Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
135/15.5T8MCN.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
CONTRATO DE ARRENDAMENTO URBANO
CONTRATO DE ARRENDAMENTO RURAL
PARCERIA AGRÍCOLA
PARTES RÚSTICA E URBANA
NULIDADE POR INOBSERVÂNCIA DE FORMA
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RP20161107135/15.5T8MCN.P1
Data do Acordão: 11/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 641, FLS.429-430)
Área Temática: .
Sumário: I - Deve ser havido como de arrendamento rural o contrato em que o bem que as partes essencialmente perspectivaram, e que se assumiu como o motivo determinante da celebração do contrato, foi a terra, alcandorando-se a fruição da construção como habitação como meramente acessória ou complementar.
II - À mesma se conclusão se chega pela conjugação com o critério referente à renda, quando a mesma foi apenas definida em géneros e satisfeita anualmente, características que não são de todo próprias do contrato de arrendamento urbano, mas sim do contrato de parceria agrícola e/ou do contrato de arrendamento rural.
III - A denominada suppressio é a situação do direito que, não tendo sido, em determinadas circunstâncias, exercido durante um determinado lapso de tempo, não possa mais sê-lo por, de outra forma, se contrariar a boa fé.
IV - Justifica-se a inalegabilidade da nulidade do contrato por falta de forma, com fundamento no abuso do direito na referida modalidade de suppressio, quando num contrato de arrendamento rural que perdura há mais de 40 anos, os senhorios sempre se comportaram como se o contrato fosse válido, nomeadamente recebendo as respectivas rendas e sem que em relação ao mesmo tivesse havido qualquer foco de litigiosidade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 135/15.5T8MCN.P1-Apelação
Origem-Comarca do Porto Este-Marco Canaveses-Inst. Local-Secção Cível-J1

Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Miguel Baldaia
2º Adjunto Des. Jorge Seabra
5ª Secção
Sumário:
I- Deve ser havido como de arrendamento rural o contrato em que o bem que as partes essencialmente perspectivaram, e que se assumiu como o motivo determinante da celebração do contrato, foi a terra, alcandorando-se a fruição da construção como habitação como meramente acessória ou complementar.
II- À mesma se conclusão se chega pela conjugação com o critério referente à renda, quando a mesma foi apenas definida em géneros e satisfeita anualmente, características que não são de todo próprias do contrato de arrendamento urbano, mas sim do contrato de parceria agrícola e/ou do contrato de arrendamento rural.
III- A denominada suppressio é a situação do direito que, não tendo sido, em determinadas circunstâncias, exercido durante um determinado lapso de tempo, não possa mais sê-lo por, de outra forma, se contrariar a boa fé.
IV- Justifica-se a inalegabilidade da nulidade do contrato por falta de forma, com fundamento no abuso do direito na referida modalidade de suppressio, quando num contrato de arrendamento rural que perdura há mais de 40 anos, os senhorios sempre se comportaram como se o contrato fosse válido, nomeadamente recebendo as respectivas rendas e sem que em relação ao mesmo tivesse havido qualquer foco de litigiosidade.
*
I-RELATÓRIO
B…, solteira, residente na rua …, n.º …, ….-… Marco de Canaveses, intentou a presente acção sob a forma de processo comum contra C… e D…, casados, ambos com residência na rua …, n.º .., …, …, Marco de Canaveses, peticionando a declaração de que é legítima dona e possuidora dos prédios identificados na petição inicial e, consequentemente, a condenação dos réus a reconhecer esse direito de propriedade sobre esses imóveis e a reduzir a escrito o contrato de arrendamento rural ou a restituir os indicados prédios livres de ónus e encargos e desocupados e a pagar à autora o correspondente enriquecimento do seu património sem justa causa.
Para tanto, invocou, em suma, que é legítima proprietária do prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial do Marco de Canaveses sob o n.º 1284, bem como do prédio urbano descrito na mesma Conservatória sob o n.º 1288; adquiriu-os por sucessão e partilha; aquando da sua aquisição teve conhecimento de que lá habitavam os réus, porque lhe terem sido dados verbalmente de arrendamento pelos seus pais há cerca de 15/10 anos, tendo por objecto a exploração do terreno agrícola, ficando obrigados a entregar o proveito agrícola como forma de pagamento; em 20 de Março de 2014 interpelou os réus comunicando-lhes que a ocupação era ilegítima; interpelou-os novamente para reduzirem o contrato verbal a escrito; até aos dias de hoje nada fizeram; não tendo respondido à interpelação, implicou tal comportamento a não redução a escrito daquele contrato, o que redunda na sua nulidade, o que acarreta uma perda económica pois não recebe qualquer contrapartida pelo arrendamento, que é neste momento ilícito.
*
Regularmente citados, vieram os réus apresentar a sua contestação, pugnando pela total improcedência da acção e consequente absolvição do pedido.
Para o efeito, alegaram, em suma, que: em Setembro de 1975, com efeitos a partir de Dezembro do mesmo ano, os pais da autora deram verbalmente de arrendamento quatro prédios, um deles urbano e três deles rústicos, destinando-se o primeiro à sua habitação permanente e os restantes à cultura, videiras, pastagem e pinhal; tal arrendamento tinha como fundamento ou fim principal a habitação e só como complementar ou subsidiariamente a exploração daqueles terrenos para agricultura; como retribuição foi acordado “dividir o cereal, a meias”, todos os anos entregando assim metade do milho, feijão, batata e cebola; sempre assim procederam até à data, entregando aos pais da autora, na casa destes, enquanto foram vivos e após o seu falecimento às filhas, incluindo a autora; em 2011, as irmãs da autora vieram a sua casa dizendo-lhes para não trabalharem mais os campos “L…” e “M…”; a autora tem conhecimento desse arrendamento desde 1975; recepcionaram as missivas indicadas na petição inicial; não lhes responderam porque entendem que celebraram um contrato de arrendamento habitacional; caso assim não se entenda, então, não se opõe à sua redução por escrito desde que com o clausulado justo e adequado às circunstâncias do caso concreto.
*
Foi agendada tentativa de conciliação, a qual se gorou.
*
A autora foi convidada a juntar as certidões prediais e matriciais relativas aos prédios identificados na petição inicial bem como a esclarecer os critérios subjacentes à indicação do valor da acção, tendo a mesma respondido a tal convite a folhas 72 a 76.
*
Foi realizada audiência prévia, no decurso da qual foi proferido despacho de convite ao aperfeiçoamento da matéria de facto alegada na petição inicial–cfr. folhas 94 a 102-, tendo a autora apresentado uma petição inicial aperfeiçoada a folhas 103 a 106, a qual mereceu resposta dos réus, a folhas 107 a 109.
*
Foi proferido o despacho saneador de folhas 114 a 117, no qual foi admitida a alteração da causa de pedir/pedido, por acordo das partes; fixado o valor à causa; foi certificada a validade e regularidade da instância; foi identificado o objecto do litígio enunciados os temas da prova e admitidos os meios de prova.
*
Na data indicada teve lugar audiência final de acordo com o formalismo legal conforme resulta da respectiva ata.
*
A final, proferida sentença que julgou acção parcialmente procedente por provada e consequentemente:
a) Declarou a autora B… como dona e legítima proprietária dos prédios rústico e urbano, respectivamente descritos na Conservatória do Registo Predial do Marco de Canaveses com os n.ºs 1284/20060330 e 1288/20060330, melhor identificados nos pontos 1.º e 3.º dos factos provados supra;
b) Condenou os réus C… e D… no reconhecimento do direito de propriedade da autora B…;
c) Declarou a nulidade do acordo verbal melhor identificado nos pontos 8.º a 11.º dos factos provados supra e, consequentemente, condenou os réus C… e D… na restituição dos prédios identificados em a) supra livres de ónus e encargos e desocupados;
d) Absolveu os réus C… e D… dos demais pedidos formulados pela autora.
*
Não se conformando com o assim decidido vieram os Réus interpor o presente recurso concluindo as suas alegações[1] nos seguintes termos:
I - O presente recurso tem por objecto a douta decisão do Tribunal da Comarca do Porto Este – Marco de Canaveses–Inst. Local–Secção Cível–J1, de 18-05-2016, que, resolvendo as questões colocadas pelas partes, decidiu julgar a presente acção parcialmente procedente por parcialmente provada e, por via disso decidiu (para além do mais, que para o presente recurso não interessa):
“c) Declarar a nulidade do acordo verbal melhor identificado nos pontos nº.s 8.º a 11.º dos factos provados supra e, consequentemente, condenar os réus C… e D… na restituição dos prédios identificados em a) supra livres de ónus e encargos e desocupados”;
II – Afigura-se aos Réus que o Tribunal “a quo” não fez uma judiciosa valoração da prova, uma correcta selecção da matéria de facto e não fez também uma criteriosa aplicação da Lei aos factos;
III - Os Réus para obstar à procedência do pedido de restituição, invocam a existência de um contrato de arrendamento conjunto (misto) de uma parte urbana e de uma parte agrícola/rústica;
IV - Os Réus lograram provar que em Setembro de 1975, por acordo verbal foi celebrado entre os pais da Autora e os Réus a cedência daqueles a estes do gozo dos bens imóveis indicados em 1.º a 3.º dos factos provados, destinados à habitação permanente dos Réus, bem como dos prédios rústicos melhor identificados nos pontos seis e sete da escritura pública referida no ponto 5.º dos factos provados, mediante a retribuição, em géneros, da divisão do cereal, “a maias”, entregando aos senhorios, todos os anos, metade do milho, feijão, batata e cebola neles produzidos (pontos 8.º a 11.º dos factos provados);
V - Mais se provou que, na execução desse acordo verbal, os Réus entregaram sempre aos pais da Autora, na casa que estas habitavam com suas filhas, incluindo a Autora, enquanto aqueles foram vivos e, após o seu falecimento, às suas filhas, a metade dos produtos agrícolas produzidos nos aludidos prédios rústicos, conforme ainda sucedeu em 2015 (ponto 11.º dos factos provados);
VI - Estatui o artº 1066º do CC, sob a epígrafe: «arrendamentos mistos»
1 – O arrendamento conjunto de uma parte urbana e de uma parte rústica é havido por urbano quando essa seja a vontade dos contraentes.
2 – Na dúvida, atende-se sucessivamente, ao fim principal do contrato e à renda que os contraentes tenham atribuído a cada uma delas.
3 – Na falta ou insuficiência de qualquer dos critérios referidos no número anterior o arrendamento tem-se por urbano;
VII - Vemos assim, que, contrariamente ao que pode transparecer da epígrafe do artigo, e que, assim, se mostra infeliz, a lei, quando o arrendamento inclua uma parte urbana e uma parte rústica, não aceita a existência de dois arrendamentos distintos, ou de um arrendamento hibrido/misto;
VIII - Antes impondo apenas a existência de um arrendamento, urbano, ou rural, que abranja as duas partes ou prédios e a cujo único regime elas terão, tendencialmente, de se sujeitar;
IX - O que se compreende por virtude da simplificação do teor do negócio jurídico e da consequente facilitação da sua interpretação no que concerne, vg., à forma exigível, aos direitos e deveres das partes, às causas da sua cessação, etc;
X - O critério primeiro para definir qual o jaez do arrendamento que deve prevalecer é a vontade das partes;
XI - Temos assim que se a vontade das partes for no sentido de taxar o arrendamento como urbano ou como rural ele assim de ser qualificado, independentemente do fim principal (de cariz urbano ou rural) a que ele se destinar;
XII - Esta vontade deve ser adrede consignada, ou, expressa de um modo que inequivocamente ou, ao menos, sem dúvidas, demonstre que as partes quiseram o arrendamento como urbano ou como rural;
XIII - Pois que se esta dúvida existir, então tal vontade, como meio directo e imediato de revelação de um certo negócio jurídico, não relevará, e sendo então necessário chamar à colação os remanescentes critérios subsidiários;
XIV - Se esta vontade não for alcançada, então, subsidiária/secundariamente, deve atender-se ao fim principal do contrato que os contraentes tenham atribuído a cada uma das partes;
XV - Nesta particular importa reter que: «O fim principal e o subordinado do contrato de arrendamento misto …devem ser determinados por via da interpretação das declarações negociais das partes e das demais circunstâncias envolventes, essencialmente no confronto da lei substantiva vigente ao tempo da sua celebração.»-Ac. do STJ de 5.07.2007, p. 07B193 in dgsi.pt.;
XVI - Efectivamente: «A lei não atende ao carácter misto de algumas realidades: na perspectiva legal, o prédio é uma coisa composta, cuja qualificação depende da destinação económica do conjunto;
XVII - O critério fundamental para classificar de rústico ou urbano o prédio formado por parte urbana e parte rústica é a prevalência da destinação económica, expressamente clausulada ou inferível das circunstâncias de facto que envolveram o negócio e se plasmam na quotidiana actuação do beneficiário do contrato com pluralidade de fins e na articulação desse contrato com os bens em si mesmos, configurados na sua inter-relação;
XVIII - Sendo a destinação essencial do prédio, no seu conjunto, que serve de fundamento à distinção entre prédio urbano e prédio rústico, o prédio será rústico ou urbano conforme a habitação for fundamentalmente um meio de ligação à terra cultivada, ou antes a terra constituir apenas um complemento da habitação e não um fim essencial da ocupação da habitação.»-Ac. do STJ de 6.07.2006, p. 06B1637 (sublinhado nosso);
XIX - Finalmente e como critério subsidiário último, deve atender-se à renda que as partes tenham convencionado;
XX - Ou seja, e essencialmente, à sua natureza–dinheiro, géneros ou dinheiro e géneros -à sua periodicidade- mensal ou anual;
XXI - Sendo que no arrendamento urbano a renda é fixada em dinheiro e paga mensalmente–artº 1075º do CC - e no arrendamento rural a renda podia, até à entrada em vigor do DL 294/2009 de 13.10., ser fixada em dinheiro ou dinheiro e géneros e é anual–artº 11º deste diploma;
XXII - Na falta ou insuficiência destes critérios, ou seja, se os mesmos não permitirem, mesmo dentro de uma dúvida razoável em direito admissível, concluir pelo arrendamento que deve prevalecer, a lei optou–e aqui assumiu uma preferência, quiçá por virtude de nele melhor serem consecutivas as referidas finalidades de simplificação e facilidade exegética–pela consideração do arrendamento como urbano;
XXIII - Desde logo cumpre dizer que o objecto do contrato incluiu uma parte rústica e urbana;
XXIV - Na verdade: «entende-se por prédio rustico uma parte delimitada no solo e as construções nele existentes que não tenham autonomia económica, e por prédio urbano qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro»-artº 204.º nº 2 do CC;
XXV - No caso dos autos, resulta que foi vontade dos anteriores proprietários e dos Réus em aceitar como fim principal ou exclusivo do arrendamento a habitação, sendo acessório deste a parte agrícola;
XXVI - O Tribunal “a quo” não atendeu à vontade das partes, ao que os anteriores proprietários quiseram dar de arrendamento e o que é que os Réus quiseram tomar de arrendamento àqueles;
XXVII - E assim se mostrando desacertada a subsunção jurídica operada na 1ª instância. Porém, mesmo que assim não fosse:
XXVIII - Na data da celebração do referido acordo o arrendamento rural estava regulado nos artigos 1064º a 1082º do Código Civil, não estando sujeito a qualquer forma especial, de harmonia com o princípio da liberdade de forma para as declarações negociais previsto no artigo 219º do mesmo diploma…;
XXIX - Com a entrada em vigor do DL 385/88 a partir de 1 de Julho de 1989, foi revogada a Lei 76/79 e todos os contratos de arrendamento rural, mesmo os pretéritos passaram a ter de ser reduzidos a escrito (artigo 36º);
XXX - O referido diploma veio a ser revogado pelo DL 294/2009 de 13 de Outubro, o qual no tocante à forma manteve os princípios que já existiam no domínio do DL 385/88, estabelecendo no artigo 6º que “1-Os contratos rurais são obrigatoriamente reduzidos a escrito. (…) 2–A não redução a escrito dos contratos de arrendamento rural celebrados ou renovados na vigência do presente decreto-lei gera a sua nulidade”;
XXXI - Por sua vez, estabelece o artigo 35º, n º 4 do citado diploma que “Nenhum acção judicial pode ser recebida ou prosseguir, sob pena de extinção da instância, se não for acompanhada de um exemplar do contrato, quando exigível, a menos que logo se alegue que a falta é imputável à parte contrária”…;
XXXII - A inexistência de contrato de arrendamento rural escrito tem como consequência a sua nulidade. Este regime constitui uma nulidade atípica, podendo tornar-se tal contrato válido se uma das partes exigir à contraparte a redução a escrito, sendo que, a parte que a isso se recusar não poderá invocar a nulidade sujeitando-se à sua validade;
XXXIII - Contudo, este regime especial, não impede que o Tribunal reconheça a existência da excepção dilatória prevista no artigo 35º, n º5 da LAR, julgando a extinção da instância;
XXXIV – Consagra o artº 334 do Código Civil que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito;
XXXV – O abuso de direito, sendo do conhecimento oficioso, devia ter sido declarado pelo Tribunal “a quo” atento a matéria de facto provada, atentos os factos provados e outros que, da sua sensata e sagaz interpretação, são deles necessárias ou lógicas decorrências;
XXXVI - O arrendamento foi celebrado verbalmente numa época em que, mesmo assim, ele era válido;
XXXVII - A lei que posteriormente exigiu a forma escrita mais facilmente seria do conhecimento dos senhorios, pais da Autora, e depois, desta, do que dos Réus, pessoas que se indiciam simples e de conhecimentos incipientes ou precários–na verdade, como habilitações literárias, atingiram a antiga 4ª classe;
XXXVIII - E, não obstante, aqueles não diligenciaram por cumprir e respeitar a forma legal. Quiçá porque tal situação se apresentava para eles mais flexível se quisessem por termo ao contrato;
XXXIX - E assim decorreram anos, décadas;
XL - Tendo, neste larguíssimo ínterim, a Autora e os seus antecessores aceitado receber as rendas anuídas;
XLI - Sem nunca terem, pelo menos formalmente, intimado para a cessação do contrato;
XLII - À carta da Autora datada de 20 de Março de 2014 remetida por intermédio da sua então Advogada (ponto 12.º dos factos provados), e à carta da Autora de Dezembro de 2014 remetida por intermédio do seu Advogado (ponto 13.º), os Réus não responderam formalmente (ponto 14.º);
XLIII - Mas falece a relevância de tais factos nos quais a julgadora se alicerçou para condenar os demandados na restituição dos imóveis livres e desocupados;
XLIV - Efectivamente, quanto aos factos vertidos nos pontos 12.º a 14.º dos factos provados, os mesmos apenas relevariam ex vi da inexistência de contrato eficaz, o que não é o caso;
XLV - Sendo o contrato eficaz, tais factos são irrelevantes, ou, no mínimo, insuficientes, pois que, na 1ª comunicação (de 20 de Março de 2014), a Autora, de forma algo inusitada, diga-se, “apenas” declarou aos Réus “[vir] solicitar a entrega dos imóveis, que estão a ser ocupados ilegitimamente (…) pelo que solicit[ava] que a entrega dos mesmos seja feita no prazo de oito dias, livre de pessoas e bens, sob pena de recorrer aos meios judiciais competentes para fazer valer os [seus] legítimos interesses (…)”;
XLVI - De relevar que a Autora, propositadamente, ou talvez não, com tal missiva, o que declarou pretender foi a desocupação pura e simples do locado, como se não pré-existisse desde Setembro de 1975 o acordo verbal celebrado entre os pais da Autora e os Réus da cedência daqueles a estes do gozo dos bens imóveis indicados em 1.º a 3.º dos factos provados, destinados à habitação permanente dos Réus, bem como dos prédios rústicos melhor identificados nos pontos seis e sete da escritura pública referida no ponto 5.º dos factos provados, mediante a retribuição, em géneros, da divisão do cereal, “a maias”, entregando aos senhorios, todos os anos, metade do milho, feijão, batata e cebola neles produzidos (pontos 8.º a 11.º dos factos provados);
XLVII - Factos que a Autora não ignorava, nem podia ignorar, pois que, na execução desse acordo verbal, os Réus entregaram aos pais da Autora, na casa que estas habitavam com suas filhas, incluindo a Autora, enquanto aqueles foram vivos e, após o seu falecimento, às suas filhas, a metade dos produtos agrícolas produzidos nos aludidos prédios rústicos, conforme ainda sucedeu em 2015 (ponto 11.º dos factos provados);
XLVIII - Já na 2ª comunicação (de Dezembro de 2014), o seu Advogado solicitava-lhes que “se dignassem a contactá-lo” “com o intuito de reduzir a escrito contrato de arrendamento rural referente aos imóveis supra aludidos. Dada a obrigatoriedade de redução a escrito dos arrendamentos rurais, incluindo os arrendamentos ao agricultor autónomo (…) a sua não redução leva à nulidade do contrato (…)”;
XLIX - A falta de resposta a tal solicitação da Autora, feita por intermédio do seu Advogado, ou seja, não o tendo contactado, para reduzirem a escrito o acordo aludido no ponto 8.º dos factos provados, não pode equivaler à imputabilidade aos Réus de recusa da sua redução a escrito;
XLX - Os Réus são pessoas simples, de baixa instrução e escolaridade, e, assim, desconhecedores das normas jurídicas atinentes ao caso dos autos; Na comunicação escrita efectuada, em momento algum o Advogado da Autora lhes referiu os exactos contornos a exarar no contrato formalizando, nomeadamente o valor pecuniário da renda a estipular, menos ainda, a indicada na P. I., corrigida, € 300,00 mensais, aliás em valor exorbitante, totalmente desconforme com a realidade, que não poderia ser aceite;
XLXI - Os Réus jamais poderiam dar o seu acordo à renda pretendida pela Autora, pelo que, por essa via, ou seja, se os Réus tivessem correspondido ao convite formulado pelo seu Advogado na carta de Dezembro de 2014, não se vê termos de que o contrato pudesse ter sido reduzido a escrito;
XLXII - E se, por hipótese, os Réus tivessem contactado o Sr. Advogado da Autora, conforme lhes foi solicitado e tivessem proposto o valor de € 40,00 mensais a título de renda, o que teria sucedido?;
XLXIII - É que, a renda a constar do arrendamento escrito–que os Réus aceitam que deve ser outorgado, Cfr. contestação-não pode ser estabelecida unilateralmente pela Autora, pelos valores por si impostos…;
XLXIV - E a Autora não aduziu outros factos que, por si ou concatenados com aqueles, clamem conclusão diversa;
XLXV - Assim, os Réus viveram na casa, amanharam o terreno, criaram os filhos, e nela tiveram o seu centro de vida, assumindo as suas vivências e criando e sedimentando os seus relacionamentos humanos e sociais;
XLXVI - Os anos passaram e já lá vão 40 (quarenta), quase 41, a perfazer em Setembro, desde o início do contrato;
XLXVII - Entretanto os pais da Autora faleceram e os Réus permaneceram na habitação e no cultivo dos terrenos;
XLXVIII - O ser humano é um animal de hábitos e adapta-se às condições mais difíceis;
XLXVIX - Os Réus que sempre habitaram naquela casa e cultivaram os respectivos terrenos, no seu próprio ambiente, com o seu modus vivendi e com a sua liberdade, não quiseram, ou não puderam, não obstante as parcas condições da mesma, mudar-se, vg. para junto dos filhos;
XLXVX - E confiaram, dada a postura - inércia, da Autora e seus antecessores, que ali poderiam acabar os seus dias, com a ajuda dos descendentes;
XLXVXI - Os Réus têm 70 e 68 anos, respectivamente o marido e a esposa – ele nasceu em 21-08-1945 e ela em 16-02-1948. Ele encontra-se reformado da construção civil, ela é doméstica. São pessoas doentes;
XLXVXII - A mudança forçada ex vi da cessação do contrato, acarretaria para eles despesas;
XLXVXIII - E, acima de tudo, acarretaria, ou poderia acarretar, o agravamento do seu estado de saúde, ao menos a nível psico-somático;
XLXVXIV - Pois que muito provavelmente, iriam viver para um meio onde, por motivos vários: físicos, funcionais, psíquico-emocionais, humano-sociais, não se integrariam;
XLXVXXV - A adaptação e a aculturação demoram o seu tempo. E o tempo dos Réus já é escasso;
XLXVXVI - Utilizando uma expressão que hoje–por más razões-está na moda, sofreriam os latos prejuízos advenientes da saída forçada da sua “zona de conforto”;
XLXVXVII - Mas tal saída-atenta a inacção da Autora e seus antecessores, a acção do benéfico recebimento da renda, o largo lapso de tempo em que tal sucede, as expectativas com tal omissão/acção criadas para os Réus, e a sua proveta idade e estado de saúde-, não lhes é exigível;
XLXVXVIII - Os Réus têm pois o direito de permanecer no local onde permaneceram mais de metade da sua já longa existência;
XLXVXVIV - Isto porque a Autora está a agir com abuso do seu próprio direito;
XLXVXVV - Quer por virtude do venire, quer por força da supressio, nos termos supra plasmados;
LXVXVVI - Na verdade, a presente pretensão da demandante frustra, intoleravelmente, quer na perspectiva pessoal, quer na vertente humana e social, as legítimas expectativas dos Réus, sedimentadas ao longo de décadas, de terminarem os seus dias no meio envolvente onde, essencialmente, se realizou–com as vicissitudes da vida-enquanto cidadãos, pais e avós.-neste sentido, cfr. Ac. do STJ de 11.01.2011, p. 627/06.7TBAMT.P1;
LXVXVVII - Efectivamente, às gerais e abstractas razões e valores de certeza e segurança pretendidos com a redução do contrato a escrito–as quais não se provou terem sido frustradas ou ofendidas, vg. com prejuízo das partes ou de terceiros, pelo mero verbalismo do contrato-sobrepõem-se as concretas razões dos Réus, não apenas nestas vertentes da certeza e segurança, como outrossim, na mais ponderosa e substancial perspectiva, nos termos sobreditos;
LXVXVVIII - Assim, não podia o Tribunal recorrido ter declarado a nulidade do acordo verbal melhor identificado nos pontos nº.s 8.º a 11.º dos factos provados supra e condenado os réus na restituição dos prédios identificados em a) supra livres de ónus e encargos e desocupados”.
LXVXVVIV- A douta decisão recorrida enferma assim de manifestos erros de julgamento tendo violado frontalmente, por erro de interpretação e aplicação, além do mais, o disposto nas normas e princípios legais supra referidos.
*
Não foram apresentadas contra-alegações.
*
Após os vistos legais cumpre decidir.
*
II- FUNDAMENTOS

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. cfr. artigos 635.º, nº 3, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
*
No seguimento desta orientação são as seguintes as questões de fundo a decidir no presente recurso:
a)- saber se a qualificação jurídica da relação negocial estabelecida entre as partes contratantes se mostra, ou não, correctamente feita;
b)- saber se a Autora está, ou não, a exercer o seu direito em termos abusivos quando vem invocar a nulidade do contrato por falta de forma legal e dentro da qualificação jurídica que dele fez o tribunal recorrido.
*
A)-FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Pelo tribunal recorrido foram considerados assentes os seguintes factos:
1.º Existe uma descrição na Conservatória do Registo Predial de Marco de Canaveses, referente a um prédio rústico com o n.º 1284/20060330, sito em …, freguesia de …, denominado de “E…”, com uma área de 3.040m2, a confrontar a norte com estrada municipal, a sul e poente com F… e com nascente com caminho e herdeiros de G…, tudo conforme certidão predial junta a folhas 79 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
2.º O supra identificado prédio encontra-se inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 1274.º, correspondente ao extinto artigo 112.º, tudo conforme certidão matricial junta a folhas 75 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
3.º Existe uma descrição na Conservatória do Registo Predial de Marco de Canaveses, referente a um prédio urbano com o n.º 1288/20060330, sito em …, freguesia de …, com uma área total de 676m2, a confrontar a norte com herdeiros de G…, a sul e nascente com caminho público e poente com H…, tudo conforme certidão predial junta a folhas 80 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
4.º O supra identificado prédio encontra-se inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 3233.º, correspondente ao extinto artigo 45.º, tudo conforme certidão matricial junta a folhas 73 e 74 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
5.º No dia 07 de Janeiro de 2011, compareceram no Cartório Notarial de Marco de Canaveses, além do mais, I… (primeiro outorgante), B… (segundo outorgante, aqui autora), J… (terceiro outorgante) e K… (quarto outorgante) e, perante o notário, declararam, por escrito, com a epígrafe “partilhas e doação” o seguinte: “[o]ito) Prédio rústico denominado “E…”, composto de cultura, oliveiras, videiras de enforcado, beiral e eira, sito no lugar de … da freguesia de … do concelho de Marco de Canaveses, descrito na Conservatória do Registo Predial de Marco de Canaveses sob o número mil duzentos e oitenta e quatro da freguesia de …, registado a seu favor, em comum e sem determinação de parte ou direito, pela Ap. Sete de 30/03/2006, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 112 (…) Doze) Prédio urbano composto de casa de um pavimento, corte térrea e quintal, sito no lugar de … da freguesia de … do concelho de Marco de Canaveses, descrito na Conservatória do Registo Predial de Marco de Canaveses sob o número mil duzentos e oitenta e oito da freguesia de …, registado a seu favor, em comum e sem determinação de parte ou direito, pela Ap. Sete de 30/03/2006, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 45 (…) Que, em pagamento dos quinhões a que têm direito fazem as seguintes adjudicações: (…) B) À segunda outorgante B… são adjudicados os bens descritos sob os números oito, (…), doze (…)”, tudo conforme certidão de folhas 11 a 22 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
6.º O prédio mencionado em 1.º supra mostra-se inscrito a favor da autora, pela apresentação n.º 1338, de 2011/02/14, através de aquisição por partilha, tudo conforme certidão predial junta a folhas 79 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
7.º O prédio mencionado em 3.º supra mostra-se inscrito a favor da autora, pela apresentação n.º 1338, de 2011/02/14, através de aquisição por partilha, tudo conforme certidão predial junta a folhas 80 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
8.º Em Setembro de 1975, os pais da autora e os réus acordaram verbalmente na cedência temporária pelos primeiros aos segundos do gozo dos bens imóveis indicados em 1.º e 3.º supra, bem como dos prédios rústicos melhor identificados nos pontos seis e sete da escritura pública referida em 5.º supra;
9.º O imóvel aludido em 3.º supra destinava-se à habitação permanente dos réus e os restantes prédios rústicos à cultura, videiras, pastagem e pinhal;
10.º Como retribuição dessa cedência temporária foi acordado entre os pais da autora e os réus a divisão do cereal, “a meias”, entregando os segundos aos primeiros, todos os anos, metade do milho, feijão, batata e cebola neles produzidos;
11.º Na execução desse acordo verbal, os réus entregaram aos pais da autora, na casa que estes habitavam com as suas filhas, incluindo a autora, enquanto aqueles foram vivos e, após o seu falecimento, às suas filhas, a metade dos produtos agrícolas produzidos nos aludidos prédios rústicos, conforme ainda sucedeu em 2015;
12.º A autora, por intermédio da sua então Advogada, remeteu aos réus, que a receberam, a missiva, cuja cópia consta de folhas 23 a 25 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, datada de 20 de Março de 2014, dando-lhe conta que “(…) Na qualidade de mandatária da Senhora D. B…, (…) proprietária dos imóveis inscritos na matriz sob os artigos 3233 urbano (antigo artigo 45) e 1274 rústico (antigo artigo 112), sitos na Rua …, freguesia …, concelho de Marco de Canavezes, venho solicitar a entrega destes imóveis, que estão a ser ocupados ilegitimamente por Vs. Exsª.(…) pelo que solicito que a entrega dos mesmos seja feita no prazo de oito dias, livre de pessoas e bens, sob pena de recorrer aos meios judiciais competentes para fazer valer os legítimos interesses da minha cliente. (…);
13.º A autora, por intermédio do seu então Advogado, remeteu aos réus, que a receberam, a carta, cuja cópia consta de folhas 26 e 27, comunicando-lhes o seguinte: “(…) Na qualidade de mandatário da Senhora D. B… (…) venho solicitar que Vexas. se dignem a contactar-me com o intuito de reduzir a escrito contrato de arrendamento rural referente aos imóveis supra citados. Dada a obrigatoriedade de redução a escrito dos arrendamentos rurais, incluindo os arrendamentos ao agricultor autónomo (…) a sua não redução leva à nulidade do contrato (…)”;
14.º Não obstante o teor das citadas comunicações, até à data, os réus não contactaram a autora para reduzirem a escrito o acordo aludido em 8.º supra, nem lhe restituíram os bens imóveis melhor identificados em 1.º e 3.º supra.
*
Factos não provados:
Com interesse para a decisão da causa resultaram como não apurados os seguintes factos:
a) Que a autora apenas teve conhecimento que os réus habitavam nos prédios supra identificados aquando do falecimento dos seus pais;
b) Que a entrega de metade de tudo aquilo que fosse produzido nos sobreditos terrenos agrícolas era feita mensalmente;
c) Que desde a morte dos pais da autora, os réus apenas entregaram a esta última metade do produto do terreno correspondente a 2 quilogramas de feijão verde;
d) Que a contrapartida monetária correspondente ao uso e fruição dos prédios melhor identificados em 1.º e 3.º supra ascende ao montante mensal de €300,00;
e) Que a contrapartida monetária correspondente ao uso e fruição dos prédios melhor identificados em 1.º e 3.º supra ascende ao montante mensal de €40,00;
f) Que a autora suportou o I.M.I. correspondente aos prédios indicados em 1.º e 3.º supra, em Abril de 2015, no valor de €126,45.1.
*
III- O DIREITO

Como supra se referiu a primeira questão que no recurso vem colocada consiste em:

a)- saber se a qualificação jurídica da relação negocial estabelecida entre as partes contratantes se mostra, ou não, correctamente feita.

Como emerge da decisão recorrida aí se entendeu que o acordo verbal que foi celebrado entre os pais da Autora e os Réus consubstanciou um contrato de arrendamento rural.
Deste entendimento dissentem os recorrentes, defendendo que o referido acordo deve ser qualificado como de arrendamento urbano.
Quid iuris?
Respigando o quadro factual acima descrito está provado, com interesse para a dilucidação desta questão, o seguinte:
a)- Em Setembro de 1975, os pais da autora e os réus acordaram verbalmente na cedência temporária pelos primeiros aos segundos do gozo dos bens imóveis indicados nos pontos 1.º e 3.º supra, bem como dos prédios rústicos melhor identificados nos pontos seis e sete da escritura pública referida no ponto 5.º supra;
b)- Tais imóveis destinavam-se, o aludido em 3.º supra, à habitação permanente dos réus e os restantes, à cultura, videiras, pastagem e pinhal;
c)- Como retribuição dessa cedência temporária foi acordado entre os pais da autora e os réus a divisão do cereal, “a meias”, entregando os segundos aos primeiros, todos os anos, metade do milho, feijão, batata e cebola neles produzidos;
d)- Na execução desse acordo verbal, os réus entregaram aos pais da autora, na casa que estes habitavam com as suas filhas, incluindo a autora, enquanto aqueles foram vivos e, após o seu falecimento, às suas filhas, a metade dos produtos agrícolas produzidos nos aludidos prédios rústicos, conforme ainda sucedeu em 2015 (factos descritos em 8º a 11º da fundamentação factual).
Desta factualidade resulta, sem qualquer margem para dúvidas de que, entre da Autora e os Réus, foi celebrado um acordo mediante o qual aqueles primeiros cederam aos segundos o gozo temporário dos mencionados prédios, sendo o urbano destinado à habitação dos réus e os rústicos à exploração agrícola, já no distante ano de 1975, mais propriamente em Setembro, tendo sito estipulado como contrapartida por tal cedência a divisão dos produtos agrícolas provenientes dessa exploração, em duas partes, sendo uma para os primeiros e a outra para os segundos, com uma periodicidade anual quanto à sua entrega.
Ora, atendendo aos elementos essenciais que caracterizam este acordo, como sejam a sua finalidade, o tipo e periodicidade da contrapartida, não restam dúvidas que estamos perante um contrato de locação tal qual vem definido no artigo 1022.º do CCivil.
A questão que agora se coloca é se, dentro daquela figura jurídica da locação, estamos perante um contrato de arrendamento rural como foi entendido pela decisão recorrida ou, como defendem os apelantes, como contrato de arrendamento urbano, pois que, desde logo está excluída a hipótese de se tratar de uma parceria agrícola.
Efectivamente, atendendo a que esse acordo incidiu simultaneamente sobre prédios rústicos e urbano e, não obstante ter sido convencionado como contrapartida a prestar pelos aqui Réus a entrega em géneros, ou seja, a divisão “a meias” dos produtos colhidos nas terras amanhadas, característica que apontaria de imediato para o contrato de parceria agrícola, tal circunstância impede precisamente a subsunção a esta espécie de negócio jurídico.
De facto o contrato de parceria agrícola não pode ter por objecto um prédio urbano razão pela qual, no caso em apreço, atendendo a que a cedência temporária do gozo incidiu simultaneamente sobre os supra identificados prédios rústicos e prédio urbano, sendo aqueles para exploração agrícola e este último para habitação dos réus, tal impede que se qualifique tal acordo como de parceria agrícola.[2]
Aliás, mesmo que assim não se entendesse, considerando a data em que tal acordo verbal foi firmado entre os pais da Autora e os Réus-Setembro de 1975-, sempre era preciso não esquecer a proibição legal desse tipo de contratos, por força do disposto no artigo 44.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 201/75, segundo o qual ficaram proibidas todas e quaisquer formas de utilização da terra que tenham por base contrato segundo o qual uma pessoa dê ou entregue a outrem um ou mais prédios rústicos para serem cultivados ou explorados por quem os recebe em troca de pagamento de uma quota-parte da respectiva produção ou de prestação de qualquer forma de trabalho.
Como se sabe o arrendamento consoante recaia sobre prédios urbanos ou sobre prédios rústicos, poderemos falar em arrendamento urbano ou rústico. O arrendamento urbano pode ser para habitação (artigos 1092.º e ss. do CCivil) ou para fins não habitacionais (artigos 1108.º e ss. do mesmo diploma). O arrendamento rústico pode constituir arrendamento rural consoante o seu fim seja a exploração agrícola ou pecuária ou arrendamento florestal, se o seu fim for a habitação florestal.[3]
Estatui por sua vez o artigo 204.º, n.º 2, do Código Civil que prédio rústico é uma parte delimitada do solo e as construções nele existentes que não tenham autonomia económica, ao passo que prédio urbano é qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro.
Como referem A. Varela e Pires de Lima[4] a propósito da distinção entre prédio urbano e prédio rústico, para estes estes efeitos foi adoptado “(…) não o critério do valor (real ou matricial) relativo da parte rústica e da parte urbana na unidade predial, mas o da subordinação funcional económica.” Quer isto dizer, continuam os citados Autores, que “[s]empre que a parte urbana inserida na terra se encontre ligada pelo seu fim à exploração agrícola ou pecuária da parte rústica, carece de autonomia económica, para o efeito da qualificação jurídica do contrato. É o que sucede designadamente com os celeiros, as adegas, os lagares de vinho ou de azeite, os estábulos, as casas dos guardas da mata, as dependências para guardar alfaias agrícolas, etc.”[5]
Portanto, resulta do citado preceito legal que nestas circunstâncias, a prevalência da destinação económica do conjunto é o critério fundamental para classificar de rústico ou urbano o prédio formado por parte urbana e parte rústica e, essa prevalência, ou é expressamente clausulada pelos contraentes, ou tem de se inferir das circunstâncias de facto que envolveram o negócio e se plasmam na quotidiana actuação do beneficiário do contrato com pluralidade de fins e na articulação com os bens em si mesmo configurados e na sua relacionação.[6]
Acontece que, posta a questão da distinção entre prédio urbano e rústico no âmbito de um contrato de arrendamento, em virtude de o mesmo prédio ser composto por uma parte destinada à exploração agrícola e, simultaneamente, por uma parte destinada à habitação do arrendatário, importa que se tenham presentes alguns cuidados.
Como referem A. Varela e Pires de Lima[7] “(…) Já goza de autonomia económica o prédio ou parte do prédio destinada a habitação do arrendatário. Neste caso, o prédio só se considera como urbano se a parte urbana for de valor superior à parte rústica nos termos do artigo 1084.º”.
Ora, dispunha o n.º 1 do artigo 1084.º, do Código Civil-revogado entretanto pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15/10 [cfr. artigo 3.º, n.º 1, alínea a)]–que “[e]nvolvendo o contrato uma parte urbana e uma parte rústica, só se considera como urbano o arrendamento se a parte urbana for de valor superior à rústica”.
O n.º 2 do citado inciso normativo preceituava que: “[p]ara efeitos do número anterior, atender-se-á ao valor que resulta da matriz ou, na falta ou deficiência desta, à renda que os contraentes tiverem atribuído a cada uma das partes; na falta de discriminação, proceder-se-á a avaliação.”
Com a revogação desta norma, sucedeu-lhe o então artigo 2.º, do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo aludido Decreto-Lei n.º 321-B/90, que, igualmente sob a epígrafe de “arrendamentos mistos”, impunha exactamente a mesma solução.
Actualmente, no Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro (cujo artigo 60.º revogou, por sua vez, o aludido Decreto-Lei n.º 321-B/90, sendo certo que, em regra, o artigo 59.º dispõe que o N.R.A.U. aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data), rege o artigo 1066.º, n.º 1, do Código Civil, também sob a epígrafe “arrendamentos mistos” que: “[o] arrendamento conjunto de uma parte urbana e de uma parte rústica é havido por urbano quando essa seja a vontade dos contraentes”.
Manda o n.º 2, do citado preceito, em caso de dúvida, atender, “(...) sucessivamente, ao fim principal do contrato e à renda que os contraentes tenham atribuído a cada uma delas”, sendo certo que “[n]a falta ou insuficiência de qualquer dos critérios referidos no número anterior, o arrendamento tem-se por urbano” (n.º 3).
Deste ultimo preceito resulta, contrariamente ao que pode transparecer da epígrafe do artigo, que a lei, quando o arrendamento inclua uma parte urbana e uma parte rústica, não aceita a existência de dois arrendamentos distintos, ou de um arrendamento híbrido/misto, antes impõe apenas a existência de um arrendamento, urbano, ou rural, que abranja as duas partes ou prédios e a cujo único regime elas terão, tendencialmente, de se sujeitar, o que se compreende por virtude da simplificação do teor do negócio jurídico e da consequente facilitação da sua interpretação no que concerne, verbi gratia, à forma exigível, aos direitos e deveres das partes, às causas da sua cessação, etc.
Por sua vez no que concerne ao regime do arrendamento rural, dispunha o artigo 1064.º, do Código Civil, na redacção originária–revogado pelo artigo 46.º, do Decreto-Lei n.º 201/75, de 15 de Abril, diploma este que, com o objectivo de realizar a dinamização da agricultura e a reforma gradual da estrutura agrária, estabeleceu um novo regime do arrendamento rural, revogando assim os artigos 1064.º a 1082.º, do Código Civil que regiam, até então, esta matéria–que “[a] locação de prédios rústicos para fins agrícolas, pecuários ou florestais, nas condições de uma exploração regular, denomina-se arrendamento rural e fica sujeita às disposições desta secção, bem como aos preceitos das secções antecedentes no que não for contrariado pelos desta. (n.º 1). Se o arrendamento recair sobre prédio rústico, e do contrato e respectivas circunstâncias não resultar o destino atribuído ao prédio, presume-se rural (...)”.
A Lei n.º 76/77, de 29 de Setembro, no seu artigo 53.º revogou o mencionado Decreto-Lei n.º 201/75, mantendo, contudo, revogadas as aludidas disposições do Código Civil, passando a dispor, de forma inovadora, no artigo 2.º o seguinte: “[o] arrendamento rural, além do terreno com o arvoredo não referido no n.º 2 e demais vegetação permanente que nele existir, abrange ainda as construções destinadas habitualmente não só aos fins próprios da exploração normal dos prédios, mas também à habitação do arrendatário”.
O preceito em causa foi vertido para o artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 385/88, de 25 de Outubro–diploma este que, no seu artigo 40.º, revogou a citada Lei n.º 76/77 e que, por força do seu artigo 36.º, é integralmente aplicável aos contratos de arrendamento rural existentes à data da respectiva entrada em vigor.
Actualmente, por força do disposto no artigo 2.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 294/2009, de 13 de Outubro, que revogou o citado Decreto-Lei n.º 385/88, o arrendamento conjunto de uma parte rústica e de uma parte urbana é considerado rural quando seja essa a vontade expressa dos contraentes ou, na dúvida, quando seja considerado como tal, nos termos do citado artigo 1066.º, do Código Civil.
Aqui chegados e perscrutando a matéria factual que a este respeito vem provada importa, desde logo, esclarecer que, não obstante, o acordo verbal em análise ter incidindo sobre três prédios rústicos e um prédio urbano, a vontade das partes, interpretada à luz do disposto no artigo 236.º, do Código Civil, ao fixar, como contrapartida dessa cedência temporária do gozo, uma única “renda” traduzida na divisão “a meias” daquilo que a terra produzisse, só pode querer significar que as partes não pretenderam celebrar quatro acordos distintos a incidir sobre cada um dos indicados prédios, ou, em última análise, dois negócios diferenciados, um recaindo sobre a cedência dos prédios rústicos e o outro sobre o prédio urbano, mas sim e apenas um único acordo tendo por objecto o conjunto desses prédios.
Significa, portanto, que é com base nessa interpretação da vontade das partes, que nesse conspecto não vem questionada, pois que, ambas consideram precisamente a existência de um único negócio jurídico tendo por objecto a cedência temporária do gozo dos sobreditos prédios como um conjunto, que passaremos agora a analisar o respectivo enquadramento jurídico numa daquela duas figuras contratuais-arrendamento rural/arrendamento urbano.
Seguindo a referida orientação, temos logo de afastar a aplicação dos critérios a que aludia o anterior artigo 1084.º, já supra citado, na medida em que não foi sequer alegado pelas partes qual o valor de cada um dos prédios objecto desse acordo, à data da sua celebração, sendo certo que, para tanto, também não se mostra possível recorrer aos valores patrimoniais das respectivas matrizes prediais, isto porque a referente ao prédio urbano foi actualizada em 2012 e a do prédio rústico referente ao actual artigo 1274.º permanece com o valor atribuído em 1989, ignorando-se igualmente a data em que foram fixados os valores patrimoniais dos prédios identificados na sobredita escritura pública nas suas verbas seis e sete.
Diga-se, aliás, que tal afastamento sempre teria de se verificar, porquanto, conforme se escreveu no Ac. desta Relação de 18/01/1983[8], proferido ainda na vigência do então artigo 1084.º, mas já depois da entrada em vigor do então artigo 2.º, da Lei n.º 76/77, que aquele preceito do Código Civil “[p] poderá continuar a aplicar-se à hipótese de arrendamento de terreno de cultura e de casa não destinada à habitação (v.g. um edifício destinado à exploração de indústria). Mas já não abrange a hipótese de arrendamento de terreno de cultura e de casa de habitação do arrendatário, qualquer que seja a relação entre os valores daquele e o desta.”
Em sentido idêntico, defendeu-se no que Acórdão da RC de 06/11/1979[9] que “[o] preceituado no artigo 1084.º do C.C. que atende aos valores das partes urbanas e rústica para determinação da natureza do contrato de arrendamento deve ser entendido sem prejuízo do disposto nos arts. 204.º, n.º 2 e 1029.º, n.º 3 do C.C. e arts. 1.º e 2.º da Lei n.º 76/77, de 29 de Setembro (afectação do prédio a determinada finalidade).”19. Ou seja, “[é] o elemento teleológico do contrato de arrendamento que lhe pode conferir a natureza de arrendamento rural: este só existe quando se destine à exploração agrícola, pecuária ou florestal”.
Como assim, não podemos aplicar o critério da renda fixada para cada uma das partes rústica e urbana, tanto mais que, in casu, como resulta do quadro factual supra referido, foi estipulada uma única renda, assim como não foi efectuada qualquer avaliação dos bens em apreço, por reporte à data em que tal acordo foi celebrado.
Destarte, temos, então, de partir do critério correspondente à vontade das partes. E, não obstante a matéria de facto a este propósito alegada pelas partes litigantes nos respectivos articulados e decorrentemente aquela que foi dada como provada e não provada, nos parecer exígua para aferir daquela vontade cremos, respeitando embora opinião contrária, ser, contudo, suficiente para poder concluir que, efectivamente, a intenção das partes intervenientes foi no sentido de o acordo verbal em causa configurar uma relação de arrendamento rural.
Analisando.
Como refere Mota Pinto[10] “a interpretação de um contrato consiste em determinar o conteúdo das declarações de vontade e, consequentemente, os efeitos que o negócio visa produzir, em conformidade com essas declarações”.
Ora, o sentido das declarações negociais das partes, nos termos do artigo 236.º, nº s 1 e 2, será aquele que possa ser deduzido por um declaratário normal colocado na posição do declaratário real, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele, sem embargo de, conhecendo o declaratário a vontade real do declarante, ser de acordo com ela que vale a declaração emitida.
Consagrou-se, assim, a denominada teoria da impressão do destinatário, teoria que sofre adaptação objectiva no caso dos negócios formais, em que a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do documento, ainda que imperfeitamente expresso, salvo se tal sentido corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade (artigo 238.º, nº s 1 e 2 do CCivil).
Acontece que, nesse domínio da interpretação, surgem como elementos essenciais-a que deve recorrer-se para a fixação do sentido das declarações-“a letra do negócio, as circunstâncias de tempo, lugar e outras, que precederam a sua celebração ou são contemporâneas desta, bem como as negociações respectivas, a finalidade prática visada pelas partes, o próprio tipo negocial, a lei e os usos e os costumes por ela recebidos”.[11]
Ou, como exemplifica Manuel de Andrade[12] “os termos do negócio; os interesses que nele estão em jogo (e a consideração de qual seja o seu mais razoável tratamento); a finalidade prosseguida pelo declarante; as negociações prévias; os hábitos do declarante (de linguagem ou outros); os usos da prática, em matéria terminológica, ou de outra natureza que possa interessar, devendo prevalecer sobre os usos gerais ou especiais (próprios de outros meios ou profissões), etc.".
Não sendo possível reconstituir a vontade real das partes, deverá atender-se a todas as circunstâncias do caso concreto, como “os termos do negócio, os interesses nele compreendidos e o seu mais razoável tratamento, o objectivo do declarante, as negociações preliminares, as relações negociais precedentes das partes, os usos do declarante e os da prática que possam interessar”.[13]
Postos estes considerandos e pese embora, o acordo em causa não tenha sido reduzido a escrito, obstando assim a que tivesse ficado devidamente consignado, nesse documento, a vontade expressa das partes de o denominarem como sendo de arrendamento urbano ou como rural, os restantes elementos subsidiários, isto é, o fim principal do contrato que os contraentes atribuíram a cada uma das partes e a renda que convencionaram, permitem concluir, como acima se referiu, no sentido de se tratar de um arrendamento rural.
Na verdade, importa, desde logo, enfatizar que apenas o prédio urbano inscrito na respectiva matriz sob o artigo 3233.º foi entregue aos Réus para a sua habitação, tendo-lhes os restantes prédios rústicos sido cedidos para que procedessem à sua exploração agrícola.
Por outro lado, e como muito bem se diz na decisão recorrida “considerando apenas a área do prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo 1274.º, correspondente a mais de 3.000 m2 (as áreas dos outros dois prédios rústicos não constam dos autos)–em comparação com a área do prédio urbano, de apenas 676 m2 (sendo 96 m2 de área coberta e os restantes 5810 m2 de área descoberta) não podemos dizer que a mesma–máxime à data de 1975, em que havia uma grande procura de terra e toda ela era, versus o que hoje sucede, amanhada–era de pouca monta ou minudente. Antes se apresentando como uma área mais do que suficiente para, numa época em que o sector agrícola ainda predominava na economia, prover à satisfação das necessidades básicas dos réus e seu agregado familiar (...)”.
Portanto, tal como bem se afirma na decisão recorrida, o objectivo dos Réus era a posse de uma terra, então bem escasso, que provesse, em grande parte, ao seu sustento e da sua família, o que inculca que o que foi dado de arrendamento, a título essencial/principal, foram os terrenos e não a construção, sendo que esta, associada àqueles e para favorecer a posição dos próprios réus, que iriam dedicar-se ao cultivo daqueles, passou a ser também a sua habitação.
Como se escreveu no Ac. STJ de 06/07/2006[14] num caso semelhante “(…) o bem que as partes essencialmente perspectivaram e que se assumiu como o motivo determinante da celebração do contrato, foi a terra e alcandorando-se a fruição da construção como habitação, como meramente acessória ou complementar: se a construção já estava conformada, a um uso habitacional, as partes, máxime os réus, aproveitaram-na como tal”.
E, se dúvidas houvesse em face deste critério, são as mesmas dissipadas pela sua conjugação com o critério referente à renda.
Com efeito, a renda acordada foi apenas definida em géneros e satisfeita anualmente.
Ora, estas duas características do seu pagamento: em géneros e com periodicidade anual, não são de todo próprias do contrato de arrendamento urbano, mas sim do contrato de parceria agrícola e/ou do contrato de arrendamento rural.
Como assim, da concatenação dos factos acima enunciados e dados como provados, não resulta que as partes tenham querido celebrar um contrato de arrendamento urbano para habitação, visando sim a exploração agrícola dos terrenos que foram objecto de tal acordo e que, encontrando-se edificada num desses terrenos a casa de habitação, acordaram englobá-la, mas apenas por esta se apresentar estrutural e funcionalmente ligada ao cultivo daquelas terras servindo, assim, de habitação dos arrendatários encarregues de as explorarem.
Conclusão que, como se afirma na decisão recorrida não é contrariada pelo facto de, com o passar dos tempos, o mencionado prédio urbano até possa ter sofrido alterações em termos estruturais (o que nem sequer foi alegado), já que, como se afirma no Ac. desta Relação de 05/02/20042[15], a modalidade do arrendamento afere-se pela natureza do prédio sobre que versa, à data da celebração do contrato, sendo irrelevantes, para o tratamento jurídico da espécie de arrendamento celebrado, as qualificações e modificações estruturais subsequentes.
Diante do exposto temos de concluir, ressalvando sempre opinião diferente, que o acordo verbal em apreço celebrado entre os pais da Autora e os Réus, deve qualificar-se como arrendamento rural.
*
Improcedem, assim, as conclusões I a XXVII formuladas pelos recorrentes.
*
A segunda questão que no recurso vem colocada prende-se com:

b)- saber se a Autora está, ou não, a exercer o seu direito em termos abusivos quando vem invocar a nulidade do contrato por falta de forma legal.

Como resulta do petitório a Autora, a nível subsidiário, veio invocar a nulidade do contrato e os efeitos daí decorrentes por o mesmo não ter sido reduzido a escrito, pedido que o tribunal recorrido veio a atender por não ter fundamento o pedido principal formulado sob esse conspecto.
Como supra se decidiu na sequência, aliás, da qualificação feita pela Mª juiz, o contrato celebrado entre as partes foi de um arrendamento rural, celebração essa ocorrida em Setembro de 1975.
Ora, até à presente data várias foram as alterações introduzidas no regime do arrendamento rural.
Acontece que, não obstante as referidas alterações, nos termos estatuídos no artigo 12.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil quanto às condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, dever-se-á atender à lei em vigor à data da sua celebração, sem prejuízo das regras especiais previstas em cada um dos diplomas sucessivamente videntes.
O arrendamento rural, no domínio dos artigos 1064.º e 1082.º, do primitivo Código Civil, não estava sujeito a forma especial, podendo por isso ser celebrado verbalmente.
Todavia, com a revogação desses preceitos pelo citado Decreto-Lei n.º 201/75, passou a ser obrigatória a redução a escrito dos contratos de arrendamento rural (cfr. artigo 2.º), obrigatoriedade essa que se manteve no quadro da Lei n.º 76/77, que revogou aquele diploma.
Entretanto entrou em vigor o Decreto-Lei n.º 385/88 de 25/10, que ocorreu em 01/07 e que por força do disposto no artigo 3.º, n.º 1, conjugado com o artigo 36.º, n.º 1, do mesmo diploma, o contrato de arrendamento rural celebrado verbalmente deveria ter sido reduzido a escrito.
O não cumprimento desta prescrição, era cominada com nulidade, mas atípica ou mista[16], na medida em que o seu regime se caracterizava por algumas particularidades diferentes do regime geral da nulidade previsto no artigo 286.º, do Código Civil, mas também com contornos diferentes do regime da anulabilidade previsto no artigo 287.º, do mesmo diploma (note-se que o artigo 285.º, do mesmo Código admite expressamente que possa haver um regime especial de invalidade), precisamente porque esta exigência de redução a escrito era garantia ditada para proteger as partes.[17]
Embora pudesse ser invocada a todo o tempo, as suas particularidades eram precisamente as definidas no artigo 3.º, n.ºs 3 e 4, do citado Decreto-Lei n.º 385/88, aí se prevendo a faculdade de qualquer das partes exigir da outra, notificando-a, a redução a escrito, sob pena da nulidade não poder ser invocada pela parte que tivesse recusado a redução, na sequência dessa notificação, excluindo-se assim a possibilidade do respectivo conhecimento oficioso.
Nessa sequência o legislador estatuiu no n.º 5, do artigo 35.º, do mesmo diploma que: “[n]enhuma acção judicial pode ser recebida ou prosseguir, sob pena de extinção da instância, se não for acompanhada de um exemplar do contrato, quando exigível, a menos que logo se alegue que a falta é imputável à parte contrária”.
Ora, o Decreto-Lei n.º 358/88 veio a ser revogado pelo Decreto-Lei n.º 294/2009 [que começou a vigorar na ordem jurídica em 11 de Janeiro de 2010–cfr. artigo 39.º, n.º 1 e alínea a) do artigo 43.º].
Contudo, no que tange à exigência de forma quanto à celebração dos contratos de arrendamento rural, manteve o regime pretérito, ao estipular no artigo 6.º, n.º 1 que “[o]s contratos rurais são obrigatoriamente reduzidos a escrito.” E no n.º 2, do mesmo artigo, continuou a cominar com a nulidade a não redução escrito, quer em relação aos contratos celebrados na sua vigência como aos renovados ao abrigo da nova lei, ao prescrever “[a] não redução a escrito dos contratos de arrendamento rural celebrados ou renovados na vigência do presente decreto-lei gera a sua nulidade”.
Da mesma forma que reproduziu no n.º 5, do artigo 35.º, do novo diploma o que anteriormente estava regulado precisamente no n.º 5, do artigo 35.º, do Decreto-Lei n.º 358/88, ou seja, por via deste novo regime legal do arrendamento rural “[n]enhuma acção judicial pode ser recebida ou prosseguir, sob pena de extinção da instância, se não for acompanhada de um exemplar do contrato, quando exigível, a menos que se alegue que a falta é imputável à parte contrária”.
O Decreto-Lei n.º 294/2009 aplica-se, obrigatoriamente e na íntegra, aos contratos de arrendamento rural celebrados a partir da sua entrada em vigor, embora também se possa aplicar aos contratos existentes à data da sua entrada em vigor, nos termos do disposto no seu artigo 39.º, n.º 2.
Decorre, assim, do regime prescrito no novo diploma que a sua aplicação aos contratos de arrendamento rural, existentes à data da sua entrada em vigor, e renováveis já no decurso da vigência do mesmo, para que o diploma lhes seja aplicável, terão de ser, para além do mais, reduzidos a escrito, de forma a estarem conformes com o prescrito nesse diploma, conclusão que sai, aliás, reforçada com que estatui o artigo 44.º, n.º 2, do citado diploma por aí se prever, quanto à entrada em vigor e produção de efeitos do referido diploma, o seguinte: “[s]em prejuízo do disposto no artigo 39.º, o presente decreto lei apenas produz efeitos relativamente aos contratos existentes na data da sua entrada em vigor, após os mesmos serem alterados nos termos estabelecidos no artigo 41.º”.
No caso concreto, dúvidas não existem que o acordo foi meramente verbal e celebrado já na vigência do citado Decreto-Lei n.º 201/75, o qual exigia, como vimos, a sua redução a escrito.
Porém, como a vigência do mesmo perdurou quer à data da entrada em vigor do referido Decreto-Lei n.º 385/88, quer do Decreto-Lei n.º 249/2009, então, não tendo sido entretanto reduzido a escrito, mesmo na vigência deste último, tal significa que esse acordo não está em conformidade com o regime nele prescrito no tocante à exigência de forma escrita, pelo que este último diploma não produz efeitos relativamente ao contrato de arrendamento rural invocado nos autos.
Sendo assim, o regime legal que lhe é aplicável, é o instituído no Decreto-Lei n.º 385/88.
Deste diploma resulta, como já supra se referiu, a faculdade de qualquer das partes exigir da outra, mediante notificação, a redução a escrito, sendo que a nulidade por causa deste vício de forma, não pode ser invocada pela parte que, após a notificação, tenha recusado a redução a escrito, na acção judicial intentada onde se discuta aquela relação contratual, desde que se alegue que a não redução a escrito é imputável à parte demandada (cfr. artigos 3.º, n.ºs 1, 3 e 4 e 35.º, n.º 5 do Decreto-Lei n.º 358/88).
Evidentemente que, se na acção se pede que seja declarada a nulidade do contrato por não estar reduzido a escrito como o impõe a lei, não pode conceber-se que o autor junte ao processo o exemplar do contrato. Mas o que o autor terá de alegar e provar é que essa falta é imputável ao réu, ou seja, a acção de anulação do contrato de arrendamento rural, com fundamento em nulidade decorrente de inobservância da forma escrita, pressupõe dois requisitos:
a) haver o autor tomado a iniciativa de redução a escrito do contrato, cumprindo assim o ónus que sobre ele impendia;
b) recusa injustificada da parte contrária em fazê-lo.[18]
É, pois, neste contexto que surge a disciplina estatuída no artigo 35.º, n.º 5, razão pela qual não se percebe o alegado pelos recorrentes sobre a conclusão XXXIII.
Efectivamente, o tribunal só poderá conhecer da invocada excepção, quando o autor pretendendo fazer valer a existência do contrato não apresenta o documento que o formaliza e não alega, para provar posteriormente, que a não redução a escrito é imputável à parte contrária.
*
Aqui chegados, verifica-se que no caso em apreço, a Autora alegou logo na sua petição inicial que o acordo foi meramente verbal, facto esse que os Réus não negaram.
Mais provado está que:
a)- a Autora, por intermédio do seu então Advogado, remeteu aos réus, que a receberam, a carta, cuja cópia consta de folhas 26 e 27, comunicando-lhes o seguinte: “(…) Na qualidade de mandatário da Senhora D. B… (…) venho solicitar que Vexas. se dignem a contactar-me com o intuito de reduzir a escrito contrato de arrendamento rural referente aos imóveis supra citados. Dada a obrigatoriedade de redução a escrito dos arrendamentos rurais, incluindo os arrendamentos ao agricultor autónomo (…) a sua não redução leva à nulidade do contrato (…)”.
b)- Não obstante o teor das citadas comunicações, até à data, os réus não contactaram a autora para reduzirem a escrito o acordo aludido em 8.º supra, nem lhe restituíram os bens imóveis melhor identificados em 1.º e 3.º supra (factos descritos em 13º e 14º da fundamentação factual).
Perante esta factualidade cremos, salvo opinião diferente, ser inequívoco ter a Autora logrado demonstrar que a falta de forma escrita é imputada aos aqui Réus e, como tal, não lhe estava vedada a possibilidade de invocar o correspondente vício da nulidade por inobservância dessa formalidade, fazendo-o precisamente através da presente acção que visa, claramente, o reconhecimento dessa mesma invalidade formal.
Significa, portanto, que tratando-se de um contrato de arrendamento rural meramente verbal, o mesmo é nulo por falta de forma, nulidade essa que foi invocada por quem tinha legitimidade para o efeito, não se verificando, dessa forma, a aludida excepção peremptória atípica atrás referida.
*
A questão que agora se coloca é se arguição da nulidade por vício de forma pode ser paralisada pela figura do abuso do direito.
Importa, antes de avançar na análise desta questão, dizer-se que, embora sendo nova no sentido de que não foi colocada a sua apreciação ao tribunal recorrido, o seu conhecimento é oficioso.[19]
*
A maioria da jurisprudência tem reconhecido o abuso de direito em caso de nulidade do contrato por inobservância de forma legal (artigo 220.º do Código Civil), disso dando nota pormenorizada o Ac. do STJ de 26/05/2009[20], onde se indicam vários acórdãos nesse sentido.
No entanto adverte que a orientação do STJ tem sido a de que o reconhecimento do abuso do direito, de modo a afastar as consequências da nulidade, apenas deve ser declarado em casos de clamorosa injustiça.
Portanto, inalegabilidades formais, ou seja, a possibilidade de, em certos casos e em nome da boa fé, se bloquearem a invocação das invalidades formais, apenas deve ser admitida em casos excepcionais, sob pena de se pôr em causa as razões e objectivos que estiveram na base da imposição da forma pelo legislador.
Será este um desses casos?
O actual Código Civil delimitou o conceito de abuso de direito no art.º 334.º dispondo que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Esta figura ocorre quando o direito, embora legítimo, é exercido de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante, ou seja, longe do interesse social e por forma a exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico-social desse mesmo direito, tornando-se, assim, escandalosa e intoleravelmente ofensiva do comum sentimento de justiça.
Tal como se depreende do seu teor, aquele normativo acolhe uma concepção objectiva do abuso do direito, segundo a qual não é necessário que o titular do direito actue com consciência de que excede os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social do direito ou com “animus nocendi” do direito da contraparte, bastando que tais limites sejam e se mostrem ostensiva e objectivamente excedidos.[21]
A boa fé tem a ver com o enunciado de um princípio que parte das exigências fundamentais da ética jurídica que se exprimem na virtude de manter a palavra e na confiança de cada uma das partes para que procedam honesta e lealmente segundo uma consciência razoável.
Mas para que a confiança seja digna de tutela tem de radicar em algo de objectivo, tem de se verificar o investimento de confiança, a irreversibilidade desse investimento e tem de haver boa fé da parte que confiou, isto é, é necessário que desconheça uma eventual divergência entre a intenção aparente do responsável pela confiança e a sua intenção real, que aquele tenha agido com o cuidado e precaução usuais no tráfico jurídico.[22] (Baptista Machado, RLJ, ano 119, pág. 171).
Aquele excesso deve ser manifesto, claro, patente, indiscutível, embora sem ser necessário que tenha havido a consciência de se excederem tais limites.
Tal objectividade exige sempre a alegação e demonstração dos competentes factos constitutivos e da formulação do pedido correspondente, mesmo quando o interessado não o tenha invocado expressamente, altura em que surge de conhecimento oficioso.
Orientação jurisprudencial que, diga-se, mereceu a concordância do Prof. Menezes Cordeiro, que também faz depender a aplicação daquele instituto da verificação dos pressupostos processuais, justificando: “na verdade, o Tribunal não fica limitado pelas invocações jurídicas das partes: pedido um certo efeito e constando, do processo, os factos necessários, pode o juiz optar pelo abuso de direito, mesmo que este não tivesse sido expressamente invocado”.[23]
Uma das modalidades de abuso de direito é, como se sabe, o “venire contra factum proprium”, a qual se manifesta pela violação do princípio da confiança, revelando um comportamento com que, razoavelmente, não se contava, face à conduta anteriormente assumida e às legítimas expectativas que gerou. Esta conduta contraditória cabe no âmbito da fórmula “manifesto excesso” e inscreve-se no contexto da violação do princípio da confiança, que sucede quando o agente adopta uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes actuara.
Esta tem sido a modalidade considerada pela jurisprudência para impedir a arguição da nulidade por falta de forma, designadamente quando a nulidade foi propositadamente causada por quem a venha a invocar.
Efectivamente o “venire contra factum proprium” traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente.
Contudo a doutrina e jurisprudência estão de acordo que não é qualquer comportamento contraditório que viola os princípios da boa fé e da confiança que justifica a paralisação do exercício do direito por abusivo, nos termos do artigo 334.º.
Como refere o acórdão do STJ de 05/02/98[24], os pressupostos para se considerar existir uma situação de venire, são:
a) uma situação de confiança, justificada pela boa fé, que levam uma pessoa a acreditar, estavelmente, em conduta alheia–no factum proprium–determinante da aquisição de posição jurídica;
b) Investimento nessa confiança, com orientação de vida, desenvolvendo actividade na crença no factum proprium, actividade que é destruída pelo venire, de tal modo que essa destruição e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara;
c) Imputação da situação criada à outra parte.
Menezes Cordeiro[25] indica quatro requisitos, acrescentando aos atrás indicados a justificação de confiança que “requer que esta se tenha alicerçado em elementos razoáveis, susceptíveis de provocar a adesão de uma pessoa normal.”
No caso concreto, como decorre da factualidade o contrato de arrendamento rural foi celebrado há mais de 40 anos, e foi celebrado verbalmente numa época em que, mesmo assim, ele era válido.
Perante este tão grande lapso temporal poder-se-á equacionar a situação de confiança provocada pelo circunstância de os ascendentes da Autora terem aceitado a situação durante mais de 20 anos, dado que, como atrás se referiu, pelo menos, desde 01/07/89, atento o disposto no n° 3 artigo 36.ºdo DL 385/88, podiam ter exigido aos Réus a redução a escrito do contrato.
E, perante o referido hiato temporal, sem que fosse arguida a nulidade pode, de facto, colocar-se a hipótese de se estar perante a denominada “suppressio” que é a situação do direito que, não tendo sido, em determinadas circunstâncias, exercido durante um determinado lapso de tempo, não possa mais sê-lo por, de outra forma, se contrariar a boa fé.[26]
A “suppressio” é reconduzida pela doutrina a uma sub-hipótese do “venire contra factum proprium”, que traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente.
No fundo a “suppressio” só se distingue do “venire” por o factum proprium ser uma simples inactividade ou abstenção,[27] ou seja, na “supressio” o tempo tem uma projecção de maior relevo: é pela sua continuidade que o não exercício suscita as expectativas, pessoais e sociais, de que o direito não será exercido.
Portanto, tal como no “venire” a “suppressio” pode ser reconduzida à tutela da confiança e da boa fé.
Assim, tal como no “venire” a “suppressio” funciona perante os elementos da tutela da confiança: a situação de confiança; o investimento de confiança; a imputação de confiança ao titular.
Reportando-se aos casos excepcionais em que se justificasse a cedência da nulidade perante a proibição do venire, o Prof. Baptista Machada[28] propõe o concurso dos seguintes pressupostos: a) ter a parte confiado em que adquiriu pelo negócio uma posição jurídica; b) ter essa parte, com base em tal crença, orientado a sua vida por forma a tomar posições que ora são irreversíveis, pelo que a nulidade provocaria danos vultuosos, agora irremovíveis através de outros meios jurídicos; e, c) poder a situação criada ser imputada à contraparte, por esta ter culposamente contribuído para a inobservância da forma exigida, ou então ter o contrato sido executado e ter-se a situação prolongado por largo período de tempo, sem que hajam surgido quaisquer dificuldades.
Não sendo, pois, suficiente um decurso significativo de tempo, é necessário que seja acompanhado de outras circunstâncias, para que se possa falar em confiança justificada de que ele não mais seria exercido.
E neste caso, pensamos, respeitando sempre opinião contrária, que essa circunstância existe.
Repare-se que durante aquele longo período de tempo e na execução desse acordo verbal, os Réus entregaram aos pais da Autora, na casa que estes habitavam com as suas filhas, incluindo a Autora, enquanto aqueles foram vivos e, após o seu falecimento, às suas filhas, a metade dos produtos agrícolas produzidos nos aludidos prédios rústicos, conforme ainda sucedeu em 2015 (facto descrito em 11º da fundamentação factual).
Portanto, os pais da Autora e esta, como proprietários, sempre se comportaram como se o contrato fosse válido, pois que sempre aceitaram receber a renda respectiva.
Se a Autora considerava estar o contrato ferido de nulidade, como o expressou na missiva enviada através do seu advogado ao Réus, datada de 01/12/2014, por que razão aceitou ainda o pagamento da renda anual em 2015?
Como assim, não obstante se poder considerar que não foi a Autora quem celebrou o contrato, mas os seus antecessores, não se pode deixar de se considerar que o seu comportamento revela algum oportunismo.
Na verdade, a invocação de uma nulidade de um contrato de arrendamento rural com mais de 40 anos, parece-nos, ofende de forma clamorosa o sentimento justiça dominante, pois que, embora seja contrário à vontade presumível das partes e à ordem pública uma vinculação perpétua ou de duração indefinida não pode deixar de se considerar existir um excesso dos limites impostos pela boa fé, perante o comportamento activo quer dos antecessores da Autora quer dela mesmo, demonstrativo que aceitavam a validade do contrato, designadamente recebendo as respectivas rendas.
Ou seja, a relação contratual subsistiu prolongadamente no tempo, sendo cumprida pacificamente pelas partes sem quaisquer pontos ou focos de litigiosidade, e havendo a certeza prática de cumprimento acerca de um elemento absolutamente essencial à consolidação e estabilização da relação locatícia emergente do negócio inquinado pela nulidade formal, isto é, o pagamento da renda.
Por outro lado importa sopesar que os Réus que sempre habitaram naquela casa e cultivaram os respectivos terrenos, no seu próprio ambiente, com o seu modus vivendi e com a sua liberdade, a mudança forçada ex vi da cessação do contrato, por que factos notórios (artigo 412.º do CPCivil), lhes acarretaria despesas acrescidas e a sua afectação de saúde a nível psíco-somático, pois que, muito provavelmente, teriam de ir viver para um meio onde, por motivos vários, físicos, funcionais, psíquico-emocionais, humano-sociais, dificilmente se integrariam.
*
Procede, pois, o recurso neste conspecto, por se justificar a inalegabilidade da nulidade do contrato por falta de forma com fundamento no abuso do direito na referida modalidade de “suppressio.
*
Diante do exposto, terão der ser atendidas as conclusões XXXIV a LXXVIII formuladas pelos recorrentes e, com elas, o respectivo recurso.
*
IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação parcialmente procedente por provada e, por isso, revogam a decisão recorrida na parte em que declarou a nulidade do acordo verbal identificado nos pontos 8.º a 11.º dos factos provados supra e, consequentemente, condenou os réus C… e D… na restituição dos prédios identificados em 1º a 3º dos factos provados, absolvendo-os, assim, desses pedidos.
*
Custas por apelantes e apelada na proporção do respectivo decaimento sem prejuízo do apoio judiciário que foi concedido àqueles (artigo 527.º, nº 1 do CPCivil).
*
Porto, 7 de Novembro de 2016.
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
____
[1] Que de conclusões apenas têm o nome pois que mais não são do que o corpo alegatório devidamente numerado.
[2] Cfr. Ac. desta Relação de 18/04/1985 in www.dgsi.pt.
[3] Cfr. neste sentido Menezes Leitão in Arrendamento Urbano, Almedina, 2007, página 10.
[4] In Código Civil Anotado, Volume II, 3.ª Edição, página 433.
[5] A nível jurisprudencial, o Ac. RC de 12/07/1994 in In B.M.J., n.º 439, página 663, consignou-se que: “os prédios mistos são uma verificação de facto (e não jurídica), pois o critério da destinação económica é que permite classificar de rústico ou urbano um prédio formado por parte rústica e por parte urbana”, tendo-se no mesmo sentido pronunciado o STJ no Ac. 3/01/1991 in www.dgsi.pt no qual se defendeu que “o prédio será rústico ou urbano conforme a habitação for fundamentalmente um meio de ligação à terra cultivada ou antes a terra constituir apenas um complemento da habitação e não um fim essencial da ocupação da habitação. Mais se acrescenta que não se pode dizer que um prédio tenha deixado de ser um prédio rústico, porque não perdeu a sua destinação económica a fins agrícolas com a construção de uma habitação, que constitui, não uma alteração da destinação económica do prédio, mas antes a conjugação dos interesses habitacionais dos proprietários com os interesses económicos da exploração agrícola do prédio.”
[6] Cfr. Acórdão da Relação de Coimbra de 17/11/1992, in C.J., Tomo V, páginas 54 e seguintes.
[7] Obra citada pág. 862.
[8] In C.J., Ano VIII, Tomo 1, página 206.
[9] In C.J., Ano IV, página 1707.
[10] Teoria Geral do Direito Civil, 3ª ed., pag. 444.
[11] Luís Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, pag. 344.
[12] Teoria Geral da Relação Jurídica, II, pag. 213.
[13] Vaz Serra, RLJ, Ano 111, p. 220.
[14] In www.dgsi.pt
[15] In www.dgsi.pt.
[16] Cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 01 de Julho de 2003, de 09 de Novembro de 2004, de 23 de Outubro de 2007, da Relação de Lisboa de 12 de Junho de 2012, da Relação do Porto de 18 de Junho de 2012, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[17] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01 de Março de 2001, disponível em www.dgsi.pt.
[18] Cfr. Ac. da RC de 04/05/1993 in C.J, 1993, Tomo III, pág. 29.
[19] Cfr., entre muitos outros, os acórdãos do STJ de 30/11/95, na CJ–STJ- Ano III 20/5/97, Tomo III, pág. 132, de 20/5/97, no BMJ n.º 467.º, pág. 557 e de 25/11/99, CJ–STJ-, Ano VII, Tomo III, pág. 124, da RL de 29/1/98, na CJ, Ano XXIII, I, 103 e da RE de 23/4/98, CJ, XXIII, II, 278.
[20] In www.dgsi.pt.
[21] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª edição, pág. 298, e Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 7.ª edição, pág. 536.
[22] Cfr. Baptista Machado, RLJ, ano 119, pág. 171.
[23] In Tratado de Direito Civil Português, I, Tomo I, 2.ª edição, pág. 247.
[24] In BMJ nº 474, pág. 434 e segs.
[25] In Tratado de Direito Civil, Vol. I, Tomo I, pág. 186.
[26] Cfr. Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil” pág. 798.
[27] Cf. Menezes Cordeiro obra cita na nota 25, p. 208.
[28] In Revista de Legislação e Jurisprudência nº 118º-10/11.