Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0632189
Nº Convencional: JTRP00039289
Relator: PINTO DE ALMEIDA
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
Nº do Documento: RP200606080632189
Data do Acordão: 06/08/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: LIVRO 675 - FLS 34.
Área Temática: .
Sumário: I - São normas de competência internacional aquelas que atribuem a um conjunto de tribunais de um Estado o complexo de poderes para o exercício da função jurisdicional em situações transnacionais.
II - Vigoram na ordem jurídica portuguesa normas de fonte interna e normas de fonte supraestadual.
III - Destas, destacam-se, como fonte comunitária e com relevo para o caso dos autos, o Regulamento (CE) nº 44/2001, de 22.12.2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, que entrou em vigor em 1.3.2002, substituindo entre os Estados Membros da EU (com excepção da Dinamarca) a Convenção de Bruxelas de 1968.
IV - O Regulamento é directamente aplicável a todos os Estados Membros, em conformidade com o Tratado que instituiu a Comunidade Europeia (arts. 1º, 68º e 76º e, em Portugal, o art. 8º da CRP) e prevalece perante as normas reguladoras da competência internacional previstas nos arts. 65º, 65ºA, 99º, 1094º e 1102º do CPC.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.
B………. residente na Rua ………., n° .., Vila do Conde, veio instaurar acção, com processo ordinário, contra C………., com sede em ………., ………., ………, França.

Pediu que a ré seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 38.250,00, acrescida de juros de mora.

Como fundamento, alegou, em síntese, que é industrial de construção civil e celebrou com a ré um contrato de empreitada, da arte de carpintaria, consistente no fornecimento da madeira, aplicação de portas, janelas e 400 m2 de soalho; a ré obrigou-se, ainda, a suportar todas as despesas relativas a transportes, materiais e alojamento dos trabalhadores. Ora, o A. emitiu a factura relativa ao soalho fornecido, no montante de € 84.000,00, mas a ré apenas pagou a quantia de 63.450,00; o autor apresentou também à ré a nota de despesas referentes a transportes, alojamento, assentamento do soalho e outros materiais, no valor de € 17.700,00, que a ré se recusa a pagar, apesar de não ter reclamado dos trabalhos, nem dos materiais.

A ré contestou, confirmando a celebração do referido contrato. Invocou, todavia, a incompetência dos tribunais portugueses para julgar a acção, alegando que no referido contrato, celebrado por escrito, foi estipulado que o foro competente para discutir qualquer litígio emergente do contrato é o de Toulon (França), com renúncia a qualquer outro.

No saneador, considerou-se que o referido pacto privativo de jurisdição apenas versa sobre litígios resultantes da interpretação do contrato, o que não é, no caso, o objecto do processo, uma vez que neste está em questão o incumprimento do contrato face ao alegado não pagamento do preço.
Assim, com base no disposto nos arts. 74º do CPC e 777º do CC e por ter sido essa a opção do autor, decidiu-se que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para julgar a acção.

Discordando desta decisão, dela interpôs recurso a ré, de agravo, tendo apresentado as seguintes

Conclusões:

1. O despacho recorrido não se encontra em conformidade com o disposto no Código de Processo Civil no que diz respeito às regras da competência internacional nem, tão pouco, com o disposto na Convenção de Bruxelas de 1968 sobre a mesma matéria.
2. Veio a Recorrente alegar a incompetência do Tribunal "a quo" na medida em que a acção deveria ter sido intentada nos Tribunais Franceses, mais especificamente, no Tribunal de Toulon.
3. Fê-lo, com base, principalmente, num pacto de jurisdição que foi assinado pelas partes acordando que, em caso de litígio relacionado com o contrato que serviu de base à relação controvertida, este seria dirimido nesse referido Tribunal.
4. Não estando preenchidos nenhum dos requisitos previstos nas alíneas do nº 1 do artigo 65° do CPC, nem do art. 65°-A do CPC, significa que não é atribuída competência internacional aos Tribunais Portugueses.
5. No litígio privado internacional as normas da Convenção de Bruxelas de 27.09.1968 respeitantes à Competência Internacional, prevalecem sobre as normas do Código de Processo Civil.
6. O que significa, na sua generalidade, que prevalecerá sempre o acordado em qualquer pacto de jurisdição realizado entre as partes e, tal é, precisamente, o pretendido e alegado pela aqui Recorrente. Mas, mesmo na legislação interna, tal está perfeitamente assegurado pelo vertido no art. 86° do CPC, quando é referido que sendo a Ré uma sociedade, terá que ser demandada no Tribunal do foro da sua sede, o que não aconteceu.
7. O pacto realizado está em cumprimento total dos requisitos do art. 99° do CPC, inclusivamente, foi feito de forma expressa e inequívoca.
8. O que resulta na incompetência do Tribunal "a quo". Tal incompetência será relativa, pelo exposto na última parte do art. 101° do CPC, pelo que haverá, assim, uma remissão para os arts. 108° e seguintes do mesmo diploma. Assim, deveria o Tribunal "a quo", após a Ré ter alegado a excepção de incompetência, ter remetido para o Tribunal competente, sendo que este é um dos efeitos da declaração de incompetência relativa do Tribunal.
9. Diz o art. 109° do CPC, ditando o regime de arguição da incompetência que, após o Réu ter invocado a excepção de incompetência do Tribunal, tem o Autor que responder ao mesmo e oferecer provas. E o Autor respondeu alegando que o pacto havia sido substituído por outro posterior mas, ao contrário da Ré, o Autor não apresentou prova do alegado.
10. Assim, permanecerá o primeiro, aliás único, pacto de jurisdição efectuado.
11. Ao contrário do que foi dito no despacho recorrido, não pode o Autor escolher entre o foro do cumprimento da obrigação e o do domicílio do Réu, uma vez que houve um pacto de jurisdição que não pode ser afastado, posteriormente, por vontade unilateral de uma das partes. O que significa que o Autor teria, pura e simplesmente, que cumprir o pacto de jurisdição e intentar a acção nos tribunais franceses, mais precisamente, no de Toulon.
13. Ao não entender assim, violou, o despacho recorrido, entre outros, o preceituado na Convenção de Bruxelas de 1968 sobre competência internacional, bem como o previsto no Regulamento Comunitário nº 44/01 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000 sobre o assunto e, ainda os arts. 65°, 65°-A, 74°, 86°, 99°, 101 ° e 109° do Código de Processo Civil, pelo que, deve o despacho ora recorrido ser declarado nulo e, consequentemente, ser o Tribunal "a quo" declarado incompetente.

O autor contra-alegou, concluindo pelo não provimento do agravo.
O Sr. Juiz sustentou tabelarmente a sua decisão.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II.

Questões a resolver:

Trata-se apenas de decidir se os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para conhecerem da acção.

III.

Os factos a considerar na apreciação do recurso são os que constam do relatório precedente e, bem assim, que, do contrato escrito celebrado entre as partes, consta a cláusula VI deste teor:
O foro competente para dirimir qualquer litígio resultante da interpretação do presente contrato é o de Toulon (França), com renúncia expressa a qualquer outro.

IV.

A competência do tribunal constitui um pressuposto processual, sendo assim um dos elementos de cuja verificação depende o dever de o juiz proferir decisão sobre o pedido formulado, concedendo ou indeferindo a pretensão deduzida [Antunes Varela, Manual do Processo Civil, 98].
Como qualquer outro pressuposto processual, a competência é aferida em relação ao objecto apresentado pelo autor [Teixeira de Sousa, A Competência e a Incompetência dos Tribunais Comuns, 3ª ed., 139.
Como ensinava Manuel de Andrade [Noções Elementares de Processo Civil, 90 e 91], para decidir qual das normas corresponde a cada um dos “índices” de competência, deve olhar-se aos termos em que foi posta a acção – seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjectivos (identidade das partes). A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da acção. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do autor (compreendidos aí os respectivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão.

São normas de competência internacional aquelas que atribuem a um conjunto de tribunais de um Estado o complexo de poderes para o exercício da função jurisdicional em situações transnacionais.
Vigoram na ordem jurídica portuguesa normas de fonte interna e normas de fonte supraestadual.
Destas, destacam-se, como fonte comunitária e com relevo para o caso dos autos, o Regulamento (CE) nº 44/2001, de 22.12.2000 (adiante designado apenas por Regulamento), relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, que entrou em vigor em 1.3.2002, substituindo entre os Estados Membros da EU (com excepção da Dinamarca) a Convenção de Bruxelas de 1968.
O Regulamento é directamente aplicável a todos os Estados Membros, em conformidade com o Tratado que instituiu a Comunidade Europeia (arts. 1º, 68º e 76º e, em Portugal, o art. 8º da CRP) e prevalece perante as normas reguladoras da competência internacional previstas nos arts. 65º, 65ºA, 99º, 1094º e 1102º do CPC [Cfr., entre outros, os Acs. do STJ de 12.2.2004, de 29.6.2005 e de 16.2.2006, em www.dgsi.pt - procs. 04B128, 05B2219 e 05B4294, respectivamente – e o Ac. do STJ de 3.3.2005, CJ STJ XIII, 1, 103]. Aliás, a actual redacção do art. 65º nº 1 (introduzida pelo DL 38/2003, de 8/3) já ressalva o que se acha estabelecido em tratados, convenções e regulamentos comunitários.
O regime interno é, assim, apenas aplicável fora da esfera de aplicação do Regulamento ou quando este para aí remeta, isto é:
- nas matérias civis excluídas do âmbito material de aplicação do Regulamento (estado, capacidade das pessoas singulares, regimes matrimoniais, falências, etc.);
- nas matérias incluídas no âmbito material de aplicação do Regulamento, mas que não sejam abrangidas por uma competência exclusiva legal ou convencional, quando o requerido não tiver domicílio no território de um Estado Contratante Membro (arts. 4º nº 1, 22º e 23º do Regulamento) [Cfr. Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado, Vol. III, 188; D. Moura Vicente, A Competência Internacional no CPC revisto, em Aspectos do Novo Processo Civil, 78; Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 101].

Nos termos do Regulamento, em regra é competente o tribunal do domicílio do réu. Com efeito, segundo dispõe o art. 2º nº 1, sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado.
Concorrem com a regra do domicílio do réu, os critérios especiais de competência legal estabelecidos na secção II do capítulo II.
Assim, nos termos do art. 5º, uma pessoa com domicílio no território de um Estado-Membro pode ser demandada noutro Estado-Membro:
1.a) Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão;
b) Para efeitos da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação em questão será:
- no caso de venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues;
- no caso da prestação de serviços, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados.

Saliente-se que, como refere Lima Pinheiro [Ob. Cit., 83 e 84], relativamente a dois tipos contratuais da maior importância – a venda de bens e a prestação de serviços – o Regulamento veio introduzir uma dita “definição autónoma” do lugar de cumprimento das obrigações contratuais. Bem vistas as coisas, não se trata de uma verdadeira definição autónoma do lugar de cumprimento, mas de estabelecer que só releva, na venda de bens, o lugar de cumprimento da obrigação de entrega e, na prestação de serviços, o lugar de cumprimento da obrigação do prestador de serviços. Assim, é irrelevante o lugar de cumprimento da obrigação de pagamento do preço dos bens ou dos serviços, mesmo que o pedido se fundamente nessa obrigação.

Prevê ainda o Regulamento os casos de competência exclusiva (art. 22º) e de extensão de competência através de pactos de jurisdição (art. 23º).
Nos termos do art. 60º as sociedades comerciais têm domicílio no lugar que tiverem a sua sede social, a sua administração central ou o seu estabelecimento principal.

As consequências da declaração de incompetência do tribunal são as fixadas no direito processual de cada Estado [Cfr. Lima Pinheiro, Ob. Cit., 149].
A violação das normas de competência internacional constitui excepção dilatória, de conhecimento oficioso (incompetência absoluta) – arts. 101º e 102º nº 1 do CPC.
Note-se, porém, que o Regulamento só impõe que o juiz de um Estado-Membro se declare oficiosamente incompetente nas situações previstas [Cfr. Gonçalves Proença, Direito Internacional Privado – Conflitos de Jurisdição ..., 2ª ed., 82]:
- no art. 25º - quando, perante ele, tiver sido proposta, a título principal, uma acção relativamente à qual tenha competência exclusiva um tribunal de outro Estado-Membro, por força do art. 22º; e
- no art. 26º nº 1 – quando o requerido, domiciliado no território de um Estado-Membro, for demandado perante um tribunal de outro Estado-Membro e não compareça, e a competência deste tribunal não resulte das disposições do Regulamento.

No caso, a questão da competência, assente no pacto de jurisdição constante do clausulado acordado entre autor e ré, foi correctamente decidida no despacho recorrido.
Com efeito, restringindo-se esse pacto a qualquer litígio resultante da interpretação do contrato, parece evidente a exclusão da sua aplicação à situação sub judice, que respeita apenas ao alegado incumprimento do contrato pela ré, decorrente do não pagamento do preço estipulado.
Está em causa, na verdade, um contrato de empreitada, celebrado entre um português (melhor, um residente em Portugal – cfr. art. 2º nºs. 1 e 2) e uma sociedade com sede social em França, pedindo o autor a condenação da ré no pagamento de quantias relativas ao preço e a outra obrigações assumidas no contrato.
Não se suscita, pois, qualquer questão que tenha a ver com a interpretação do contrato, estando apenas em causa o alegado incumprimento de obrigações assumidas pela ré.

Afigura-se-nos, porém, que a arguição de incompetência por parte da ré não se limita ao pacto de jurisdição referido.
Com efeito, na contestação, a ré começa por invocar genericamente, mas de modo relevante, a incompetência do Tribunal português, afirmando que o tribunal competente é o de Toulon (França) – art. 3º - aludindo, de seguida, aos termos do contrato de empreitada celebrado com o autor; depois (art. 7º) transcreveu (incorrectamente) a clª VI relativa ao pacto de jurisdição, só então invocando a incompetência decorrente do mesmo.
Mostra-se assim relevantemente suscitada a incompetência internacional do tribunal de Vila do Conde.
Incompetência que, no caso, decorre claramente da regra geral prevista no art. 2º nº 1 do Regulamento, uma vez que a sede social da ré se situa em França. Concorre no mesmo sentido o regra especial prevista no art. 5º nº 1 a), parte final, pois estamos em presença de um contrato de empreitada (prestação de serviços), situando-se em França o lugar do cumprimento da obrigação, aferida, nos termos ali especificados, pelo lugar onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou deviam ser prestados.

Procedem, por conseguinte, as conclusões do recurso.

V.

Em face do exposto, decide-se dar provimento ao agravo, revogando-se a decisão recorrida e, em consequência:
- declara-se o Tribunal Judicial de Vila do Conde incompetente internacionalmente para conhecer da acção;
- absolve-se a ré da instância.
Custas pelo agravado.
Porto, 8 de Junho de 2006
Fernando Manuel Pinto de Almeida
Trajano A. Seabra Teles de Menezes e Melo
Mário Manuel Baptista Fernandes