Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
681/11.0TYVNG-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: INSOLVÊNCIA
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
PENHOR
CRÉDITOS COMUNS DOS TRABALHADORES
LIQUIDAÇÃO DO PASSIVO
RECONSTITUIÇÃO DE FUNDOS
Nº do Documento: RP20190912681/11.0TYVNG-A.P1
Data do Acordão: 09/12/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 181, FLS 71-86)
Área Temática: .
Sumário: I - Na graduação de créditos, em insolvência, o penhor prevalece sobre o privilégio mobiliário comum dos trabalhadores relativamente ao bem móvel ou direito dado em garantia.
II - Na insolvência de sociedade de gestão de compras em grupo, quando não é possível reunir os valores correspondentes aos fundos dos participantes --- funcionam como um património autónomo relativamente à massa insolvente --- na liquidação do passivo há lugar à reconstituição dos fundos contabilizados para efeitos de pagamento daqueles créditos de participação, a graduar com primazia relativamente a todos os outros créditos sobre a insolvência.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 681/11.0TYVNG-A.P1 (apelação)
Comarca do Porto – Juízo de Comércio de V. N. de Gaia – J1

Relator: Filipe Caroço
Adj. Desemb. Judite Pires
Adj. Desemb. Aristides Rodrigues de Almeida

Acordam na Relação do Porto

I.[1]
Por sentença proferida aos 26.7.2011 e pacificamente transitada em julgado, foi declarada a Liquidação Judicial da B…, S.A., com sede na Rua …, n.º …, em Vila Nova de Gaia, tendo sido fixado o prazo de 30 (trinta) dias para a reclamação de créditos.
Tal decisão foi publicada no D.R., III Série, tendo sido afixados os editais e publicados os anúncios impostos por lei.
A massa falida é constituída por valores mobiliários, participações sociais, um imóvel e duas viaturas.
Nos presentes autos, com a abrangência definida pela disciplina constante do artº 188º, nºs 1 e 4 do CPEREF, foram reclamados e reconhecidos os seguintes créditos:
1. C…, participante a aguardar saldo do Fundo Comum, no valor de € 39.237,21;
2. Administração do Condomínio – D…, no valor de € 126,87;
3. E…, créditos salariais no valor de € 11.454,89;
4. F…, participante a aguardar saldo do Fundo Comum no montante de € 69.286,26;
5. G…, a título de honorários no valor de € 33.909,96;
6. H… no valor de € 314,47;
7. I…, no valor de € 10.953,22;
8. Banco J…, Sociedade Aberta, garantia de empréstimo à AP…, SA, no valor de € 50.000,00;
9. L…, a título de despesas judiciais, no valor de € 4,80;
10. M…, a título de rendas, no valor de € 9.485,20;
11. N…-Banco de Portugal, a título de facturas no valor de € 270,60
12. O…, S.A., garantia de empréstimo à AP…, SA, no valor de € 4.232.090,45;
13. Câmara Municipal P…, a título de taxas no valor de € 28,49;
14. Q…, Lda. a título de faturas no valor de € 27,00;
15. S…, Lda., a título de serviços de tipografia no valor de € 559,72;
16. Instituto de Segurança Social, a título de contribuições no valor de € 10.112,13;
17. T…, no valor de € 116.781,46;
18. U…, participante a aguardar saldo do Fundo Comum no valor de € 43.409,88;
19. V…, participante a aguardar saldo do Fundo Comum no valor de € 35.000,00;
20. W…, a título de créditos salariais no valor de € 12.165,82;
21. X…, Lda., participante a aguardar saldo do Fundo Comum no valor de € 104.799,52;
22. Y…, Lda., de serviços de mecânica no valor de € 311,28;
23. Z…, a título de créditos salariais no valor de € 10.786,39;
24. AB…, a título de créditos Salariais no valor de €25.593,41;
25. AC…, a título de créditos salariais no valor de € 13.081,26;
26. AD…, a título de créditos salariais no valor de € 16.289,89
27. AE…, participante a aguardar saldo do Fundo Comum no valor de € 69.415,14;
28. AF…, a título de fornecimento de material de escritório no valor de € 209,08;
29. B1…, Lda., a título de empréstimos no valor de € 239.102,53;
30. AG…, SA, a título de fornecimento de serviços no valor de € 7.877,20;
31. AH…, Lda., participante a aguardar saldo do Fundo Comum no valor de € 50.638,79;
32. AI… a título de prestação de serviços no valor de € 14.090,00;
33. AJ…, a título de despesas de condomínio no valor de € 409,74;
34. AK…, SA., a título de prestação de serviços no valor de € 399,75;
35. AL…, pelos serviços de assinatura de um jornal no valor de € 26,25;
36. AM…, a aguardar saldo do Fundo Comum no valor de € 39.706,37;
37. AN…, Lda. a título de prestação de serviços, no valor de € 181,50;
38. AK1…, a título de prestação de serviços no montante de € 181,50;
39. AO…, participante a aguardar saldo do Fundo Comum no valor de € 34.843,14.
40. AP…, S.A., a título de empréstimos no valor de € 7.989,00:
41. Restantes que constam da Lista Atualizada de fls. 586 verso a 590 verso.
*
Existiram créditos reclamados que foram contestados sobre os quais já foi proferida sentença transitada em julgado – cfr. fls. 578 a 584. Ali:
- O crédito do J…, S.A. foi reconhecido pelo valor de € 50.000,00 e com a natureza de crédito garantido; e
- Foi julgada procedente a impugnação e o crédito da AM…, Lda. e reconhecido pelo valor de € 39.706,37, como crédito privilegiado. À semelhança desta credora e por se encontrarem nas mesmas circunstâncias em que está o crédito dela, foram também declarados privilegiados (privilégio mobiliário geral), os créditos reclamados por C…, F… (habilitado), U…, V…, X…, Lda., AE… e AH…, Lda. (todos eles participantes a aguardar o saldo do Fundo Comum).
Foi junto parecer da Sr. Liquidatário Judicial, nos termos do disposto no art.º 195º do CPEREF.
Nos autos principais, foi constituída Comissão de Credores.
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Posteriormente, em 4.3.2019, o tribunal proferiu sentença de graduação de créditos que culminou com o seguinte dispositivo, ipsis verbis:
«Nos termos expostos, decido:
A) Julgar reconhecidos os créditos reclamados, nos montantes supra enunciados convertidos para o euro e reclamados pelos credores enunciados na relação acima transcrita.
B) Graduar os créditos reclamados pela seguinte ordem, tendo em conta a Lista de Fls. 586, verso a 590, verso:
> Em primeiro lugar os créditos reclamados por E…, W…, AB…, AC… e AD…, pagos rateadamente, tendo em conta o privilégio mobiliário e imobiliário geral;
> Em segundo Lugar os créditos reclamados pelo J… e O… sobre os direitosns/b garantidos, sendo que quanto a O… existe já a menção de valor não recebido em sede de rateio final no processo de insolvência da sociedade AP…, SA.;
> Em terceiro Lugar os créditos reclamados aos credores que se encontram a aguardar o saldo do Fundo Comum;
> Em quarto lugar, todos os restantes créditos reclamados pelos credores comuns, que deverão ser pagos rateadamente do produto dos bens apreendidos.
> Em quinto lugar todos os restantes créditos subordinados, que deverão ser pagos pelo produto rateadamente.
C) Fixar a data da Liquidação Judicial da Devedora em 26.07.2019
* * * * *
Custas pela massa falida — artigo 249º do Código de Processos Especiais de Recuperação de Empresa e Falência, sendo que as custas da falência e todas as demais sairão precípuas de todo o produto da massa.»
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Inconformados, apelaram da sentença três credores reclamantes, a saber:
- AE…;
- J…, S.A.; e
- AM…, LDA.

Na sua apelação, AE… formulou as seguintes CONCLUSÕES:
«1 – A sentença é nula, nos termos do disposto no artigo 615º- alíneas b), c) do C.P.C., na medida em que:
a) – não especifica os fundamentos de direito que justificam a decisão de graduar em terceiro lugar o crédito reclamado pelo ora recorrente;
b) - Percorrendo a fundamentação de direito da sentença, no que tange ao critério legal que suporta a graduação dos créditos que constituem os fundos contabilizados em terceiro lugar, nada é dito.
2 – O comando do artº 615º/1-b) do CPC impõe ao Juiz o dever de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes;
3 – A sentença de que se recorre está em manifesta oposição com o despacho saneador/sentença, proferido em 28/11/2018 e com o princípio que a sentença posta em crise anuncia no seu Ponto III no 10º parágrafo, página 5, ao referir expressamente que “os créditos reclamados deverão ser classificados e graduados como créditos comuns, excepto…os créditos dos titulares dos fundos comuns…”;
4 – A graduação do crédito do recorrente em terceiro lugar, manifesta um erro manifesto, pois não atende ao privilégio legalmente atribuído aos participantes;
5 - A sentença viola ainda o disposto nos artºs 619º/1 e 625º ambos do C.P.C., pois existe uma notória contradição entre a decisão constante do saneador/sentença quanto à natureza e graduação dos créditos dos credores/participantes e a sentença de graduação de créditos, que os relega para terceiro lugar;
6 - Bem como o próprio acórdão deste Tribunal, datado de 24/02/2015 proferido no âmbito dos presentes autos, com o nº 681/11.0TYVNG-G.P1 (REL. Nº 971 (2)), que ao longo dos anos nunca foi cumprido;
7 - A sentença de graduação de créditos viola o princípio do caso julgado e em consequência deve a mesma ser corrigida no que tange à graduação dos créditos dos credores/participantes, devendo os mesmos, ser graduados em primeiro lugar, com a reconstituição dos fundos que se apurarem existir a favor dos mesmos;
8 - A sentença viola o disposto nos artºs 24º e 27º/4 ambos do DL 237/91 de 2 de Julho;
9 - O DL 237/91, mantêm-se em vigor na sua plenitude, tal como já acordado por este Tribunal da Relação do Porto no âmbito deste processo;
10 - Os FUNDOS dos GRUPOS, são pertença dos grupos e dos participantes - não são da insolvente e por isso têm de ser reconstituídos e consequentemente efectuado o pagamento aos credores/participantes cujos créditos foram reconhecidos em primeiro lugar.
NESTES TERMOS:
- deve a sentença recorrida quanto à graduação dos créditos ser declarado nula e em consequência, serem os créditos graduados nos termos legais e de acordo com o já sentenciado no saneador/sentença e acordão do TRP da seguinte forma:
Em primeiro lugar, os créditos reconhecidos dos credores participantes, após a reconstituição dos fundos;
Em segundo lugar, os trabalhadores;
Em terceiro lugar os bancos;
Em quarto lugar os créditos dos credores comuns;
Em quinto lugar, os restantes créditos subordinados.» (sic)
*
J…, S.A., das suas alegações, tirou as seguintes CONCLUSÕES:
«1. A douta sentença de 04.03.2019, como se evidenciou em requerimento prévio no sentido da sua reparação, enfermou de lapso material – desconsiderando o teor de fls. 585 a 591 – contendo o requerimento do Sr. Liquidatário Judicial de 28.12.2018, e da Relação de Créditos que o acompanhou – e todo o processado anterior.
2. Ao ora recorrente Banco J…, S.A. foi definitivamente reconhecido, por decisão de 28.11.2018, transitada em julgado (decisão essa proferida em sede de julgamento do mérito sobre as impugnações de créditos e questões conexas) um crédito no valor de € 50.000,00, garantido sobre penhor de depósito bancário a prazo, de igual valor, da titularidade da sociedade em liquidação (depósito bancário esse oportunamente documentado nos autos, tal como foi documentado o penhor sobre o mesmo incidente).
3. Requerimento do Sr. Liquidatário, ao elencar os bens e direitos apreendidos para as finalidades destes autos, não faz qualquer menção ao referido depósito bancário.
4. A douta sentença ora sob recurso, eventualmente de forma tributária daquela omissão, ao elencar, sob o nº 8, o crédito do ora requerente, também nada refere sobre essa garantia de penhor – nem pondera a existência dessa garantia em parte alguma das reflexões que produz no seu texto.
5. Por outro lado, na sua parte decisória, não faz qualquer menção ao depósito bancário dado de penhor ao Banco J…, S.A. - nem faz qualquer distinção entre os bens apreendidos e a graduação que sobre esses vem a emitir.
6. Concretamente, quanto ao crédito do ora recorrente, consagra a douta sentença: “Em segundo Lugar os créditos reclamados pelo J… e O… sobre os direitosns/b garantidos, sendo que quanto a O… existe já a menção de valor não recebido em sede de rateio final no processo de insolvência da sociedade AP…, SA”. (sic)
7. Assim, nada refere aquela quanto à existência e à afectação / graduação relativamente ao depósito bancário sobre que incide o penhor sobre depósito bancário, de que goza o crédito do ora requerente – “associando” a garantia do crédito do Banco J…, S.A. com a garantia de que gozará (?) o crédito da O…, sem que haja qualquer identidade entre ambos esses créditos, ou conexão entre as garantias de que gozam um e outro, (absolutamente diversas quanto ao seu objecto e natureza).
8. Porque assim é, a douta sentença recorrida não opera, de forma consequente / perceptível, concreta graduação do crédito do recorrente, por referência ao concreto penhor que o garante, em concurso com os demais créditos reconhecidos,
9. Pelo que se mostra ferida de nulidade – incorrendo em flagrante omissão de pronúncia – art. 615º, nº 1, al. d) do C.P.C..
10. Caso se considere que a douta sentença recorrida disciplina de forma consequente a graduação de créditos que se impõe nos autos – sempre aquela douta sentença deve ser revogada, face ao entendimento que parece subjazer-lhe.
11. Na verdade, vêm os créditos dos trabalhadores, graduados genericamente “em primeiro lugar”, indicados para serem “pagos rateadamente, tendo em conta o privilégio mobiliário e imobiliário geral”, sem menção dos bens concretos sobre que incidem esses privilégios.
12. Talvez porque a douta sentença não faz qualquer menção à garantia real de penhor de que goza o crédito do Banco J…, S.A., aquela vem assim, com a referida “graduação genérica” a desconsiderar totalmente o disposto no art. 175º do C.I.R.E. – que preceitua que “O pagamento dos créditos privilegiados é feito à custa dos bens não afectos a garantias reais prevalecentes”.
13. O penhor prevalece sobre o privilégio creditório mobiliário geral que é atribuído aos créditos laborais – arts. 666º e 749º do Código Civil – pois tal privilégio constitui mera preferência de pagamento, que decai perante garantia real previamente constituída, salvo disposição legal em contrário (ver, por todos, e pelo acervo jurisprudencial que incorpora, douto Acordão da Relação de Guimarães, de 25.05.2017, disponível em www.dgsi.pt).
14. Para mais, no caso vertente, o privilégio mobiliário geral que está em causa é bem o previsto no art. 333º do Código do Trabalho, na sua actual redacção - pois o início deste processo e a entrada em liquidação da B… datam de Julho de 2011.
15. Por todo o exposto, deve a douta sentença aqui recorrida ser revogada, já que a mesma – caso não se entenda enfermar de nulidade, por omissão de pronúncia, como a tipifica o art. 615º, nº 1, al. d) do C.P.C. - violou, desconsiderou, ou fez erradas interpretação e aplicação, das disposições dos arts. 175º do C.I.R.E, dos arts. 666º e 749º do Código Civil,
16. Devendo, em seu lugar, proferir-se douto Acordão que, graduando efectivamente o crédito do ora recorrente por referência à garantia de penhor de que goza, decida no sentido da prevalência desse penhor sobre o privilégio mobiliário geral atribuído aos créditos laborais.» (sic)

Em tempo, o mesmo credor, J…, S.A., requereu ao tribunal a reparação e correção da decisão, ao abrigo dos art.ºs 613º nº 2 e 614º, nº l, do Código de Processo Civil, essencialmente com os fundamentos que invocou no recurso, assim, no sentido de que o seu crédito fosse graduado para ser pago em primeiro lugar pelas forças do depósito a prazo que, em garantia daquele mesmo crédito, lhe foi dado de penhor, considerando-se e valorando-se expressamente tal garantia.
Pronunciou-se a credora AM…, Lda.
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AM…, Lda. fez culminar as suas alegações de recurso com as seguintes CONCLUSÕES:
«I. Atento o doutamente decidido em 28 de Novembro de 2018 (Despacho/Sentença dessa data), crédito da Recorrente, salvo o devido respeito, deveria ter sido graduado em 1º lugar.
II. Decidindo, como decidiu, a douta sentença recorrida, terá violado o disposto nos artºs 619º, 620º e 625º, CPC, normas que deveriam ter sido aplicadas ao caso sujeito e interpretadas no sentido de obstar a douta decisão ora recorrida, sendo a questão ora suscitada, será, até, do conhecimento oficioso (artºs 577º, al. d) e 578º, CPC).
III. Conforme resulta do douto Despacho/Sentença acabado de referir, a douta sentença ora recorrida viola também o disposto no regime específico aplicável ao caso ---Dec-Lei nº 237/91, de 2 de Julho, com relevância para os artºs 4º, 24º e 27º --- também ele devidamente escalpelizado naquele douto Despacho/Sentença e cuja interpretação e sentido de aplicação foram correctas.
IV. Face ao decidido no predito Despacho/Sentença de 28.11.2018, a questão suscitada pelo Banco J… deverá ser suscitada num plano diferente daquele em que deve ser discutida a questão dos credores participantes. Ou seja, depois dela. (sic)
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Não foram oferecidas contra-alegações.
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Por requerimento de 16.4.2019, na fase da interposição dos recursos, o Liquidatário Judicial expôs o seguinte:
«(…) no seguimento do requerimento apresentado nos Autos a 28/12/2018 (ref. Citius 21072371), onde foram apresentados os ativos que constituem a B…, S.A. – Soc. Em Liquidação, vem pela presente informar que por lapso do Liquidatário Judicial, aquando da indicação dos ativos que constituem a B…, S.A. – Soc. em Liquidação, não foi indicado o deposito bancário de 50.000,00 € dado de penhor a favor do Banco J…, S.A..
Face ao exposto, para os devidos efeitos deverá este Douto Tribunal ter em consideração que além dos ativos constantes no requerimento apresentado nos Autos a 28/12/2018 (ref. Citius 21072371), acresce o depósito bancário de 50.000,00 € dado de penhor a favor do Banco J…, S.A.». (sic)
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No despacho em que o recurso foi admitido (30.5.2019), indeferiu-se o pedido de retificação da sentença apresentado pelo J…, S.A.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II.
As questões a decidir --- exceção feita para o que for do conhecimento oficioso --- estão delimitadas pelas conclusões das apelações dos credores recorrentes (cf. art.ºs 608º, nº 2, 635º e 639º do Código de Processo Civil[2]).
Impõe-se apreciar e decidir:

A. Na apelação de AE…:
1. Nulidade da sentença por falta de fundamentação e por contradição;
2. Violação do caso julgado;
3. Violação do Decreto-lei nº 237/91, de 2 de julho, em especial dos art.ºs 24º e 27º, nº 4, e dever de graduação dos créditos dos participantes reconhecidos em primeiro lugar após a reconstituição dos Fundos.

B. Na apelação do J…, S.A.:
1. Nulidade da sentença por omissão da garantia de penhor de que goza a reclamante;
2. Prevalência do penhor sobre os privilégios gerais atribuídos aos créditos laborais e o dever de graduação do crédito do reclamante em primeiro lugar.

C. Na apelação da AM…, Lda.:
1. Violação do caso julgado formado na decisão de 28.11.2018;
2. A violação do regime específico previsto no Decreto-lei nº 237/91, de 2 de julho, especialmente dos art.ºs 4º, 24º e 27º e o dever de graduação do crédito da reclamante em primeiro lugar
3. O decidido na sentença de 28.11.2018 e o momento da decisão da questão suscitada pelo J…, S.A.
*
III.
A. Recurso de AE…
1. Nulidade da sentença por falta de fundamentação e por contradição
Dispõe o art.º 615º, nº 1, al. b), do Código de Processo Civil, que a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
O art.º 154º, nº 1, do Código de Processo Civil, determina que “as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”. Esta norma decorre do comando constitucional que o art.º 205º da Constituição da República prevê: “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.
É pela fundamentação que a decisão se revela um ato não arbitrário, a concretização da vontade abstrata da lei ao caso particular submetido à apreciação jurisdicional. É por ela que as partes ficam a saber da razão ou razões do decaimento nas suas pretensões, designadamente para ajuizarem da viabilidade da utilização dos meios de impugnação legalmente admitidos.
Não surpreende, pois, que a falta de fundamentação da decisão, quando ela é devida, gere a sua nulidade.
Porém, este vício penaliza a falta absoluta de fundamentação, não padecendo desse vício aquela que contém uma fundamentação deficiente, medíocre ou mesmo errada. Este é o entendimento praticamente uniforme na doutrina e na jurisprudência[3].
A falta de fundamentação da decisão, seja ela um mero despacho ou uma sentença, há de revelar-se por ininteligibilidade do discurso decisório, por ausência total de explicação da razão por que decide de determinada maneira.
Como escreve o Professor Alberto dos Reis[4], «o que a lei considera causa de nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou a mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz a nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto”.
Só aquela ausência de motivação torna a peça imprestável ou impercetível. Uma errada, insuficiente ou incompleta fundamentação não afeta o valor legal da decisão[5]. A fundamentação da sentença contenta-se com a indicação das razões de facto e de direito que servem de apoio à solução adotada pelo julgador.
Para justificar a invocação desta nulidade, diz-nos o apelante que “percorrendo a fundamentação de direito da sentença, no que tange ao critério legal que suporta a graduação dos créditos que constituem os fundos contabilizados em terceiro lugar, nada é dito”.
Transcrevemos os excertos da sentença que nos parecem mais relevantes para decidir a questão:
- “Em primeiro lugar, cumpre salientar que todos os créditos reclamados deverão ser classificados e graduados como créditos comuns, exceto os dos trabalhadores e os créditos dos titulares dos fundos comuns e os créditos garantidos sobre a Garantia da Responsabilidade da AP…, S.A.
- “Face ao exposto, conclui-se que os créditos reclamados pelos credores trabalhadores beneficia de privilégio imobiliário geral e de privilégio mobiliário geral previsto no art. 12.º da Lei 17/86, devendo ser graduado antes dos créditos referidos no art.º 748º do Código Civil e ainda dos créditos de contribuições devidas à Segurança Social, por força do nº 3, al. b) do mesmo normativo.
- “Em conclusão, concluímos que os créditos dos trabalhadores devem ser graduados antes de todos os créditos que são comuns visto que nenhum dos restantes créditos reclamados beneficia de garantia, que lhes confira o direito a pagamento preferencial. Assim, deverão os mesmos ser graduados como comuns, para serem satisfeitos proporcionalmente pelo produto da liquidação [art. 604º do Cód. Civil]”.
Não obstante este raciocínio, a sentença, no seu dispositivo, estabelece uma graduação com cinco patamares (e não apenas dois, como sugere a sua fundamentação): 1º os créditos dos trabalhadores; 2º os créditos reclamados pelo J… e pela O… sobre os bens e direitos garantidos; 3º os créditos reclamados pelos credores que se encontram a aguardar o saldo do Fundo Comum (em que se inclui o recorrente); 4º todos os restantes créditos reclamados pelos credores comuns; 5º os restantes créditos subordinados, que deverão ser pagos pelo produto, com rateio.
A sentença fundamenta a decisão de graduar os créditos dos trabalhadores em primeiro lugar, mas é omissa de fundamentação relativamente à graduação do crédito do recorrente (e dos demais credores que aguardam o saldo do Fundo Comum) em terceiro lugar, chegando a afirmar que, à exceção dos créditos reclamados pelos trabalhadores, todos os créditos são comuns.
Não tendo justificado o terceiro grau de créditos em que se encontra o crédito do recorrente, a decisão padece em absoluto de fundamentação quanto a essa questão. Como tal é, nessa parte, nula.
A regra da substituição ao tribunal recorrido impõe-nos que fundamentemos a decisão (art.º 665º, nº 1, do Código de Processo Civil); porém, agora em função da graduação que entendermos que deverá operar, o que nos remete a questão da revisão da graduação.
Por ora, importa reconhecer a existência de nulidade da sentença por falta de fundamentação.

Passa depois o recorrente a sustentar que a sentença é nula também por contradição entre a decisão que consigna e o saneador-sentença proferido no dia 28.11.2018 e ainda entre a sua decisão e o princípio que anuncia no seu Ponto III, 10º parágrafo, pág. 5.
A contradição relevante, para efeito de nulidade, não pode resultar de divergência entre duas sentenças ou despachos diferentes. Nessa situação poderá haver violação de caso julgado ou litispendência (art.º 580º do Código de Processo Civil), mas não ocorre um erro intrínseco da sentença.
Esta nulidade há de resultar da oposição entre a decisão e os seus próprios fundamentos, ou quando exista alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível (art.º 615º, nº 1, al. c), do Código de Processo Civil. Está relacionada, por um lado, com a obrigação imposta pelos art.ºs 154° e 607°, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Civil, de fundamentar as decisões e, por outro, pelo facto de a sentença dever constituir um silogismo lógico-jurídico, em que a decisão deverá ser a consequência ou conclusão lógica da norma legal (premissa maior) com os factos (premissa menor). Esta oposição é a que se verifica no processo lógico, que das premissas de facto e de direito que o julgador tem por apuradas, este extrai a decisão a proferir.[6]
Trata-se de um vício estrutural que compromete a decisão desde logo na sua construção. A decisão perde a sua justificação ao apoiar-se ostensivamente numa base que, na realidade, não a sustenta. Os fundamentos constantes dela conduziriam, logicamente, não ao resultado expresso e querido pelo juiz subscritor, mas a um resultado oposto ou, pelo menos, bastante diferente, de tal modo que a decisão não é um ato considerado racionalmente sustentado; antes revela uma distorção do raciocínio que se impõe entre as premissas de facto e de direito e a conclusão. A fundamentação há de apontar num sentido enquanto o segmento decisório segue caminho oposto ou, pelo menos, uma direção claramente diferente.
A contradição a que se refere a al. c) do nº 1 do art.º 615º do Código de Processo Civil encerra uma surpresa da decisão propriamente dita relativamente aos seus fundamentos, por não se coadunarem entre si.
Vamos repetir duas passagens da sentença:
- “Em primeiro lugar, cumpre salientar que todos os créditos reclamados deverão ser classificados e graduados como créditos comuns, exceto os dos trabalhadores e os créditos dos titulares dos fundos comuns e os créditos garantidos sobre a Garantia da Responsabilidade da AP…, S.A.por força do nº 3, al. b) do mesmo normativo.
- “Em conclusão, concluímos que os créditos dos trabalhadores devem ser graduados antes de todos os créditos que são comuns visto que nenhum dos restantes créditos reclamados beneficia de garantia, que lhes confira o direito a pagamento preferencial. Assim, deverão os mesmos ser graduados como comuns, para serem satisfeitos proporcionalmente pelo produto da liquidação [art. 604º do Cód. Civil]”.
Ora estas afirmações não justificam o estabelecimento de uma graduação de créditos com cinco níveis de preferência; estão mesmo em oposição com ela. Enquanto os fundamentos da sentença apontam para a consideração do privilégio creditório dos créditos dos trabalhadores em concurso apenas com créditos de natureza comum, o dispositivo da sentença, divergindo daquela motivação, como que nos surpreende, com cinco níveis de graduação diferenciadora, tornando a decisão, em alguma medida contraditória e obscura.
Com efeito, a sentença padece também de nulidade por oposição entre os fundamentos e a decisão e obscuridade que a torna parcialmente ininteligível (art.º 615º, nº 1, al. c), do Código de Processo Civil).
Irá a Relação, mais uma vez por imposição do citado art.º 665º, eliminar a notada oposição e obscuridade que também viciam a sentença recorrida.
Procede a primeira questão deste recurso.
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2. Violação do caso julgado
Aduz o recorrente AE… que a sentença recorrida viola o caso julgado formado no saneador-sentença, proferido no dia 28.11.2018, ao graduar em terceiro lugar o seu crédito e os demais créditos “que se encontram a aguardar o saldo do Fundo Comum”.
A sentença graduou em primeiro lugar os créditos dos trabalhadores, por beneficiarem de privilégios creditórios imobiliários e mobiliários gerais e, em segundo lugar, os créditos do J…, S.A. e da O…, S.A., com garantias reais.
Dispõe o art.º 619º, nº 1, do Código de Processo Civil, que, “transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.° e 581.°, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.° a 702.º.”.
Nos termos do art.º 620º, nº 1, daquele mesmo código, “As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo” (caso julgado formal).
A sentença constitui caso julgado nos precisos termos em que julga.
No saneador-sentença decidiu-se “julgar reconhecidos os créditos reclamados e aceites pelo Sr. Liquidatário bem como os aqui impugnados, nos termos da decisão agora proferida”, acrescentando que “não se procede agora à respectiva graduação porque importa rectificar a Lista de credores nos termos agora decididos”.
O que ali se decidiu relativamente aos créditos dos participantes que se encontram a aguardar a devolução do Fundo Comum --- entre eles os recorrentes AE… e a AM…, Lda. --- foi o reconhecimento de que a lei lhes atribui um privilégio a que o Liquidatário judicial não atendeu quando os classificou como créditos comuns, ordenando a retificação da garantia na lista créditos. E foi em obediência a esta decisão que o Sr. Liquidatário judicial, na (nova) lista retificada passou a classificar o crédito do recorrente com o benefício de um privilégio mobiliário geral (pág. 589).
Aquela decisão não foi impugnada, tendo transitado em julgado. Por isso tem força obrigatória dentro do processo; não pode ser contrariada por decisão posterior.
O saneador-sentença não graduou os créditos. A graduação ficou reservada para sentença posterior (a sentença recorrida), mas esta está vinculada à que ficou decidido no saneador e, no que concerne ao crédito do recorrente e dos demais participantes do Fundo Comum, foi que são prevalecentes.
Ora, a sentença recorrida não lhes reconhece aquele privilégio. Gradua-os em terceiro lugar depois dos créditos privilegiados dos trabalhadores e dos créditos que beneficiam de garantia real, depois de, na fundamentação, consignar, em jeito de conclusão, que “(…) os créditos dos trabalhadores devem ser graduados antes de todos os créditos que são comuns visto que nenhum dos restantes créditos reclamados beneficia de garantia, que lhes confira o direito a pagamento preferencial. Assim, deverão os mesmos ser graduados como comuns, para serem satisfeitos proporcionalmente pelo produto da liquidação [artº 604º do Cod. Civil]”.
A sentença final de 4.3.2019 viola o caso julgado formado pelo saneador-sentença proferido a 28.11.2018, impondo-se o decidido nesta decisão intermédia sobre aquela sentença (art.º 625º, nº 2, do Código de Processo Civil).
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3. Violação do Decreto-lei nº 237/91, de 2 de julho, em especial dos art.ºs 24º e 27º, nº 4, e dever de graduação dos créditos dos participantes reconhecidos em primeiro lugar após a reconstituição dos Fundos
A sentença recorrida graduou em terceiro lugar os créditos reclamados pelos credores que se encontram a aguardar o saldo do Fundo Comum. Entre estes credores figuram os recorrentes AE… e a AM…, Lda. que advogam a violação do disposto nos art.ºs 24º e 27º, nº 4, do Decreto-lei nº 237/91, de 2 de julho, afirmando que os Fundos não se confundem com a massa insolvente, são uma realidade autónoma e assim devem ser tratados, com o seu regime próprio.
Nos presentes autos foi proferido o acórdão de 24.2.2015 (proc. n° 681/11.0TYVNG-G.P1[7]) que decidiu já que os fundos dos vários grupos que foram administrados pela falida não sejam integrados na sua massa falida. Pela sua relevância direta e pertinência, passamos a transcrever alguns excertos desse acórdão:
A insolvente é uma sociedade anónima administradora de compras em grupo, abreviadamente SACEG.
Vejamos, em breve síntese, o que vem disposto no DL 237/91, de 2 de Julho, diploma que instituiu e regulou o sistema de compras em grupo.
A vertente de compras em grupo é essencialmente o sistema de aquisição de bens ou serviços pelo qual um conjunto determinado de pessoas, designadas participantes, constitui um fundo comum, mediante a entrega de prestações pecuniárias, com vista à aquisição, por cada um deles, daqueles bens ou serviços ao longo de um período de tempo previamente estabelecido – artigo 2º, alínea a).
Os fundos de grupo são, por seu turno, o conjunto formado pelo fundo comum e por outros fundos previstos no contrato ou no regulamento interno, constituído por contribuições dos participantes ou por outros recursos a que o grupo tenha direito – alínea b) do artigo 2º.
Após a constituição, cada grupo terá identificação própria e será autónomo em relação aos demais que a sociedade administradora vier a organizar ou tenha organizado (artigo 5º do DL 942/92, de 28 de Setembro).
As prestações periódicas de cada um dos participantes para o aludido fundo correspondem ao preço do bem ou serviço a adquirir dividido pelo número de períodos previstos no respectivo plano de pagamento, sendo que em cada um desses períodos o valor global das prestações de todos equivalerá ao preço do bem ou do serviço que se pretende adquirir – artigo 4º, alíneas a) e b).
As prestações não são fixas, pois que, se ocorrer a alteração do preço dos bens ou serviços, elas serão ajustadas na respectiva proporção, independentemente da atribuição a algum deles – artigo 4º, alínea c).
Aos participantes é assegurada, com as garantias adequadas, a aquisição do bem ou do serviço objecto do contrato, e a sua atribuição é feita pelo sistema único do sorteio ou por via do sistema misto de sorteio e licitação, conforme o previsto no respectivo regulamento – artigo 4º, alíneas d) e e).
Os referidos grupos não gozam de personalidade jurídica, e é a sociedade administradora de compras em grupo que representa os diversos participantes nas relações externas, isto é, no exercício dos seus direitos em relação a terceiros – artigo 14º, n.º 2.
Às sociedades administradoras de compras em grupo incumbe especialmente, por um lado, receber e manter em boa ordem os fundos que lhes são confiados, cumprir as obrigações decorrentes do regulamento geral de funcionamento dos grupos, efectuar as operações necessárias e adequadas ao recebimento dos bens e serviços pelos participantes contemplados nos prazos previstos, designadamente contratando tudo o que for apropriado com os fornecedores daqueles bens e serviços – artigo 14º, n.º 1, alíneas a) a c). E, por outro lado, compete-lhe certificar-se de que os planos de pagamento contratados com os participantes se harmonizam com o valor do bem ou do serviço objecto do contrato, contribuir para o Fundo de Garantia do Sistema de Compras em Grupo, manter permanentemente actualizada a contabilidade dos grupos e contratar em nome dos participantes um seguro contra o risco de incumprimento pelos mesmos das suas obrigações, uma vez que tenham sido contemplados com o respectivo bem ou serviço, se não tiverem sido constituídas outras garantias adequadas – artigo 14º, n.º 1, alíneas d) e g).
A compra dos bens ou serviços convencionados é realizada por via do fundo comum de aquisição, autónomo, e este é formado pelos montantes pecuniários mensalmente pagos pelos participantes.
Visto o modo como está regulado o sistema de compras em grupo, passaremos agora a ver como é que estão previstas na lei a dissolução e liquidação de uma SACEG.
A matéria está regulada nos artigos 24º e 27º do diploma que vimos analisando:
24º
1. Em caso de dissolução voluntária de uma SACEG, o órgão dirigente desta, previamente ao início da liquidação, deverá empreender as diligências adequadas à transferência dos grupos por ela administrados para outra sociedade da mesma natureza, de reconhecida solidez, que aceite proceder à respectiva administração.
2. A transferência a que alude o número anterior fica sujeita à prévia autorização do Banco de Portugal.
3. No caso de a transferência a que se refere o n.º 1 não ser possível, por falta de autorização ou por razão diferente, a sociedade em liquidação assegurará a administração dos grupos existentes até final.
4. Se a dissolução tiver por causa a revogação da autorização para o exercício da actividade, observar-se-á o seguinte:
a) Caberá à comissão liquidatária nomeada propor a transferência dos grupos, nos termos dos nºs 1 e 2;
b) Se nenhuma sociedade aceitar a gestão dos grupos ou o Banco de Portugal não autorizar a transferência para as sociedades indicadas pela comissão liquidatária, os participantes dos grupos poderão constituir-se em associação, nos termos do artigo 158º do Código Civil, para o efeito de assegurar o funcionamento dos mesmos até final, nos termos do artigo seguinte.
27º
1. A liquidação das SACEG obedece ao preceituado para a liquidação das instituições de crédito, com as adaptações decorrentes dos números seguintes.
2. A revogação da autorização para o exercício da actividade de uma SACEG determina a transferência imediata para o Banco de Portugal da tutela dos fundos dos grupos à guarda dessa sociedade.
3. O Banco de Portugal fará a entrega dos fundos a que se refere o número anterior à comissão liquidatária logo que esta assuma as respectivas funções.
4. Sempre que não seja possível reunir os valores correspondentes aos fundos dos grupos, os liquidatários, ao proceder à liquidação do passivo social, reconstituirão, em primeiro lugar, os fundos contabilizados.
(…)
A administradora de compras em grupo não tem por missão ou objecto social a venda de bens, mas sim a execução do objectivo da constituição do grupo, ou seja, a aquisição pelos seus membros de determinados bens ou serviços fornecidos por terceiros. A SACEG não actua como vendedora de bens, mas como intermediária entre o vendedor do bem e o seu adquirente final, que é o participante no grupo. Se a SACEG adquirir em nome próprio o bem objecto do contrato de participação, a sua transmissão para o participante far-se-á a título de cumprimento de um mandato sem representação (artigos 1180º a 1184º do Código Civil) e não na qualidade de vendedora.
Daí que se entenda que o regime das compras em grupo se caracteriza por um feixe de relações contratuais complexas em que coexistem elementos de vários tipos contratuais: compra e venda, prestação de serviços propriamente dito e mandato.[8]
Quanto aos aspectos não previstos no DL 237/91 respeitantes às relações entre os participantes e as sociedades administradoras das compras em grupo, manda o artigo 22º, alínea b) desse diploma que se aplique o estabelecido na lei civil sobre o mandato sem representação.
De facto, a SACEG, na medida em que tem em vista a aquisição pelos participantes dos bens ou serviços em sistema de grupo, actua, efectivamente, como mandatária destes com vista à prática de actos de comércio mistos (artigos 2º, 1ª parte, 99º e 231º do Código Comercial e 1157º do Código Civil)
A actividade da sociedade de compras em grupos limita-se à boa administração dos fundos constituídos com o objectivo de satisfazer os interesses dos mandantes (participantes) na aquisição dos bens ou serviços pretendidos.
Por isso é que os fundos confiados à SACEG devem ser depositados numa conta bancária aberta exclusivamente para esse fim, como determina o n.º 3 do artigo 14º do DL 237/91. Também por isso é que a SACEG, em regra, só pode movimentar a débito essa conta para pagamento dos respectivos bens ou serviços ou de outras despesas a suportar pelos grupos (artigo 14º, n.º 4).
É, aliás, em função dessa exclusiva actividade de administração que cada participante paga uma quota de inscrição na sociedade e uma quota de administração (artigo 17º).
Parece-nos, pois, que os fundos constituídos são pertença dos participantes, cabendo somente à sociedade administrá-los para o objectivo em vista.
Se a sociedade vê revogada, pelo Banco de Portugal, a autorização que lhe foi outorgada, daí decorrendo inexoravelmente a sua liquidação judicial segundo as regras do CIRE, têm de processar-se os passos descritos nos artigos 24º e 27º do DL 237/91, diploma que, em nosso entender, mantém bem reservado e definido o seu campo de aplicação, não conflituando com o regime do DL 199/2006. De resto, seria difícil de compreender que o cuidado e rigor que o legislador colocou na redacção da norma revogatória do artigo 41º não tivessem também servido de padrão para revogar o DL 237/91, se fosse efectivamente essa a sua intenção.
Retomando o que dizíamos, logo que seja revogada a autorização à SACEG, a tutela dos fundos constituídos tem de passar para o Banco de Portugal que procederá à sua entrega à comissão de credores (comissão liquidatária, na terminologia desactualizada do DL 237/91), logo que esta se mostre constituída.
É à comissão de credores que cabe, depois, propor a transferência dos grupos para outra sociedade da mesma natureza, sob prévia autorização do Banco de Portugal, nos termos dos nºs 1 e 2 do artigo 24º, para que não se frustrem, injustificadamente, as expectativas dos participantes. Se nenhuma sociedade aceitar a gestão dos grupos ou se o Banco de Portugal não autorizar a transferência proposta, os participantes dos grupos podem constituir-se em associação para assegurar o funcionamento dos mesmos até final.
Em várias situações, o legislador cria patrimónios autónomos com finalidade de garantia.[9] O que mais se assemelha ao regime jurídico das compras em grupo é o mandato sem representação, prevendo art.º 1184º do Código Civil que “os bens que o mandatário haja adquirido em execução do mandato e devam ser transferidos para o mandante nos termos do n.° 1 do artigo 1181.° não respondem pelas obrigações daquele, desde que o mandato conste de documento anterior à data da penhora desses bens e não tenha sido feito o registo da aquisição, quando esta esteja sujeita a registo”.
A lei prevê outros casos de constituição de patrimónios autónomos, segundo um critério de responsabilidade por dívidas, podendo a autonomia ser perfeita ou imperfeita, como acontece com algumas obrigações hipotecárias e com obrigações titularizadas. Surgem então regras excecionais na graduação de créditos; os bens que integram o património autónomo não respondem pelas dívidas da sociedade, nem integram a massa insolvente.
A autonomização dos Fundos dos participantes relativamente ao património da SACEG constitui um importante meio de defesa do consumidor/participante, a que apela desde logo a nota preambular do Decreto-lei nº 237/91, de 2 de julho, põe tais fundos a salvo das responsabilidades próprias da sociedade gestora e da respetiva massa insolvente, constituindo assim uma garantia particularmente vigorosa de proteção dos participantes.
Da aplicação do art.º 27º, nº 4, daquele decreto-lei e da afetação patrimonial que dali emerge, os liquidatários, na liquidação do passivo social, devem reconstituir, em primeiro lugar, os fundos contabilizados na medida em que não for possível reunir os valores correspondentes aos Fundos do Grupo. Será a partir do Fundo assim reconstituído que os credores participantes irão obter pagamento dos seus créditos com prioridade sobre os demais credores da massa (“em primeiro lugar”, na expressão da norma).
É este, aliás, também o sentido do saneador-sentença de 28.11.2018 proferido no presente apenso, como se extrai das seguintes passagens:
No caso, nenhuma destas situações se verificou porque na verdade não é possível reconstituir os fundos porque eles já não existem porque se existissem eles não seriam apreendidos para liquidação por não serem da titularidade da sociedade em liquidação, ma medida em que ela apenas os gere.
Então, o que acontece aos credores desses valores que não conseguem ver o seu fundo reconstituído.(?)
Nos termos do art. 27º, nº 4 do mesmo diploma legal sempre que não seja possível reunir os valores correspondentes aos fundos dos grupos, o que é o caso em decisão, os liquidatários, ao proceder à liquidação do passivo social, reconstituirão, em primeiro lugar, os fundos contabilizados.
Ora, a liquidação do passivo social é o pagamento dos créditos da sociedade, sendo que esta disposição legal impõe ao Sr. Liquidatário que nessa liquidação reconstitue em primeiro lugar os fundos que foram contabilizados.
Ou seja, esta disposição legal é efectivamente a criação de um privilégio ao determinar que o Sr. Liquidatário no pagamento ou na liquidação do passivo da sociedade respeite em primeiro lugar a reconstituição dos fundos que foram contabilizados.
Julgamos, pois, da leitura de todo o diploma que a preocupação do legislador foi assegurar aos participantes que em caso de não ser possível a aquisição do bem, como seria suposto com a celebração do contrato de participação, os mesmos receberiam, pelo menos, em qualquer circunstância, os valores que ali depositassem.
Na situação de inexistência de fundos – como é o caso – procurou o legislador manter esta preocupação ao assegurar que no âmbito da Liquidação Judicial, o St. Liquidatário na fase do pagamento do passivo da sociedade deveria reconstituir em primeiro lugar os fundos que apurou existirem.
Face ao exposto, julga-se procedente a impugnação apresentada pela credora AM…, Lda. e, em consequência atribui-se ao crédito por si reclamado e reconhecido no valor de € 39.706,37, como crédito privilegiado.”
Em consequência, os créditos dos participantes no Fundo Comum devem ser graduados em primeiro lugar, pelo valor da reconstituição dos Fundos de participação, devendo a sentença de graduação de créditos ser alterada em conformidade.
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B. Apelação do J…, S.A.:
1. Nulidade da sentença por omissão da garantia de penhor de que goza a reclamante
Esta recorrente aponta para a nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, nos termos do art.º 615º, nº 1, al. d), do Código de Processo Civil. Na sua perspetiva, nada refere quanto à existência e à afetação/graduação do seu crédito relativamente ao depósito bancário sobre o qual incide o penhor de que goza o seu crédito, associando a sua garantia com aquela de que eventualmente goza a O…, S.A., sendo elas absolutamente diversas quanto ao seu objeto e natureza.
No saneador-sentença reconheceu-se o crédito deste Banco pelo valor de € 50.000,00, com a natureza de garantido (pelo penhor de um determinado depósito a prazo), tal como o anterior Liquidatário Judicial havia considerado na relação definitiva de créditos que apresentou com data de 12.6.2012 (pág.s 165 e 471).
Na descrição dos créditos que na sentença se faz nos pontos 1 a 41, não há referência à garantia de penhor, tal como não é ali efetuada referência a qualquer garantia de que goze qualquer dos outros créditos reconhecidos e a graduar, tal como não se discriminam os créditos comuns.
Nos fundamentos da decisão, há discussão dos créditos privilegiados dos trabalhadores para dizer que, à exceção deles e dos créditos dos titulares dos Fundos Comuns e os créditos garantidos sobre a Garantia da Responsabilidade da AP…, SA., todos são comuns.
Sabendo-se que o penhor foi constituído pela B…, S.A. a favor do J…, S.A. como garantia de responsabilidade da AP…, S.A. e contendo a sentença final, no seu dispositivo, a graduação do crédito do Banco recorrente em segundo lugar, com alusão a direito garantido, bem ou mal, o seu crédito foi graduado, não podendo falar-se em omissão de pronúncia.
Convém não esquecer que a nulidade da sentença (ou de um despacho) constitui um vício intrínseco da decisão, desde que seja qualquer um dos que estão taxativamente previstos no art.º 615º, nº 1, do Código de Processo Civil, que, por serem considerados graves, comprometem a sentença ou o despacho qua tale, considerando-os peças imprestáveis, insuscetíveis de cumprirem minimamente o fim a que se destinam (errore in procedendo).
A regra é a de que a norma da referida al. d) está em correlação com o art.º 608º, nº 2, também do Código de Processo Civil. O juiz tem que resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação. Além dessas só aprecia e decide aquelas cujo conhecimento a lei lhe imponha ou permita (ex officio).
A questão a decidir está intimamente ligada ao pedido da providência em correlação com a respetiva causa de pedir[10]. Relevam, de um modo geral, as pretensões deduzidas e os elementos integradores do pedido e da causa de pedir.[11]
O que se pretende é a graduação dos créditos da falida, havendo que considerar todos aqueles que foram verificados, reconhecidos e graduados para o efeito.
O crédito do J…, S.A. foi atendido na graduação e integra a decisão; portanto a questão do seu crédito foi decidida.
Não interessa, no âmbito da apreciação do vício que se invoca, se a decisão está correta, se foi devidamente atendida a garantia do penhor, se o crédito do Banco recorrente não podia estar associado, em termos de graduação, ao crédito da O…, S.A. ou ainda se a devida graduação o coloca noutro lugar de preferência. Estas são questões que têm a ver com o acerto ou erro da decisão, não com a sua validade qua tale.
Por conseguinte, não ocorre a invocada nulidade por omissão de pronúncia.
Improcede esta questão do recurso.
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2. Prevalência do penhor sobre os privilégios gerais atribuídos aos créditos laborais e o dever de graduação do crédito do reclamante em primeiro lugar
Na sentença entendeu-se que os créditos dos trabalhadores gozam de privilégio creditório mobiliário e imobiliário geral, devendo ser graduados antes dos créditos referidos no art.º 748º do Código Civil --- são eles os créditos do Estado por imposto de selo e por transmissão onerosa de imóveis e os créditos das autarquias locais relativos a IMI --- e ainda los créditos de contribuições devidas à Segurança Social.
Concluiu-se ali também que “os créditos dos trabalhadores devem ser graduados antes de todos os créditos que são comuns visto que nenhum dos restantes créditos reclamados beneficia de garantia, que lhes confira o direito a pagamento preferencial. Assim, deverão os mesmos ser graduados como comuns, para serem satisfeitos proporcionalmente pelo produto da liquidação [artº 604º do Cód. Civil]”.
Na sequência destas afirmações, o tribunal graduou os créditos dos trabalhadores em primeiro lugar por força dos referidos privilégios e não obstante a indicação de todos os demais créditos como comuns, considerou como garantido o crédito do J…, S.A. e graduou-o em segundo lugar.
Já no despacho saneador-sentença se havia decidido que o crédito do J…, S.A. é um crédito garantido. Essa garantia consiste num penhor sobre o saldo de uma determinada conta bancária de que a falida é titular.
O penhor confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito, bem como aos juros, se os houver, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa móvel, ou pelo valor de créditos ou outros direitos não suscetíveis de hipoteca, pertencentes ao devedor ou a terceiro (art.º 666º, nº 1, do Código Civil).
O direito de penhor traduz-se em garantia real de cumprimento de obrigações, ainda que futuras ou condicionais, cujo objeto mediato se circunscreve a coisas móveis ou direitos insuscetíveis de hipoteca. Em caso de incumprimento da obrigação garantida, o banco satisfaz-se pela própria quantia aí depositada.
A regra é no sentido de que o credor que goze do direito de penhor sobre certa coisa móvel pertencente ao devedor ou a terceiro goza de preferência na realização do respetivo direito de crédito pelo produto do concernente objeto sobre qualquer outro credor do devedor ou de terceiro. Daí que não surpreenda o regime de conflito previsto na norma do nº 1 do art.º 749º do Código Civil ao referir que “o privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente”.
Ora, são oponíveis ao exequente os direitos que não possam ser afetados pelo ato de penhora, designadamente os direitos reais de gozo adquiridos por terceiro e os direitos reais de garantia constituídos pelo devedor antes daquele ato.
Como refere Salvador da Costa[12], os privilégios mobiliários gerais surgem com a constituição do direito de crédito a que inerem, mas a sua eficácia só opera com o ato de penhora dos bens móveis respetivos. Eles não constituem um poder específico sobre os bens e, consequentemente, só têm relevo efetivo na altura do concernente ato de penhora e no quadro do concurso de credores e de créditos.
O privilégio creditório mobiliário geral não prevalece, em regra, contra o credor hipotecário nem contra o credor garantido por direito de penhor, visto que os direitos de terceiro oponíveis abrangem não só os direitos reais de gozo adquiridos por terceiro, como também os próprios direitos reais de garantia que o devedor haja constituído.[13]
Em sentido idêntico se pronunciam Pedro R. Martinez e Pedro F. da Ponte[14]: «Os privilégios mobiliários gerais não valem contra os direitos reais, nomeadamente de garantia, ainda que posteriormente constituídos; não prevalecem, consequentemente, sobre o penhor, a hipoteca, a consignação de rendimentos, a penhora e o direito de retenção, mesmo que estes se tenham constituído em momento posterior (artigo 749.°, n.° l, do Código Civil).
(…)
Os privilégios mobiliários especiais só prevalecem sobre as garantias reais acima referidas se tiverem sido constituídos em data anterior à constituição delas e se a lei não dispuser de modo diverso (artigo 750.° do Código Civil).»
No aspeto do concurso entre créditos com privilégio mobiliário geral e o penhor, não se afasta o regime insolvencial do CIRE nem a legislação laboral aplicável do referido regime geral. Dispõe o art.º 175º, nº 1, daquele código que “o pagamento dos créditos privilegiados é feito à custa dos bens não afectos a garantias reais prevalecentes, com respeito da prioridade que lhes caiba, (…)».
Assim sendo, a garantia de penhor de que beneficia o J…, S.A. prevalece sobre o privilégio mobiliário geral de que beneficiam os créditos dos trabalhadores, havendo, por efeito, que dar pagamento do crédito do J…, S.A., dentro dos limites daquela garantia, antes do pagamento daqueles créditos (privilegiados) do trabalho.
O mesmo se passa com a garantia de penhor da O…, S.A.
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C. Apelação da AM…, Lda.:
1. Violação do caso julgado formado na decisão de 28.11.2018
A recorrente começa por transcrever a decisão, propriamente dita, que no saneador-sentença foi proferida relativamente à mesma reclamante: “Face ao exposto, julga-se procedente a impugnação apresentada pela credora AM…, Lda. e, em consequência atribui-se ao crédito por si reclamado e reconhecido no valor de €39.706,37, como crédito privilegiado.
Com base nesta decisão, aponta a violação do caso julgado ali formado, por ausência de impugnação do saneador-sentença, quando, na sentença final, agora impugnada, o seu crédito surgiu graduado na terceira posição da graduação, depois do crédito dos trabalhadores, a que foi reconhecido o privilégio creditório, e dos créditos do J…, S.A. e da O…, S.A. com garantias reais.
A situação do crédito da AM…, Lda. é semelhante à situação do recorrente AE…: ambos são credores participantes do Fundo Comum e impugnam a sentença na parte em que gradua os seus créditos na terceira posição.
Valem aqui os argumentos por nós expendidos na apreciação da questão nº 2 do recurso daquele recorrente, impondo-se a mesma conclusão de que, quanto aos créditos dos participantes, a sentença recorrida violou o caso julgado formado no despacho sanedor-sentença.
A apelante transcreve excertos dos fundamentos daquele despacho saneador para justificar o caso julgado, mas, como é sabido, o caso julgado forma-se, em regra, com a decisão, e não quanto aos seus fundamentos.
A propósito, refere-se no sumário do acórdão do STJ de 12.07.2011[15], “(…) IV - Tem-se entendido que a determinação dos limites do caso julgado e a sua eficácia passam pela interpretação do conteúdo da sentença, nomeadamente, quanto aos seus fundamentos que se apresentem como antecedentes lógicos necessários à parte dispositiva do julgado; V - Relativamente à questão de saber que parte da sentença adquire, com o trânsito desta, força obrigatória dentro e fora do processo – problema dos limites objectivos do caso julgado –, tem de reconhecer-se que, considerando o caso julgado restrito à parte dispositiva do julgamento, há que alargar a sua força obrigatória à resolução das questões que a sentença tenha tido necessidade de resolver como premissa da conclusão firmada”.
Enquanto elementos interpretativos da decisão transitada em julgado, valem aqui os excertos da sua fundamentação já atendidos na apelação de AE….
O que mais a recorrente transcreve da fundamentação do saneador-sentença para justificar a graduação do seu crédito em primeiro lugar não releva para efeito do caso julgado ali formado, pois que aquela decisão --- a decisão efetivamente transitada --- não gradua os créditos, sendo, aliás, expressa no sentido de que a graduação terá lugar em momento posterior. Poderá contribuir para a interpretação e compreensão daquela decisão, mas não vincula o tribunal quanto à posição do crédito na graduação posterior.
O caso julgado ali formado quanto ao crédito da AM…, Lda. respeita apenas ao seu valor (€ 39.706,37) e à sua qualificação como crédito privilegiado.
Na referida medida, ocorre violação do caso julgado.
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2. A violação do regime específico previsto no Decreto-lei nº 237/91, de 2 de julho, especialmente dos art.ºs 4º, 24º e 27º e o dever de graduação do crédito da reclamante em primeiro lugar
Procede esta questão com os fundamentos já expostos no tratamento do ponto 3 da apelação do credor AE…, uma vez que também a AE…, Lda. é participante no Fundo gerido pela falida, beneficiando igualmente da aplicação do art.º 27º, nº 4, do Decreto-lei nº 237/91, de 2 de julho.
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3. O decidido na sentença de 28.11.2018 e o momento da decisão da questão suscitada pelo J…, S.A.
O que ficou decidido no ponto 2 da apelação do J…, S.A., no ponto 2 da apelação da AM…, Lda. e no ponto 3 do recurso do credor AE…, conduz inelutavelmente a que o crédito do J…, S.A. --- na medida em que não seja satisfeito por outra via --- seja graduado em segundo lugar, por força da garantia de penhor, depois dos créditos dos participantes pelo valor da reconstituição dos Fundos contabilizados e antes do privilégio creditório mobiliário geral de que beneficiam os trabalhadores com créditos laborais.

Procedem as apelações.
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SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)[16]
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IV.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar as apelações dos recorrentes AE…, J…, S.A. e AM…, S.A. procedentes (em função da posição pretendida para o crédito de cada um) e, em consequência, graduam-se os créditos reclamados e reconhecidos pela ordem que se segue:

1º lugar: Os créditos dos credores participantes pelo valor da necessária reconstituição do Fundo;

2º lugar:
- O crédito do J…, S.A. no valor de € 50.000,00 --- na medida em que não estiver satisfeito por outra via de cobrança --- por força da garantia de penhor de que beneficia sobre o saldo de conta bancária que lhe está afeta;
- O crédito, também garantido por penhor, reclamado pela O…, S.A., considerando o valor não recebido e o bem objeto da garantia, conforme menção constante no rateio final realizado no processo de insolvência da sociedade AP…, S.A.
Na parte não coberta pelo valor do bem ou direito dado em garantia, são os saldos respetivos incluídos entre os credores comuns (art.º 174º, nº 1, do CIRE).

3º lugar: Os créditos dos trabalhadores E…, W…, AB…, AC… e AD…, a pagar rateadamente, tendo em conta os privilégios gerais, mobiliário e imobiliário;

4º lugar: Todos os restantes créditos reclamados pelos credores comuns, rateadamente, pelo produto dos bens apreendidos e não especialmente afetos.

5º lugar: Todos os restantes créditos subordinados, que deverão ser pagos pelo produto, em rateio.
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As custas das apelações serão suportadas pela massa falida dado que cada recorrente obtém, por esta via de recurso, vencimento de causa relativamente à posição do seu crédito na graduação.
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Porto, 12 de setembro de 2019
Filipe Caroço
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
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[1] Segue-se de perto o relatório da sentença recorrida, evitando trabalho improfícuo.
[2] Diploma a que pertencem todas as disposições legais que se citarem sem menção de origem.
[3] Cf. entre muitos outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27.4.2004 e de 10.4.2008, in www.dgsi.pt.
[4] Código de Processo Civil anotado, vol. 5º, pág. 140.
[5] Cf., entre outros, o acórdão da Relação de Lisboa de 17.1.1999, BMJ 489/396 e os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 13.1.2000, de 26.2.2004, de 12.5.2005 e de 10.7.2008, o primeiro in Sumários, 37º, pág. 34 e, os restantes, in www.dgsi.pt e Pais do Amaral, in Direito Processual Civil, 7ª ed., pág. 390.
[6] Rodrigues Bastos, in Notas ao Código de Processo Civil, vol. III, página 246.
[7] Aresto que se encontra também publicado in www.dgsi.pt (relatado pelo então Sr. Desembargador Henrique Araújo).
[8] Acórdão do STJ de 20.04.2006, no processo n.º 06B1138, em www.dgsi.pt.
[9] L. Pestana de Vasconcelos, Direito das Garantias, Almedina, 2016, pág.s 604 e seg.s
[10] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, vol. V, pág. 58
[11] Acórdão da Relação de Coimbra de 21.3.2006, proc. 4294/05, in www.dgsi.pt.
[12] O concurso de Credores, Almedina, 3ª edição, pág. 188.
[13] Idem, citando o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.10.1988, BMJ 380/462.
[14] Almedina, 4ª edição, pág. 211.
[15] In www.dgsi.pt.
[16] O Sumário é da responsabilidade exclusiva do relator.