Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
154/25.3T8PVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EUGÉNIA CUNHA
Descritores: AUDIÊNCIA PRÉVIA
OBRIGATORIEDADE
Nº do Documento: RP20251124154/25.3T8PVZ.P1
Data do Acordão: 11/24/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I -A necessidade da contradição, genericamente consagrada no artigo 3º, do Código de Processo Civil, vem, em reforço do aí consagrado, especificamente, materializada em inúmeras disposições ao longo do referido Código, sendo uma dessas concretizações a finalidade da audiência prévia contemplada na al. b), do nº1 do art. 591º -“Facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar exceções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa” -, a qual, nas ações de valor superior a metade da alçada da Relação - 15.000 € - (v. art. 597º), tem, sempre, obrigatoriamente lugar, concluídas as diligências resultantes do preceituado no nº2 do artigo 590º (cfr. nº1, do art. 591º) ressalvadas as exceções legalmente consagradas (as situações indicadas no nº1, do art. 592º e a de o juiz dispensar a realização da audiência, ao abrigo do nº1, art. 593º).
II - Para além do dever de fazer observar o contraditório ao longo de todo o processo, cabe ao juiz respeitá-lo, não lhe sendo lícito conhecer de questões sem dar a oportunidade às partes de, previamente, sobre elas se pronunciarem, sendo proibida decisão-surpresa, constituindo-a decisão desfavorável ao recorrente tomada pelo tribunal relativamente ao mérito da causa sem realização de audiência prévia.
III - A não realização de audiência prévia obrigatória, constitui uma omissão grave, representando uma nulidade processual sempre que tal omissão seja suscetível de influir no exame ou na decisão da causa, sendo nula a, ilícita, decisão (surpresa), desfavorável, quando à parte não foi dada possibilidade de se pronunciar sobre os factos e respetivo enquadramento jurídico.
IV - Estando a nulidade processual coberta por decisão judicial posterior que a permitiu e lhe deu continuidade, conferindo assentimento ao respetivo ato ou omissão dela geradora, o meio próprio para a arguir é o recurso a interpor da decisão, com a qual se esgotou o poder jurisdicional (cfr. art. 613º, do CPC), onde aquela nulidade, a apreciar, releva a projetar-se, como é o caso, negativamente na decisão proferida.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 154/25.3T8PVZ.P1
Processo da 5ª secção do Tribunal da Relação do Porto (3ª Secção cível)
Tribunal de origem do recurso: Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim - Juiz 2


Relatora: Des. Eugénia Cunha
1º Adjunto: Des. António Mendes Coelho
2º Adjunto: Des. Fátima Andrade

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto

Sumário (cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):

………………………………

………………………………

………………………………


*
I. RELATÓRIO

Recorrentes: os Réus, AA e BB

Recorrida: a Autora, A... Unipessoal, Lda


A... Unipessoal, Lda. instaurou ação declarativa com processo comum contra AA e BB pedindo a condenação destes a entregarem-lhe o imóvel que referem, de forma imediata, livre de pessoas e bens e ainda a condenação dos mesmos, no valor diário de € 100,00, desde a data da citação até entrega efetiva do imóvel.
Alega ser proprietária do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana sob o nº ..., descrito na 2ª conservatória do registo predial da Maia sob o nº ..., por lhe ter sido adjudicado em processo de execução fiscal, que os réus instauraram contra si uma ação declarativa a peticionar o reconhecimento do direito de propriedade e posse sobre o referido prédio urbano alegando tê-lo adquirido por usucapião tendo sido proferida sentença, transitada em julgado, a julgar tal pretensão totalmente improcedente, e que os réus continuam a ocupar o imóvel recusando-se a entregá-lo livre de pessoas e bens.
Os réus contestaram e deduziram reconvenção pedindo a condenação da reconvinda no pagamento do montante global de € 78.010,00, acrescido de juros de mora, à taxa legal, calculados desde o dia de vencimento de cada uma das faturas e até efetivo e integral pagamento, alegando serem donos e terem construído o seu lar no prédio em causa, ali fixando residência permanente da família até à presente data e sem interrupções, ali vivendo, pernoitando, tomando as refeições, passando aí os seus tempos de lazer e recebendo os seus familiares e amigos, durante mais de 26 anos, habitando e fruindo da habitação como possuidores da mesma, tendo procedido a alterações e obras que foram necessárias, conforme algumas faturas que juntam, que se traduzem em benfeitorias necessárias e úteis, no que despenderam aquele montante.
Após, foi, com dispensa da audiência prévia, a que os Réus se opuseram, proferido despacho saneador a conhecer do mérito da causa, por o estado do processo o permitir tendo sido proferida a decisão com a seguinte
parte dispositiva:

“A) Julgo a acção parcialmente procedente a acção e em consequência:

1) Condeno os réus AA e BB a entregarem o imóvel (prédio urbano inscrito na matriz predial urbana sob o nº ..., descrito na 2ª conservatória do registo predial da Maia sob o nº ...) à ré A... Unipessoal, Lda., de forma imediata, livre de pessoas e bens;

2) Absolvo os réus quanto ao demais peticionado pela autora.

B) Julgo a reconvenção totalmente improcedente e em consequência absolvo a reconvinda A... Unipessoal, Lda. de todo o pedido reconvencional.

C) Condeno os réus/reconvintes no pagamento integral das custas da acção, fixando à mesma o valor de € 231.339,62.


*
Apresentaram os Réus recurso de apelação, pugnando por que seja concedido provimento ao recurso, declarando-se:

a) a nulidade parcial da sentença por indevida dispensa da audiência prévia, com consequente baixa dos autos para a sua realização;

b) subsidiariamente, a nulidade por omissão de pronúncia, impondo-se a reapreciação da reconvenção à luz do regime das benfeitorias (artigo 1273.º, código civil) ou da acessão (artigo 1340.º, código civil), com condenação da autora na indemnização correspondente às obras realizadas no imóvel;

c) a revogação da condenação na entrega imediata do imóvel, fixando-se em seu lugar prazo não inferior a 120 dias para desocupação voluntária, em respeito pelos princípios da proporcionalidade, da execução menos gravosa e dos direitos fundamentais dos apelantes;

d) a revogação da condenação integral em custas e a substituição por repartição proporcional, nos termos do artigo 527.º, n.º 2, do código de processo civil,

formulando as seguintes

CONCLUSÕES:

(…)


*

Apresentou a Autora contra-alegações a pugnar pela improcedência do recurso tendo sido apresentadas as seguintes CONCLUSÕES:

(…)


*

Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.

*

II. FUNDAMENTOS

- OBJETO DO RECURSO

Apontemos, por ordem lógica, as questões objeto do recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº3 e 4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil -, ressalvado o estatuído no artigo 665º, de tal diploma legal.

Assim, a questão a decidir é a seguinte:

- Da nulidade, arguida nas alegações de recurso, decorrente de, em violação do estatuído no nº1, do art. 591º, do CPC, ter sido proferida decisão a conhecer de mérito sem realização de audiência prévia.


*

II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

1. FACTOS PROVADOS

Considerou o Tribunal de 1ª instância resultarem do acordo das partes e dos documentos juntos aos autos, designadamente certidão de registo predial e certidão judicial relativa à ação declarativa nº ... os seguintes factos:
1) A sociedade A... Unipessoal, Lda. tem registada a seu favor, desde 10/03/2020, a aquisição da propriedade, por adjudicação em processo de execução fiscal, do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana sob o nº ..., descrito na 2ª conservatória do registo predial da Maia sob o nº ....
2) Os aqui réus/reconvintes AA e BB instauraram uma ação declarativa com processo comum contra a aqui autora/reconvinda A... Unipessoal, Lda., que correu termos sob o nº ... no J3 do Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim – J3, ali peticionando que fossem declarados proprietários e possuidores do prédio em causa, por o haverem adquirido por usucapião.
3) No referido processo foi proferida sentença, transitada em julgado em 30/10/2024, julgando tal ação totalmente improcedente e, em consequência, absolvendo a ali ré do pedido, nos termos e com os fundamentos que resultam da certidão judicial junta com a petição inicial e que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
4) Na referida ação deu-se como provado, entre o mais, o seguinte:
b) Desde 1997, os autores vêm habitando a casa descrita em a) com a sua família, aí pernoitando e tomando refeições, passando tempos de laser e recebendo familiares e amigos, aí realizando obras de melhoramento e conservação, mobilando e decorando a casa, pagando os consumos inerentes de água, electricidade, serviço de televisão e comunicações electrónicas, de forma ininterrupta, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, na convicção de a ninguém prejudicar, mas na ausência de qualquer convicção de actuarem como proprietários do imóvel. (arts. 10.º a 12.º, 14.º a 16.º, 18.º, 19.º, 21.º, 22.º, e 24.º a 26.º da petição inicial)”.


*

II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

- Da verificação nulidade processual, arguida nas alegações de recurso (ter a decisão de mérito sido proferida com falta de audiência prévia - decisão surpresa), e suas consequências.
Arguiram os Réus no recurso que apresentaram nulidade da decisão por o Tribunal a quo ter conhecido de mérito sem, antes disso, realizar audiência prévia.

E, como tivemos, já, oportunidade de referir e decidir, as nulidades processuais distinguem-se das nulidades específicas da sentença bem como do erro de julgamento (de facto ou de direito). Estes respeitam a vícios de conteúdo, aquele respeita à própria existência de atos processuais.
In casu, invocam os apelantes nulidade por o juiz de primeira instância ter omitido o dever marcar e realizar audiência prévia antes de decidir de mérito, nulidade essa que inquina a própria decisão em que se conheceu de mérito sem ouvir as partes.
Apresentam-se, pois, os apelantes a arguir nulidade habitualmente chamada de secundária, inominada ou atípica nas alegações de recurso[1].
Quanto às regras gerais sobre a nulidade dos atos, estatui, para estas nulidades, o nº1, art. 195º, do Código de Processo Civil, diploma a que nos reportamos na falta de outra referência, que “fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”, consagrando o nº1, do art. 199º, quanto ao prazo de arguição que “se a parte estiver presente, por si ou por mandatário, no momento em que forem cometidas, podem ser arguidas enquanto o ato não terminar; se não estiver, o prazo para arguição conta-se do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum ato praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência”.
Consagra-se, assim, um sistema que remete para uma análise casuística, em que se invalida apenas o ato que não possa ser aproveitado, sendo que invalidado um ato tal acarreta que se invalidem todos os subsequentes que se lhe sigam que daquele dependam absolutamente.
Constitui exemplo de omissão de ato prescrito na lei a falta de cumprimento do dever jurídico do juiz de realizar diligência.
Quanto ao regime e meio de arguição, a regra é a de o juiz só conhecer destas nulidades mediante arguição da parte e o meio processual próprio para o fazer é a reclamação (v. parte final do art. 196º e 197º), no momento em que ocorrer a nulidade, se a parte estiver presente, por si ou por mandatário e, no caso de o não estar, o prazo geral de arguição, de dez dias, conta-se do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum ato praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando se deva presumir que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência (cfr. arts. 199º, n.º 1 e 149º, n.º 1).
Contudo, e mantendo, deste modo, “atualidade e pertinência do brocardo segundo o qual “dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se”, se houver um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou a omissão do ato ou formalidade, o meio próprio para reagir será a impugnação do respetivo despacho pela interposição do recurso competente”[2].
Assim se decidiu no Ac. da RG de 5/4/2018, proferido no processo 1856/12.0TJVNF-C.G1, em que a ora relatora foi adjunta e onde se analisa “Conforme explicava Alberto dos Reis[3], “a arguição da nulidade só é admissível quando a infração processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou a omissão do ato ou formalidade, o meio próprio para reagir, contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou reclamação por nulidade, é a impugnação do respetivo despacho pela interposição do recurso competente””.

No caso, recorreram os Réus da decisão de mérito proferida após os articulados sem que, previamente, tenha sido convocada audiência prévia.
Vejamos se procede a arguida nulidade, por omissão de ato (inobservância do contraditório).
O nº 3, do artigo 3º, veio ampliar o âmbito da regra do contraditório trazendo para o nosso direito processual uma conceção mais alargada, visando, através do exercício do direito de influência, prevenir as “decisões surpresa”. Tal sentido amplo atribuído ao princípio do contraditório (que impõe que seja concedida às partes a possibilidade de, antes de ser proferida a decisão, se pronunciarem sobre questões suscitadas oficiosamente pelo juiz em termos inovatórios, mesmo que apenas de direito) já há muito vinha a ser afirmado pela jurisprudência constitucional, especialmente no processo penal, devido às garantias de defesa do arguido e, também, já há muito, vinha a ser defendido pelo Professor Lebre de Freitas[4] para o processo civil, traduz um direito à fiscalização recíproca ao longo do processo, visto como uma “garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, direta ou indireta, com o objeto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão”[5], e revela grandes potencialidades práticas em termos de cooperação, de lealdade entre os intervenientes processuais e de eficácia das decisões judiciais, sempre, a ser previstas pelas partes.
E, na medida em que garante a igualdade das partes - pela possibilidade de pronúncia e resposta – conduz a soluções do litígio mais justas, logrando-se atingir num maior número de casos a realização dos verdadeiros objetivos finais de que o processo é um mero instrumento para alcançar.
Impõe o princípio do contraditório, ao nível do direito, que, antes de ser proferida a decisão final, seja facultada às partes a discussão de todos os fundamentos em que a ela vá assentar, sendo aquele princípio o instrumento destinado a evitar as decisões surpresa[6], que, embora pudessem ser previsíveis, não tenham sido configuradas pelas partes, sem que estas tivessem obrigação de prever que fossem proferidas.
A proibição da decisão-surpresa reporta-se, principalmente, às questões suscitadas oficiosamente pelo tribunal. O juiz que pretenda basear a sua decisão em questões não suscitadas pelas partes, mas oficiosamente levantadas por si, “ex novo”, seja através de conhecimento do mérito da causa, seja no plano meramente processual, deve, previamente, convidar ambas as partes a sobre elas tomarem posição, só estando dispensado de o fazer, conforme dispõe o nº 3, do art. 3º, em casos de manifesta desnecessidade. Com este princípio quis-se impedir que as partes pudessem ser surpreendidas com soluções de direito inesperadas. Pretendeu-se, pois, proibir as decisões-surpresa embora tal não retire a liberdade e independência que o juiz tem, em termos absolutos, de subsumir, selecionar, qualificar, interpretar e aplicar a norma jurídica que bem entender, aplicando o direito aos factos de modo totalmente autónomo. Impõe, sim, ao julgador que, antes de decidir, faculte às partes a discussão da questão de direito.
A regra do contraditório passou, assim, a abarcar a própria decisão de uma questão de direito, decisiva para a sorte do pleito, inovatória, inesperada e não perspetivada pelas partes, tendo de ser dada a estas a possibilidade de, previamente, a discutirem sendo que tal “entendimento amplo da regra do contraditório, afirmado pelo nº3, do art. 3º, não limita obviamente a liberdade subsuntiva ou de qualificação jurídica dos factos pelo juiz – tarefa em que continua a não estar sujeito às alegações das partes relativas à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 664º); trata-se apenas e tão somente, de, previamente ao exercício de tal “liberdade subsuntiva” do julgador, dever este facultar às partes a dedução das razões que considerem pertinentes, perante um possível enquadramento ou qualificação jurídica do pleito, ou uma eventual ocorrência de exceções dilatórias, com que elas não tinham razoavelmente podido contar”[7].
Não quis, pois, a lei excluir da decisão as subsunções que juridicamente são possíveis, antes estabeleceu que a concreta decisão a tomar tem de, previamente, ser prevista pelas partes, tendo, por isso, de lhes ser dada “a priori” possibilidade de se pronunciarem sobre o novo e possível enquadramento jurídico. Assim, o princípio processual segundo o qual “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação e aplicação do direito” tem, presentemente, de ser compatibilizado com a proibição das decisões surpresa tendo, desse modo, antes da prolação da decisão, de ser facultado às partes o exercício do contraditório sempre que a qualificação jurídica a dar não corresponda ao previsto pelas partes. Com o aditamento do nº 3, do art. 3º, pretendeu-se reforçar e aproveitar a colaboração e o contributo das partes com vista à melhor satisfação dos seus próprios interesses e à justa composição dos litígios. E para que os objetivos de mais rápida, definitiva e eficaz composição dos litígios possam ser alcançados, foi consagrado que uma das finalidades da audiência prévia é a de “Facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar exceções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa” (art. 591º, nº 1, al. b)).
Nenhuma decisão deve, pois, ser tomada sem que previamente tenha sido dada efetiva possibilidade ao sujeito processual contra quem é dirigida de a discutir, de a contestar e de a valorar, possibilitando-se-lhe, assim, influi ativamente na decisão.[8]. A imposição de audição das partes em momento anterior à decisão é determinada por um objetivo concreto – o de permitir às partes intervirem ativamente na construção da decisão, chamando-as a trazerem aos autos a defesa da solução para que apontam.
Uma determinada questão, seja relativa ao mérito da causa seja meramente adjetiva, não pode ser decidida, quer em primeira instância, quer em via de recurso, com um fundamento jurídico diverso, até então omitido nos autos e não ponderado pelas partes sem que, antes, as mesmas sejam convidadas a sobre ela se pronunciarem[9], sendo que, contudo, o dever de audição prévia só existe quando estiverem em causa factos ou questões de direito suscetíveis de virem a integrar a base de decisão.
São, pois, proibidas as decisões surpresa, isto é, as decisões baseadas em fundamento que não tenha sido, previamente, analisado pelas partes.
A surpresa que se visa evitar não se prende com o conteúdo, com o sentido, da decisão em si mas, sim, com a circunstância de se decidir uma questão não prevista, isto é, visa-se evitar a surpresa de se decidir uma questão com que se não estava a contar. O exercício do contraditório é, sempre, justificável e desejável se puder gerar o efeito que com ele se pretende – permitir que a pronúncia das partes possa influenciar a decisão do Tribunal.
Na estruturação de um processo justo o tribunal deve prevenir e, na medida do possível, obviar a que os pleiteantes sejam surpreendidos com decisões para as quais as suas exposições, factuais e jurídicas, não foram tomadas em consideração[10].
Em obediência ao princípio do contraditório e salvo em casos de manifesta desnecessidade devidamente justificada, o juiz não deve proferir nenhuma decisão, ainda que interlocutória, sobre qualquer questão, processual ou substantiva, de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que, previamente, tenha sido conferida às partes, especialmente àquela contra quem é ela dirigida, a efetiva possibilidade de a discutir, contestar e valorar[11].

Há decisão surpresa se o juiz, de forma inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico, envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo, ainda que possa ser a solução que mais se adeque a uma correta decisão do litígio. Não tendo as partes configurado a questão na via adotada pelo juiz, cabe ao mesmo dar a conhecer a solução jurídica que pretende vir a assumir para que as partes possam contrapor os seus argumentos[12], só estando dispensado de o fazer em caso de manifesta desnecessidade.
Como vimos, a necessidade da contradição, genericamente consagrada no artigo 3º, vem materializada em inúmeras disposições ao longo do Código de Processo Civil, sendo uma delas a que consagra que uma das finalidades da audiência prévia é a de “Facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar exceções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa” (art. 591º, nº 1, al. b)).
Com efeito, ao Juiz é vedado, depois de satisfação de convite a aperfeiçoamento, nas ações de valor superior a metade da alçada da Relação (€15.000,00) (cfr. art. 597º), decidir a causa, sem antes dar às partes a faculdade de se pronunciarem em audiência prévia, sendo esta uma diligência que tem, obrigatoriamente, de ter lugar nas referidas ações, conforme estatui o nº1, do artº 591º, do CPC, e tal, in casu, efetivamente, não foi respeitado.
“Do confronto dos arts. 591º, nº1, 592º, nº1, 593º, nº1, 593º, nº3, e 597º resulta claro que a tramitação de uma ação declarativa comum de valor superior a metade da alçada da Relação (€15.000,00) incluirá, em curso normal, a realização de uma audiência prévia, concluídas as diligências resultantes do preceituado no nº2, do art. 590º, regra que apenas comporta duas exceções tipificadas: quando a lei assim o estabeleça, o que sucede nos casos indicados no art. 592º, nº1; quando o juiz dispense a realização da audiência, ao abrigo do art. 593º, nº1. Com tais ressalvas, a audiência prévia é obrigatória, decorrendo da sua dispensa uma nulidade”[13].
Não se estando in casu perante qualquer das exceções, verifica-se que o tribunal a quo conheceu de mérito sem convocar audiência prévia. E estamos perante uma decisão-surpresa, pois que foi dada uma solução jurídica sem que, previamente, às partes tenha sido facultada a possibilidade de tomar posição sobre ela.


*

Consequência da falta de marcação de audiência prévia e da inobservância do contraditório


A não observância do contraditório, no sentido de não se conceder às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre a questão a conhecer, na medida em que possa influir no exame ou decisão da causa, constitui uma nulidade processual, nos termos do art. 195º, que tem de ser arguida, de acordo com a regra geral prevista no art. 199º. Na verdade, incluindo-se a violação do princípio do contraditório na cláusula geral sobre as nulidades processuais constantes do nº1, do art.195º, não constituindo nulidade de que o tribunal conheça oficiosamente, a mesma tem-se por sanada se não for invocada pelo interessado no prazo de 10 dias após a respetiva intervenção em algum ato praticado no processo - arts 197º, nº 1 e 199º, nº 1[14].
A violação do princípio do contraditório, mediante a prolação de uma decisão-surpresa, constitui nulidade processual, prevista no nº1, do art. 195º, onde se consagra que “a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreve, só produz nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”.
Dada a relevância e primordial importância do contraditório, como analisamos, é indiscutível que a inobservância desse princípio, com prolação de decisão-surpresa, é suscetível de influir no exame ou decisão da causa, pelo que esta padece de tal nulidade (constituindo a referida inobservância uma omissão grave e representando uma nulidade processual por a omissão ser suscetível de influir no exame ou na decisão da causa).
Sendo decorrência do referido princípio a proibição de decisões-surpresa, isto é, decisões baseadas em fundamento não previamente considerado pelas partes, tais decisões, a serem proferidas, incluem-se nas referidas nulidades. E, carecendo a nulidade de ser invocada pelo interessado na omissão da formalidade ou na repetição desta ou na sua eliminação (art. 197º, n.º 1), no prazo de dez dias, após a respetiva intervenção em algum ato praticado no processo (art. 199º, n.º 1), sob pena de ficar sanada, estando a decisão-surpresa coberta por decisão judicial, como é entendimento pacífico da jurisprudência, nada obsta a que a mesma seja invocada e conhecida em sede de recurso[15]. A prolação de decisão desacompanhada de prévia auscultação das partes, constitui nulidade, impugnável por meio de recurso[16].
Assim, analisada a lei, vista a doutrina e a jurisprudência não pode deixar de se decidir, pelos argumentos expostos que tinha, pois, o Tribunal a quo, antes de decidir de mérito, de ouvir os argumentos das partes, convocando-as, expressamente, para essa finalidade. Assiste, deste modo, razão aos apelantes, ao concluirem pela violação do contraditório.
E, como refere o apelante, in casu, a nulidade cometida não pode deixar de inquinar o despacho saneador-sentença proferido.
António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, chamam a atenção para a divergência doutrinária e jurisprudencial acerca do enquadramento da questão – “se a arguição dessa nulidade segue as regras gerais ou se transforma em nulidade do despacho saneador ou despacho saneador-sentença que, sem essa diligência obrigatória, seja proferido”[17].
“Paulo Pimenta convoca para o efeito o regime das nulidades processuais, por omissão de ato que influi na decisão da causa, nos termos dos arts 195º e 199º, traçando um quadro completo no que concerne à arguição e efeitos de tal nulidade (ob. cit., pp. 230-232 e 250-252)”. Defende que quando a parte se aperceber da existência da nulidade deve suscitá-la para que a situação possa ser reparada, devendo a questão “ser resolvida através da arguição da nulidade no processo, nos termos do art. 195º, a suscitar no prazo de 10 dias, de tal modo que, sendo deferida a nulidade, tal se projetará também na anulação do despacho que tenha sido proferido”[18].
Na jurisprudência a integração da situação da omissão de ato obrigatório “no campo das nulidades processuais foi afirmada também em RP 5-7-06, 0632391 e RP 6-5-10, 81/07” tendo esta solução a “vantagem de permitir que a nulidade seja superada pelo próprio juiz logo que seja arguida pela parte, fora das exigências (e dos encargos) inerentes à interposição de recurso de apelação, mas defronta-se com a norma do art. 613º que, em regra, declara que o poder jurisdicional se esgota com a prolação da decisão, impedindo que seja o juiz que a proferiu a reparar o erro cometido[19].
Miguel Teixeira de Sousa considera que a omissão “se converte, afinal, numa nulidade da própria decisão que venha a ser proferida. Em https://blogippc.blogspot.pt, à margem de RL 15/5/14, 26903/13 (…), refere que “ a nulidade resultante da omissão (…) só se verifica se, na apreciação do pedido da parte, for dada relevância à deficiência (…) (no mesmo sentido, RP 8/1/18, 1676/16). Esta solução tem a vantagem de não colidir com a norma do art. 613º sobre a extinção do poder jurisdicional, que cessa com a prolação da decisão, (…) a ser ultrapassada através da interposição de recurso, nos termos gerais (ou arguição da nulidade, nos termos do art. 615º, nos casos em que não seja admissível recurso)[20].
A jurisprudência, como vimos, vem-se orientando no sentido de a apreciação da nulidade processual por determinada omissão de despacho ou omissão de alguma formalidade de cumprimento obrigatório – como a que demanda o exercício do contraditório - acaba por ser apreciada no âmbito de recurso que entretanto foi interposto, como aconteceu em RL 15-5-14, 26903/13, RE 26-10-17, 2929/15 e RG 23-6-16, 713/14, dizendo-se especificadamente neste último que “se a nulidade está coberta por decisão judicial (despacho) que ordenou, autorizou ou sancionou o respetivo ato ou omissão, em tal caso o meio próprio para a arguir não é a simples reclamação, mas o recurso competente, a deduzir (interpor) e tramitar como qualquer outro do mesmo tipo”, o que essencialmente conduz à solução defendida por Teixeira de Sousa. Trata-se de uma solução para a qual a nulidade processual apenas ganha relevo quando tal se projeta negativamente na decisão que é proferida, sendo a questão apreciada em sede de interposição de recurso”[21].
Abrantes Geraldes, em Recursos no NCPC, 5ª ed. Pp. 25-30, defende que a reação da parte interessada passa pela interposição de recurso em cujo âmbito se inscreva a arguição daquelas nulidades, solução também adotada em STJ 23-6-16, 1937/15, no qual se afirmou que “a omissão de ato destinado a proporcionar ao autor o contraditório (…) determina a nulidade do despacho saneador onde tal exceção foi apreciada e julgada procedente” e “em STJ 17-3-16, CJ, t.I, p. 176 (“a decisão surpresa alegada e verificada constitui um vício intrínseco de decisão e não do iter procedimental, acarretando a nulidade do acórdão que assentou a sua decisão em dois fundamentos que não foram previamente considerados pela recorrente, que foram decisivos para a decisão e sobre os quais, antes, deviam ter sido ouvidos recorrente e recorridos” e em STJ 22-2-17, 5384/15”[22].
Assim, a falta da audiência prévia destinada, designadamente, ao fim previsto na al. b), do nº1, do art. 591º, “Facultar às partes a discussão de facto e de direito” determina a nulidade do saneador-sentença que conheceu do mérito da causa, julgando-a improcedente, vendo-se os Réus, devido à não realização de audiência prévia, impedidos de influenciar a decisão.
Destarte, estando a nulidade processual coberta por decisão judicial posterior que a permitiu e lhe deu continuidade, conferindo assentimento ao respetivo ato ou omissão dela geradora, o meio próprio para a arguir é o recurso a interpor da decisão proferida, com a qual se esgotou o poder jurisdicional (cfr. art. 613º, do CPC), onde aquela nulidade, a apreciar, releva a projetar-se, como no caso, negativamente na decisão proferida.
Nos termos expostos, procedendo a apelação, por ter ocorrido violação do princípio do contraditório, dada a falta de audiência prévia, com a referida finalidade, não pode a decisão ser mantida.


*

As custas do recurso são da responsabilidade da recorrida dada a total procedência da pretensão recursória a que foi apresentada oposição (nº1 e 2, do artigo 527º, do Código de Processo Civil).

*

III. DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, os Juízes desta secção cível do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação procedente e, em consequência, anulam a decisão recorrida e determinam a baixa dos autos à 1ª instância para realização da audiência prévia.


*

Custas pela recorrida.

Porto, 24 de novembro de 2025
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores
Eugénia Cunha
Mendes Coelho
Fátima Andrade
__________________
[1] Cfr. exemplos destas nulidades (prática de ato que a lei não admita e omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva) in António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, pág 236 e José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 1º, pág. 382-383.
[2] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Idem, pág. 236.
[3] In Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 2º, Coimbra, 1945, pág. 507.
[4] FREITAS, Lebre de (1992). Inconstitucionalidades do Código de Processo Civil, em Revista da Ordem dos Advogados, 1992, I, págs 35 a 38.
[5] FREITAS, José Lebre de; Redinha, João; Pinto, Rui (1999), Código de Processo Civil (anotado), vol. I, Coimbra: Coimbra Editora, pág. 8.
[6] FREITAS, José Lebre de (2006), Introdução ao Processo Civil. Conceitos e princípios gerais, 2ª ed.. Coimbra: Coimbra Editora, págs 115 a 118.
[7] REGO, Carlos Lopes do (2004), Comentários ao Código de Processo Civil, 2ª ed., vol. I, Coimbra: Almedina, pág. 32.
[8] Cfr. Ac. do STJ de 04/05/99, proc. nº 99057, in dgsi.net
[9] Cfr, neste sentido Ac. do STJ de 15/10/2002, proc. 02A2478, Ac. da RL de 11/03/2008, proc. 2051/2008-7, Ac. da RL de 21/05/2009, proc. 1490/04.8TBPDL.L1-6 e Ac. da RP de 10/01/2008, proc. 0736877, todos in dgsi.net
[10] Ac. da RC de 13/11/2012, proc. 572/11.4TBCND.C1, in dgsi.net
[11] Ac. da RC de 20/9/2016, proc. 1215/14.0TBPBL-B.C1, in dgsi.pt
[12] Ac. do STJ de 27/9/2011, proc. 2005/03.0TVLSB.L1.S1, in dgsi.pt
[13] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Idem, pág. 685
[14] Cfr. Acs do STJ de 13/1/2005, proc. 04B4031, de 11/12/95, proc. 96A483, de 03/12/96, proc. 97A232, de 06/05/97, proc. 97A232 e de 22/01/98, proc. 98A448, Ac. RE, de 1/4/2004, proc. 2737/03-2, e Ac. RP de 10/01/2008, proc. nº 0736877, todos in dgsi.pt
[15] Acs. STJ. de 13/01/2005, proc. 04B4031; RP de 18/06/2007, proc. 0733086, in dgsi.pt.
[16] Ac. RL de 9/10/2014, proc. 2164/12.1TVLSB.L1-2, in dgsi.net
[17] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Idem, pág. 685.
[18] Ibidem, pág. 681 e seg.
[19] Ibidem, pág. 682.
[20] Ibidem, pág. 682.
[21] Ibidem, pág. 682 e seg.
[22] Ibidem, pág. 683.