e Menores da Instância Central do Tribunal de Aveiro, devendo os autos prosseguir os ulteriores termos até conclusão da partilha.

Sem custas.
*
Porto, 24 de janeiro de 2022
(processei e revi – art. 131º/6 CPC)
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
_____________________
[1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico
[2] Cfr. ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA, SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 2ª edição Revista e Atualizada de acordo com o DL 242/85, Coimbra, Coimbra Editora, Limitada, 1985, pag. 195.
JOÃO DE CASTRO MENDES Direito Processual Civil, vol. I, Lisboa, AAFDL, 1980, 646.
[3] MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, Lisboa, Lex, 1997, 128.
[4] Cfr. MANUEL A. DOMINGUES DE ANDRADE Noções Elementares de Processo Civil, reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora, Limitada, 1993, pag. 91.
Na jurisprudência, entre outros, podem consultar-se: Ac. Rel. Porto 31.03.2011 – Proc. 147/09.8TBVPA.P1 endereço eletrónico: www.dgsi.pt; Ac. STJ, CJ/STJ, 1997, I, 125; Ac. Rel Porto 07/11/2000, CJ, Tomo V/2000, pág. 184.
[5] ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES et al Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2020, pag. 630
[6] ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES et al Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, ob. cit., pag. 528
[7] ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES et al Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, ob. cit., pag. 519