Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4810/10.2TBVFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ONDINA CARMO ALVES
Descritores: ESCRITURA PÚBLICA
PARTILHA
REPARCELAMENTO DE PRÉDIO RÚSTICO
NULIDADE
Nº do Documento: RP201205084810/10.2TBVFR.P1
Data do Acordão: 05/08/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Face às finalidades do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação não poderá ser recusada a prática de um acto jurídico de reparcelamento de um terreno integrado dentro do perímetro urbano, através de uma partilha de herança, em parcelas de dimensão reduzida.
II - A necessidade de cumprimento de uma área de unidade mínima de cultura apenas terá de ser observada caso o prédio seja para afectar a fins agrícolas.
III - O fraccionamento de terrenos para construção fica sujeito ao regime dos loteamentos urbanos, sempre que esteja em causa a constituição de novos prédios destinados imediata ou subsequentemente à construção urbana.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação Nº 4810/10.2TBVFR .P1
Processo em 1ª instância – 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira

Sumário (art.º 713º nº 7 do CPC)

1. Face às finalidades do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação não poderá ser recusada a prática de um acto jurídico de reparcelamento de um terreno integrado dentro do perímetro urbano, através de uma partilha de herança, em parcelas de dimensão reduzida.
2. A necessidade de cumprimento de uma área de unidade mínima de cultura apenas terá de ser observada caso o prédio seja para afectar a fins agrícolas.
3. O fraccionamento de terrenos para construção fica sujeito ao regime dos loteamentos urbanos, sempre que esteja em causa a constituição de novos prédios destinados imediata ou subsequentemente à construção urbana.


ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

I. RELATÓRIO

O MINISTÉRIO PÚBLICO, intentou contra:
1. B…, residente na Rua …, nº .., …, Santa Maria da Feira;
2. C… E D…, residentes na Rua …, nº …, …, Santa Maria da Feira;
3. E… E F…, residentes na Rua …, nº …, …, Santa Maria da Feira;
4. G… E H… (após incidente de intervenção principal);
5. I… E J… (após incidente de intervenção principal),

acção declarativa, sob a forma de processo comum ordinário, através da qual pede seja declarada nula a escritura de fraccionamento, comunicando-se a declaração de nulidade aos Serviços de Finanças de Santa Maria da Feira - 3 para eliminação dos novos artigos 1184 e 1185 da freguesia de … e 2851 e 2852 da freguesia de … e reactivação dos artºs 203º da freguesia de … e 1713º da freguesia de ….

Fundamentou o autor, no essencial, esta sua pretensão nos termos seguintes:
1. Os réus são donos e podem dispor, na qualidade de únicos interessados na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de K…, dos prédios rústicos:
● terreno a pinhal e mato com a área de 2600 m2, sito no …, freguesia de …, Santa Maria da Feira, inscrito na matriz predial rústica sob o art° 203º, descrito na competente Conservatória sob o nº 292;
● terreno a pinhal e mato com a área de 5002 m2, sito no …, à Rua …, freguesia de …, Santa Maria da Feira, inscrito na matriz predial rústica sob o art° 1713º, descrito na competente Conservatória sob o na 1304.

2. No dia 20 de Julho de 2009, no Cartório Notarial de Santa Maria da Feira, sito na Rua … na ., .. dtº, os Réus fizeram o reparcelamento dos referidos prédios nos seguintes termos e parcelas:
● o prédio inscrito na matriz sob o artº 203 foi fraccionado em duas parcelas, uma com a área de terreno de 1370 m2 e outra com a área de 1300 m2 e,
● o prédio inscrito na matriz sob o art° 1713 foi fraccionado em duas parcelas, uma com a área de terreno de 2601 m2 e outra com a área de 2601 m2,
violando o artº 1376º do Código Civil e a Portaria 202/70 de 21 de Abril, pois que, de acordo com essas normas legais, não podem fraccionar-se em parcelas inferiores a 2 hectares.

Citados, os réus contestaram, impugnando os factos alegados e suscitaram a excepção de ilegitimidade passiva, por não estar em juízo G… e marido H… e I… e mulher J…, demais intervenientes na escritura, alegando que a divisão de um prédio rústico em parcelas não destinadas imediatamente a urbanização ou edificação passou a depender unicamente da vontade dos proprietários e deixou de ser, a partir da entrada em vigor da Lei na 60/2007, acto anulável pelo que a escritura pública outorgada não padece de qualquer vício.

Concluíram pedindo a sua absolvição do pedido.

A excepção de ilegitimidade passiva ficou suprida com a intervenção principal, do lado passivo, de G… e marido H… e I… e mulher J…, os quais citados para os termos da acção, não apresentaram contestação.

Por entender que os autos permitiam, sem necessidade de mais provas, a apreciação do mérito da causa, o Tribunal a quo, proferiu desde logo decisão, constando do Dispositivo da Sentença, o seguinte:

Pelo exposto e nos termos dos fundamentos de direito invocados, julgo a presente acção improcedente, e em consequência absolvo os Réus do pedido formulado pelo Autor.

Inconformado com o assim decidido, o MINISTÉRIO PÚBLICO interpôs recurso de apelação, relativamente à sentença prolatada.

São as seguintes as CONCLUSÕES do recorrente:

i. No caso em apreço, o negócio jurídico que o Ministério Público considera ilegal e anulável teve por objecto dois prédios ou terrenos rústico:
a. um prédio ou terreno rústico - terreno a pinhal e mato, com a área de 2600 m2 (dois mil e seiscentos metros quadrados), sito no …, Freguesia de …, Concelho de Santa Maria da Feira, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 203, com o valor patrimonial de € 30,87 (trinta euros e oitenta e sete cêntimos), descrito na competente Conservatória do Registo Predial sob o número 292, da Freguesia de … (v., na douta sentença recorrida, factos considerados provados documentalmente); e
b. um prédio ou terreno rústico - terreno a pinhal e mato, com a área de 5002m2 (cinco mil e dois metros quadrados), sito no …, à Rua …, Freguesia de …, Concelho de Santa Maria da Feira, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 1713, com o valor patrimonial de € 93,02 (noventa e três euros e dois cêntimos), descrito na competente Conservatória do Registo Predial sob o número 1304, da Freguesia de … (v., na douta sentença recorrida, factos considerados provados documentalmente).

ii. O quadro legal relativo ao emparcelamento e fraccionamento de prédios rústicos e de explorações agrícolas é definido pelo Código Civil, art.º 1376.° a 1382.° (conjugando-se o art. 1376.°, com a Portaria n.º 202/70, de 21 de Abril), bem como pelo Decreto-Lei n.º 384/88, de 25 de Outubro, e pelo Decreto-Lei n.º 103/90, de 22 de Março, estabelecendo o primeiro as bases gerais do emparcelamento e fraccionamento de prédios rústicos e de explorações agrícolas, que o segundo desenvolve.

iii. Os Réus não procederam a reparcelamento de cada um dos seus prédios – individualmente um só prédio, uma só parcela de terreno, que antes do acto anulável não tinha sido objecto de qualquer divisão -, mas ao seu fraccionamento (o prédio sito na Freguesia de …, dividido em duas parcelas, uma com a área de 1370 m2 e outra com a área de 1300 m2; e o prédio sito na Freguesia de …, dividido em duas parcelas, uma com a área de 2601m2 e outra com a área de 2600m2).

iv. Tal acto manifestamente ilegal, porque contrário ao citado regime do relativo ao emparcelamento e fraccionamento de prédios rústicos, designadamente ao disposto no art. 1376.°, n.° 1, do Código Civil e na Portaria n.º 202/70, de 21 de Abril, que proíbem o fraccionamento os terrenos aptos a cultura, da região de …, de área inferior a 2 hectares.

v. A norma do n.° 3 do art. 4.° do Decreto-Lei n.º 555/99 não se aplica a prédios rústicos.

vi. O próprio Decreto-Lei n.º 555/99, no seu art. 50.°, n.°1, exclui a aplicação do n.º 3 do art.º 4.° ao fraccionamento de prédios rústicos, ao dispor: «ao fraccionamento de prédios rústicos aplica-se o disposto no Decreto-Lei n.º 384/88, de 25 de Outubro e no Decreto-lei n.º 103/90, de 22 de Março».

vii. A definição de reparcelamento consta do art. 131.º, n.° 1, do Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de Setembro - Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial: O reparcelamento da propriedade é a operação que consiste no agrupamento de terrenos localizados dentro de perímetros urbanos delimitados em plano municipal de ordenamento do território e na sua posterior divisão ajustada àquele, com a adjudicação das parcelas resultantes aos primitivos proprietários ou a outras entidades interessadas na operação.

viii. Nos art.º 132.°, 133.° e 134.° do RJIGT fixam-se os critérios para o reparcelamento, enunciam-se os efeitos do reparcelamento e estabelece-se a obrigação de urbanização, resultante da operação de reparcelamento.

ix. Conjugando estas normas do RJIGT com a do art.º 4.°, n.º 3, do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, afigura-se-nos que a última apenas dispensa de sujeição a licenciamento, concedendo aos proprietários liberdade para solicitarem ou não o licenciamento, os actos de reparcelamento da propriedade, tal como estão previstos no RJIGT, quando de tais actos resultem parcelas não destinadas imediatamente a urbanização ou edificação.

x. Reparcelamento, em sentido corrente, é a acção de fragmentar, de dividir, de novo, em parcelas. Ou seja, constituir novas parcelas a partir de parcelas já existentes.

xi. As normas do Código Civil relativas ao fraccionamento de prédios rústicos, assim como o Decreto-Lei 384/88, de 25 de Outubro, e o Decreto-Lei n.º 103/90, de 22 de Março, continuam em vigor, porque não foram revogadas expressa ou tacitamente pela Lei n.º 60/2007, de 04/09, nem por qualquer outro diploma legal.

Pede, por isso, o apelante, que seja revogado o despacho saneador/sentença recorrido, e ordenada a prolação de novo despacho saneador, devendo os autos prosseguir os seus termos normais, julgando-se a final procedente, por provada, a acção de anulação de fraccionamento de prédio rústico intentada pelo Ministério Público.

Responderam os réus/recorridos, defendendo a manutenção do decidido e formulando as seguintes CONCLUSÕES:

i. O negócio jurídico constante da escritura pública outorgada em 20 de Julho de 2009 é completamente válido, uma vez que respeita e cumpre com o preceituado pelo artigo 4°, nº 3, do Dec. Lei nº 555/99, de 16 de Dezembro (regime jurídico da urbanização e edificação), com as alterações pela Lei nº 60/2007, de 04 de Setembro.

ii. Ora, em súmula, vem agora a recorrente dizer que a Mma. Juiz do Tribunal a quo alicerçou toda a sua construção jurídica num pressuposto errado, ou seja, que o citado decreto-lei não se aplica ao caso em apreço. Salvo o devido respeito, quem alicerçou toda a sua construção jurídica em pressupostos errados, esse alguém foi a recorrente, que chega ao ponto de confundir situações e contrariar princípios basilares do Direito sem para tal ter qualquer sustentação, quer legal, quer jurisprudencial.

iii. A recorrente confunde reparcelamento de prédios rústicos com fraccionamento de prédios rústicos.

iv. Reparcelar nada tem a ver com fraccionar.

v. Na verdade, o fraccionamento ou a divisão em substância de terrenos aptos para cultura, que é do que o supra citado diploma trata, só era possível desde que: a) Se respeitassem as unidades de cultura nos termos do artigo 1376° e ss. do Código Civil, e b) Se conseguisse parecer favorável da respectiva direcção regional de agricultura, emitido a requerimento do interessado, nos termos do nº 1 do artigo 45° do DL 103/90 de 22 de Março

vi. Depois da entrada em vigor da Lei 60/2007 atrás referida e que fundamenta a escritura pública outorgada nos termos em que o foi e constante dos presentes autos, tudo muda.

vii. Ou seja, o legislador através de uma Lei (diploma hierarquicamente superior) estatui diversamente do que dispõe o Código Civil, que é aprovado por DL (diploma hierarquicamente inferior) que: "A sujeição a licenciamento dos actos de reparcelamento da propriedade de que resultem parcelas não destinadas imediatamente a urbanização ou edificação, depende apenas da vontade dos proprietários."

viii. O cerne de toda esta questão está na forma em como deve ser interpretado o nº 4 do RJUE (Lei 60/2007). E, para tal, e salvo a devida modéstia, nada melhor que atender à Contestação apresentada pelos aqui recorridos, quanto aos fundamentos aí expandidos, para se entender que bem andou a Sra. Juiz do Tribunal a quo ao considerar válida a escritura constante dos autos.

ix. Conforme se refere na Contestação, urge, então, que o intérprete que aplica a lei retire as necessárias consequências da razão que levou o legislador a permitir que os proprietários de prédios rústicos pudessem fraccioná-los em parcelas não destinadas imediatamente a urbanização ou edificação, legislando expressamente que tal dependeria apenas da vontade dos mesmos.

x. Aquando da entrada em vigor do Código Civil em 1966, Portugal era um país essencialmente agrícola e entendia-se que um proprietário de prédio ou prédios rústicos não deveria retalhar a propriedade em unidades inferiores à unidade de cultura, pois entendia-se que a viabilidade económica da exploração dependia, em grande medida, da extensão da área de cultura.

xi. Daí defender-se, até à exaustão, a filosofia de não fraccionamento inerente ao estatuído nos artigos 1376° e ss. do Código Civil.

xii. Porém, os tempos são outros, a evolução económica e social tem sido enorme, tendo tal evolução trazido consequências nefastas à nossa agricultura, sendo que, actualmente assistimos a uma diminuição manifesta e absoluta, que é visível aos olhos de todos, das explorações agrícolas com a unidade de cultura, definida nos termos do citado preceito legal.

xiii. Verifica-se, à evidência, que os terrenos se tomam incultos e desaproveitados, multiplicando-se a quantidade de quintas agrícolas ao abandono, onde apenas prosperam as silvas e as ervas daninhas.

xiv. Mantém-se apenas uma agricultura para consumo doméstico, em áreas muito reduzidas e localizadas, para as quais, é necessário o trabalho de apenas uma ou duas pessoas.

xv. A divisão de um ou mais prédios rústicos, em várias parcelas não destinadas imediatamente a urbanização ou edificação e que depende apenas da vontade dos proprietários, é um acto que nem sequer é anulável, pois, caso o fosse, a disposição legal do nº 3 do artigo 4.° do RJUE, não teria qualquer alcance legislativo, pois nada acrescentaria às normas já existentes e que atrás se referem.

xvi. Ora, tal é impossível, pois o intérprete tem que interpretar a lei nos termos do artigo 9.° do Código Civil e, ao fazê-lo, terá, forçosamente, que concluir que o legislador pretendeu com o preceito em causa acrescentar alguma coisa às normas vigentes.

xvii. Não se legislou apenas por legislar. A entrada em vigor da Lei 60/2007, no que ao reparcelamento e fraccionamento de prédios diz respeito, um tremendo corte com a legislação então em vigor, mais concretamente com o D. Lei 555/99.

xviii. Ao contrário do que a recorrente alega, reparcelar não é fragmentar.

xix. Os recorridos, com a escritura dos autos, limitaram-se a reparcelar dois prédios rústicos. Assim sendo, afinal o que é que fizeram os recorridos?

xx. Poder-se-á definir reparcelamento como uma operação de transformação fundiária que consiste na alteração da divisão inicial dos prédios, seja um ou mais do que um, aumentando ou diminuindo o seu número, porém, e é aqui que está toda a diferença, mormente com o loteamento, é que no reparcelamento nunca se criam lotes, já que estes se constituem por efeito de licenciamento da "operação de loteamento".

xxi. Ou seja, no reparcelamento, a divisão inicial que se refere atrás não significa que tenha havido uma prévia divisão, material ou jurídica, de que resultassem aqueles prédios.

xxii. Assim sendo, está perfeitamente legitimada a escritura em questão não padecendo esta de qualquer vício.

xxiii. "A sujeição a licenciamento dos actos de reparcelamento da propriedade de que resultem parcelas não destinadas imediatamente a urbanização ou edificação, depende apenas da vontade dos proprietários."

xxiv. Assim sendo, e ao contrário do que o Ministério Público quer fazer passar, não se pode ignorar, ou escamotear, a entrada em vigor da já mencionada Lei 60/2007, de 4 de Setembro e, mais especificamente, o preceito constante do nº 3 do artigo 4° dessa mesma Lei, a qual veio alterar o DL 555/99, de 16 de Dezembro, tendo existido desta para a nova Lei uma evolução muito significativa.

xxv. E é esta evolução que a recorrente não pode vir agora querer esconder, tamanha é a evidência. O preceito constante do nº 3 do artigo 4° da Lei 60/2007, de 4 de Setembro aplica-se a quaisquer prédios.

xxvi. A decisão recorrida, em atenção ao que se acaba de expor, mostra-se legal e suficientemente motivada.

xxvii. O Tribunal a quo fez a análise crítica das provas e especificou os fundamentos decisivos da decisão, o que não nos merece qualquer tipo de reparo.

xxviii. Pelo exposto, afigura-se-nos que não existem razões fundadas que permitam alterar a decisão tomada pela primeira instância, devendo consolidar-se a douta sentença recorrida.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
***
II. ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO

Importa ter em consideração que, de acordo com o disposto no artigo 684º, nº 3 do Código de Processo Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.

Assim, e face ao teor das conclusões formuladas a solução a alcançar pressupõe a análise das seguintes questões:

DO REPARCELAMENTO DE PRÉDIOS RÚSTICOS E O ÂMBITO DE APLICAÇÃO DO REGIME JURÍDICO DA URBANIZAÇÃO E EDIFICAÇÃO (RJUE)

Por forma a apurar:

● se o nº 3 do artigo 4º do Decreto-Lei nº 555/99, de 16.12, na redacção introduzida pela Lei nº 60/2007, de 04.09 se não aplica a prédios rústicos, como defende o apelante, e se o acto de reparcelamento ínsito na escritura pública de 20.07.2009, outorgada pelos réus, é ilegal e, portanto, anulável.
***
III. FUNDAMENTAÇÃO

A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Foram dados como provados na sentença recorrida os seguintes factos:

1. Por escritura pública outorgada no dia 20 de Julho de 2009 no Cartório Notarial de Santa Maria da Feira sito na Rua … na ., .. dto, os Réus declararam que são os únicos interessados na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de K…, da qual fazem parte os dois prédios rústicos: terreno a pinhal e mato com a área de 2600 m2, sito no …, freguesia de …, Santa Maria da Feira, inscrito na matriz predial rústica sob o art° 203º, descrito na competente Conservatória sob o nº 292 e o terreno a pinhal e mato com a área de 5002 m2, sito no …, à Rua …, freguesia de …, Santa Maria da Feira, inscrito na matriz predial rústica sob o artº 1713º, descrito na competente Conservatória sob o nº 1304.

2. Mais declararam os Réus que nos termos do número 3, do artigo 40, do Decreto-Lei 555/99 de 16 de Dezembro, com a alteração introduzida pela Lei 60/2007, de 4 de Setembro procedem ao reparcelamento de cada um daqueles dois identificados prédios, inscritos na matriz sob os artigos 203 e 1713, em duas parcelas que a seguir se descrevem "não destinadas imediatamente a urbanização ou edificação":
Artigo 203:
1 - Parcela de terreno com a área de mil trezentos e setenta metros quadrados, a confinar do norte com L…, do sul com G…, do nascente com a Estrada e do poente com extremo da freguesia.
2 - Parcela de terreno com a área de mil e trezentos metros quadrados, a confinar do norte com E…, do sul com N…, do nascente com a estrada e do poente com extremo da freguesia
Artigo 1713:
3 - Parcela de terreno com a área de dois mil seiscentos e um metros quadrados, a confinar do norte com O…, do sul com G…, do nascente com o caminho público e do poente com P…
4 - Parcela de terreno com a área de dois mil seiscentos e um metros quadrados, a confinar do norte com E…, do sul com Q…, do nascente com o caminho público e do poente com P….
***
B – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Visa o Ministério Público com a presente acção que seja declarada nula a escritura pública outorgada em 20 de Julho de 2009, designada por “habilitação e partilha com reparcelamento” e através da qual, os réus outorgantes, para além de procederem à habilitação de herdeiros e partilha, declararam também proceder ao reparcelamento dos prédios rústicos, que identificaram e que integram a herança a partilhar, com a menção de que o faziam nos termos do nº 3 do artigo 4º do Decreto-Lei 555/99 de 16 de Dezembro, com a alteração introduzida pela Lei 60/2007, de 4 de Setembro.

Defende o autor/recorrente que se trata de fraccionamento de prédios rústicos, aptos para cultura, de área inferior à unidade de cultura, pelo que o nº 3 do artigo 4º do Decreto-Lei nº 555/99 não se lhes aplica. Consideram, ao invés, os réus/recorridos, que a escritura pública não padece de qualquer vício, invocando que o recorrente confunde reparcelamento de prédios rústicos com o fraccionamento destes prédios e defende a significativa evolução da Lei nº 60/2007 que efectuou um corte com a legislação então em vigor.

Importa, portanto, proceder à análise, ainda que perfunctória, do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE) e da evolução da regulamentação que o antecedeu.

Das várias operações urbanísticas definidas no RJUE, aquela que maior novidade apresenta, com relação à legislação pretérita, é, sem dúvida, a do loteamento urbano.

A regulamentação global das operações de loteamento urbano foi levada a cabo pelo Decreto-Lei n.º 46 673, de 29 de Novembro de 1965, num período em que a construção clandestina tinha atingido significativa dimensão, pelo que pretendeu o legislador dotar as autoridades administrativas competentes dos meios legais que lhes permitissem uma eficiente intervenção nas operações de loteamento urbano, que passaram a exigir licenciamento municipal titulado por alvará.

O loteamento era então definido como «a operação ou o resultado da operação que tenha por objecto ou tenha tido por efeito a divisão em lotes de um ou vários prédios fundiários, situados em zonas urbanas ou rurais, para venda ou locação simultânea ou sucessiva, e destinados à construção de habitações ou de estabelecimentos comerciais ou industriais».

Os requisitos cumulativos para a existência de loteamento urbano consistiam:
a) na realização de uma operação urbanística;
b) na divisão em lotes de um ou vários prédios fundiários;
c) no seu destino a venda ou locação simultânea ou sucessiva;
d) no seu destino à construção de habitações ou de estabelecimentos comerciais ou industriais.

Este diploma foi revogado pelo Decreto-Lei n.º 289/73, de 6 de Junho, que consagrou um novo regime dos loteamentos urbanos, delimitando o seu campo de aplicação, no artigo 1º, ao estatuir que: «A operação que tenha por objecto ou simplesmente tenha como efeito a divisão de qualquer área de um ou vários prédios, situados em zonas urbanas ou rurais, e destinados imediata ou subsequentemente à construção, depende de licença da câmara municipal da situação do prédio ou prédios, nos termos do presente diploma».

Exigia o artigo 27º do aludido diploma, por forma a permitir uma reacção eficaz contra os loteamento ilegais, que as operações de loteamento, bem como a celebração de negócios jurídicos relativos a terrenos por elas abrangidos, dependessem da prévia obtenção de alvará, exigindo-se que nos títulos de arrematação ou outros documentos judiciais, bem como nos instrumentos notariais relativos aos aludidos actos ou negócios se indicasse o número e data do alvará, sob pena de aqueles actos serem nulos e de não poderem ser sujeitos a registo.

O Decreto-Lei nº 400/84, de 31 de Dezembro veio revogar o citado Decreto-Lei n.º 289/73, definindo as operações de loteamento como «todas as acções que tenham por objecto ou por efeito a divisão em lotes, qualquer que seja a sua dimensão, de um ou vários prédios, desde que pelo menos um dos lotes se destine imediata ou subsequentemente à construção urbana»

Passaram a ser exigidos os seguintes requisitos para que se verificasse uma operação de loteamento urbano:
a) a existência de uma conduta voluntária;
b) a divisão fundiária em lotes;
c) a existência dos lotes para construção.

Como referem FERNANDA PAULA OLIVEIRA, MARIA JOSÉ CASTANHEIRA NEVES, DULCE LOPES E FERNANDA MACÃS, Regime Jurídico da Urbanização e Edificação Anotado, 3ª ed., 51, neste diploma legal, a localização das operações de loteamento não assumia relevo directo na definição, podendo a construção a que se destinavam os lotes ser simultânea ou sucessiva à operação de loteamento.

Mantinha-se neste diploma, e para essas operações de loteamento, a sua sujeição a licenciamento municipal e continuava a entender-se que, nos títulos de arrematação, nos instrumentos judiciais e nos instrumentos notariais relativos a actos ou negócios que implicassem, directa ou indirectamente, o fraccionamento de prédios rústicos com constituição de lotes destinados à construção, ou urbanos com logradouros, constasse a data do alvará.

Este diploma foi, por seu turno, revogado pelo Decreto-Lei n.º 448/91, de 29/11, através do qual se visou prosseguir objectivos de simplificação procedimental, de preservação de valores ambientais e do ordenamento do território, aí se mantendo, no nº 1 do artigo 1º, a necessidade de licenciamento municipal das operações de loteamento e das obras de urbanização, consideradas as formas mais relevantes de ocupação do solo, entendendo-se por operações de loteamento as acções que tenham por objecto ou por efeito a divisão em lotes, qualquer que seja a sua dimensão, de um ou vários prédios, desde que pelo menos um dos lotes se destine imediata ou subsequentemente a construção urbana.

Esclareceu-se, portanto, neste diploma, que basta para que se esteja perante este tipo de operação urbanística que um dos lotes resultantes da operação de loteamento se destine a construção urbana.

No artigo 8º estabeleceu-se, como princípio geral, que as operações de loteamento só podem realizar-se em áreas classificadas pelos planos municipais de ordenamento do território como urbanas ou urbanizáveis e manteve-se, igualmente, a exigência da menção do número do alvará, a data da sua emissão pela câmara municipal e a certidão do registo predial, nos títulos de arrematação, nos instrumentos judiciais e nos instrumentos notariais relativos a actos ou negócios jurídicos de que resultasse directa ou indirectamente a divisão em lotes, ou a transmissão de lotes legalmente constituídos.

Como salientam FERNANDA PAULA OLIVEIRA E DULCE LOPES, Implicações Notariais e Registrais das Normas Urbanísticas, Almedina, 2004, 46, o conceito de loteamento urbano surge ao longo dos vários diplomas legais como evolutivo, permanecendo sempre, como ponto principal, o fraccionamento ou divisão de prédios para efeitos de construção.

Mas, a evolução do aludido conceito foi mais acentuada com a entrada em vigor do actual regime jurídico da urbanização e edificação (RJUE), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, ao qual foram, entretanto, introduzidas diversas e significativas alterações (Decreto-Lei nº177/2001, de 4/6, Lei nº 15/2002, de 22/02, Lei nº 13/2000, de 20/7 e mais recentemente Decreto-Lei nº 157/2006, de 08/08, Lei nº 60/2007, de 4/9, Decreto-Lei nº 18/2008, de 29/01, Decreto-Lei nº 26/2010, de 30/3 e Lei nº 28/2010, de 02/09).

Afirma-se, no preâmbulo do diploma, na sua primitiva versão, que as operações de loteamento e as obras de urbanização, tal como as obras particulares, concretizam e materializam as opções contidas nos instrumentos de gestão territorial, não se distinguindo tanto pela sua natureza como pelos seus fins.

Optou o legislador pela regulação do conjunto daquelas operações urbanísticas através de um único diploma, justificando-se no citado preâmbulo que «em regra, ambas são de iniciativa privada e a sua realização está sujeita a idênticos procedimentos de controlo administrativo».

E, constituindo as operações de loteamento e as obras de urbanização, formas de intervenção dos particulares na ocupação dos solos, com implicações, designadamente, no ordenamento do território, no ambiente e na qualidade de vida das populações, manteve-se o controlo preventivo da Administração através da licença e da autorização.

O regime introduzido por este diploma alargou o conceito de loteamento que passou a integrar, para além das operações tradicionais de divisão fundiária, também as de emparcelamento e de reparcelamento de prédios para efeitos de edificação urbana, passando, assim, a assumir-se como característica essencial dos loteamentos a transformação fundiária, ou seja, a recomposição predial.

Define o artigo 2.º, alínea i) do Decreto-Lei n.º 555/99, como operações de loteamento, as acções que tenham por objecto ou por efeito a constituição de um ou mais lotes destinados imediata ou subsequentemente à edificação urbana, e que resulte da divisão de um ou vários prédios, ou do seu emparcelamento ou reparcelamento.

Consagrou, pois, este diploma, na redacção originária do artigo 2.º, a possibilidade de constituição de lotes não apenas através da divisão, mas também através de operações de emparcelamento ou de reparcelamento.

O emparcelamento (urbano) na definição dada por FERNANDA PAULA OLIVEIRA e DULCE LOPES, ob. cit., 74, consiste na acção voluntária de anexação de prédios autónomos, da qual resulta a constituição de um lote, destinando-se este, imediata ou subsequentemente à construção urbana.

E, o reparcelamento consiste numa operação urbanística de transformação fundiária que ocorre sempre que estejam em causa vários prédios e através da qual se altera a divisão inicial (aumentando ou diminuindo o número de lotes, desde que, neste último caso, não se trate da constituição de um só lote visto que aí estaremos já perante uma operação de emparcelamento). Acrescentam as citadas autoras que se trata de uma operação complexa, que engloba o agrupamento de terrenos (emparcelamento) e a posterior divisão em lotes (loteamento), ou seja, uma operação que, sendo distinta e mantendo a autonomia relativamente àquelas outras, as envolve – cfr. ob. cit, 68.

A noção, os critérios e efeitos do reparcelamento, enquanto instrumento de execução dos planos de ordenamento do território, encontram-se previstos nos artigos 131.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de Setembro (sucessivamente alterado), diploma este que estabelece o regime jurídico dos instrumentos de gestão territorial, e que define o reparcelamento da propriedade como «operação que consiste no agrupamento de terrenos localizados dentro de perímetros urbanos delimitados em plano municipal de ordenamento do território e na sua posterior divisão ajustada àquele, com a adjudicação dos lotes ou parcelas resultantes aos primitivos proprietários ou a outras entidades interessadas na operação».

Com as alterações introduzidas ao artigo 2.º do Decreto-Lei 555/99, pela Lei n.º 60/2007, de 4 de Setembro (que entrou em vigor seis meses mais tarde), a alínea i) deixou de fazer alusão às operações de emparcelamento, como um dos modos de constituição de loteamentos, não eliminando, contudo, a referência a loteamentos de um só lote.

As “operações de loteamento” passaram então a ser definidas como as acções que tenham por objecto ou por efeito a constituição de um ou mais lotes destinados imediata ou subsequentemente à edificação urbana, e que resulte da divisão de um ou vários prédios ou do seu reparcelamento.

Esta definição manteve-se até à presente data, apesar de o diploma ter sofrido ainda outras alterações, designadamente pelo Decreto-Lei n.º 26/2010.

São agora elementos constitutivos do conceito de loteamento urbano:
a) Conduta voluntária que implique uma divisão predial, material ou meramente jurídica, como aquela que resulta, nomeadamente de venda, locação, doação ou de partilha de herança;
b) A constituição de lotes, consistente na formação de unidades autónomas, ou seja, dando origem a novos prédios urbanos perfeitamente individualizados e objecto do direito de propriedade nos termos gerais, visando acentuar a divisão jurídica da propriedade, sendo irrelevante o número de lotes e a respectiva área;
c) O destino dos lotes à construção urbana, i.e., a usos urbanos, correspondendo à finalidade a que o edifício está afectado - habitacionais, comerciais ou industriais - com exclusão da que se destina a outros fins (agrícolas, florestais, cinegéticos ou semelhantes).

O regime de controlo prévio das operações de loteamento estabelecido no Decreto-Lei n.º 555/99, na sua versão primitiva, foi alterado pela Lei n.º 60/2007, por razões tendentes a uma simplificação de procedimentos, passando esse controlo prévio das operações urbanísticas a ser realizado, como decorre do artigo 4º, nºs 1, 2 e 4, através da licença administrativa (como sucede para o caso das operações de loteamento), da autorização e da comunicação prévia, verificando-se uma redução dos casos sujeitos a autorização, estendendo-se a figura de comunicação prévia a várias situações, que passou a constituir o regime regra, aplicável aos casos não expressamente dispensados de controlo prévio.

Preceitua, por seu turno, o artigo 41.º do RJEU que: As operações de loteamento só podem realizar-se nas áreas situadas dentro do perímetro urbano e em terrenos já urbanizados ou cuja urbanização se encontre programada em plano municipal de ordenamento do território.

E, nos termos do artigo 42.º, nº 1: O licenciamento de operação de loteamento que se realize em área não abrangida por qualquer plano municipal de ordenamento do território está sujeito a parecer prévio favorável da CCDR, ao qual se aplica, com as necessárias adaptações, o disposto nos n.ºs 4 e 5 do artigo 13.º.

Resulta, por outro lado, do nº 1 do artigo 49º que Nos títulos de arrematação ou outros documentos judiciais, bem como nos instrumentos notariais relativos a actos ou negócios jurídicos de que resulte, directa ou indirectamente, a constituição de lotes nos termos da alínea i) do artigo 2.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 6.º e 7.º, ou a transmissão de lotes legalmente constituídos, deve constar o número do alvará, a data da sua emissão pela câmara municipal e a certidão do registo predial.

Mas, pese embora o que decorre do disposto nos citados artigos 41º e 42º, nº 1 do RJUE, a localização dos prédios, incluídos no perímetro urbano ou em solo rural intervencionado, não absorve todos os elementos ou pressupostos objectivos presentes na noção legal de operação de loteamento, tal como é definida pelo artigo 2.º, alínea i), do Decreto-Lei nº 555/99.

Face à disciplina global do diploma e às finalidades que prossegue, subjaz à actual noção de loteamento a localização do prédio ou prédios a lotear em solos assim caracterizados pelos instrumentos de gestão territorial.

Também o próprio conceito legal de loteamento inclui um elemento de ordem subjectiva, volitivo, que consiste na intenção de construir ou edificar.

Como salientam FERNANDA PAULA OLIVEIRA, MARIA JOSÉ CASTANHEIRA NEVES, DULCE LOPES E FERNANDA MACÃS, ob. cit., 53, a operação de loteamento é, não só a que dá origem a lotes destinados imediatamente a construção urbana, a que denominam de loteamento-acção, mas também aquela em que a edificação não é imediata, surgindo apenas em momento posterior, o denominado loteamento-resultado.

Mais adiante salientam estas autoras que a lei determina serem loteamentos urbanos não só as acções que tenham por objecto a criação de lotes, mas também aquelas que a tenham como efeito. Se a primeira situação não suscita quaisquer dúvidas quanto à sua recondução à noção de loteamento urbano, já a segunda, pode colocar maiores problemas. Referimo-nos, particularmente, àquelas situações em que a divisão fundiária não é a intenção principal dos interessados (o seu objecto imediato), mas antes o resultado de um acto ou negócio jurídico (venda, partilha de herança ou divisão de coisa comum, etc.). Com efeito, nestes casos, pode tornar-se difícil determinar a vontade subjacente de quem promove a divisão: se a mesma visa apenas o acto ou o negócio jurídico (de mera venda, partilha de herança ou divisão de coisa comum) ou se, pelo contrário, se pretende também destinar (ou vir a destinar) as novas unidades prediais, em momento sucessivo, a edificação urbana (com o que teríamos então, um loteamento-resultado).

Suscitam, assim, dúvidas sobre a identificação de operações de loteamento às situações que se traduzam numa mera divisão fundiária, ao referirem que Se se entender que a divisão de um prédio resultante, por exemplo, de um acto jurídico de partilha de herança, é um loteamento desde que as parcelas dele resultantes admitam objectivamente edificação (o que ocorrerá em regra quando os prédios se encontrem dentro do perímetro urbano, mas também quando incluídas em solo rural por este deter também alguma capacidade edificativa), a consequência será de a mesma ter de ser antecedida de um licenciamento municipal (impossível na segunda situação referida por, salvo situações excepcionais, não serem admitidos loteamentos fora dos perímetros urbanos) – cfr. ob cit., pg. 56.

Defendem, por isso, as citadas autoras, que não serão operações de loteamento, as que se traduzam numa mera divisão fundiária que, não obstante darem origem a novas unidades prediais, as quais terão a capacidade edificativa que em cada momento os instrumentos de planificação lhe defiram, não criam lotes urbanos, ou seja, novas unidades prediais com uma capacidade edificativa precisa e estabilizada por acto administrativo.

E, neste caso não será aceitável a sujeição de tais operações de transformação fundiária ao prévio controlo administrativo dos municípios, através dos procedimentos previstos para as operações urbanísticas.

Com efeito, este entendimento propugnado pelas mencionadas autoras poderá justificar a inovadora norma introduzida pela Lei nº 60/2007, no n.º 3 do artigo 4.º do diploma, quando estatui: A sujeição a licenciamento dos actos de reparcelamento da propriedade de que resultem parcelas não destinadas imediatamente a urbanização ou edificação depende da vontade dos proprietários.

Deixa tal normativo na disponibilidade dos proprietários a sujeição a licenciamento das operações de reparcelamento quando não tenham em vista a imediata edificação. Tais reparcelamentos poderão ser considerados operações de transformação fundiária, mas não operações de loteamento, não sendo as parcelas deles resultantes lotes, tanto mais que a própria lei não se lhes refere como lotes mas apenas como parcelas.

E esta construção encontra respaldo na intenção anunciada pelo legislador de facilitar os actos e negócios jurídicos de transmissão de propriedade.

Conforme resulta dos trabalhos preparatórios da Lei n.º 60/2007, publicados nos Diários da Assembleia da República, II Série A, Nº 99, de 22.06.2007 (Proposta de Lei nº 149/X) e I Série, Nº 102, de 06.07.2007 (actas de discussão na generalidade), as razões que presidiram a estas alterações legislativas são apenas os propósitos da simplificação e agilização de procedimentos, no âmbito mais geral do Programa denominado “Simplex”, bem como à facilitação dos actos e negócios jurídicos de transmissão da propriedade.

Com efeito, na exposição de motivos que precedeu a respectiva proposta de lei diz-se que “Com vista à superação destes obstáculos, e no cumprimento do Programa do Governo, são propostas alterações profundas a este regime que se caracterizam por uma nova delimitação do âmbito de aplicação dos diversos procedimentos de controle prévio”. E mais à frente, refere-se: “Também ao nível do regime dos loteamentos, emparcelamentos e reparcelamentos foi efectuado um apuramento das operações que de facto devem estar submetidas ao seu regime. Assim, eliminou-se do seu âmbito os meros emparcelamentos e fez-se depender a sujeição dos reparcelamentos a licenciamento da vontade dos titulares, sempre que as parcelas que dele resultem não sejam destinadas imediatamente a urbanização ou edificação».

Na discussão na generalidade da proposta de lei nº 149/X, extrai-se da intervenção da deputada Cláudia Couto Vieira, em abono das soluções propostas, o seguinte: “Esta iniciativa, prosseguindo a implementação do Programa denominado Simplex, propõe uma reforma estruturante, ambiciosa e audaz do regime jurídico actualmente em vigor e tem como objectivo fundamental simplificar o procedimento de licenciamento urbanístico através da redefinição dos modelos de controlo prévio administrativo, introduzindo soluções compatíveis com o desenvolvimento económico, com o controlo da legalidade urbanística e com a utilização de novas tecnologias e formas de relacionamento entre as diversas entidades envolvidas».

E, explicita mais adiante: “No que diz respeito ao regime dos loteamentos, emparcelamentos e reparcelamentos, propõe-se a eliminação dos meros emparcelamentos e faz-se depender a sujeição a licenciamento dos reparcelamentos da vontade dos titulares, desde que as parcelas que daí resultem não se destinem imediatamente a urbanização ou edificação. Estas medidas irão encurtar de forma substancial o tempo de realização desses negócios e facilitar a transmissão da propriedade com as consequências económicas que daí advêm.

Face às finalidades do diploma aqui em apreciação, não poderá ser recusada a prática de um acto jurídico de reparcelamento de um terreno integrado dentro do perímetro urbano, através de uma partilha de herança, em parcelas de dimensão reduzida, já que a necessidade de cumprimento de uma área de unidade mínima de cultura apenas terá de ser cumprida caso o prédio seja para afectar a fins agrícolas.

Por outro lado, a área mínima de parcela para construção definida nos planos directores municipais apenas será exigida se o terreno for destinado a edificação, que não é o único uso urbano admissível.

É certo que o legislador inseriu no RJEU a norma do artigo 50º, estatuindo, o seu nº 1, que ao fraccionamento de prédios rústicos se aplica o disposto nos Decretos-Leis nºs 384/88, de 25 de Outubro e 103/90, de 22 de Março.

E estranhamente o fez, já que no RJEU estão em causa, como antes de referiu, operações de loteamento localizadas dentro do perímetro urbano, logo, prédios susceptíveis de serem fraccionados de acordo com as regras impostas nos respectivos planos municipais, ao passo que o fraccionamento de prédios rústicos abrangidos, quer pelo Decreto-Lei nº 384/88, quer pelo Decreto-Lei nº 103/90, só podem respeitar a prédios dessa natureza localizados fora do perímetro urbano.

O artigo 19º do Decreto-Lei nº 384/88, de 25 de Outubro circunscreve o âmbito de aplicação do fraccionamento previsto nesse diploma aos terrenos com aptidão agrícola e florestal, estipulando que: Ao fraccionamento e à troca de terrenos com aptidão agrícola ou florestal aplicam-se, além das regras dos artigos 1376º e 1379º do Código Civil, as disposições da presente lei.

Os solos incluídos no perímetro urbano, aos quais se aplica o RJEU, não são solos com aptidão agrícola ou florestal, mas sim solos para os quais é reconhecida vocação para o processo de urbanização e edificação.

As limitações ao fraccionamento de prédios rústicos visam evitar os inconvenientes de ordem económica, designadamente, de menor produtividade agrícola dos prédios quando estes se reduzem a proporções muito limitada.

A Portaria nº 202/70, de 21 de Abril fixou a área de cultura mínima para as diversas regiões do território continental, classificando para este efeito os prédios rústicos em terrenos de regadio, arvense ou hortícolas, bem como de sequeiro.

Tal significa que o proprietário do terreno que dele queira dispor em parcelas ou fracções só poderá exercer esse direito de disposição se cada uma dessas unidades fundiárias que se vier a formar tiver área não inferior à unidade de cultura fixada pela aludida Portaria.

É, todavia, admissível o fraccionamento de prédios rústicos que integram terrenos destinados a fins diversos da cultura, bem como o fraccionamento de terrenos para construção, ficando esta sujeita ao regime jurídico dos loteamentos urbanos, sempre que esteja em causa a constituição de novos prédios destinados, imediata ou subsequentemente, à construção urbana, que abrange a construção de edifícios destinados a habitação, escritórios, indústria ou comércio.

Ora, no caso vertente, provado ficou que os prédios nos quais foi efectuado o reparcelamento, são rústicos e que, com tal reparcelamento, se constituíram parcelas com áreas inferiores à unidade de cultura estabelecida para a região onde as mesmas se inserem.

Sucede que da escritura pública se infere que tais prédios não são para afectar a fins agrícolas, invocando os outorgantes, expressamente, em tal instrumento notarial, o disposto no nº 3 do artigo 4º do Decreto-Lei nº 555/99, de 16 de Dezembro, com a alteração introduzida pela Lei nº 60/2007, de 4 de Setembro.

Tal declaração pressupõe, como acima ficou dito, que em causa estão parcelas de terreno inseridas no perímetro urbano, não pretendendo os outorgantes destiná-las, de momento, para edificação, reservando essa determinação para mais tarde, fazendo-o de acordo com os instrumentos de planeamento urbanístico em vigor nessa data.

E, a esse propósito nada foi alegado, em sentido divergente, pelo autor, por forma a apurar da eventual existência de fraude à lei, e sendo certo que essa factualidade não pode deixar de se considerar constitutiva do direito que o autor pretende fazer valer com a interposta acção – a anulação da aludida escritura pública.

É que, como se conclui do anteriormente explanado, não basta argumentar com a natureza rústica dos terrenos para se concluir que não tem aplicação o RJEU, já que tudo depende do destino das parcelas em causa, da sua inserção no perímetro urbano e da susceptibilidade das mesmas serem fraccionadas de acordo com as regras impostas pelo respectivo plano municipal.

Não tendo o autor provado, por falta de alegação, a factualidade necessária para se concluir pela inviabilidade de aplicação do normativo inserto no instrumento notarial cuja anulação se visa, há que reconhecer que a pretensão do autor nunca poderia proceder, o que acarreta, em consequência, a total improcedência do recurso e a confirmação da sentença recorrida.

O apelante, apesar de vencido na acção, está isento de custas, nos termos do preceituado na alínea a) do nº 1 do artigo 4º do Regulamento das Custas Processuais.
***
IV. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.

Sem custas, por delas estar isento o apelante.

Porto, 8 de Maio de 2012
Ondina de Oliveira Carmo Alves
João Manuel Araújo Ramos Lopes
Maria de Jesus Pereira